Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4290/09.5TBCSC.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE DO GERENTE
DEVER DE LEALDADE
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
COMPENSAÇÃO
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
ÓNUS DA PROVA
GERENTE
SÓCIO
DEVER DE CUSTÓDIA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 03/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS CRÉDITOS / COMPENSAÇÃO.
DIREITO COMERCIAL – ADMINISTRAÇÃO E FISCALIZAÇÃO / DEVERES FUNDAMENTAIS / RESPONSABILIDADE CIVIL PELA CONSTITUIÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E FISCALIZAÇÃO DA SOCIEDADE / RESPONSABILIDADE DE MEMBROS DA ADMINISTRAÇÃO PARA COM A SOCIEDADE.
Doutrina:
-A. Varela, Das Obrigações em Geral, 9.ª Edição, I, p. 495 e ss.;
-Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, p. 132;
-Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, p. 57;
-Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, p. 613;
-Diogo Leite de Campos, A Subsidiaridade da Obrigação de Restituir no Enriquecimento, p. 325;
-Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Júris, p. 117;
-M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7.ª Edição, p. 423 e ss.;
-Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 221.
Jurisprudência Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 99.º;
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 64.º, N.º1 E 72.º.
Jurisprudência Internacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 14-05-1996, IN CJ/STJ, 1996, II, P. 70;
- DE 17-10-2006;
- DE 05-12-2006;
- DE 29-05-2007;
- DE 16-09-2008;
- DE 16-10-2008;
- DE 02-07-2009;
- DE19-05-2011, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - O vício da falta de fundamentação apenas ocorre quando se detecta uma absoluta ausência de fundamentos de facto e de direito (não abrangendo, pois, a eventual insuficiência ou cariz erróneo da fundamentação) ao passo que o vício da omissão de pronúncia se reporta ao incumprimento do dever de conhecer as questões suscitadas pelo pedido, pela causa de pedir e pelas excepções. Tanto a omissão de pronúncia como a falta de fundamentação não se confundem com eventuais erros de julgamento de que eventualmente padeça a decisão recorrida.

II - Não integra violação do dever de lealdade prevenido pela al. b) do n.º 1 do art. 64.º do CSC – não constituindo, por isso, fundamento para a sua responsabilização nos termos do art. 72.º do CSC –, a conduta de um sócio da recorrente que, na sequência de acordo pelo qual a produção executiva de espectáculos foi deixada a cargo de uma outra sociedade da qual aquele era gerente, entregou a esta última parte das receitas cobradas pela primeira, a título de ressarcimento pelas despesas em que aqueloutra incorreu.

III - Tendo-se demonstrado que a deslocação patrimonial referida em II assentou num prévio ajuste entre a recorrente e a recorrida, está evidenciada a existência de uma causa justificativa da mesma.

IV - Impende sobre o pretenso empobrecido o ónus da prova dos pressupostos de que depende o enriquecimento sem causa sendo que, na dúvida, se deve considerar que a deslocação verificada teve justa causa.

V - Tendo a recorrente sido declarada insolvente em momento muito posterior aos factos mencionados em II, a eventual compensação de créditos da recorrida não poderia ser obviada pelo disposto no art. 99.º do CIRE.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – RELATÓRIO

  

l. AA - Comunicação e Eventos, S.A. (actualmente Massa Insolvente de AA - Comunicação e Eventos, S.A.) intentou na Comarca de Cascais acção declarativa de condenação contra BB e CC - Entretenimento, Lda alegando, em síntese:

O 1.º R. foi seu accionista e administrador desde julho de 2005 até junho de 2007.

O 1.º R. era e é sócio e gerente da 2.ª R..

Em 14.12.2006 o 1.º R., no uso dos seus poderes de administrador da A., ordenou que a A. efectuasse, como efectuou, o pagamento de € 46.289,48 à sociedade International DD, Ltd.

Interpelado pela A. para explicar esse pagamento, o 1.º R. declarou que se tratava de uma verba que era devida por um prestador de serviços à IVS, mas que por engano esse prestador (sala de espectáculos) havia depositado esse dinheiro na conta do R..

Assim, conclui-se que a A., por ordem do R. efectuou a um terceiro um pagamento que não devia e, além disso, o R. apropriou-se de uma quantia que não lhe era destinada. Pelo que, lhe é devida a quantia de € 92.578,96, mais juros desde 14.12.2006.

Igualmente, uma verba que era devida pela Direcção Geral de Alfândegas, a título de caução de uma importação temporária, no valor de € 4.263,68, foi paga, por ordem do R., numa conta da 2.ª R., em vez de ser paga à A..

Finalmente, tendo a A. contratado com o EE Hipermercados, S.A., a realização de uma série de eventos à volta da figura publicitária, usada pelos hipermercados EE, “FF”, cabendo à A. receber o produto das bilheteiras e das vendas de merchandising, que deveria entregar ao EE, veio a A. a ser confrontada, em 27.6.2007, com a reclamação à A., pelo EE, da entrega da quantia de € 134 749,97, referente à venda de bilhetes e merchandising dos referidos espectáculos “FF.”

Ora, a A. veio a apurar que essas verbas não tinham sido por si recebidas, mas haviam sido depositadas, por ordem do R., numa conta bancária da 2.ª R..

Assim, o 1.º R. violou o seu dever de lealdade para com a A. e a 2.ª R. enriqueceu-se à custa da A., entrando indevidamente na posse das quantias acima referidas.

Além disso, a A. sofreu prejuízos consubstanciados na alocação de pessoas ao esclarecimento destes factos, com os respectivos custos, no valor de € 31.635,75, acrescidos de juros que, na data da propositura da acção, a A. liquidou em € 3.625,34. Por outro lado, a A. sofreu danos de imagem, que se quantificam no mínimo de € 12.000,00.

Conclui pedindo que o 1.º R. seja condenado a pagar-lhe, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 322.690,30 e, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 12.000,00, acrescidas de juros de mora vincendos, até integral pagamento, e a condenação da 2.ª R., solidariamente com o 1.º R., na quantia de € 229.285,42, acrescida dos juros que sobre ela se vencessem.


2. Regularmente citados, contestaram ambos os réus, alegando, quanto ao pagamento efectuado à IVS, que tal era devido pela A. no âmbito de negócio que celebrara com a IVS, sendo certo que nada foi depositado, a este respeito, em conta do 1.º R..

Quanto à quantia transferida pela Direcção Geral de Alfândegas para uma conta da 2.ª R., tal resultou de lapso de um funcionário da 2.ª R., a que o 1.º R. é alheio.

Quanto aos eventos “FF”, a A., através do 1.º R., entregou à 2.ª R. a produção executiva dos ditos eventos, com os quais a 2.ª R. suportou despesas, no valor global de € 30.4 579,21, que excederam o valor das receitas que foram sendo depositadas na conta da 2.ª R. pelas entidades que geriram as bilheteiras e o merchandising dos espectáculos em causa, receitas essas que orçaram em € 126.563,84.

Assim, o 1.º R. entendeu utilizar a verba de € 126.563,84 para pagamento parcial das aludidas despesas, despesas essas cujo pagamento era devido pela A. à 2.ª R..

Assim, a R. compensou o seu crédito, no valor de € 304.579,21, parcialmente, com a verba de € 126.563,84 que recebeu, conforme declarou à A..

Na verdade, a A. recebeu do EE, para a produção dos aludidos espectáculos, a quantia de € 709.135,00, acrescida de IVA, sendo certo que foi a 2.ª R. quem suportou muitas das respectivas despesas.

Os RR. impugnaram os danos e prejuízos invocados pela A., concluindo pela procedência da acção tão só quanto à quantia de € 4.961,00, a ser paga pela 2.ª R. à A..

Em reconvenção, os RR. alegaram que, tendo a 2.ª R. pago € 304.579,21 de despesas de produção do evento FF, verba essa devida à R. pela A., e tendo a R. compensado parcialmente o seu referido crédito com os depósitos feitos na sua conta bancária no valor de € 126.563,84, a A. deve à R. CC a quantia de € 178.015,37., acrescida de juros comerciais, desde a data em que foi interpelada, juros esses que no momento orçavam em € 26.896,32.

Caso se entenda que a R. não podia compensar o seu crédito nos termos referidos, a A. deveria ser condenada a pagar à R. CC a quantia de € 304.579,21, acrescida de juros que à data ascendiam a € 46.018,83.

Concluem pedindo que a acção seja julgada parcialmente improcedente, condenando-se a R. a pagar à A. a quantia de € 4.961,00, absolvendo-se ambos os RR. dos demais pedidos. Mais devia a A. ser condenada, em reconvenção, a pagar à R. CC a quantia de € 204.911,69, acrescida de juros vincendos desde a data da notificação e até integral pagamento.

Em alternativa, deveria a A. ser condenada a pagar à R. a quantia de € 350.598,04, acrescida de juros vincendos desde a data da notificação e até integral pagamento.


3. A A. replicou, pugnando pela improcedência da invocada compensação de créditos e do pedido reconvencional e pedindo que os RR. fossem condenados como litigantes de má-fé, em multa e indemnização.

Os RR. responderam à invocada litigância de má-fé, repudiando-a.


4. Em 27.02.2012 foi admitida a reconvenção, proferido saneador tabelar e seleccionada a matéria de facto assente e a base instrutória.

Tanto a A. como os RR. reclamaram da selecção da matéria de facto assente e da fixação da base instrutória, tendo tais reclamações sido indeferidas, por despacho de 02.7.2012.

Em 02.02.2016 iniciou-se a audiência final, tendo nessa data sido proferido despacho que julgou extinta a instância reconvencional, por inutilidade superveniente da lide, decorrente da declaração de insolvência da A..

Em 21.10.2016 foi proferida sentença, que decidiu:

“Pelo exposto, decide-se julgar a acção parcialmente procedente, e, consequentemente:

- condenar a R. CC a pagar à A. a quantia de € 4.263,68 (quatro mil duzentos e sessenta e três euros e sessenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, desde 27/10/2007;

- condenar os RR. solidariamente, a pagar à A. a quantia de € 126.563,84, acrescida de IVA, bem como os juros de mora, à taxa anual de 4%, desde a citação, absolvendo os RR. do demais peticionado.

Custas da acção a cargo dos RR. na proporção de ½, uma vez que a A. delas está isenta (artº 4º, nº 1, al. u) do RCP).

Registe e notifique.”


5. Inconformados, apelaram os Réus para o Tribunal da Relação de …, que, por Acórdão de 13 de Julho de 2017, decidiu «julga-se a apelação procedente e consequentemente altera-se a sentença recorrida nos seguintes termos:

a) Revoga-se a sentença na parte em que condenou os RR. a pagarem à A. a quantia de € 126.563,84, acrescida de IVA, bem como juros de mora, nesta parte se absolvendo os RR. do correspondente pedido;

b) No mais, mantém-se a sentença recorrida.

As custas na primeira instância são a cargo de ambas as partes, na proporção do respectivo decaimento (sem prejuízo da isenção que foi reconhecida à A., parte essa da sentença que transitou em julgado) e as da apelação são a cargo da apelada, que nela decaiu (sendo certo que, decretada a insolvência, a massa insolvente não beneficia da isenção referida na alínea u) do n.º 1 do art.º 4.º do RCP – vide acórdão desta Relação, de 22.4.2014, processo n.º 268/14.5TBCLD.L1-2, relatado pelo ora relator e subscrito pela Exm.ª 1.ª adjunta)».

6. Inconformada a Autora Massa Insolvente de AA - Comunicação e Eventos, S.A., interpôs RECURSO DE REVISTA para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:

1 - As alterações produzidas no Acórdão recorrido quanto às alíneas J), S), U), V) e W) dos Factos Provados não permitiam, nem permitem, a alteração da sentença de 1ª instância, que não devia ter sido alterada, mas, pelo contrário, devia ter sido mantida e confirmada, excepto quanto à condenação respeitante ao IVA sobre a quantia de € 126.563,84, por este não ser devido (cfr. art°s 1º e segts. do CIVA).

2 - O objecto do presente recurso é, pois, a absolvição/condenação dos R.R. quanto ao pagamento à A. da quantia de € 126.563,84, acrescida dos juros de mora, além da condenação da A. no pagamento das custas da acção.

3 - Dos factos constantes das alíneas A), B), C), I), J), R), S), T, U), V) e W) dos Factos dados como Provados resulta, sem margem para dúvidas, a responsabilidade, perante a A., do R. BB, por violação do dever de lealdade, e a responsabilidade solidária da R. CC, por enriquecimento sem causa à custa da A., relativamente à quantia de € 126.563,84, que foi depositada na conta da R. CC.

4 - São questões que o Acórdão recorrido, conforme, aliás, expressamente reconhece a fls. 8 e 17, devia ter analisado e se pronunciado, mas que, todavia não fez, pois, a análise da "responsabilidade do 1º R. perante a A,, por violação do dever de lealdade" foi inteiramente omitida e, quanto ao "enriquecimento sem causa da 2a R. à custa da A,", pronunciou-se numa perspectiva alheia aos factos dados como provados.

5 - O que constitui nulidade do Acórdão recorrido (cfr. art°s 615°, n° l-al°s b) e d), e 666° do Cód. Proc. Civil), que, para todos os efeitos, se argui.

Sem prescindir,

6 - Como consta das alíneas A), B), C), J) e W) dos Factos Provados, o R. BB era, simultaneamente, administrador-delegado, com os poderes resultantes da procuração descrita na alínea C) dos factos provados, e sócio da A. e, por outro lado, gerente e sócio-maioritário da R. CC, e, no caso, actuou nas qualidades de administrador-delegado da A. e de gerente da R. CC.

7 - O R. BB não devia ter actuado em nome e representação da A. e da R. CC, por conflito de interesses e, assim, evitar o negócio consigo mesmo.

8 - "O conflito de interesses pode decorrer de excesso ou abuso de representação. Não pode o representante, mesmo no caso de assentimento do representado, agir de modo egoísta, acautelando apenas os seus próprios interesses; compete-lhe, simultaneamente, a defesa dos interesses do contraente que representa." - cfr. Acórdão do STJ de 25-06-2013, in proc. n° 532/2001.U.S1,

9 - Ao ter actuado em nome e representação da A. e da R. CC,, o R. BB fê-lo no âmbito de um negócio consigo mesmo, em que poderia haver, como, a final, houve, conflito de interesses, o da A., em cobrar e receber os preços de venda de bilhetes e do merchandising -produzido e fornecido pela cliente EE -, para, depois, entregar a esta os valores recebidos, e o da R. CC, em ser paga pela A. das despesas efectuadas com a produção dos espectáculos.

10 - O R. BB, já que actuou em nome representação da A. e da R. CC, devia ter actuado com total isenção, imparcialidade, probidade, moralidade e fidúcia, zelando os poderes que lhe foram conferidos pelas representadas, relativamente a ambas as sociedades - cfr. Acórdão do STJ de 25-06-2013, in proc. n° 532/200111.SI,.

11 - Contudo, o R. BB, ostensivamente, não o fez, já que, em manifesto benefício da R. CC e com evidente prejuízo para a A., e sabendo que a quantia referida na alínea J), € 126.563,84, era pertença da EE, e não da R. CC, bem sabendo que a A. a devia cobrar e entregar à EE, mesmo assim, fez depositá-la em conta bancária da R. CC, por entender que a mesma era devida à R. CC pela A. a título de despesas que a R. CC efectuara com a produção de espectáculos (cfr. alíneas C), I), J), U), V) e W dos Factos Provados).

12 - Assim, com o seu comportamento e actuação, o R. BB violou, grosseira e dolosamente, senão, pelo menos, culposamente, os deveres de cuidado e de lealdade estabelecidos no n° 1 do art° 64° do Cód. das Soc. Comerciais.

13 - O que faz o R. BB ser responsável para com a A. por força do n° 1 do art° 72° do Cód. das Soc. Comerciais, que estabelece presunção de culpa, que, de resto, o R. BB não afastou.

14 - E o dano da A. corresponde ao valor depositado na conta da R. CC, € 126.563,84, e não entregue pelos R.R. à A„

15 - A "responsabilidade prevista no art. 72.°, n.° 1, do CSC, é uma responsabilidade contratual e subjectiva, que pressupõe a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil:

facto, ilícito, culpa, dano (danos emergentes e lucros cessantes) e nexo de causalidade" - cfr. Acórdão do STJ de 28.02.2013, in proc. 189/11.3TBCBR.Cl.SI - , os quais, no caso, se verificam.

16 - "A culpa presume-se, bastando ao autor a prova da violação dos deveres por parte do gerente, ao qual, para afastar tal pressuposto, incumbe provar que actuou tal como, naquelas circunstâncias, faria um gestor criterioso" - cfr. Acórdão do STJ de 28.02.2013, in proc. 189/11.3TBCBR.C1. SI

Sem prescindir,

17 - Não existiu causa justificativa para o depósito da quantia de € 126.563,84 na conta bancária da R. CC, resultante da venda de bilhetes e do merchandising - produzido e fornecido pela cliente EE -, que a A., depois, entregar a esta.

18 - Pois, segundo as alíneas I), J), R), S), T), U) E W) dos Factos Provados, não existiu qualquer relação negocial entre a A. e a Ré CC quanto à quantia de € 126.563,86 - que o R. BB sabia pertencer à EE Hipermercados, S.A., por respeitar à venda de bilhetes e de merchandising, e que a A. devia cobrar e depois entregar a esta.

19 - O depósito da mesma importância na conta da R. CC apenas foi feito com o conhecimento e a aquiescência do R. BB, por este ter entendido que a referida quantia era devida à R. CC pela A., a título de despesas que a R. CC efectuou com a produção dos espectáculos

20 - Esse entendimento do R. BB era e foi errado, pois o mesmo sabia que pertencia à EE, a quem a A. devia fazer a sua entrega, e, consequentemente, o depósito na conta da R. CC só ocorreu para benefício desta R. em prejuízo da A.

21 - De modo que a R. CC não tinha direito a essa importância e também não tinha título que justificasse o depósito da dita quantia em conta bancária dela R. CC.

22 - O direito que a R. CC tinha era bem distinto, o pagamento das despesas com a produção de espectáculos.

23 - Ao ter ficado com essa importância, a R. CC enriqueceu, sem justificação, em igual valor, à custa da A., que teve de despender esse valor para efectuar a entrega devida à EE.

24 - A A. tem, assim, nos termos do art° 473° do Cód. Civil, direito a obter a sua restituição da R. CC.

25 - O depósito da quantia de € 126.563,86 em conta bancária da R. CC ficou-se a dever a acto ilícito doloso, senão, pelo menos, culposo, por parte do R. BB, sem cuja intervenção não teria sido depositada em conta bancária da R. CC, contrariamente ao devido, que seria em conta bancária titulada em nome da A..

26 - De modo que nunca poderia nem poderá ter lugar a compensação com o crédito da R. CC das despesas com a realização de espectáculos (cfr. doc. n° 1 do art° 847° do Cód. Civil).

Sem conceder,

27 - A declaração de insolvência da A. obsta a que nos presentes autos a R. CC obtenha o reconhecimento do seu crédito, por via da compensação, em conformidade, alias, com o Acórdão de Uniformizador de Jurisprudência do S.T.J. de 08/5/2013, que fixou jurisprudência no sentido de que "transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art° 287° do CPC.

28 - Aliás, a R. CC não reclamou qualquer crédito e, assim, o respeitante às despesas com a produção de espectáculos, na insolvência da A. (cf. doc. n° 1 que ora se junta e aqui se dá por inteiramente reproduzido - cuja junção aos autos agora se faz, por necessidade, face ao Acórdão recorrido, nos termos da parte final do n° 3 do art° 423° do Cód. Proc. Civil).

29 - O que impede que esse crédito da R. CC sobre a A., entretanto extinto, por não reclamado no processo de insolvência da A., possa ser reconhecido nos presentes autos por via da compensação (cf. art°s 90° e 99° do CIRE).

30 - "Os direitos de crédito sobre a insolvência têm de ser exercidos segundo os meios processuais regulados no CIRE. Não pode invocar a compensação de créditos sobre a insolvência o credor que não tenha visto o seu crédito reconhecido em conformidade com o disposto nos art. 129 e segs. do CIRE." - cfr. Ac. do Trib. da Rel. de … de 12.01.2010, in Proc. n° 20463/09.8YIPRT.C1:

31 - A dita importância de € 126.563,86 acrescem, nos termos do art° 805° do Cód. Civil, juros de mora calculados desde a citação dos R.R..

32 - Como resulta do exposto, o, aliás Douto, Acórdão recorrido violou entre outras, as disposições legais citadas na alegação e nas conclusões deste recurso.

Conclui pedindo que seja concedido provimento ao presente recurso, revogando-se e alterando-se o Acórdão recorrido, sendo o mesmo substituído por Acórdão que condene solidariamente os R.R. no pagamento à A. da € 126.563,86 acrescida, nos termos do art° 805° do Cód. Civil, de juros de mora calculados desde a citação dos R.R. até efectivo e integral pagamento, com custa a cargo dos mesmos R.R..


7. Os Recorridos CC - Entretenimento, Lda. (anteriormente designada GG, Lda.) e BB apresentaram contra-alegações concluindo que nenhuma censura merece o acórdão em crise pelo que deve o presente recurso ser julgado improcedente, negando-se a revista e confirmando-se o acórdão impugnado.

 

8. O Tribunal da Relação de … admitiu o recurso (fls.711), tendo por Acórdão de fls. 718 apreciado e decidido as invocadas nulidades, concluindo que o acórdão recorrido «não padece de qualquer nulidade».

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO


1. Pelo Tribunal da Relação de … na sequência do deferimento parcial da impugnação da matéria de facto, foram dados como provados os seguintes factos:

A) A A. está matriculada sob o NIPC 50…9, na 1ª Secção da Conservatória do Registo Comercial do Porto, tendo como objecto social prestação de serviços de publicidade, comunicação de consultoria de imagem, criatividade e design, organização e gestão de eventos, e compra e venda de material promocional e gestão de participações em sociedades conexas, tendo sido inscritas:

a. A sua constituição pela Ap. 07 de 6-9-2005, tendo sido o R. BB, sócio fundador da A., designado vogal do conselho de administração, obrigando-se a A. com a intervenção de dois administradores ou de um administrador, se tiver sido designado em ata pelo conselho de administração;

b. A cessação de funções pela Ap. 19-7-2007, do R. BB como vogal do conselho de administração, por renúncia.

B) A R. está matriculada sob o NIPC 50…5, na Conservatória do Registo Comercial de Cascais, tendo como objecto social gravação, produção, execução e promoção de obras discográficas e audiovisuais, patrocínios, produção de eventos e espectáculos Marketing e merchandising, comunicação, gestão de imagem e relações públicas, serviços de marketing e informática, tendo sido inscritas:

a. A sua constituição, com a designação HH - Produções Discográficas e Audiovisuais; Eventos, Marketing e Informática, Lda, pela Ap. 18 de 27-12-1995, sendo um dos seus sócios o R. Gonçalo, designado seu gerente;

b. A alteração da firma, pela Ap. 12, de 18-9-2006, para GG, Lda.

c. A alteração da firma, pela Ap. 7, de 10-9-2007 para CC ii – Entretenimento, Lda.

d. A alteração da firma, pela Ap. 74, de 11-2-2008 para CC - Entretenimento, Lda.

C) Em 17-10-2005, o conselho de administração da A., deliberou: "delegar no Senhor Administrador BB a gestão corrente da sociedade, podendo, em consequência: a) Abrir, movimentar e cancelar contas correntes ou de crédito, à ordem ou a prazo, sacar cheques, sacar, aceitar, tornar e subscrever todas as espécies de letras, livranças e outros efeitos bancários até ao valor de €250.000; (…) d) assinar ordens de pagamento e de transferências bancárias até ao valor de €250.000; (…) g) celebrar contratos de compra e venda de quaisquer bens móveis e mercadorias, de seguros, de transporte, aluguer ou arrendamento e leasing; (…) i) receber valores de que a sociedade seja credora, assinar recibos e dar quitações; (…)”.

D) Em 14-12-2006, o R. BB ordenou o pagamento pela A. da quantia de € 46.289,48 à empresa International DD, Ltd, acrescida de € 105,04 de despesas bancárias, no valor total de € 46.394,52.

E) Os RR. não entregaram à A. a quantia de € 46.394,52.

F) Em 6-11-2006, no âmbito da organização do evento “II”, a A. prestou caução a favor da Direcção Geral de Alfandegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, no valor de € 4.263,68.

G) O reembolso da caução referida em F) foi depositado na conta bancária da R. CC em 24/10/2007.

H) Os RR. não entregaram à A. a quantia de € 4.263,68.

I) Em 30-1-2007, a A. acordou com EE Hipermercados, S.A. a prestação de serviços referentes à produção de espectáculos “FF”, mediante o pagamento de € 707.155,00 + IVA, nos termos do qual cabia à A. cobrar os preços de venda de bilhetes e de merchandising – produzido e fornecido pela cliente EE – devendo entregar a esta os valores recebidos.

J) Na sequência do referido em I) e R), com o conhecimento e aquiescência do R., foi cobrado e depositado na conta da R. CC o total de € 126.563,84.

K) A International DD, Ltd forneceu à A. merchandising para o evento “II”, realizado em Dezembro de 2006, no Europarque.

L) A International DD, Ltd. e a A. acordaram que a primeira fabricaria o predito merchandising, asseguraria o seu transporte para Portugal, pagaria aos vendedores e receberia as receitas provenientes das vendas e a segunda receberia uma comissão sobre estas.

M) Em tal evento foi vendido merchandising no valor de cerca de € 60.000.

N) Montante que foi depositado em conta bancária da A..

O) As receitas provenientes das vendas realizadas no evento referido em K), deduzida a comissão da A., correspondem ao valor referido em D).

P) Um funcionário da R. solicitou à Direcção Geral de Alfandegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo que o reembolso da caução referida em F) fosse depositado na conta da R..

Q) A quantia referida em F) era pertença da A..

R) A A. acordou com a R. Lemon entregar a esta a produção executiva dos espectáculos “FF”.

S) A R. CC efectuou despesas de produção dos referidos espectáculos, em valor não inferior a € 268.653,24.

T) (…) que a A. se obrigou a reembolsar à R..

U) e V) O R. sabia que a EE tinha um crédito sobre a A. no valor das receitas da venda dos bilhetes e do merchandising.

W) O Réu BB não transferiu, para a Autora, a quantia de € 126.563,84 cobrada com a venda de bilhetes e de merchandising do evento FF por entender que a mesma era devida à Ré CC pela Autora a título de despesas que a Ré CC efectuara com a produção dos espectáculos.

X) Com vista ao apuramento dos montantes referidos a A. efectuou “auditorias” internas.

Y) (…) tendo sido contratado JJ como consultor externo para analisar a contabilidade e documentação existente nos escritórios da A..

Z) (…) o que ocorreu entre finais de 2007 e durante alguns meses.

AA) Em período não exactamente apurado, com inicio e finais de 2007 e por diversos meses KK, então director financeiro da A., dedicou parte substancial do seu horário de trabalho ao apuramento dos montantes referidos, realizando diligências junto de entidades bancárias, fornecedores da A., funcionários da R. CC, análise de documentação, conferência de documentos contabilísticos e bancários, a prestar colaboração a JJ

BB) KK auferia a remuneração mensal líquida de cerca de € 1.350,00.



III – DA SUBSUNÇÃO – APRECIAÇÃO


Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.


A) O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do Recorrente, artigo 635 do Código de Processo Civil.

Lendo as alegações de recurso bem como as conclusões formuladas pela Recorrente as questões concretas de que cumpre conhecer são apenas as seguintes:


1ª- O Acórdão recorrido é nulo nos termos do artigo 615 n.º 1 al. b) e d) do Código de Processo Civil?

2ª- O Acórdão recorrido errou na aplicação do direito pois que os RR não poderiam ser absolvidos, uma vez que se provou a responsabilidade do Réu BB por violação do dever de lealdade e a responsabilidade da Ré CC por enriquecimento sem causa?

3ª- Não era possível à Ré CC obter o reconhecimento do seu crédito por compensação, em virtude da insolvência da Autora?

 


Vejamos

B) Analisemos a primeira questão arguida pela Recorrente: O Acórdão recorrido é nulo nos termos do artigo 615 n.º 1 al. b) e d) do Código de Processo Civil?

1 - Nos termos do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, relativo às causas de nulidade da sentença, a sentença é nula quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

A Recorrente imputa á sentença recorrida a nulidade de sentença prevista nas al. b) e d) do n.º 1 do artigo 615 do Código de processo Civil.

Afirma a Recorrente que «Dos factos constantes das alíneas A), B), C), I), J), R), S), T, U), V) e W) dos Factos dados como Provados resulta, sem margem para dúvidas, a responsabilidade, perante a A., do R. BB, por violação do dever de lealdade, e a responsabilidade solidária da R. CC, por enriquecimento sem causa à custa da A., relativamente à quantia de € 126.563,84, que foi depositada na conta da R. CC» questões estas que o Acórdão recorrido não analisou nem se pronunciou.

Pela simples leitura do Acórdão recorrido verifica-se a falta de razão da Recorrente.

Impõe-se desde já referir que a eventual nulidade por falta de fundamentação ou por omissão de pronúncia não se confunde um eventual erro de que padeça a decisão recorrida, neste sentido Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil p.613.

No caso concreto não há qualquer nulidade por falta de falta de fundamentação (de facto e de direito) nem por omissão de pronúncia.

No que concerne à invocada nulidade por falta de fundamentação, a mesma apenas se verifica quando ocorre a completa ausência de fundamentos, de facto ou de direito, em que assenta a própria decisão.

Tal nulidade já não se verifica se a fundamentação existe mas é deficiente, insuficiente ou mesmo errada.

O Acórdão recorrido a fls. 17 (fls. 668 dos presentes autos ao apreciar as questões colocadas na Apelação afirma expressamente «Segunda e terceira questão (responsabilidade do 1.º R. perante a A., por violação do dever de lealdade; enriquecimento sem causa da 2.ª R. à custa da A.)

Por estarem estreitamente relacionadas, apreciaremos agora em conjunto as questões sobrantes.

Relativamente ao evento “FF”, a A. alegou que a R., sem causa e na sequência de instruções do R., se havia enriquecido com a quantia de € 134 749,97, proveniente de receitas de bilheteira e de merchandising do evento FF, que a A. deveria restituir à EE. Deveria, assim, a R. restituir tal quantia à A., à luz do instituto do enriquecimento sem causa, e o R. ser solidariamente responsabilizado pelo pagamento dessa verba à A., por violação do seu dever de lealdade para com a A., na sua qualidade de administrador desta».

Após apreciar sob o ponto de vista teórico, doutrinário e jurisprudencial a questão do enriquecimento sem causa da Ré CC, o Acórdão conclui que não há qualquer enriquecimento da ré (pois houve uma causa para a transferência patrimonial) afirmando ainda que «não se mostra que o Réu tenha praticado o imputado ato ilícito».

Julgou, por isso, a Apelação procedente.

É evidente e manifesto que o Acórdão fundamentou de facto e de direito a posição adoptada e pronunciou-se sobre as questões colocadas.

Não aderiu aos argumentos da Recorrente, mas isso não é nenhuma nulidade.

A apontada nulidade da alínea b) do n.º 1 do artigo 615 do CPC apenas ocorre quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido, mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão.

Nas palavras de Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 221, «o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível».

A decisão está fundamentada, uma vez que a mesma enuncia a questão e decide em conformidade, independentemente de se saber se a decisão está correcta ou não.

A decisão em recurso está, pois, devidamente fundamentada pelo que se não verifica a invocada nulidade. 

Importa ter presente que é «frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objecto do recurso que deve ser centrado nos aspectos de ordem substancial. Com não menos frequência a arguição de nulidades da sentença acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades», Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, pág. 132.

No mesmo sentido opinam Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, “Dos Recursos”, Quid Júris, pág. 117, «A observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão …»

Quanto à nulidade da al. d) do n.º 1 do artigo 615 que estatui que a sentença é nula se o juiz deixar de se pronunciar «sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento», é, como se disse, manifesto que também esta eventual nulidade não se verifica.

A sentença, no caso o acórdão só seria nulo se tivesse deixado de se pronunciar sobre uma questão que devesse resolver. Ora, o Acórdão pronunciou-se expressamente sobre todas as questões colocadas. 

E, é pacífico que, apenas as questões e já não os argumentos ou razões, tem o Tribunal o dever de conhecer para decisão da causa.

Questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas.

Os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, não constituem questões no sentido do art.º 615º nº 1, al. d), do CPC.

Assim se o tribunal na apreciação de uma questão efectivamente submetida a julgamento não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia, cfr. Neste sentido Amâncio Ferreira, in «Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9.ª Edição, pág. 57».

Improcedem, pois, as invocadas nulidades.

Em suma, o acórdão recorrido não padece de qualquer nulidade, concretamente não é nulo, nos termos do artigo 615.°, n.º 1, alíneas b) e d), pelo que se impõe a improcedência da primeira questão arguida pela Recorrente.


C) Resolvida a primeira questão vejamos a segunda: O Acórdão recorrido errou na aplicação do direito pois que os RR não poderiam ser absolvidos, uma vez que se provou a responsabilidade do Réu BB por violação do dever de lealdade e a responsabilidade da Ré CC por enriquecimento sem causa?


1 - A recorrente entende, ao contrário do defendido no Acórdão recorrido, que perante os factos constantes das alíneas A), B), C), I), J), R), S), T, U), V) e W) dos Factos dados como Provados resulta, sem margem para dúvidas, a responsabilidade, perante a A., do R. BB, por violação do dever de lealdade, e a responsabilidade solidária da R. CC, por enriquecimento sem causa à custa da A., relativamente à quantia de € 126.563,84, que foi depositada na conta da R. CC.


2 - O Direito

Nos termos do n.º 1 do artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais, relativo aos Deveres fundamentais, os «gerentes ou administradores da sociedade devem observar:

a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e

b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores».

Estatui também o n.º 1 do artigo 72.º do mesmo diploma legal, relativo à Responsabilidade de membros da administração para com a sociedade, que «Os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa».

Relativamente ao Enriquecimento sem causa dispõe o artigo 473.º n.º 1 do Código Civil que «Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou».

Acrescenta o n.º 2 do mesmo normativo que «A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».

Nos termos do artigo 474.º do Código Civil «Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento».

Estatui ainda o artigo 342.º n.º 1 do Código Civil, relativo ao Ónus da prova, que «Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado».

3 - Ponderando a matéria de facto provada, melhor enunciada supra II, e tendo em consideração os princípios jurídicos sumariamente enunciados temos por seguro que o Acórdão recorrido nenhuma censura merece e que não é possível imputar ao co-réu BB qualquer actuação que seja susceptível de consubstanciar qualquer «violação do dever de lealdade» para com a autora nem os factos permitem que a co-ré CC seja responsabilizada por via do instituto do «enriquecimento sem causa».

Efectivamente apenas resultou provado que, com o conhecimento e aquiescência do co R. BB, sócio fundador da A., e também sócio e gerente da Ré CC, (na sequência de um acordo da Autora com a EE Hipermercados, S.A. para a prestação de serviços referentes à produção de espectáculos “FF”, mediante o pagamento de € 707.155,00 + IVA, nos termos do qual cabia à A. cobrar os preços de venda de bilhetes e de merchandising – produzido e fornecido pela cliente EE – devendo entregar a esta os valores recebidos, mas que a A acordou com a R. CC entregar esta produção – factos de I e R), foi cobrado e depositado na conta da R. CC o total de € 126.563,84.

Provou-se também que o co-Réu BB não transferiu, para a Autora, aquela quantia por entender que a mesma era devida à Ré CC pela Autora a título de despesas que a Ré CC efectuara com a produção dos espectáculos, sabendo também que a EE tinha um crédito sobre a A. no valor das receitas da venda dos bilhetes e do merchandising.

Esta factualidade não traduz minimamente uma qualquer conduta que se possa dizer violadora dos deveres de cuidado e de lealdade do co-réu BB para com a Autora.

Tal comportamento do co-Réu BB não se mostra contrário às funções de um gerente, nem que tenha sido um comportamento menos criterioso ou diligente, não respeitador dos interesses da sociedade (no caso da Autora).

O co-réu BB actuou como teria actuado um qualquer outro gestor colocado na mesma situação concreta.

Não se vislumbra, ao contrário do entendimento da recorrente que o co-réu BB tenha, por qualquer forma ou modo, violado os seus deveres de cuidado e de lealdade ou tenha agido contra os interesses da sociedade (da Autora).

Não tendo o co-réu BB violado os deveres de cuidado e de lealdade estabelecidos no art. 64 n.º 1 do CSC não pode, o mesmo, ser responsabilizado nos termos do art.72 do mesmo diploma legal.

Mas se o co-réu BB não pode ser responsabilizado nos termos prendidos pela recorrente, também a Ré CC não pode ser responsabilizada por força do instituto do enriquecimento sem causa.

Resulta dos normativos legais supra citados que são requisitos da obrigação de restituir, com base no enriquecimento sem causa,

- a existência de um enriquecimento;

- que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique;

- que seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição;

- e que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído.

O instituto do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, (ver A. Varela, Das Obrigações em geral, 9ª ed., I, p. 495 e segs., e M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., p. 423 e segs., Diogo Leite de Campos, A Subsidiaridade da Obrigação de Restituir no Enriquecimento, p. 325, e Ac. do STJ, de 14/05/1996, in CJ/STJ, 1996, II, 70), sendo da Autora o ónus de prova dos pressupostos deste instituto.

Ora, perante os factos provados entendemos, tal como ficou decidido pela Relação, que não se mostram preenchidos os pressupostos exigidos pelos normativo legais supra citado, pois que existiu uma causa para a transferência patrimonial em questão.

Aliás, ao abordarmos supra a questão da existência de eventuais nulidades do acórdão, negando-as, já se afirmou que o Acórdão recorrido, «Após apreciar sob o ponto de vista teórico, doutrinário e jurisprudencial a questão do enriquecimento sem causa da Ré CC, o Acórdão conclui que não há qualquer enriquecimento da ré (pois houve uma causa para a transferência patrimonial)».

Efectivamente ficou provada a existência de um contrato entre a Autora e a Ré CC e foi na sequência dessa relação contratual que a R. recebeu a quantia de € 126.563,84, proveniente de receitas de bilheteira dos espectáculos e de merchandising.

O eventual enriquecimento da Ré tem uma causa que o justifica – o contrato celebrado validamente com a Autora.

Os factos provados não demonstram que seja indevido o enriquecimento do património da Ré, sendo certo que era à Autora quem competia o ónus dos pressupostos do enriquecimento sem causa invocado, ou seja, competia à Autora/recorrente alegar e provar os pressupostos do enriquecimento sem causa, competia-lhe o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito.

E, não temos qualquer dúvida em afirmar que, esta é a posição largamente maioritária, senão unânime quer na Doutrina quer na Jurisprudência, neste sentido o Ac. STJ de 17.10.2006; o Ac. do STJ de 02 de Julho de 2009; o Ac. STJ de 5/12/2006; o Ac. STJ de 29 de Maio de 2007; o Ac. STJ de 16-09-2008; o Ac. STJ de 16-10-2008); o Ac. do STJ de 19 de Maio de 2011, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

À autora/recorrente competia o ónus da prova de que ocorreu um enriquecimento de alguém (a Ré) à sua custa e que não havia causa justificativa para esse enriquecimento, sendo certo que in dubio, deve «considerar-se que a deslocação patrimonial verificada teve justa causa» Ac. do STJ de 02 de Julho de 2009.

Não tendo a Autora feito a prova dos factos que lhe são impostos, a causa deve ser julgada contra ela, mesmo que a Ré não provasse a justificação da deslocação patrimonial.

Como se afirma no Ac. STJ de 16-09-2008, relativamente a este ponto concreto «Não bastando, segundo as regras do onus probandi, que não se prove a existência de uma causa da atribuição, sendo preciso convencer o tribunal da falta de causa. 3. Assim sucedendo, mesmo que o réu, na sua defesa por impugnação (por negação indirecta ou motivada), tenha alegado causa para a comprovada deslocação patrimonial (in casu, uma doação), que, entretanto, também não provou.

Pois, não é ele que necessita de demonstrar a inexactidão ou inexistência dos factos alegados pelo autor, o mesmo é dizer a existência de causa para a deslocação patrimonial verificada».

Deste modo, dúvidas não podem subsistir em como era à Autora/recorrente que competia o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que invocava (enriquecimento dos Réus à sua custa e sem qualquer causa justificativa).

Ora, esta prova não foi feita, pelo que dúvidas não podem subsistir em como não assiste qualquer razão à recorrente.

Em suma e em conclusão, podemos afirmar que o Acórdão recorrido não fez qualquer errada aplicação do direito pois que não se provou a responsabilidade do co-Réu BB por violação do dever de lealdade nem se provou a responsabilidade da Ré CC por enriquecimento sem causa.


D) Resta decidir a última questão: Não era possível à Ré CC obter o reconhecimento do seu crédito por compensação, em virtude da insolvência da Autora?

Quanto a esta questão entendemos ser inequívoca a falta de razão da Recorrente.

Dispõe o artigo 90.º do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) relativo ao Exercício dos créditos sobre a insolvência que «Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência».

E nos termos do artigo 99.º do mesmo diploma legal:

«1 - Sem prejuízo do estabelecido noutras disposições deste Código, a partir da declaração de insolvência os titulares de créditos sobre a insolvência só podem compensá-los com dívidas à massa desde que se verifique pelo menos um dos seguintes requisitos:

a) Ser o preenchimento dos pressupostos legais da compensação anterior à data da declaração da insolvência;

b) Ter o crédito sobre a insolvência preenchido antes do contra-crédito da massa os requisitos estabelecidos no artigo 847.º do Código Civil.

2 - Para os efeitos das alíneas a) e b) do número anterior, não relevam:

a) A perda de benefício de prazo prevista no n.º 1 do artigo 780.º do Código Civil;

b) O vencimento antecipado e a conversão em dinheiro resultantes do preceituado no n.º 1 do artigo 91.º e no artigo 96.º

3 - A compensação não é prejudicada pelo facto de as obrigações terem por objecto divisas ou unidades de cálculo distintas, se for livre a sua conversão recíproca no lugar do pagamento do contra-crédito, tendo a conversão lugar à cotação em vigor nesse lugar na data em que a compensação produza os seus efeitos.

4 - A compensação não é admissível:

a) Se a dívida à massa se tiver constituído após a data da declaração de insolvência, designadamente em consequência da resolução de actos em benefício da massa insolvente;

b) Se o credor da insolvência tiver adquirido o seu crédito de outrem, após a data da declaração de insolvência;

c) Com dívidas do insolvente pelas quais a massa não seja responsável;

d) Entre dívidas à massa e créditos subordinados sobre a insolvência».

Importa relembrar que os factos em discussão nos presentes autos são de 2007, tendo a acção sido intentada pela Autora em 2009 e a sua insolvência foi declarada em 2014.

A insolvência é muito posterior aos movimentos monetários aqui em apreciação.

Acresce que a acção foi intentada pela Autora e foi estruturada com base numa causa de pedir concreta.

A Autora fundamentou o seu pedido contra a Ré CC no instituto do «enriquecimento sem causa da Ré CC».

Ora nos autos ficou demonstrado que existiu uma causa concreta para o alegado enriquecimento, para a deslocação patrimonial que se verificou.

Foi essa a razão da improcedência do pedido formulado pela autora contra a ré CC.

Assim não têm, no caso concreto, qualquer aplicação os normativos invocados pela recorrente.

De todo o modo, sempre se diria que estamos a falar de créditos e dívidas anteriores à declaração de insolvência, pelo que também não haveria qualquer impossibilidade legal de fazer funcionar o instituto da compensação (mas que, como se viu, não teve qualquer aplicação na hipótese sub judice).

Torna-se, deste modo, inequívoco que também quanto a esta questão nenhuma razão assiste à recorrente/Autora

Assim, na improcedência das alegações da recorrente/Autora, nega-se a revista.

Em suma, entendemos que se impõe a improcedência total das alegações da recorrente, pelo que se nega a revista.

 

 

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se negar a revista, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.  


Lisboa, 1 de Março de 2018


José Sousa Lameira (Relator)

Hélder Almeida

Maria dos Prazeres Beleza