Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
898/14.5TBCBR.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: CESSÃO DE QUOTA
INTERPRETAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
OMISSÃO
VONTADE DOS CONTRAENTES
INTEGRAÇÃO DO NEGÓCIO
Data do Acordão: 12/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO.
Doutrina:
- A. VAZ SERRA, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 107.º, 1974/75, 75.
- J. BAPTISTA MACHADO, «A Cláusula do razoável», na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 119.º, 1986/87, 162.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 238.º, 239.º.
Sumário :
I - Há omissão do contrato, quando as partes, não tendo previsto a situação, a não regularam, diferindo da situação de se ignorar a vontade das partes, por o contrato ser obscuro e ambíguo ou contraditório.

II - Na falta de disposição especial, a declaração negocial é integrada de harmonia com a vontade hipotética das partes, sem prejuízo da boa fé – art. 239.º do CC.

III - Se a vantagem de uma impugnação de liquidação fiscal foi atribuída aos cedentes, pela mesma lógica que orientou o contrato de cessão de quota, a vantagem traduzida pelos juros indemnizatórios também tem de ser dirigida aos cedentes.

IV - Embora a interpretação integrativa do contrato implique uma ampliação, pelo destino dado aos juros indemnizatórios, mantém-se intocável o domínio negocial da cessão de quota traçado pelas partes, condição indispensável ao suprimento da omissão.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


AA e mulher, BB, e CC, Lda, instauraram, em 24 de julho de 2014, na então Vara Mista da Comarca de Coimbra (Instância Central de Coimbra, Secção Cível, Comarca de Coimbra), contra DD – Saúde e Vida, SGPS, Lda., ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhes a quantia de € 34 529,19, com a expressa advertência para, após a citação e nos termos do art. 560.º do Código Civil, capitalizar os juros vencidos ou proceder ao seu pagamento, sob pena de capitalização, até integral pagamento.

Para tanto, alegaram, em síntese, que, em 11 de de setembro de 2008, celebraram um contrato de cessão de quota, transmitindo onerosamente à R. a totalidade do capital social de Centro de Medicina Física e Reabilitação EE, Lda; por efeito do acordo celebrado, tinham direito a receber a restituição dos impostos e juros, deixando a R. de lhes entregar a quantia de € 34 529,19.

Contestou a R., por impugnação e concluindo pela improcedência da ação.

Enunciados os temas da prova e realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 23 de outubro de 2015, sentença, julgando-se a ação procedente e condenando a Ré a pagar aos Autores a quantia de € 34 529,19, sem prejuízo da sua capitalização após citação, nos termos do art. 560.º do Código Civil.


Inconformada, a Ré apelou para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por acórdão de 28 de junho de 2016, revogou a sentença e absolveu a Ré do pedido.


Inconformados, os Autores recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formularam essencialmente as conclusões:

a) A previsão do n.º 1 do art. 29.º da LGT não terá aplicação.

b) A Recorrida assumiu contratualmente entregar aos AA. o direito de crédito da sociedade sobre o Estado – cláusula 3.ª do contrato.

c) A interpretação perfilhada pelo Tribunal da Relação colide com a factualidade instrumental provada em 3).

d) O Tribunal da Relação violou o disposto nos arts. 577.º, 582.º e 561.º, todos do CC, por errada interpretação.

e) Ao afastar a aplicação do disposto nos arts. 236.º e 237.º do CC, a Relação incorreu em violação de norma substantiva, por errada interpretação.

f) Bem como violou, ao fazer recair sobre os Recorrentes o ónus de provar o alegado direito a receber o valor dos juros indemnizatórios, os arts. 344.º, n.º 1, e 582.º do CC.  


Com a revista, os Recorrentes pretendem a revogação do acórdão recorrido e a procedência da ação.


Contra-alegou a R., no sentido de ser negado provimento ao recurso.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Neste recurso, está apenas em discussão o pagamento aos cedentes da quantia que a sociedade cedida viesse a receber da Fazenda Pública, a título de juros indemnizatórios.

II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:

1. Em 11 de setembro de 2008, AA. e R. celebraram o “contrato de cessão de quotas”, pelo qual aqueles transmitiram, pelo preço de € 180 000,00, a esta a totalidade do capital social da Centro de Medicina Física e Reabilitação EE, Lda, com sede em Coimbra, nos termos de fls. 12 a 27.

2. Com vista a suprir um lapso de escrita, constante no ponto 3.2 da cláusula 3.ª do contrato, AA. e R. outorgaram um novo documento, denominado “aditamento a contrato de cessão de quotas”, pelo qual foi alterada a redação do referido ponto, retroagida ao momento da celebração do contrato, mantendo-se tudo o demais nele constante – fls. 28 a 30.

3. De acordo com o convencionado no ponto 1.3, alínea e), do referido contrato e por ata n.º 28 da assembleia geral da sociedade cedida, foram nomeados gerentes, desde 4 de setembro de 2008, as mesmas pessoas físicas que já representavam e obrigavam a R., nomeadamente como compradora no contrato – fls. 47 a 52.

4. AA. e R. convencionaram na cláusula 3.ª do contrato, pontos 3.1 e 3.2, com a redação alterada pelo aditamento, que: (…) (Direitos de Crédito) 3.1. Os direitos de crédito sobre o Estado e demais terceiros a favor da Sociedade, vencidos e vincendos, que tenham sido constituídos até à meia-noite do dia anterior à celebração do Contrato, são pertença da Sociedade, visto estarem já contemplados no preço constante do número 2.1. 3.2. Exceciona-se do referido no número anterior o valor de € 77 771,00 (…) referente a liquidações de IVA e juros compensatórios dos exercícios de 1997, 1998, 1999 e 2000, objeto de impugnação fiscal, cujo processo se encontra em curso sob o n.º 8/2003 no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra em que, caso a mesma seja julgada procedente, tal valor, uma vez restituído pelo Fisco à Sociedade, será pela Compradora entregue aos Vendedores. A tal valor serão descontados todas as despesas que a Sociedade tenha suportado com o referido processo, nomeadamente custas e honorários – Anexo IV”.

5. Por sentença do TAF de Coimbra, transitada em julgado em 3 de abril de 2013, as impugnações judiciais tributárias das liquidações de IVA, relativas aos exercícios de 1997, 1998, 1999 e 2000 da sociedade cedida, foram julgadas procedentes, com a anulação e inexigibilidade dos impostos, IVA e juros reclamados; foi ainda reconhecido o direito à restituição do imposto, no montante de € 77 771,00, acrescido dos juros indemnizatórios, nos termos do art. 43.º, n.º 1, da LGT, no valor de € 34 528,19.

6. A R. devolveu aos AA. a quantia de € 62 487,25, referente à diferença entre o valor que a sociedade cedida recebeu do Estado relativa à restituição do imposto e juros compensatórios e as despesas suportadas com o processo de impugnação, nomeadamente custas e honorários, mas não lhes entregou a quantia de  € 34 529,19, relativa aos juros indemnizatórios recebidos pela sociedade cedida.

7. As partes não discutiram, na hipótese de procedência da impugnação fiscal, o destino dos juros indemnizatórios.

8. Na negociação da cessão de quota, e conforme anexos (fls. 27), nomeadamente o VII, foi avaliado todo o ativo e passivo da sociedade cedida, sendo contemplado no preço todos os encargos bancários da sociedade, incluindo os relativos ao empréstimo que a sociedade contraíra para pagamento à administração fiscal do valor entretanto objeto de restituição, eventualmente ainda pendente.

9. Os juros indemnizatórios reportam-se ao direito do crédito da sociedade cedida sobre o Estado e que a R. assumiu entregar aos AA.



***



2.2. Delimitada a matéria de facto, expurgada de juízos conclusivos, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente saber se os Recorrentes, por efeito do contrato de cessão de quota, têm direito a receber da Recorrida o valor dos juros indemnizatórios, no montante de € 34 529,19, pagos pela Fazenda Pública à sociedade cujas quotas foram cedidas, na sequência da procedência da impugnação da liquidação do IVA.

No acórdão recorrido, respondeu-se negativamente à questão, nomeadamente por falta de prova da obrigação de entrega aos Recorrentes do valor dos juros indemnizatórios.

Os Recorrentes, por sua vez, insistem na sua posição, com fundamento no contrato de cessão de quota celebrado, pugnando pela repristinação da sentença.


Na verdade, os Recorrentes e a Recorrida celebraram, em 11 de setembro de 2008, um contrato de cessão de quota, mediante o qual aqueles transmitiram à última as suas quotas, que totalizavam o capital social, na Centro de Medicina Física e Reabilitação EE, Lda, pelo preço total de € 180 000,00, nos termos de fls. 12 a 27 e 28 a 30.

Convencionaram especificamente na cláusula 3.ª desse contrato:

“3.1. Os direitos de crédito sobre o Estado e demais terceiros a favor da Sociedade, vencidos e vincendos, que tenham sido constituídos até à meia-noite do dia anterior à celebração do Contrato, são pertença da Sociedade, visto estarem já contemplados no preço constante do número 2.1.

3.2. Exceciona-se do referido no número anterior o valor de € 77 771,00 (…) referente a liquidações de IVA e juros compensatórios dos exercícios de 1997, 1998, 1999 e 2000, objeto de impugnação fiscal, cujo processo se encontra em curso sob o n.º 8/2003 no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra em que, caso a mesma seja julgada procedente, tal valor, uma vez restituído pelo Fisco à Sociedade, será pela Compradora entregue aos Vendedores. A tal valor serão descontados todas as despesas que a Sociedade tenha suportado com o referido processo, nomeadamente custas e honorários.”


As partes acordaram, expressamente, que os direitos de crédito da sociedade, designadamente sobre o Estado, e constituídos antes do contrato, eram da titularidade da sociedade.

Excetuaram, porém, desse acordo, o valor de € 77 771,00, referente a liquidações de IVA e juros compensatórios dos exercícios de 1997, 1998, 1999 e 2000, judicialmente impugnadas, e que, vindo a proceder, será entregue, pela cessionária aos cedentes, com o desconto das despesas suportadas pela sociedade, nomeadamente custas e honorários.

Tal valor coincide, precisamente, com o somatório das liquidações de IVA e juros compensatórios impugnadas judicialmente (fls. 37 e facto 5.).

No contrato, todavia, não se faz qualquer menção aos correspondentes juros indemnizatórios, sendo certo que as partes não discutiram, na hipótese de procedência da impugnação fiscal, o destino dos juros indemnizatórios, como se provou (7.), e, por outro lado, também não ficou provado que “os juros indemnizatórios estão incluídos no direito de crédito da sociedade cedida sobre o Estado” (temas da prova), pois a prova limitou-se a afirmar que “os juros indemnizatórios reportam-se ao direito de crédito da sociedade cedida sobre o Estado” (9.).

Neste contexto, estamos perante uma clara omissão do contrato de cessão de quota, quanto aos juros indemnizatórios a pagar pela Fazenda Pública, em que as partes, não tendo sequer equacionado a questão, como ficou provado, não a regularam especificamente.

Na verdade, não é caso para se afirmar que se ignora a vontade das partes, quanto aos juros indemnizatórios, por o contrato ser obscuro e ambíguo ou contraditório. Ignora-se a vontade das partes, pura e simplesmente, porque estas, não tendo previsto a situação, não a regularam. Tal difere do caso em que as partes, regulando os termos de forma confusa, obrigam a uma operação de interpretação, que, na aplicação das regras de interpretação para a obtenção do sentido normal da declaração negocial, pode revestir alguma complexidade.

Assim, mais do que a interpretação do contrato, o que emerge é sua integração. Com efeito, inexistindo uma declaração negocial específica, não faz sentido procurar o seu sentido normal e, por isso, de nada serve procurar a vontade subjetiva ou objetiva das partes, tendo em consideração as normas de interpretação previstas no art. 236.º do Código Civil (CC), sem prejuízo do disposto no art. 238.º do CC, aplicável aos negócios formais.


Na falta de disposição especial, dispõe o art. 239.º do Código Civil, a declaração negocial deve ser integrada de harmonia com a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa fé, quando outra seja a solução por eles imposta.

Em conformidade com esta disposição normativa, a integração do contrato há de fazer-se de acordo com a vontade hipotética das partes como se tivessem previsto a restituição dos juros indemnizatórios, decorrente da procedência da impugnação da liquidação do imposto.

Essa vontade hipotética, contudo, só prevalece, desde que não contrarie os ditames da boa fé, pois, neste caso, deve decidir-se de acordo com o que as partes deveriam ter querido (A. VAZ SERRA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 107.º, 1974/75, pág. 75).

Como bem refere ainda a doutrina, a vontade hipotética deve ser entendida, não como uma vontade psicológica, mas como um critério normativo, isto é, um critério de razoabilidade e de boa fé (J. BAPTISTA MACHADO, A Cláusula do razoável, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 119.º, 1986/87, pág. 162).


Procurando integrar a omissão, as partes não podem dar outro destino aos juros indemnizatórios que não fosse o do direito de crédito principal.

Na verdade, do clausulado no contrato, nomeadamente da cláusula 3.ª, retira-se que a sorte da impugnação fiscal corria, exclusivamente, a favor dos cedentes, embora com o desconto das custas e dos honorários, pelo que o pagamento dos juros indemnizatórios, como parte acessória, também teria de favorecer os cedentes das quotas. Se a vantagem da impugnação da liquidação fiscal foi atribuída aos cedentes, pela mesma lógica que orientou o contrato, a vantagem traduzida pelos juros indemnizatórios também tem de ser dirigida aos cedentes das quotas.

A circunstância do direito de crédito estar identificado em quantia fixa, coincidente com o valor da impugnação da liquidação do imposto, não representa mais, pelo contexto contratual, do que uma mera especificação do direito de crédito e do seu valor, reportado ao momento da celebração do contrato.

Por outro lado, as exigências da boa fé não se opõem à integração do contrato no sentido dos juros indemnizatórios serem entregues aos cedentes das quotas. Pelo contrário, as exigências da boa fé justificam, também, a mesma solução normativa. Depois de se ter excecionado a titularidade do crédito da impugnação fiscal a favor dos cedentes e dos contraentes não terem cativado o destino dos juros indemnizatórios, seria atentatório da boa fé não os entregar, também, ao beneficiário da impugnação fiscal.

De resto, não resulta dos autos que tal solução tivesse sido excluída expressamente antes do contrato, em particular pela cessionária das quotas. É pacífico que a interpretação integradora do contrato não pode levar a uma ampliação do seu objeto não querida pelas partes.

Neste caso, embora a interpretação integrativa do contrato acabe por implicar uma ampliação, pelo destino dado agora aos juros indemnizatórios, tal não deixa de manter intocável o domínio negocial da cessão de quota traçado pelas partes, condição a que não pode deixar de obedecer o suprimento da omissão do contrato.

Nestes termos, por efeito da interpretação integrativa do contrato de cessão de quota, a cessionária está obrigada a entregar aos cedentes o valor correspondente aos juros indemnizatórios pagos pela Fazenda Pública, decorrentes da procedência da impugnação da liquidação do imposto, e deduzida antes do contrato.


Desta sorte, ainda que por diferente motivação da alegada no recurso, deve ser concedida a revista, repristinando-se a decisão da 1.ª instância.

 

2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

I. Há omissão do contrato, quando as partes, não tendo previsto a situação, a não regularam, diferindo da situação de se ignorar a vontade das partes, por o contrato ser obscuro e ambíguo ou contraditório.

II. Na falta de disposição especial, a declaração negocial é integrada de harmonia com a vontade hipotética das partes, sem prejuízo da boa fé – art. 239.º do Código Civil.

III. Se a vantagem de uma impugnação de liquidação fiscal foi atribuída aos cedentes, pela mesma lógica que orientou o contrato de cessão de quota, a vantagem traduzida pelos juros indemnizatórios também tem de ser dirigida aos cedentes.

IV. Embora a interpretação integrativa do contrato implique uma ampliação, pelo destino dado aos juros indemnizatórios, mantém-se intocável o domínio negocial da cessão de quota traçado pelas partes, condição indispensável ao suprimento da omissão.


2.4. A Recorrida, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Conceder a revista, revogando o acórdão recorrido e condenando a Ré a pagar aos Autores a quantia de € 34 529,19 (trinta e quatro mil quinhentos e vinte e nove euros e dezanove cêntimos), com a capitalização dos juros, nos termos do art. 560.º do Código Civil.


2) Condenar a Recorrida (Ré) no pagamento das custas.


Lisboa, 7 de dezembro de 2016


Olindo Geraldes (Relator)

Fernando Nunes Ribeiro

Maria dos Prazeres Beleza