Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3722/16.0T8BG.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: DIREITO AO REPOUSO
RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
RUÍDO
ABUSO DO DIREITO
BOA FÉ
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO DE PROPRIEDADE
COLISÃO DE DIREITOS
Data do Acordão: 10/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, p. 846;
- Antunes Varela, CJ, Ano 1986, Tomo III, p. 13 ; RLJ, Ano 114º, p. 75;
- Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 3.ª ed., p. 63 e 64;
- Menezes Cordeiro, Do abuso de direito: estado das questões e perspectivas, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Castanheira Neves, Vol. II, Coimbra Editora, Stvdia Ivridica, Dez 2008, p. 169 e 170;
- Vaz Serra, Abuso de Direito, BMJ n.º 85, p. 253 ; BMJ, n.º 74, p. 45.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 07-02-2008, PROCESSO N.º 3934/07, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 25-06-2009, PROCESSO N.º 599/04.2TBCNT.S1;
- DE 01-03-2016, PROCESSO N.º 1219/11.4TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 29-11-2016, PROCESSO N.º 7613/09.3TBCSC.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. Existe abuso de direito, nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil, quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apoditicamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito.

II. O juízo sobre o abuso de direito está, assim, dependente das conceções ético-jurídicas dominantes na sociedade.

III. Não obstante a vivência nos meios rurais, impor que nas relações de vizinhança seja de tolerar os ruídos provocados pelos animais domésticos legitimamente criados nos quintais das residências, tais como galinhas e galos, e a suportar algumas contrariedades e incomodidades daí advenientes, a verdade é que essa tolerância e limitação deverá apenas ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante, para que todos possam continuar a viver em sociedade no ambiente rural que escolheram. 

IV. Assim, demonstrado que o direito dos autores ao sono e ao repouso está a ser interrompido e afetado, diariamente, entre as 3 e as 5 horas pelo barulho estridente dos galos e galinhas que os réus criam num anexo, que dista apenas 4,395 metros da casa dos autores, impõe-se ter por prevalecente o referido direito dos autores, enquanto emanação dos direitos fundamentais de personalidade, sobre o direito de propriedade dos réus e os interesses destes em fazer criação de galinhas e galos.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


I. Relatório


1. AA e marido, BB, residentes na Travessa do …, n° 11, União das Freguesias de … e …, …, intentaram a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra CC e mulher, DD, residentes na mesma Travessa da …, nº 3, União das Freguesias de … e …, …, tendo formulado os seguintes pedidos:

1) que se declare e reconheça que os demandantes são donos e legítimos possuidores do prédio urbano identificado no artigo 1° desta petição inicial, bem como do muro divisório por si construído, identificado no artigo 15°, e que delimita este prédio do prédio urbano dos demandados, identificado no artigo 9°;

2) a condenação dos demandados retirar, do topo do muro divisório de ambos os prédios urbanos, as chapas metálicas e o cimento que a este as liga ou sela, na parte coberta daquele anexo;

3) a condenação dos demandados a retirar, ao longo da base do muro divisório dos prédios das partes, as tubagens que aí colocaram, nomeadamente para condução de fios elétricos e para água e que a este selaram com cimento;

4) que se declare e reconheça que os demandados no seu anexo, quer na parte coberta, quer na parte descoberta, com a sua atividade de criação e recolha de quaisquer animais, nomeadamente galinhas e coelhos, produzem dejetos, excrementos e detritos, cujos cheiros, vapores e odores, nauseabundos, se espalham na atmosfera e atingem as pessoas dos demandantes, seus filhos e quaisquer pessoas que frequentem a sua casa, bem como o seu prédio urbano e o logradouro, causando um prejuízo substancial para o uso deste, que é o da habitação;

5) que se declare e reconheça que os demandados no seu anexo, quer na parte coberta, quer na parte descoberta, com a sua atividade de criação e recolha de quaisquer animais, nomeadamente galinhas, causam, de madrugada, ruídos estridentes, altos e repetidos que atingem as pessoas dos demandantes e seus filhos, causando um prejuízo substancial para o uso deste, que é o da habitação;

6) que se declare e reconheça que tais emissões violam quer o direito de propriedade dos demandantes sobre o seu prédio urbano, quer os seus direitos de personalidade dos demandantes, nomeadamente o direito à saúde, a um ambiente sadio, saudável e equilibrado, ao domicílio, à privacidade, ao repouso, sossego, tranquilidade e bem-estar;

7) a condenação dos demandados a cessarem, de uma forma imediata, eficaz e definitiva, com essa atividade de criação e recolha de animais, nomeadamente galinhas e coelhos, no aludido anexo, quer na parte coberta, quer na parte descoberta, de modo a que também cesse a violação dos seus aludidos direitos de personalidade, salvo se executarem obras que possam pôr termo a essas emissões;

8) a condenação dos demandados a pagar a cada um dos demandantes uma indemnização a título de danos não patrimoniais, cujo valor será liquidado em execução de sentença, em virtude de não se conhecerem em toda a sua extensão os danos causados;

9) a condenação dos demandados a absterem-se de praticar todo e qualquer ato que limite, afete ou perturbe os seus aludidos direitos de personalidade dos demandantes nomeadamente com a produção daquelas emissões.

Alegaram para tal que são proprietários do prédio urbano identificado no art. 1º da petição inicial, que adquiriam por doação e usucapião, prédio que se encontra inscrito no registo a seu favor, enquanto que os Réus são proprietários do prédio urbano contíguo àquele, situado a Sul, no qual estes últimos construíram um anexo, junto ao muro divisório e unido a este no topo e na sua base, para criação e recolha de animais, de onde provêm cheiros, vapores e odores nauseabundos, para além de barulhos estridentes e ensurdecedores.

Estes cheiros e barulhos não permitem que os Autores descansem e possam usufruir da sua habitação na sua plenitude, atentando contra os seus direitos de personalidade e provocando-lhes tristeza, humilhação e revolta, já que veem a sua privacidade diminuída e o seu domicílio invadido e conspurcado por odores e cheiros dificilmente suportáveis, que os levam a evitar levar a sua casa amigos ou familiares.


2. Os réus contestaram, impugnando os factos alegados pelos autores, com exceção dos respeitantes à propriedade dos prédios, à existência do anexo para criação e recolha de animais e à sua ligação ao muro construído pelos autores, justificando-a com a intenção de conservar o próprio muro.

Excecionaram o abuso de direito e invocaram que nesse anexo criam coelhos e galinhas em pequeníssimas quantidades, para consumo exclusivamente doméstico, tendo efetuado todas as obras recomendadas e sugeridas pelas autoridades municipais, pelo que não se verificam os cheios e ruídos alegados pelos autores, nem os atentados aos direitos de personalidade invocados pelos mesmos.

Concluíram, pedindo a improcedência da ação e a sua absolvição do pedido.


3. Realizou-se o julgamento na sequência do qual foi proferida sentença que julgou a ação improcedente.


4. Inconformados com esta decisão, dela apelaram os autores para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por acórdão proferido em 14.03.2019, alterou a decisão sobre a matéria de facto e julgou parcialmente procedente a apelação, determinando que os réus removam as aves do local onde atualmente se encontram para local onde não perturbem o direito ao descanso dos autores e condenando os réus no pagamento aos autores de uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de 500,00€ (quinhentos euros) para cada um, confirmando no mais a decisão recorrida.


5. Inconformados com esta decisão, dela interpuseram os réus recurso de revista, concluindo as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:

« 1. Estamos perante uma situação de Abuso de Direito!

2.  O Douto Tribunal da Relação de Guimarães alterou a decisão proferida em matéria de facto, aditando os seguintes factos provados:

“22 - As galinhas/galos dos RR., pelo menos 10, todas as manhãs, entre as 3 e as 5h, fazem barulho estridente que acorda os AA, interrompendo o seu descanso e não mais conseguindo adormecer de uma forma regeneradora, adequada e razoável.”

“23 – “Os AA., por causa dos ruídos produzidos pelas referidas aves, várias vezes se levantam com sintomas de falta de repouso”.

3.  Trata-se de direitos de personalidade, ligados às relações de vizinhança sempre conexionadas com litígios respeitantes à violação daqueles direitos, em confronto com os direitos de propriedade.

4. A nossa Constituição da República, nos seus artigos 64º e 66º, nº 1, consagra o direito à saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado.

5. Ao alterar a matéria de facto dada como provada o Douto Tribunal da Relação tinha de considerar o abuso de direito.

6. Dispõe a artigo 334º do Código Civil “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

7.  Sendo entendimento dominante que tampouco é necessário que os Recorridos tenham consciência de que o seu procedimento é abusivo, basta que o seja na realidade (Cfr. Código Civil anotado, de Abílio Neto, artigo 334º).

8. De acordo com Galvão Telles, Obrigações, 3a Edição, 6, “Exige-se, no entanto, um abuso manifesto, isto é, que o sujeito ultrapasse de forma evidente ou inequívoca os limites referidos no artigo 334º. O abuso de direito equivale à falta de direito, gerando as mesmas consequências jurídica, que se produzam quando uma pessoa pratica um ato que não tem o direito de realizar.

9. Estamos perante uma clara desproporção entre a utilidade do exercício de um direito e as consequências que os Recorrentes terão de suportar, face à limitação do seu direito de propriedade.

10. Os prédios em discussão nos presentes autos situam-se numa freguesia rural, que dista cerca de 4Km da cidade de …. E como em todas as freguesias rurais, são visíveis e frequentes os campos cultivados pelos agricultores, e a criação de animais, principalmente coelhos e galinhas, para consumo doméstico.

11. São pequenos galinheiros e coelheiras que permitem fazer face aos hábitos e necessidades de alimentação da família.

12. No mundo rural são frequentes os ruídos produzidos pelos gatos, pelos cães, pelo canto dos pássaros nas estações mais quentes. Há ruídos que fazem parte do viver em sociedade! São ruídos que fazem parte do dia-a-dia das pessoas, dos costumes da terra!

13. É inegável, e está consagrado na Lei Fundamental, o direito à saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, e de que os Recorridos são titulares.

14. Também é inegável o direito de propriedade. Os Recorrentes têm direito ao uso e fruição pleno do seu prédio, designadamente para criação e recolha de animais para consumo doméstico, como é costume na freguesia e lugar onde residem. Prática esta aliás adoptada também pelos Recorridos.

15. O uso que os Recorrentes dão ao seu prédio é o uso normal, é o costume no meio onde está inserido, não viola os direitos dos Recorridos.

16. Não estamos perante uma colisão de direitos que legitime a prevalência do direito dos Recorridos.

17. Estamos perante um claro ABUSO DE DIREITO!»


Termos em que requerem seja revogado o acórdão recorrido.


6. Os autores responderam, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.


7. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].

Assim, a esta luz, a única questão a decidir traduz-se em saber se o exercício do direito de pedir a condenação dos réus a removerem as aves do local onde atualmente se encontram para local onde não perturbem o direito o seu descanso consubstancia abuso de direito por parte dos autores. 



***




III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


Foram considerados provados os seguintes factos:


1. Os demandantes são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano, composto de rés-do-chão e andar, destinado a habitação, com a área coberta de 124 m2 e logradouro com a área de 756 m2, que confronta de nascente com caminho público e caminho de servidão, do norte com EE, do sul com os demandados e de poente com FF, situado no lugar de …, na União de Freguesia de … e …, …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 255, inscrito a seu favor pela inscrição G-1, inscrito na matriz urbana da mesma União de Freguesias sob o artigo 369º.

2. Esta habitação foi construída pelos Autores no ano de 1986, na parcela de terreno destinada a construção urbana, com a área de 880 m2, que os pais da demandante mulher, EE e GG, após a autorização de destaque emitida pela Câmara Municipal de …, lhe doaram, por conta da legítima, por escritura pública lavrada no 2° Cartório Notarial de …, no dia 24 de Março de 1998.


3. Os demandantes, por si e ante possuidores, há mais de 20, 30 anos que, sem qualquer interrupção, se encontram na posse do prédio identificado em 1°, retirando do mesmo todas as utilidades e vantagens que o mesmo é capaz de proporcionar, nomeadamente habitando o prédio urbano e fruindo a parte livre do logradouro e aí, juntamente com seus filhos, fazendo toda a sua vida quotidiana e cultivando e amanhando parte deste, onde cultivam produtos agrícolas, próprios da região do Minho, pagando os respetivos impostos e demais contribuições devidas, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, e com a convicção de que exercem um direito próprio, de propriedade.


4.   Os demandados são donos e legítimos possuidores do prédio urbano, também de rés-do-chão e andar e destinado a habitação, onde, com seus filhos, há já vários anos residem e praticam os demais atos da vida diária, com a área coberta de 119,50 m2 e logradouro com a área de 712,50 m2, num total de 832 m2, inscrito na matriz sob o artigo 229 e descrito na mesma Conservatória sob o n° 410, contíguo ao prédio dos demandantes e situado a sul, no mesmo lugar e União de Freguesias.


5. Os demandados no Verão de 2012 junto ao muro divisório edificado pelos demandantes e a 4,395 metros da janela da cozinha destes, virada a sul, construíram um anexo com cerca de 25,39 de área bruta coberta, com uma altura de 2,01 metros e 8,04 metros de extensão ao longo do estremo poente do muro dos demandantes, para criação e recolha de animais, nomeadamente galinhas e coelhos.


6. Esse anexo, é coberto com chapas metálicas, assentes em vigas de ferro e parcialmente fechado com paredes de blocos de cimento na parte mais a poente;


7. A parte não fechada com parede, concretamente a virada a nascente do anexo coberto, onde se situa o portão de acesso e a sul, é vedada apenas com rede metálica;


8. Tais chapas metálicas e vigas apoiam em paredes de blocos de cimento ou em pilares que os demandados edificaram, sendo que a parede erigida paralela ao muro dos demandantes dista deste cerca de 2 centímetros.


9. Essa parede dos demandados é mais alta do que o muro dos demandantes em cerca de 25 cms na estrema nascente e em cerca de 56 cms na estrema poente, os quais se encontram revestidos um com chapa metálica, selada com cimento ao topo do muro destes.


10. Associado a tal anexo, para o interior do logradouro dos RR (Sul) existe uma zona vedada com rede metálica protegida/coberta parcialmente com rede de ensombramento (do tipo anti pássaro) na zona de circulação pavimentada em betonilha, sendo que a área destinada a horta e quinteiro, em terra vegetal, tem uma área de 16,07m2.


11. A parte coberta do anexo e zona de circulação envolvente a nascente e sul encontra-se pavimentada em betonilha e a parte da horta e quinteiro encontra-se em terra vegetal.


12. O anexo situa-se na parte mais distanciada da casa dos demandados e na parte mais próxima da casa dos demandantes.


13. A empena de tal anexo, na parte voltada para o prédio dos Autores, numa extensão de 8,04m, encontra-se coligada à parede/muro divisório destes através de uma chapa cimentada sobre a parte superior do muro.


14. Paralelamente ao muro dos Autores, os demandados colocaram condutas para, desde a sua casa, conduzir fios elétricos e ainda água, com destino ao anexo.


15. O anexo destinou-se a substituir um outro com cerca de 10 m2 que os demandados possuíam há já muitos anos junto a sua casa.


16. Os prédios supra identificados destinam-se a habitação dos seus agregados familiares, bem como em parte do logradouro ao cultivo para consumo próprio de produtos hortícolas e frutícolas e situam-se na extinta freguesia de Arcos, hoje integrada na aludida União de Freguesias.


17. Situam-se a cerca de 3,87 quilómetros de distância do centro da cidade de …, numa zona rural.


18. O agregado familiar dos demandantes é composto por eles próprios e por dois filhos, HH, de 23 anos de idade, … e II, de 30 anos de idade, …, ambos solteiros, vivendo todos em economia comum.


19. Os demandados mantêm no anexo, quer na parte coberta, quer na parte descoberta, galinhas e coelhos para consumo doméstico.


20. Tais animais produzem dejetos e excrementos que são retirados pelos demandados e o respetivo solo limpo.


21. O demandante marido não trabalha desde há alguns anos, atento os problemas de saúde de que vem padecendo, o que obriga à toma de medicação adequada prescrita pelo médico assistente.


22. As galinhas/galos dos RR., pelo menos 10, todas as manhãs, entre as 3 e as 5h, fazem um barulho estridente que acorda os AA., interrompendo o seu descanso e não mais conseguindo adormecer de uma forma regeneradora, adequada e razoável (Aditado pelo Tribunal da Relação).


23. Os AA., por causa dos ruídos produzidos pelas referidas aves, várias vezes se levantam com sintomas de falta de repouso (Aditado pelo Tribunal da Relação).



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3.2. Fundamentação de direito

Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se, essencialmente, com as questões de saber se o exercício do direito de pedir a condenação dos réus a removerem as aves do local onde atualmente se encontram para local onde não perturbem o direito o seu descanso consubstancia abuso de direito por parte dos autores. 


Segundo o artigo 334º do C. Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito.

Perante o preceituado neste artigo e na esteira dos ensinamentos de Manuel de Andrade[2], Vaz Serra[3] e Antunes Varela[4], poder-se-á dizer, em síntese, que existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apoditicamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito.

Segundo Menezes Cordeiro[5], a base ontológica do abuso de direito é a disfuncionalidade intra-subjectiva, ou seja, o exercício do direito que contraria o sistema: o abuso de direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjectivos por, embora consentâneos  com normas jurídicas permissivas concretamente em causa, não confluírem no sistema em que estas se integram.

Na expressão do Acórdão do STJ, de 07.02.2008 (revista nº 3934/07)[6], o instituto do abuso de direito representa o controlo institucional da ordem jurídica no que tange ao exercício dos direitos subjetivos privados e surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.

Agir de boa fé, no dizer de Antunes Varela[7], significa agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte e ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte, e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar [8].

Por bons costumes, entende-se o conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e corretas aceitam comummente, contrários a laivos ou conotações de imoralidade ou indecoro social [9].

E, no dizer de Antunes Varela[10] a «consideração do fim económico ou social do direito apela de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei».

O juízo sobre o abuso de direito está, assim, dependente das conceções ético-jurídicas dominantes na sociedade.

Nas palavras do Acórdão do STJ, de 25.06.2009 (processo nº 599/04.2TBCNT.S1), «o abuso de direito abrange o exercício de qualquer direito de forma anormal, quanto à sua intensidade ou execução de modo a comprometer o gozo de direitos de terceiros, criando uma desproporção entre os respectivos exercícios, de forma ofensiva e clamorosa dos valores sociais que se têm como adquiridos».


*

Reconhecido que foi aos autores o direito a pedir a condenação dos réus a removerem as aves do local onde atualmente se encontram para local onde não perturbem o direito ao descanso dos autores, é, pois, neste contexto que importa determinar se o exercício deste direito afronta, em termos intoleráveis, os princípios da boa fé e dos bons costumes. 

Em sentido afirmativo pronunciam-se os recorrentes, sustentando, no essencial, que a instauração da presente ação representa uma clara desproporção entre a utilidade do exercício de um direito e as consequências que os recorrentes terão de suportar, face à limitação do seu direito de propriedade, pois os prédios em discussão nos presentes autos situam-se numa freguesia rural, que dista cerca de 4km da cidade de … e, como acontece em todas as freguesias rurais, nela é frequente a criação de galináceos, para consumo doméstico, pelo que os ruídos por eles produzidos fazem parte do viver do dia-a-dia das pessoas e dos costumes da terra.


*

Ora, analisando, no quadro jurídico e factual supra traçados, a atuação dos autores, diremos, desde logo, que, contrariamente ao defendido pelos recorrentes, não se vê que o exercício do direito dos autores a pedirem a condenação dos réus a removerem as aves do local onde atualmente se encontram para local onde não perturbem o direito ao descanso dos autores tenha, de algum modo, violado os princípios da boa fé e dos bons costumes.

É que se é certo que a vivência nos meios rurais, impõe que nas relações de vizinhança seja de tolerar os ruídos provocados pelos animais domésticos legitimamente criados nos quintais das residências, tais como galinhas e galos, e a suportar algumas contrariedades e incomodidades daí advenientes, certo é também que essa tolerância e limitação deverá apenas ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante, para que todos possam continuar a viver em sociedade no ambiente rural que escolheram.  

Daí que, lançando mão do princípio da proporcionalidade, consagrado na parte final do nº 2 do art. 18º da CRP, haja que encontrar a adequada proporção entre os valores a proteger, por forma a aquilatar em que medida é que o sacrifício que se impõe ao titular de um direito se justifica face à lesão do outro.

Ou seja, no confronto dos direitos dos autores à integridade física e moral e à proteção à saúde e a um ambiente de vida humana sadio, consagrados nos arts. 25º, 64º, nº 1 e 66º, nº 1, todos da CRP - com o direito de propriedade privada dos réus, também garantido no art. 62º da CRP, impõe-se sopesar cada um dos direitos em colisão por forma a decidir qual deles deve prevalecer e assegurar a sua harmonização, evitando o sacrifício total de uns em relação ao outro e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada um.

No caso dos autos, o acórdão recorrido, no confronto da colisão do direito dos autores ao sono e ao repouso e o direito de propriedade privada dos réus, considerou que o primeiro deveria prevalecer sobre o segundo.

E a verdade é que não vislumbramos qualquer razão para dissentirmos deste entendimento.

Desde logo, porque a nossa Constituição, dando voz aos princípios proclamados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10/12/48[11] e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 04.11.1950[12], estabelece, no seu art. 1º, que a República Portuguesa, é «baseada na dignidade da pessoa humana», afirmando, no seu art. 25º, nº1 da CRP que «a integridade moral e física das pessoas é inviolável»[13].  

Por sua vez, o nosso Código Civil, contempla, no seu art. 70º, a tutela geral da personalidade dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física  ou moral.

E se assim é, ou seja, se a nossa ordem jurídica assenta na “dignidade humana”, tal como se afirma no Acórdão do STJ, de 29.11.2016 (processo nº 7613/09.3TBCSC.L1.S1)[14], torna-se inquestionável que, em caso de colisão entre direitos fundamentais, a busca do instrumento que melhor promova o valor supremo da dignidade da pessoa humana não pode deixar de constituir um instituto norteador da solução do caso concreto».

No caso dos autos, está provado que as galinhas e galos, em número pelo menos de 10, que os réus criam no anexo que construíram junto ao muro que separa o prédio deles do dos autores e dista apenas 4,395 metros da janela da cozinha destes, virada a sul, «todas as manhãs, entre as 3 e as 5h, fazem um barulho estridente que acorda os AA., interrompendo o seu descanso e não mais conseguindo adormecer de uma forma regeneradora, adequada e razoável» e que os autores «por causa dos ruídos produzidos pelas referidas aves, várias vezes se levantam com sintomas de falta de repouso».

Ora, pese embora desconhecer-se o grau de dificuldade dos autores em voltarem a adormecer, dada o carácter genérico das expressões “uma forma regeneradora, adequada e razoável ”, bem como o grau de intensidade da incomodidade sofrida pelos autores, atenta a falta de caracterização dos “sintomas de falta de repouso”, sofridos, em concreto, pelos autores, a verdade é que os factos dados como provados demonstram, claramente, que o direito dos autores ao sono e ao repouso está a ser interrompido e afetado, diariamente, entre as 3 e as 5 horas, o que não só constitui uma lesão do seu direito ao repouso e sossego e ao gozo e fruição de um mínimo de tranquilidade no interior do seu domicílio durante o período noturno, como envolve também afetação do seu direito à saúde e integridade física e psicológica.

E porque assim é, não podemos deixar de ter por prevalecente o direito dos autores ao repouso, ao sono e à tranquilidade, enquanto emanação dos direitos fundamentais de personalidade, nomeadamente do direito à integridade moral e física, à proteção da saúde e a um ambiente de vida sadio dos autores, sobre os interesses dos réus, em fazer criação de galinhas e galos.

Acresce ainda que, numa perspetiva substancial e sob pena de preclusão da efetividade da tutela dos direitos de personalidade dos lesados, não podemos também deixar de afirmar a essencialidade da imposição aos réus de remoção das aves do local onde atualmente se encontram para local onde não perturbem o direito ao descanso dos autores como forma adequada de assegurar aos autores, um descanso noturno de oito horas e um maior período de repouso e de tranquilidade no interior do seu domicílio, e, desse modo, minimizar  a afetação da  sua saúde e integridade física e psicológica.

É que, como é consabido, a privação do sono e do descanso provoca, no mínimo e para além de muitas outras, alterações fisiológicas como cansaço e fadiga, tudo com repercussões muito nefastas a nível pessoal, profissional e social.

Daí que, face às demonstradas condições do local - galinheiro construído a apenas escassos 4,395 metros de distância da janela da cozinha da casa de habitação dos autores - se considere que o equilíbrio proporcional entre o direito de personalidade dos autores e o direito de propriedade privada dos réus implica a deslocação das aves para local onde não perturbem o direito ao descanso dos autores, assim se minimizando os efeitos nefastos o seu “ barulho estridente” provoca nas pessoas dos autores.

Assim, ponderando tudo o que deixou dito e na esteira do decidido no Acórdão do STJ de 01.03.2016 (proc. nº 1219/11.4TVLSB.L1.S1)[15], tem-se como meio adequado e proporcional para a remoção da lesão do direito ao sono, ao repouso e à tranquilidade dos autores a limitação imposta ao direito de propriedade dos réus pelo acórdão recorrido, por não afrontar, em termos intoleráveis, os princípios da boa fé e dos bons costumes nem ultrapassar os limites do socialmente tolerável, dadas as circunstâncias de facto demonstradas, inexistindo, por isso, qualquer abuso de direito por parte dos autores. 

Termos em que improcedem todas as razões dos recorrentes.


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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em negar provimento à revista e, consequentemente, em confirmar o acórdão recorrido.

As custas do recurso ficam a cargo dos réus.



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Supremo Tribunal de Justiça, 3 de outubro de 2019

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Rosa Maria Ribeiro Coelho

Catarina Serra

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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] In, “Teoria Geral das Obrigações”, 3ª ed., págs. 63 e 64.
[3] In, “ Abuso de Direito”, BMJ nº 85, pág. 253.
[4] In, RLJ, ano 114º, pág 75.
[5] In, “ Do abuso de direito: estado das questões e perspectivas, Estudos em homenagem  ao Prof. Doutor Castanheira Neves”, Vol. II, Coimbra Editora, Stvdia Ivridica, Dez 2008, pág. 169 e 170.
[6] In, www.dgsi.pt.
[7] In, CJ, ano 1986, tomo III, pág. 13. No mesmo sentido, cfr. Almeida Costa, in “Direito das Obrigações” , pág. 846 e Vaz Serra, in, BMJ, n.º 74, pág. 45.
[8] No mesmo sentido, cfr. Almeida Costa, in “Direito das Obrigações” , pág. 84 e Vaz Serra, in, BMJ, n.º 74, pág. 45.
[9] Neste sentido, cfr. Almeida Costa, in, obra citada, pág. 66; Pires de Lima e Antunes Varela, in, “Código Civil Anotado”, Vol. I, notas ao artigo 280º e Mota Pinto, in “ Teoria Geral”, 3ª ed. , pág. 552.
[10] In “ Direito das Obrigações em Geral” , vol. I, 9ª ed., pág. 565.
[11] Que dispõe, no seu art. 3º que «todo o indivíduo tem direito à vida...», estabelecendo o seu art. artigo 24.º que «Toda a pessoa tem direito ao repouso (…)» e o seu art. 25º, nº1 que « Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem estar (...) ».
[12] Aprovada pela Lei 65/78, de 13/10 e que dispõe, no seu art. 2º, nº1 que «o direito de qualquer pessoa à vida é protegido por lei ...», e no seu art. 8°, nº1 que « Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio  (…)».
[13] Que, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira in, “ Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, 4ª ed., 2007, pág. 454, conste no direito a não ser agredido ou ofendido, no corpo ou no espírito, por meios físicos ou morais.
[14] Acessíveis in www dgsi.pt/stj.
[15] Acessível in wwwdgsi.pt/stj e que reconhece a superioridade do direito ao repouso sobre o direito de propriedade.