Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2044/08.5TBPVZ.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
HERANÇA
QUINHÃO HEREDITÁRIO
ALIENAÇÃO
ACEITAÇÃO DA HERANÇA
PACTO SUCESSÓRIO
NULIDADE DO CONTRATO
ÓNUS DA PROVA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
CLÁUSULA PENAL COMPENSATÓRIA
CLÁUSULA PENAL MORATÓRIA
PRESUNÇÃO IURIS TANTUM
Data do Acordão: 04/16/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / OBJECTO NEGOCIAL / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO / REALIZAÇÃO COACTIVA DA PRESTAÇÃO - DIREITO DAS SUCESSÕES / ABERTURA DA SUCESSÃO / ACEITAÇÃO DA HERANÇA / ALIENAÇÃO DA HERANÇA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / REVELIA DO RÉU / EXCEPÇÕES.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, p. 52.
- Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa,12ª edição, p. 156.
- Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II, p. 93.
- Gravato Morais, Contrato Promessa em Geral-Contratos Promessa em Especial, pp. 113, 154.
- Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, p. 183 (reimpressão - AAFDL, 2011).
- Luís Meneses Leitão, Direito das Obrigações, II, p. 282
- Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, p. 281.
- Oliveira Ascensão, Direito Civil – Sucessões, 4ª edição, p. 445.
- Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, pp. 609 e 619 e sgs, máxime 634-638.
- Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, VI, p. 203.
- Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, VII, p. 339.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): -ARTIGOS 236.º A 238.º, 281.º, 342.º, N.º 2, 350.º, N.º 2, 799.º, Nº 1, 810.º, Nº 1, 811.º, N.º 1, 830.º, N.ºS 1 E 2, 2028.º, 2031.º, 2050.º, 2058.º, 2124º E SEGUINTES.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 484.º, N.ºS1 E 2, 485.º, AL. C), 487.º, N.º 2, 493.º, N.º 2, 668º, Nº 1, E).
Sumário :
I - É válido o contrato-promessa de compra e venda de um quinhão hereditário, celebrado entre a autora (promitente-compradora) e a ré (promitente-vendedora), pois esta não está a renunciar à sucessão de pessoa viva, nem a regular a sua própria sucessão, nem a dispor da sucessão de terceiro ainda não aberta; está a dispor, isso sim, do seu próprio direito à herança de outra pessoa.

II - A alienação da herança (ou do quinhão hereditário) só é legalmente possível depois de aberta a sucessão e de o herdeiro ter aceite esta, pois só então, por força do art. 2050.º do CC, adquire o direito a ela.

III - O facto de o negócio prometido só poder ser validamente celebrado depois de aberta e aceite a herança, determina que a realização do contrato-promessa ainda em vida do autor da herança em nada afecta a inteira liberdade de disposição dos seus bens por parte do de cujus.

IV - A regra da proibição dos pactos sucessórios (cf. art. 2028.º, n.º 2, do CC) destina-se a garantir a faculdade individual de decisão do de cujus quanto à disposição por morte dos seus bens e do sucessível quanto ao direito de suceder.

V - A aceitação da herança por parte do promitente-vendedor não se apresenta como um facto constitutivo do direito do promitente-comprador; antes é a sua não aceitação que se configura como um facto impeditivo do direito accionado, a provar pelo promitente-vendedor, nos termos dos arts. 342.º, n.º 2, do CC, e 487.º, n.º 2, e 493.º, n.º 2, do CPC.

VI - A presunção legal do art. 830.º, n.º 2, do CC, é ilidível, nos termos do art. 350.º, n.º 2, do mesmo Código.

VII - Se, em concreto, as partes fixaram uma cláusula penal para o caso de incumprimento da promessa, mas ao mesmo tempo estipularam expressamente a sua submissão ao regime da execução específica, este facto não consente outra interpretação que não seja a de que livremente ilidiram a presunção a que a lei alude: se fixaram uma cláusula penal indemnizatória não obstante terem pactuado a execução específica, tem de entender-se que não quiseram prescindir desta, seja funcionando em alternativa à cláusula penal, seja cumulativamente com ela.

VIII - Se a pena foi estabelecida para o caso da falta definitiva de cumprimento e não para o atraso na prestação, trata-se duma pena compensatória, proibindo a lei (cf. art. 811.º, n.º 1, do CC) o cúmulo do cumprimento e da cláusula penal compensatória, mas não do cumprimento e da cláusula penal moratória.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório
AA e BB propuseram uma acção ordinária  contra CC, pedindo que a ré seja condenada a cumprir o contrato-promessa celebrado com a autora, assinando por si ou por intermédio de terceiro a respectiva escritura pública, ou mediante o suprimento dessa recusa pelo próprio tribunal, bem como a pagar aos autores a compensação pecuniária estipulada no ponto 8) do contrato por incumprimento do mesmo, já verificado.
Citada, a ré não contestou.

Foi proferida sentença que, julgando a acção procedente, condenou a ré a “celebrar o contrato definitivo correspondente ao contrato promessa dos autos, substituindo a presente decisão a declaração de venda a proferir pela ré na escritura de compra e venda a realizar entre as partes relativa ao quinhão hereditário da ré por óbito de sua mãe DD, falecida em 24/2/04, pelo preço total de 54.864,05 €, já integralmente pago”, e  a “pagar aos autores indemnização o valor de 54.864,05 €”.

A ré apelou e a Relação de Lisboa, dando provimento parcial ao recurso, decidiu assim:

Julga-se parcialmente procedente a acção, condenando-se a ré da CC a pagar à autora AA a quantia de € 54.864,05, a título de indemnização por não cumprimento do contrato-promessa, absolvendo-se a ré da totalidade do pedido formulado pelo autor BB e do restante pedido formulado pela autora AA”  (fls 199).

Ambas as partes arguiram nulidades deste aresto - que a Relação, por acórdão de 6/12/12 (fls 341 e sgs) indeferiu na totalidade - depois, inconformadas, recorreram de revista, os autores defendendo a reposição da sentença da 1ª instância e a ré sustentando a total improcedência da causa e a sua consequente absolvição do pedido.

As extensas alegações e conclusões dos recursos suscitam, em resumo, as seguintes questões úteis:

Revista dos autores:

1ª) Ao concluir que as partes pretenderam com a cláusula 8ª afastar a execução específica do contrato a Relação errou, pois estabeleceu-se a cláusula penal para compensar os contraentes não faltosos dos danos causados pela mora no cumprimento e não pelo incumprimento definitivo, sendo certo que subsiste o interesse dos recorrentes na prestação e esta é possível;

2ª) A presunção do artº 830º, nº 2, CC foi ilidida por confissão da própria ré ao não contestar a acção para que foi regularmente citada;

Revista da ré:

1ª) Na parte em que confirmou a sentença o acórdão recorrido é nulo, nos termos do artº 668º, nº 1, e), CPC, por desconformidade entre o objecto do pedido e a condenação proferida;

2ª) O efeito da revelia fixado no artº 484º, nº 1, CPC, não se aplica no caso presente  porque ocorre a hipótese prevista no artº 485º, c), do mesmo diploma – a vontade das partes é ineficaz para se obter o efeito jurídico que pela acção se pretende obter;

3ª) No caso dos autos o contrato promessa ajuizado é nulo, atento o disposto no artº 2028º, nº 2, CC, por configurar um contrato sucessório;

4ª) Mesmo que assim não se entenda, o contrato é nulo, nos termos do artº 281º CC, já que ao celebrarem um contrato promessa de alienação de um quinhão hereditário por morte da mãe de ambas, autora e ré estão a realizar um negócio cuja plena eficácia pressupõe a morte daquela, ao tempo ainda viva (a sua morte ocorreu cerca de sete anos depois);

5ª) Sem prescindir das duas conclusões anteriores, a execução específica não é possível no caso dos autos porque a isso se opõe a natureza da obrigação assumida (artº 830º, nº 1, CC);

6ª) Sendo nulo o contrato promessa – obrigação principal – nula é também a cláusula penal estipulada, atento o artº 810º, nº 2, CC;

7ª) Uma vez que as partes estipularam a cláusula penal somente para o caso de não cumprimento definitivo, excluindo a mora, deve aplicar-se o disposto no artº 811º, nº 1, CC, o que determina, no caso, a nulidade da pena;

8ª) No caso presente não existe sinal e, ainda que existisse, não se verifica o condicionalismo do artº 442º, nº 4, CC;  

Cada uma das partes respondeu à revista da parte contrária, defendendo a sua improcedência.

Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto

A Relação considerou provados os seguintes factos:

1) Autora e ré celebraram contrato-promessa de compra e venda em 10/7/97, pelo qual a ré prometeu vender o seu quinhão hereditário por óbito de sua mãe a favor da autora pelo preço total de dez milhões, novecentos e noventa e nove mil e duzentos e cinquenta escudos, à data e segundo avaliação efectuada no momento, o que agora, na moeda corrente, equivale por mera conversão a 54.864,05 €;

2) Nesse contrato foi a totalidade do preço paga de imediato pelos autores;

3) Ambas as partes concordaram no texto do mesmo documento que a escritura pública seria realizada logo que a ré fosse notificada para o efeito;

4) Foram efectuadas várias notificações, sem que a ré se dispusesse a celebrar o contrato;

5) E agora, já em Abril de 2008, foi a ré notificada para assinar a escritura, tendo concordado e dado origem à marcação da mesma, sem qualquer resultado, pois a mesma faltou sem qualquer justificação na data marcada, em 28/4/08, e para a qual estava devidamente informada e notificada;

6) Na cláusula 8ª as partes fixaram “como reforço legal, para o caso do não cumprimento, a cargo do faltoso, uma cláusula penal de valor igual ao preço do contrato, ou seja, 10.999.250$00”  (equivalente a 54.864,05 €);

7) Com tal atitude da ré os autores encontram-se sem o respectivo valor do contrato e não podem com isso ocupar no processo de partilhas a posição da ré na parte do quinhão hereditário prometido vender;

8) Mas, por outro lado, a ré continua com esse mesmo direito e mantém todo o dinheiro recebido na sua posse e em seu proveito;

9) Os autores sofrem com toda esta situação e sentem mesmo revolta por estarem a ser enganados desta forma pela própria irmã e cunhada que sempre quiseram ajudar, tendo com tudo isto, perdas irreparáveis nos negócios e investimentos feitos com a CC;

10) A escritura pública aqui prometida poderia ter sido realizada após o falecimento da mãe da ré e da autora, o qual se verificou em 24/2/04.

b) Matéria de Direito

1. Começando pelas questões de natureza processual postas nas duas primeiras conclusões da revista da ré, diremos que ambas improcedem.

Efectivamente, não ocorre a nulidade prevista no artº 668º, nº 1, e), CPC - condenação em objecto diverso do pedido - pela razão simples, mas decisiva, de que o acórdão recorrido, contrariamente ao alegado pela ré, não confirmou, antes revogou a sentença da 1ª instância na parte em que esta julgou procedente o pedido de execução específica do contrato alegadamente (na tese da ré) não formulado pelos autores.

Quanto à não aplicação dos efeitos da revelia previstos no artº 484º, nº 1, CPC, por se estar em presença da hipótese prevista no artº 485º, c), - ineficácia da vontade das partes para produzir o efeito jurídico que pela acção se pretende obter importa desfazer o equívoco em que a ré persiste. Na verdade, uma coisa são as consequências, ao nível dos factos, da falta de contestação do réu, e outra, inteiramente distinta, é o julgamento de mérito da causa que tem lugar em função da matéria de facto apurada. A falta de contestação importa somente a confissão dos factos articulados pelo autor (nº 1 do artº 484º). Por isso a lei diz, no nº 2 do mesmo preceito, que o juiz profere de seguida sentença “conforme for de direito”, significando isto, basicamente, que a circunstância de se considerarem assentes os factos articulados na petição inicial por virtude da ausência de contestação do réu não determina necessariamente a procedência dos pedidos, já que o efeito cominatório se circunscreve à admissão (reconhecimento) daquela factualidade; e reconhecimento dos factos não equivale, obviamente, a reconhecimento do direito, desde logo porque aqueles podem ser insuficientes, por inconcludência ou outra razão juridicamente atendível, para justificar o atendimento da pretensão formulada na petição inicial. Deste modo, o problema da validade substancial do contrato promessa ajuizado colocado pela ré é susceptível, sem qualquer dúvida, de se reflectir na decisão de fundo do litígio (vê-lo-emos a seguir), mas não impede a verificação dos efeitos da revelia: lógica e juridicamente, esta questão precede aquela, já que, dizendo respeito à fixação dos factos da causa, é independente (no sentido exposto) do direito que se lhes aplica na sentença.

2. As questões postas nas restantes conclusões de ambos os recursos respeitam à possibilidade da execução específica do contrato promessa referida no ponto 1) da matéria de facto e do cúmulo dessa pretensão com a do pagamento da cláusula penal estipulada na cláusula 8ª.

Na  sentença considerou-se que ambos os pedidos eram atendíveis: a execução específica porque o contrato promessa é válido e a ré foi interpelada para cumprir, sendo certo que se está perante um caso de incumprimento temporário, já que os autores, credores da prestação de facto, mantêm o interesse nesta, e à ré, devedora, ainda é possível a sua realização, apesar de coactiva; a cláusula penal porque com a expressão “como reforço legal”  constante da cláusula 8ª as partes quiseram que “acrescesse aos remédios legalmente previstos para o incumprimento uma indemnização fixa no valor do preço”, o que é consentido pelo artº 810º, nº 1, CC, nos termos do qual “as partes podem fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal”.

A Relação, por seu turno, para além de julgar que a não intervenção do autor na celebração do contrato promessa leva à improcedência do pedido quanto a ele e que a cláusula penal estipulada é válida, decidiu ainda que “perante a existência da cláusula penal estabelecida na cláusula 8ª do contratopromessa, prevista também no art.º 830º, nº 2, do Código Civil, fica afastada a possibilidade de execução específica do contrato nos termos do nº 1 do mesmo preceito, por haver convenção em contrário e uma vez que não se está perante nenhuma das situações previstas no seu n.º 3” (fls 199).

Atendendo à delimitação objectiva dos recursos resultante do conteúdo do acórdão recorrido e do âmbito das conclusões das minutas há que verificar, em primeiro lugar, se o pedido de execução específica deve ser atendido; em função da resposta obtida terá depois que se decidir se pode haver lugar ao cúmulo da execução específica com a cláusula penal (concedida na 1ª instância, mas recusada na Relação).

O contrato prometido tem por objecto o quinhão hereditário da ré, promitente vendedora, na herança de DD, mãe da ré e da autora, promitente compradora. Trata-se de negócio regulado nos artºs 2124º e seguintes do Código Civil [1]; e como no caso foi estipulado – e pago – um preço pela alienação, o negócio deve sujeitar-se às disposições reguladoras da compra e venda, por ser o que lhe deu causa.

A ré contesta a sua validade por se tratar dum contrato sucessório, proibido pelo artº 2028º, nº 2, segundo o qual “os contratos sucessórios apenas são admitidos nos casos previstos na lei, sendo nulos todos os demais, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artº 946º”. Mas não tem razão. Efectivamente, nos termos do nº 1 desta norma, “há sucessão contratual quando, por contrato, alguém renuncia à sucessão de pessoa viva, ou dispõe da sua própria sucessão ou da sucessão de terceiro ainda não aberta”. A situação ajuizada, no entanto, não se enquadra em nenhuma destas hipóteses. Na verdade, ao prometer vender à autora o seu quinhão hereditário na herança da mãe de ambas, a ré não está, obviamente, a renunciar à sucessão de pessoa viva, nem a regular a sua própria sucessão, nem a dispôr da sucessão de terceiro ainda não aberta; está a dispôr, isso sim, do seu próprio direito à herança de outra pessoa; mas como a alienação da herança (ou de quinhão hereditário), precisamente porque o artº 2028º proíbe a disposição da sucessão de terceiro ainda não aberta, só é legalmente possível depois de aberta a sucessão - vale por dizer, depois da morte do autor da herança (artº 2031º) - e de o herdeiro ter aceite esta, pois só então, por força do artº 2050º, adquire o direito a ela, não se vê que exista qualquer obstáculo à validade do contrato promessa ajuizado radicado na proibição dos contratos sucessórios estabelecida na lei. De igual modo, não procede a alegação de que o contrato é nulo por violar o disposto no artº 281º. Este artigo diz que “se apenas o fim do negócio jurídico for contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes, o negócio só é nulo quando o fim for comum a ambas as partes”. A ré argumenta que o negócio é “gritantemente ofensivo dos bons costumes”  porque a sua “plena eficácia pressupõe a morte da mãe ainda viva, sendo que a morte apenas veio a ocorrer cerca de sete anos depois”. A conclusão, porém, que daqui deve retirar-se é a oposta: o facto de o negócio prometido, como já se evidenciou, só poder ser validamente celebrado depois de aberta e aceite a herança, determina que a realização do contrato promessa ainda em vida do autor da herança em nada afecta a inteira liberdade de disposição dos seus bens por parte do de cujus. Como observa Jorge Duarte Pinheiro[2], a regra da proibição dos pactos sucessórios que vigora no nosso ordenamento destina-se a garantir a faculdade individual de decisão (sublinhado nosso) - de decisão do de cujus quanto à disposição por morte dos seus bens e do sucessível quanto ao direito de suceder; ora, em razão do exposto uma e outra estão plenamente asseguradas na situação analisada no presente processo. Por outro lado, o fim do negócio a que o artº 281º alude não se confunde com o seu objecto, com o seu conteúdo, impondo a lei que o fim ofensivo dos bons costumes seja comum a ambas as partes para que a nulidade possa ser declarada. Mas torna-se evidente que a matéria de facto apurada é perfeitamente inócua a tal respeito, não permitindo de modo algum retirar a conclusão de que as partes visaram com o contrato promessa celebrado prosseguir uma finalidade que, por repugnar aos bons costumes, o torne inválido.

Conclui-se, deste modo, que o contrato prometido não está abrangido pela proibição estabelecida nos artºs 281º e 2028º; conclui-se, mais precisamente, que o conteúdo da relação a constituir pela sentença judicial a que alude o artº 830º, nº 1, não é substancialmente inválido, já que se traduz na emissão das declarações negociais típicas da alienação da herança, previstas nos artºs 2124º e seguintes.

Mas será possível, ainda assim, a execução específica do contrato promessa ajuizado?

Como já se disse, e é doutrina unânimemente aceite [3], a alienação da herança ou de quinhão hereditário só pode ser feita depois de aberta a sucessão, visto que até ao momento da morte de uma pessoa ela traduzir-se-ia, como vimos, num contrato sucessório, que o Código só admite nos casos especiais previstos no artº 2028º, nº 2. E este requisito (ou pressuposto) necessário da efectivação do negócio verifica-se no caso em análise, uma vez que se encontra documentalmente comprovado o falecimento da autora da herança em 24/2/04 (certidão de óbito de fls 20). O outro pressuposto necessário da válida existência do negócio é a aceitação da herança por parte do alienante, exigindo-se também, suplementarmente, que esta não tenha ainda sido partilhada. A aceitação (prévia) da herança impõe-se porque só então o herdeiro adquire direito a ela, como atrás se referiu (artº 2050º), e porque o direito de aceitar ou repudiar, atendendo ao seu carácter pessoal, não é em si mesmo transmissível em vida, mas apenas por morte, nos termos do artº 2058º. A inexistência de partilha ao tempo da alienação, por seu turno,  justifica-se porque após a realização da partilha só há bens de cada um dos herdeiros e então “já não é lógica, nem substancialmente possível, quer a alienação da herança, quer a do quinhão hereditário, por ter desaparecido entretanto o vínculo unitário que acidentalmente prendia os bens integrados no mesmo património do de cuis” .[4]

Acontece que no caso presente não se encontra demonstrado que a ré tenha aceitado a herança aberta por morte de sua mãe, sendo certo, até, que a autora nem sequer alegou tal facto, não lhe fazendo nenhuma referência explícita na petição inicial. Só que não pode deixar de entender-se que a ré, ao prometer (validamente, como se viu) alienar o seu quinhão hereditário, implicitamente prometeu aceitar a herança por morte de sua mãe. A aceitação da herança é um negócio jurídico unilateral não receptício de carácter pessoal (no sentido de que deve ser realizado pelo próprio, não através de representante), que no nosso sistema jurídico “é encarada como condição da própria aquisição, e não apenas como facto confirmativo desta”[5], uma vez que sem ela não se dá a aquisição sucessória. Por consequência, se alguém se obriga através de contrato promessa à celebração dum negócio cuja possibilidade (jurídica) depende em absoluto da aceitação duma herança – tal é o caso presente – impõe-se concluir que a vinculação assim obtida inclui (abrange) necessariamente a referida aceitação, sob pena de se frustrar o desiderato da lei ao conceder ao contraente não faltoso a faculdade de obter a execução específica do contrato.

Independentemente desta consideração, por si só decisiva, importa ainda sublinhar que numa acção estruturada nos termos em que esta o foi – isto é, com a causa de pedir e o pedido que temos vindo a analisar – a aceitação da herança por parte do promitente vendedor não se apresenta como facto constitutivo do direito do promitente comprador; antes é a sua não aceitação que logicamente se configura como um facto impeditivo do direito accionado, a provar pelo promitente vendedor, nos termos dos artºs 342º, nº 2, CC, 487º, nº 2 e 493º, nº 2, CPC.  Ora, a ré não provou (nem sequer alegou em tempo oportuno, pois não contestou o pedido) não ter aceitado a herança de sua mãe; por consequência, na medida em que, conforme se explicou, ficou (também) vinculada àquela aceitação no contrato promessa de alienação do quinhão, a execução específica deste  mostra-se possível, nada impedindo que o tribunal profira sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso.

Resta dizer o seguinte:

- Em primeiro lugar, que o fundamento adoptado no acórdão recorrido para negar esta pretensão da autora não colhe. Efectivamente, o artº 830º, nº 2, diz que se entende haver convenção em contrário (da execução específica) se existir sinal ou tiver sido fixada uma pena para o caso de não cumprimento da promessa. Esta presunção legal, segundo a unanimidade da doutrina [6], é ilidível, nos termos do artº 350º, nº 2, CC. Ora, no caso presente as partes fixaram uma cláusula penal para o caso de não cumprimento da promessa, mas ao mesmo tempo estipularam expressamente a sua submissão ao regime da execução específica, facto que não consente outra interpretação que não seja a de que livremente, no uso da sua autonomia privada, ilidiram da presunção a que a lei alude: se fixaram uma cláusula penal indemnizatória não obstante terem pactuado a execução específica, tem de entender-se que não quiseram prescindir desta, seja funcionando em alternativa à cláusula penal, seja cumulativamente com ela.

Em segundo lugar, e para concluir esta parte da apreciação dos recursos, deve dizer-se que, como decorre de tudo quanto ficou exposto, estão reunidos todos os pressupostos de que a lei faz depender a execução específica, a saber: validade formal e substancial do contrato promessa; incumprimento culposo por parte da ré (factos 3, 4 e 5; vale aqui a presunção de culpa do artº 799º, nº 1); compatibilidade da execução específica com a natureza da obrigação assumida.

Nesta parte, por conseguinte, procede o recurso da autora, improcedendo o da ré.

3. Falta analisar a questão do cúmulo  do pedido de execução específica com o do pagamento da pena fixado na cláusula 8ª do contrato (facto 6).

Na ausência de elementos de facto provados que nos permitam afirmar com segurança qual foi a vontade real das partes, há que determinar o sentido juridicamente relevante da estipulação em apreço recorrendo às regras de interpretação dos contratos estabelecidas nos artºs 236º a 238º CC. E a esse respeito afigura-se que, conjugando o teor literal da cláusula - onde se fala, concretamente, em “reforço legal” para a hipótese de “não cumprimento” - com o montante para ela estipulado, correspondente, exactamente, ao preço acordado para o negócio prometido (10.999.250$00), a conclusão a extrair é a de que a pena foi estabelecida para o caso da falta definitiva de cumprimento e não para o atraso na prestação (pena indemnizatória). Trata-se, portanto, duma pena compensatória, significativa de que as partes pretenderam estabelecer com ela um substituto da execução [7]. Segundo o artº 811º, nº 1, CC, que regula o funcionamento da cláusula penal, “o credor não pode exigir cumulativamente, com base no contrato, o cumprimento coercivo da obrigação principal  e o pagamento da cláusula penal, salvo se esta tiver sido estabelecida para o atraso na prestação; é nula qualquer estipulação em contrário”. A lei, portanto, proíbe o cúmulo do cumprimento e da cláusula penal compensatória, mas não do cumprimento e da cláusula penal moratória. Esta solução é perfeitamente compreensível e lógica; no último caso, com efeito, e ao contrário do primeiro, a cláusula tem somente em vista reparar os danos causados ao credor com o atraso na prestação; por isso, nada impede que ele exija simultâneamente a obrigação principal e a pena convencional. Se, porém, a cláusula for compensatória, obtendo o credor o cumprimento da obrigação principal, ainda que seja por meio da execução específica, já não poderá exigir a pena convencionada porque, justamente, não se verifica então o pressuposto necessário para o efeito: o não cumprimento do devedor.

No caso em exame a autora cumulou o pedido de execução específica com o de indemnização compensatória, vedado pelo artº 811º, nº 1. Por tal motivo, improcede a acção quanto a este último pedido. Nesta parte, portanto, procede a revista da ré, improcedendo a da autora.

III. Decisão

Com os fundamentos expostos (diversos dos invocados pelas partes), acorda-se em conceder provimento parcial a ambas as revistas. Consequentemente:

1 - Julga-se improcedente o pedido de indemnização, dele se absolvendo a ré;

2 - Julga-se procedente o pedido de execução específica e declara-se vendido pela ré CC à autora AA, sua irmã, o quinhão hereditário da ré na herança aberta por óbito de DD em 24/2/04 mediante o preço total, já integralmente pago pela autora à ré, de 10.999.250$00 (dez milhões, novecentos e noventa e nove mil, duzentos e cinquenta escudos).

Custas, aqui e nas instâncias, na proporção de 1/5 para a autora e 4/5 para a ré.

Lisboa, 16 de Abril de 2013


Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira

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[1] Salvo indicaçãoo em contrário, pertencem ao Código Civil todos os artigos mencionados no texto.
[2] O Direito das Sucessões Contemporâneo, pág. 183 (reimpressão - AAFDL, 2011).
[3] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, VI, pág. 203; Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, VII, pág. 339; e Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II, pág. 93. 
[4] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra e loc. citados na nota anterior.
[5] Prof. Oliveira Ascensão, Direito Civil – Sucessões, 4ª edição, pág. 445.
[6] Cfr. Gravato Morais, Contrato Promessa em Geral-Contratos Promessa em Especial, pág. 113; Almeida Costa, pág. 52; Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa,12ª edição, pág. 156; Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, pág. 281. 
[7] Cfr. Gravato Morais, obra cit. na nota anterior, pág. 154; Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, pág.609 e 619 e sgs, máxime 634-638; Luís Meneses Leitão, Direito das Obrigações,II, pág. 282.