Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
26405/09.3YYLSB.L1.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
AÇÃO EXECUTIVA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
Data do Acordão: 12/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A caracterização do procedimento de liquidação dependente de simples cálculo aritmético radica na natureza das operações necessárias para a determinação da quantia exequenda, nada tendo a ver com quaisquer outras questões que possam ser invocadas em sede de oposição à execução.
II - Constituindo o objecto da revista a decisão proferida pelo tribunal da Relação, mostra-se inócuo (para efeitos de integrar no n.º 1 do art. 671.º do CPC, o fundamento específico de recorribilidade) invocar a natureza (como despacho final) da decisão 1.ª instância.
III - O despacho de 1.ª instância, proferido em acção executiva, que indefere o requerimento da exequente pretendendo que não seja ordenada a extinção da execução e que a mesma prossiga para cobrança da quantia de € 109 459,88, ainda que se possa considerar um prelúdio de uma decisão de extinção da instância executiva, assume a natureza de decisão interlocutória.
IV - O recurso do acórdão da Relação que, revogando aquela decisão de indeferimento, determinou o prosseguimento da execução, com a notificação da executada nos termos e para efeitos do n.º 6 do art. 726.º do CPC, tendo por objecto a quantia de € 109 459.88, não tem integração no art. 854.º, do CPC, nem no n.º 1 do art. 671.º do mesmo Código, e, igualmente, não assume cabimento em qualquer das excepções contempladas no n.º 2 do citado art. 671.º (por falta de indicação de qualquer dos referidos fundamentos de recorribilidade – art. 637.º, n.º 2, do CPC); como tal, mostrando-se afastada a admissibilidade do recurso de revista, não pode este tribunal tomar conhecimento do seu objecto.
Decisão Texto Integral:



Acordam em conferência na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I –

1. A EPAL-EMPRESA PORTUGUESA DAS ÁGUAS LIVRES SA vem reclamar para a conferência do despacho da relatora que não conheceu do objecto do recurso por considerar que a revista interposta não era admissível.

Sustenta a sua discordância alegando, fundamentalmente:

- ao invés do percepcionado pelo despacho reclamado, a revista interposta encontra-se fundada e é admissível nos termos do artigo 854.º, do Código de Processo Civil, porque a decisão do Tribunal da Relação assenta em factos que não estão abrangidos pela segurança do título executivo, nem são factos que podem ser oficiosamente conhecidos pelo tribunal;

- o objecto do recurso consiste, por isso, na apreciação da susceptibilidade de a instância executiva ser renovada;

- o artigo 671.º, n.º 2, Código de Processo Civil, reporta-se apenas às decisões interlocutórias de 1ª instância objecto de apreciação pela Relação, que sejam simultaneamente decisões sobre aspectos adjectivos;

- o recurso de revista interposto não se fundou no referido preceito porque a decisão de 1ª instância não foi uma decisão interlocutória por ter posto fim ao processo que a Exequente queria renovar;

- o facto de a decisão de 1ª instância versar sobre matéria adjectiva, por si só, no caso, não impede o direito à revista, por ter de ser enquadrada no âmbito do conhecimento de excepção peremptória [assinala o Conselheiro ABRANTES GERALDES, no seu Recursos em Processo Civil, 6ª edição Actualizada, Almedina, 2020, pág. 397, que as decisões que se devem considerar como julgando o mérito da causa (nas suas palavras, as decisões que versem sobre “a resolução material do litígio”) incluem aquelas que julgam a procedência ou improcedência de alguma excepção peremptória, e, dessas, cabe revista].

               

2. Em resposta a Recorrida pronuncia-se pela manutenção da decisão reclamada, justificando o infundado do pretendido pela Reclamante.

II - Cumpre apreciar e decidir.

1. Das ocorrências processuais

1. Nos autos de execução de sentença instaurada por SUPERGOLF AMOREIRAS - ACADEMIA DE GOLFE SA contra EPAL-EMPRESA PORTUGUESA DAS ÁGUAS LIVRES SA, transitado em julgado acórdão do STJ (de 17-04-2018, proferido em sede de embargos de executado) que fixou a quantia exequenda (no montante de €109.459,88) e tendo a Executada (em 21-11-2018) procedido ao pagamento à Exequente do montante de €109.459,88, a Exequente veio requerer a extinção da instância (em 21-11-2018).

2. Em 08-02-2019 a Exequente veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 850.º, do Código de Processo Civil, com fundamento no princípio da economia processual, alegando que a Executada é ainda devedora da quantia de €109.459,88, que a instância executiva não seja extinta e que a mesma se mantenha para efeitos de cobrança daquela quantia.

3. Notificada para se pronunciar, a Executada requereu (em 19-02-2019) o indeferimento da pretensão da Exequente referindo ainda “ou, se assim se não entender, ordenada a citação da EPAL para pagar ou deduzir oposição e, se assim se entender, considerada improcedente a liquidação adicional feita pela Supergolf no seu requerimento de Fevereiro de 2019”.

4. O requerimento da Exequente foi indeferido, por despacho de 07-03-2019, do seguinte teor:

“(…) Veio a Exequente requerer que não seja ordenada a extinção da execução e que a mesma prossiga para cobrança da quantia de €109.459,88, com os fundamentos que aqui se dão por reproduzidos.

(…) Temos, então, que o acórdão do STJ liquidou, em definitivo, a quantia exequenda no montante de €109.459,88, ou seja, fixou a quantia que pode ser reclamada na execução naquele montante.

E tendo a executada procedido ao pagamento voluntário dessa quantia, carece de fundamento legal a pretensão de prosseguimento da acção executiva.

E que aquele acórdão apenas permite à exequente obter o pagamento do valor da quantia exequenda nele objecto de liquidação.

Acresce que tendo a exequente já assumido no processo estarem reunidos os pressupostos para a respectiva extinção, não pode, ao sabor dos seus exclusivos interesses em cada momento, dar o dito por não dito.

Indefere-se, assim, o requerido.”.

5. Interposto recurso deste despacho, o tribunal da Relação ..., por acórdão de 10-10-2019, revogou a decisão recorrida determinando “(…) o prosseguimento da execução, com a notificação da executada nos termos e para efeitos do n° 6, do art° 726°, do CPC, e tendo por objecto a quantia de €109.459.88 , referente à amortização da dívida da exequente à L..., titulada pela factura número ...85, de 31 de Dezembro de 2008”.

6. Interpõe agora a Executada recurso de revista ao abrigo do disposto nos artigos 671.º, n.º1, 674.º, n.º2, alínea b) e 854.º, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC).

7. Tendo sido entendido que o conhecimento do objecto do recurso se encontrava comprometido em face do disposto no artigo 854.º, do CPC, e por a situação em causa não assumir cabimento em nenhuma das situações em que a revista é sempre admissível, foram as partes notificadas, nos termos do artigo 655.º, do CPC, para se pronunciarem.

8. A Executada/Recorrente reiterou a admissibilidade do recurso entendendo que a decisão de 1ª instância só aparentemente se revela de natureza interlocutória (uma vez que a questão a apreciar reside em saber se é permitido à Exequente requerer, num primeiro momento, a extinção da instância executiva em virtude do pagamento voluntário da quantia exequenda e, após cerca de dois meses, pedir a renovação da instância executiva para pagamento de nova quantia, que liquida com base em novo título).

Assim, segundo a Executada, a apreciação da questão objecto do litígio - a (in)susceptibilidade de a instância executiva ser renovada – tem subjacente uma ponderação, pelo tribunal, sobre a liquidação levada a cabo pela Exequente no requerimento de renovação por forma a decidir se a quantia liquidada pode ser dada à execução, caindo, por isso, no âmbito do artigo 854.º, do CPC (recurso em procedimento de liquidação não dependente de cálculo aritmético).

9. A Exequente defendeu a inadmissibilidade da revista nos termos pugnados no despacho que determinou o cumprimento do artigo 655.º, do CPC.

10. Foi então proferido o despacho, agora, sob reclamação, com o seguinte teor:

O posicionamento da Executada mostra-se viciado em função do pressuposto por que parte o raciocínio que expende no seu requerimento, pois retira a decisão objecto de recurso do âmbito e contexto em que foi proferida, para lhe dar um alcance e efeitos que não tem (para a poder enquadrar a situação em procedimento de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético)

Segundo parece ser o entendimento da Recorrente, a decisão de determinar o prosseguimento dos autos executivos consubstancia uma decisão de liquidação da quantia exequenda não dependente de cálculo aritmético. Tal, porém, não é assim, como decorre do teor da determinação do tribunal a quo [prosseguimento da execução com a notificação da Executada para pagar ou opor-se à execução agora tendo por referência a quantia titulada pela factura n.º ...85 (de 31-12-2008, no valor de€109.459.88)] e do contexto em que se encontra inserida.

Com efeito, o acórdão recorrido não pode ser entendido enquanto fixação da quantia exequenda não dependente de cálculo aritmético, uma vez que o seu alcance está condicionado pelo âmbito de cognição delimitado pelo objecto do recurso, que se encontra radicado no despacho de indeferimento do pedido da Exequente de não extinção da execução ao invés do que anteriormente tinha requerido.

Conforme resulta do relatório supra, a Exequente, aqui Recorrida, instaurou execução, com liquidação prévia da quantia exequenda constante de acórdão arbitral, pedindo que a mesma fosse julgada como sendo igual a €1.425.133,07.

Em sede de embargos à execução, em 17-04-2018, foi proferido acórdão pelo STJ (transitado em julgado), que revogando acórdão da Relação ..., fixou a quantia exequenda no montante de €109.459,88, quantia que, em 21-11-2018, a Executada pagou directamente à Exequente.

Embora num primeiro momento a Exequente (requerimento de 21-11-2018) tenha requerido a extinção da instância, veio mais tarde (em 08-02-2019) e sem que a execução tenha sido declarada extinta, pedir a não extinção da instância a fim de obter cobrança de quantia que alegou se encontrar ainda em dívida (€109.459,88).

Independentemente da bondade da solução tomada por cada uma das instâncias, o certo é que apenas está em causa na revista o acórdão que apreciou uma decisão interlocutória da 1ª instância proferida nos autos de execução de sentença arbitral sobre questão de natureza processual, que não tem enquadramento nas situações contempladas no artigo 854.º, do CPC (em que a admissão da revista apenas  se encontra circunscrita aos acórdãos da Relação proferidos nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, da verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução), nem em qualquer outra previsão de admissibilidade da revista.

Por outro lado, a pretensão da Recorrente em recorrer de revista do acórdão que apreciou decisão interlocutória da 1ª instância de natureza procedimental não encontra cabimento no n.º1 do artigo 671.º do CPC (não conheceu de mérito nem pôs termo ao processo com absolvição da instância ou do pedido), nem se mostra subsumível no n.º2 do artigo 671.º do CPC, em que a admissibilidade se cinge, tão só, às situações contempladas nas alíneas a) e b) do citado preceito: nos casos em que o recurso é sempre admissível (acórdãos da Relação que, incidindo sobre decisões interlocutórias de conteúdo adjectivo, se integrem nas previsões contempladas no n.º2 do artigo 629.º do CPC); quando o acórdão da Relação se encontre em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, sem que a divergência jurisprudencial se encontre resolvida por acórdão uniformizador de jurisprudência.

Por conseguinte, não estando a situação dos autos integrada no artigo 854.º, do CPC, nem no n.º1do artigo 671.º do mesmo Código, e não se vislumbrando que a mesma tenha cabimento em qualquer das referenciadas excepções contempladas no n.º2 do citado artigo 671.º (não tendo, aliás, a Recorrente invocado, como se lhe impunha, qualquer um dos referidos fundamentos de recorribilidade - artigo 637.º, n.º2, do CPC), mostra-se afastada a admissibilidade do recurso de revista.

2. Decidindo:

O entendimento defendido no despacho reclamado não pode deixar de ser mantido.

A Requerente pretende ver infirmada a decisão de não conhecimento do objecto do recurso (que entendeu que a revista não se mostrava admissível por a situação não assumir enquadramento no artigo 854.º, do CPC, por não poder ser reconduzida ao n.º1 do artigo 671.º do CPC e por não ter cabimento em nenhuma das alíneas do n.º2 do artigo 672.º do mesmo CPC).

A Reclamante reitera a admissibilidade do recurso enquadrando-a:

- no artigo 854.º, do CPC (por a decisão da Relação ter sido proferida em incidente de liquidação que não está dependente de simples cálculo aritmético);

- no artigo 671.º, n.º1, do CPC (por o acórdão da Relação ter revertido uma decisão final de 1ª instância sobre matéria adjectiva, que tomou conhecimento de uma excepção peremptória).

Defende ainda que o caso não tem cabimento no n.º2 do artigo 671.º do CPC, por a decisão da 1ª instância não ser interlocutória.

Vejamos.

O presente recurso de revista é interposto no âmbito de um processo executivo e, nessa medida, os recursos de apelação e de revista encontram-se submetidos ao regime especial previsto nos artigos 852.º e seguintes, do CPC.

Para o caso que aqui assume cabimento, determina o artigo 854.º, do CPC, que:

Sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução”.

Conforme é referido no despacho reclamado, ao invés do que a Reclamante pretende fazer valer, o acórdão recorrido não se mostra proferido no âmbito de um procedimento de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, porquanto o teor da determinação do tribunal a quo não constitui uma decisão (final) de liquidação da quantia exequenda não dependente de cálculo aritmético.

Com efeito, na sequência do referido pela Recorrida, sustentada em jurisprudência e doutrina (aliás, pacíficas) que cita, a “liquidação feita por simples cálculo aritmético é aquela que assenta em factos que ou estão abrangidos pela segurança do título executivo ou são factos que podem ser oficiosamente conhecidos pelo tribunal e agente de execução (que são, nos termos gerais, os factos notórios, de conhecimento resultante do exercício das suas funções ou cujo próprio regime permita esse conhecimento) (…). E ainda a que assenta em números que possam ser retirados, porque direta e imediatamente escrutináveis, de documentos juntos com o requerimento inicial”.

Ao pretender reconduzir o acórdão recorrido a uma decisão que assenta em factos que não estão abrangidos pela segurança do título executivo, nem são factos que podem ser oficiosamente conhecidos pelo tribunal, a Reclamante incorre num equívoco quanto à caracterização do procedimento de liquidação dependente de simples cálculo aritmético, que apenas radica na natureza das operações necessárias para a determinação da quantia exequenda, nada tendo a ver com quaisquer outras questões que possam ser invocadas em sede de oposição à execução.

Por outro lado, no que toca à questão da natureza não interlocutória da decisão de 1ª instância (a Reclamante perspectiva-a como decisão adjectiva que põe fim à execução descurando, porém, que tal decisão, ainda que constituísse um prelúdio da decisão de extinção da execução, reporta-se, unicamente, ao indeferimento da pretensão da Exequente de fazer prosseguir a execução), importa sublinhar que, ainda que se admitisse estar em causa uma decisão final de 1ª instância, não implicava a integração da situação no n.º1 do artigo 671.º do CPC, porquanto o objecto do recurso de revista é a decisão do tribunal da Relação (e que, no caso, se mostra indubitável, a sua natureza de decisão interlocutória) e não a de 1ª instância.

Assim sendo, não tendo a situação sob apreciação integração em qualquer das previsões do artigo 671.º, n.ºs 1 e 2, do CPC e carecendo também de enquadramento no artigo 854.º, do mesmo código, não pode deixar de improceder a reclamação.

3. Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a reclamação, decidindo não conhecer do objecto do recurso por a revista não se mostrar admissível.

Custas do incidente pela Reclamante, com taxa de justiça de 3 Uc’s.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2020

Graça Amaral (Relatora)

Henrique Araújo

Maria Olinda Garcia

Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).