Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14445/18.6T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONTRATO DE TRANSPORTE
LUGAR DA PRESTAÇÃO
Data do Acordão: 10/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
É internacionalmente competente o tribunal português para conhecer e apreciar a responsabilidade contratual pelo incumprimento de um contrato de transporte aéreo (Portugal-Suíça), nos termos dos arts. 5º e 7º do Regulamento (CE) nº 261/2004, do Parlamento e do Conselho, de 11/2/2014, que estabelece “regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos”, uma vez que, excluindo a regra de competência do art. 33º, 1, da Convenção de Montreal de 1999 e sendo aplicáveis as regras de competências especiais do art. 5º da Convenção de Lugano II de 2007 («Uma pessoa com domicílio no território de um Estado vinculado pela presente convenção pode ser demandada noutro Estado vinculado pela presente convenção: 1. a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão; b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será: (…)  — no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados (…).»), uma vez identificado o “cancelamento do voo” como motivo do incumprimento contratual, o critério do lugar correspondente à prestação característica do contrato de prestação de serviços assente em transporte aéreo corresponde ao local de partida do voo, determinando assim a jurisdição competente nesse local de cancelamento.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 14445/18.6T8LSB.L1.S1
Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, 6.ª Secção

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO
1. AA e BB intentaram acção declarativa em 18/6/2018, sob a forma de processo comum, contra “Swiss – International Air Lines Agl (Swiss Internacional Air Lines, SA) – Sucursal em Portugal”, pedindo a condenação da Ré no pagamento, a cada uma das autoras, do montante de             € 400,00, acrescida dos juros de mora, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento. Alegaram, em síntese, que cada uma delas adquiriu um bilhete de avião para o voo operado pela ré n° ...0000, a realizar no dia 27.06.2016, com partida de ..., às 14h30m, e chegada prevista ao aeroporto de ..., às 18h15m, hora local. Contudo, apesar de terem efectuado o check-in para o referido voo e emitido os respectivos títulos de embarque, o voo foi cancelado pela Ré. Assim, para além de não terem sido informadas do cancelamento do voo com um período de pré-aviso de duas semanas, foram reencaminhadas para outros voos no dia 28.06.2016, acabando por chegar ao seu destino final no dia 28.06.216, pelas 12h48m. Concluíram que, por se tratar de um voo “intracomunitário”, com mais de 1500 Km, tem direito a ser indemnizadas nos termos dos arts. 5º e 7º do Regulamento (CE) nº 261/2004, de 11/2/2004.
A “Swiss Internacional Air Lines AG”, com sede na Suíça e representação/sucursal em ..., apresentou Contestação, invocando, além do mais e em síntese, que o Tribunal Português é absolutamente incompetente para conhecer da causa uma vez que é no destino final que se verifica o alegado atraso de voo, e que a Ré tem sede em ... e as duas passageiras têm nacionalidade e residência na Suíça. Pugnaram pela procedência da excepção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses, sendo a SWISS AIR absolvida da instância ou, se assim não se entendesse, ser julgado improcedente o peticionado no ponto A. do requerimento probatório das Autoras e a acção ser julgada totalmente improcedente por não provada, com a absolvição da Ré do pedido.
As Autoras responderam às excepções alegadas pela Ré, pugnando pela respectiva improcedência.

2. Em despacho autónomo proferido em 21/11/2018 (para o efeito do art. 595º, 1, a), do CPC), o Juiz 1 do Juízo Local Cível de ... (Tribunal Judicial da Comarca de ...) decidiu a excepção dilatória de incompetência internacional: “Pelo exposto, julgo este Tribunal absolutamente competente em razão da competência internacional para conhecer da causa”.


3. Inconformada com a decisão, a Ré interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) – fls. 55 e ss. Foi identificada como questão decidenda: Se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciar e decidir a acção”.
No acórdão proferido em 16/5/2019, previamente foi decidido:
“A acção foi instaurada contra Swiss – International Air Lines Agl (Swiss Internacional Air Lines, SA) – Sucursal em Portugal. Contestou, intervindo assim no processo, a administração principal, a Swiss Internacional Air Lines, com sede na Suíça. O art. 13º do CPC/13, relativo à personalidade judiciária das sucursais, estabelece no seu nº 2 que [“se] a administração principal tiver sede ou domicílio em país estrangeiro, as sucursais, agências, filiais, delegações ou representações estabelecidas em Portugal podem demandar e ser demandadas, ainda que a acção derive de facto praticado por aquela, quando a obrigação tenha sido contraída com um português ou com um estrangeiro domiciliado em Portugal”.
No caso em apreço, a administração principal tem sede na Suíça (facto não contestado) e a obrigação resultante da celebração do contrato de transporte aéreo não foi contraída com português nem as autoras, de nacionalidade suíça, têm domicílio em Portugal. Assim, à primeira vista, a ré carecia de personalidade judiciária. Porém, conforme decorre do art. 14º do CPC/13, “A falta de personalidade das sucursais ... pode ser sanada mediante a intervenção da administração principal e a ratificação ou repetição do processo.”
Ora, no caso dos autos verifica-se que a citação foi remetida para o domicílio da sucursal em Portugal, mas quem contestou, intervindo assim, logo de início, nos autos, foi a administração principal. Assim, face à doutrina resultante do preceito, aliás introduzida pela reforma de 95, deve considerar-se suprida e sanada a falta de personalidade da ré sucursal.”
Concluiu-se que “o tribunal de Lisboa é internacionalmente competente para conhecer da acção” e decidiu-se julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida embora com diferente fundamento”.

4. A Ré, novamente inconformada, interpôs recurso de revista para o STJ, na modalidade normal – fundando-se nos arts. 671º, 2, a), e 629º, 2, a), do CPC – e, subsidiariamente, na modalidade excepcional – socorrendo-se do art. 672º, 1, c), do CPC (fls. 3 e ss dos autos sob apenso), visando revogar o acórdão recorrido “na parte em que considerou não verificada a exceção de incompetência absoluta do Tribunal e, em consequência, ser a Ré absolvida da instância”.

5. Admitido como revista excepcional (cfr. fls. 53) e assim distribuído o recurso, foi à Formação do STJ a que alude o art. 672º, 3, do CPC, que, em decisão proferida em 5/12/2019, determinou a distribuição nos termos gerais, uma vez que a revista “deve ser apreciada à luz do que está previsto no art. 629º, nº 2, al. a), do CPC” (fls. 97).

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. FACTUALIDADE

Considera-se relevante para a apreciação recursiva a factualidade descrita no Relatório que antecede e que será vertido infra no ponto 2. do cap. III.

III. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO

1. Admissibilidade e objecto

1.1. Atenta a decisão da Formação do STJ, o recurso é admitido e apreciado para sindicar o acórdão recorrido quanto à alegada violação e errada aplicação das regras de competência internacional, nos termos da revista comum prevista extraordinariamente no âmbito da previsão do art. 629º, 2, a), do CPC, tendo em conta a respectiva admissibilidade no âmbito da salvaguarda que afasta o impedimento recursivo da “dupla conformidade decisória” (arts. 671º, 2, 3, 1.ª parte, CPC).

1.2. Para o efeito deste fundamento recursivo, a Ré e Recorrente apresentou as seguintes Conclusões:

a. A Recorrente alegou, em sede de Contestação, a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal Judicial da Comarca de ..., por preterição das regras de competência internacional vigentes no ordenamento português.

b. O Tribunal a quo julgou, em Despacho Saneador, os argumentos invocados pela ora Recorrente totalmente improcedentes.

c. A Recorrente interpôs recurso ordinário de apelação do Despacho Saneador, pugnando que o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado num contrato de transporte aéreo internacional de pessoas é aquele, à escolha do passageiro, em cujo foro se situa a sede da transportadora ou o lugar de destino do passageiro.

d. Como nenhum desses locais corresponde a Portugal, a Recorrente concluiu pela incompetência internacional dos Tribunais Portugueses; a igual conclusão chegou a Recorrente ao aplicar os princípios de Direito Internacional Privado, nomeadamente o princípio da conexão mais estreita.

e. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu o Acórdão ora Recorrido que julgou improcedente o recurso, mantendo, embora com fundamento jurídico diverso, a decisão recorrida.

f. Em particular, o Tribunal da Relação considerou aplicável aos autos a Convenção de Lugano II, aplicando a norma contida no artigo 5.º, n.º 1, al. a) e b) dessa Convenção no sentido de que “…para efeitos de cancelamento de voo com partida do aeroporto de ... e destino à Suíça – países partes da Convenção de Lugano II – o elemento de conexão relevante para definir a competência internacional dos tribunal é o aeroporto de partida visto que é neste que o serviço deixou de ser prestado”.

g. Salvo melhor entendimento, existe uma norma especial relativamente à mesma matéria de competência judiciária aplicável a todas as ações por danos decorrentes de transporte aéreo internacional de passageiros, a qual, contrariamente ao entendido pelo Tribunal da Relação, é lei internacional especial face à lei geral da Convenção de Lugano II.

h. O recurso é admissível enquanto revista ordinária, uma vez que não há sobreposição de julgados, nomeadamente quanto à fundamentação das decisões das instâncias, e porque estamos perante uma das situações em que o recurso é sempre admissível (cfr. artigo 671.º, n.º 1, a) CPC).

i. Sendo o contrato de transporte aéreo internacional a base contratual que sustenta o direito que o Recorrido alega deter contra a Recorrente, impõe-se que se atendam às regras que regem este tipo de contrato para se aferir qual o Tribunal competente para apreciação do mesmo e da eventualidade da existência de um direito a uma compensação pelo seu cumprimento defeituoso.

j. A indemnização prevista no Regulamento (CE) n.º 261/2004 não deixa de ter em vista a compensação de um dano decorrente do incumprimento de um contrato de transporte aéreo internacional.

k. Não tendo sido convencionado qualquer pacto privativo de atribuição de jurisdição, então, por força do princípio do primado do direito internacional sobre o direito interno, a competência internacional para a apreciação do litígio das partes decorre, em primeira linha, das normas de competência internacional.

l. A par do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 e da Convenção de Lugano II sobre todas as matérias civis em geral, existe uma Convenção que dispõe de normas especiais de competência judiciária relativamente a todas as ações por danos decorrentes de transporte aéreo internacional de passageiros: a Convenção de Montreal, que se aplica a todas as operações de transporte internacional de pessoas, bagagens ou mercadorias em aeronave efetuadas a título oneroso.

m. Estas regras são de carácter e aplicação exclusiva, como resulta do texto da própria Convenção e da sua antecessora, ainda em vigor, a Convenção de Varsóvia.

n. Também em virtude do critério da especialidade, a lei especial (Convenção de Montreal) prevalece sobre a lei geral (Convenção de Lugano II), uma vez que a lei geral não revoga a lei especial, a menos que outra seja a intenção inequívoca do legislador.

o. No caso em concreto, a Convenção de Lugano II manda, expressamente, aplicar qualquer lei especial que exista – como a Convenção de Montreal (cfr. 67.º, n.º 1).

p. Atendendo a que a Convenção de Montreal dispõe de regras específicas sobre a jurisdição competente para apreciar ações por danos com fundamento no transporte de passageiros, e não existindo qualquer disposição na Convenção de Lugano II que leve a concluir pela revogação das normas especiais de competência previstas na Convenção de Montreal (antes pelo contrário), deverá esta regra especial prevalecer sobre as regras gerais aplicáveis às demais matérias civis.

q. Resulta do artigo 33.º da Convenção de Montreal que a intenção do legislador foi a de subordinar a competência para as ações de danos emergentes de contrato de transporte aéreo ao local da sede da transportadora, ao local do estabelecimento da transportadora onde tenha sido celebrado o contrato, ou ao local de destino.

r. Não pode por isso uma norma genérica como a constante no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 e/ou Convenção de Lugano II vir derrogar a especificidade ínsita no apontado artigo 33º da Convenção de Montreal.

s. No presente caso tanto a “sede da transportadora” como o “local do destino” se situam na Suíça, sendo assim inequívoco que são os tribunais desse local os competentes para apreciar o presente litígio, até porque em momento algum se prova a intervenção da sucursal portuguesa da Recorrente na celebração do contrato.

t. Ademais, o contrato de transporte não foi celebrado num estabelecimento da transportadora, mas antes a uma Agência de Viagens, a ebookers.ch, que, aliás, também tem sede na Suíça.

u. Muito embora o fundamento do pedido das Recorridas seja a indemnização prevista no Regulamento (CE) n.º 261/2004, a Convenção de Montreal “…aplica-se a todas as operações de transporte internacional de pessoas, bagagens ou mercadorias em aeronave efectuadas a título oneroso” (cfr. artigo 1.º, n.º 1), em especial às matérias relativas ao contrato de transporte aéreo internacional que não se encontram previstas no referido Regulamento, como a competência judiciária.

v. Neste sentido, também da regra constante no artigo 29.º da Convenção de Montreal resulta que “No transporte de passageiros, bagagens e mercadorias, as ações por danos, qualquer que seja o seu fundamento, (…), só podem ser intentadas sob reserva das condições e limites de responsabilidade previstos na presente Convenção…”.

w. Inexistindo regra específica no Regulamento (CE) n.º 261/2004 sobre a competência judiciária, não se vê razão para que essa lacuna não seja preenchida com a norma constante no artigo 33.º da Convenção de Montreal, que, para além de ser o quadro normativo adotado por Portugal para reger o contrato de transporte aéreo internacional de pessoas e bens, também consagra no seu normativo o princípio da exclusividade da aplicação dessas mesmas normas.

x. Nestes termos, apenas são competentes (i) os tribunais do local da sede da transportadora (Basileia, Suíça) (ii) do local do estabelecimento da transportadora em que tenha sido celebrado o contrato (não aplicável no presente caso, dado que os bilhetes foram adquiridos à Agência de Viagens ebookers.ch, com sede na Suíça) ou (iii) o local do destino (..., Suíça).

y. Pelo que nenhum dos elementos de conexão considerados relevantes para efeitos da Convenção de Montreal atribui competência à jurisdição Portuguesa.

z. Somando os factos acima ao facto de que também as passageiras ora Recorridas têm nacionalidade e residência Suíça, é forçoso concluir que até pelo princípio de Direito Internacional Privado da conexão mais estreita seria forçoso concluir que são os Tribunais Suíços aqueles competentes para apreciar o presente caso.”

2. Factualidade e questão recursiva


Do relatório derivam os seguintes factos relevantes e dados como assentes:
- a causa em juízo pretende solucionar o pedido de condenação da Ré a pagar às Autoras uma indemnização fundada no incumprimento de contrato de transporte aéreo, causado pelo cancelamento do voo que contrataram com a Ré, com partida do aeroporto de ... (Portugal) e chegada prevista ao aeroporto de ... (Suiça) no dia 27/6/2016. A pretensão indemnizatória, remetendo para um voo “intracomunitário”, com mais de 1500 Km, funda-se nos arts. 5º e 7º do Regulamento (CE) nº 261/2004, de 11/2/2004. Cada uma das Autoras adquiriu um bilhete de avião para o voo n° ...0000 operado pela Ré, com partida de ..., às 14h30m, e chegada prevista ao aeroporto de ..., às 18h15m, hora local;
- as Autoras a transportar são de nacionalidade suíça e residem nesse país;
- a transportadora aérea operadora tem sede/administração principal na Suíça (“Swiss Internacional Air Lines”) e representação/sucursal em Portugal (“Swiss – International Air Lines Agl (Swiss Internacional Air Lines, SA) – Sucursal em Portugal”).
Assim:
Em face dos elementos de conexão juridicamente relevantes para a matéria em discussão, qual o tribunal internacionalmente competente para dirimir o litígio?
3. O direito aplicável

3.1. Rege o art. 59º do CPC, em sede de competência internacional dos tribunais judiciais em matéria cível, nomeadamente para a acção declarativa: «Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º» Assim, em primeira linha, a competência internacional dos tribunais portugueses decorre do que resultar de convenções internacionais e regulamentos europeus sobre a matéria, afastando-se a aplicação das regras dos arts. 62º e 63º do CPC (art. 8º, 1, 2 e 4, da CRP).[1]

3.2. A pretensão substancial das Autoras é baseada no regime jurídico que se plasma no Regulamento (CE) n.º 261/2004, do Parlamento e do Conselho, de 11/2/2014, que estabelece “regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos”.
Avultam os seguintes normativos:
«Artigo 3º – Âmbito    
1. O presente regulamento aplica-se:
a) Aos passageiros que partem de um aeroporto localizado no território de um Estado-Membro a que o Tratado se aplica;
b) Aos passageiros que partem de um aeroporto localizado num país terceiro com destino a um aeroporto situado no território de um Estado-Membro a que o Tratado se aplica, a menos que tenham recebido benefícios ou uma indemnização e que lhes tenha sido prestada assistência nesse país terceiro, se a transportadora aérea operadora do voo em questão for uma transportadora comunitária.
2. O disposto no n.º 1 aplica-se aos passageiros que:
a) Tenham uma reserva confirmada para o voo em questão e, salvo no caso de cancelamento a que se refere o artigo 5.o, se apresentarem para o registo:
- tal como estabelecido e com a antecedência que tenha sido indicada e escrita (incluindo por meios electrónicos) pela transportadora aérea, pelo operador turístico ou pelo agente de viagens autorizado,
ou, não sendo indicada qualquer hora,
- até 45 minutos antes da hora de partida publicada; ou
b) Tenham sido transferidos por uma transportadora aérea ou um operador turístico do voo para o qual tinham reserva para outro voo, independentemente do motivo.
3. O presente regulamento não se aplica aos passageiros com viagens gratuitas ou com tarifa reduzida não disponível, directa ou indirectamente, ao público. No entanto, o presente regulamento aplica-se aos passageiros com bilhetes emitidos no âmbito de um programa de passageiro frequente ou de outro programa comercial de uma transportadora aérea ou de um operador turístico.
4. O presente regulamento só se aplica a passageiros transportados em aeronaves motorizadas de asa fixa.
5. O presente regulamento aplica-se a qualquer transportadora aérea operadora que forneça transporte a passageiros abrangidos pelos n.os 1 e 2. Sempre que uma transportadora aérea operadora, que não tem contrato com o passageiro, cumprir obrigações impostas pelo presente regulamento, será considerado como estando a fazê-lo em nome da pessoa que tem contrato com o passageiro.
6. O presente regulamento não afecta os direitos conferidos aos passageiros por força da Directiva 90/314/CEE. O presente regulamento não se aplica nos casos em que um circuito organizado é cancelado por outros motivos que não sejam o cancelamento do voo.»
(…)  

 Artigo 5.º – Cancelamento
1. Em caso de cancelamento de um voo, os passageiros em causa têm direito a:
a) Receber da transportadora aérea operadora assistência nos termos do artigo 8.º; e
b) Receber da transportadora aérea operadora assistência nos termos da alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 9.º, bem como, em caso de reencaminhamento quando a hora de partida razoavelmente prevista do novo voo for, pelo menos, o dia após a partida que estava programada para o voo cancelado, a assistência especificada nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 9.º; e
c) Receber da transportadora aérea operadora indemnização nos termos do artigo 7.º, salvo se:
i) tiverem sido informados do cancelamento pelo menos duas semanas antes da hora programada de partida, ou
ii) tiverem sido informados do cancelamento entre duas semanas e sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até duas horas antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até quatro horas depois da hora programada de chegada, ou
iii) tiverem sido informados do cancelamento menos de sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até uma hora antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até duas horas depois da hora programada de chegada.
2. Ao informar os passageiros do cancelamento, devem ser prestados esclarecimentos sobre eventuais transportes alternativos.
3. A transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização nos termos do artigo 7.o, se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.
4. O ónus da prova relativamente à questão de saber se e quando foi o passageiro informado do cancelamento, recai sobre a transportadora aérea operadora.

Artigo 6.º – Atrasos
1. Quando tiver motivos razoáveis para prever que em relação à sua hora programada de partida um voo se vai atrasar:
a) Duas horas ou mais, no caso de quaisquer voos até 1500 quilómetros; ou
b) Três horas ou mais, no caso de quaisquer voos intracomunitários com mais de 1500 quilómetros e no de quaisquer outros voos entre 1500 e 3500 quilómetros; ou
c) Quatro horas ou mais, no caso de quaisquer voos não abrangidos pelas alíneas a) ou b),
a transportadora aérea operadora deve oferecer aos passageiros:
i) a assistência especificada na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 9.º, e
ii) quando a hora de partida razoavelmente prevista for, pelo menos, o dia após a hora de partida previamente anunciada, a assistência especificada nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 9.º, e
iii) quando o atraso for de, pelo menos, quatro horas, a assistência especificada na alínea a) do n.º 1 do artigo 8.º.
2. De qualquer modo, a assistência deve ser prestada dentro dos períodos fixados no presente artigo para cada ordem de distância.

Artigo 7.º – Direito a indemnização
1. Em caso de remissão para o presente artigo, os passageiros devem receber uma indemnização no valor de:
a) 250 euros para todos os voos até 1500 quilómetros;
b) 400 euros para todos os voos intracomunitários com mais de 1500 quilómetros e para todos os outros voos entre 1500 e 3500 quilómetros;
c) 600 euros para todos os voos não abrangidos pelas alíneas a) ou b).
Na determinação da distância a considerar, deve tomar-se como base o último destino a que o passageiro chegará com atraso em relação à hora programada devido à recusa de embarque ou ao cancelamento.»
2. Quando for oferecido aos passageiros reencaminhamento para o seu destino final num voo alternativo nos termos do artigo 8.o, cuja hora de chegada não exceda a hora programada de chegada do voo originalmente reservado:
a) Em duas horas, no caso de quaisquer voos até 1500 quilómetros; ou
b) Em três horas, no caso de quaisquer voos intracomunitários com mais de 1500 quilómetros e no de quaisquer outros voos entre 1500 e 3500 quilómetros; ou
c) Em quatro horas, no caso de quaisquer voos não abrangidos pelas alíneas a) ou b),
a transportadora aérea operadora pode reduzir a indemnização fixada no n.º 1 em 50 %.
3. A indemnização referida no n.o 1 deve ser paga em numerário, através de transferência bancária electrónica, de ordens de pagamento bancário, de cheques bancários ou, com o acordo escrito do passageiro, através de vales de viagem e/ou outros serviços.
4. As distâncias referidas nos n.os 1 e 2 devem ser medidas pelo método da rota ortodrómica.»

Como acentua o acórdão recorrido, resulta do art. 3º, 1, a) que o Regulamento 261/2004 se aplica pelo facto de o voo partir de aeroporto situado em território de um Estado-membro (…/Portugal).

3.3. Na busca do regime jurídico prevalecente para a determinação do tribunal competente para dirimir o litígio estribado nesse Regulamento, discutiu-se no acórdão recorrido, tendo em conta a data de propositura da acção dos autos, a aplicabilidade do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial (Regulamento Bruxelas I Bis).
De acordo com o art. 66º, 1, do Regulamento Bruxelas I Bis, «[o] presente regulamento aplica-se apenas às ações judiciais intentadas, aos instrumentos autênticos formalmente redigidos ou registados e às transações judiciais aprovadas ou celebradas em 10 de janeiro de 2015 ou em data posterior», o que faz abranger a acção sub judice.
O art. 4º, 1, do Regulamento Bruxelas I Bis determina que «as pessoas domiciliadas num Estado-membro [da União Europeia] devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-membro». Por seu turno, o art. 6º, 1, impõe que, «[s]e o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro». Assim, tal como entendeu o acórdão sob escrutínio, as regras deste Regulamento “não são aplicáveis ao caso dos autos visto que nenhuma das partes tem domicílio num Estado-membro”. Isto é, “[p]or interpretação a contrario desta norma (tal como anteriormente da norma do nº 1 do artigo 4º do Regulamento nº 44/2001), entende-se comummente que o critério geral para definir o âmbito espacial de aplicação daquele regime de direito europeu é o de que o demandado tenha domicílio no território de um dos Estados-Membros da União Europeia[2].
Deste modo, por aplicação do art. 63º, 1, a) e b), do Regulamento Bruxelas I Bis n.º 1215/12 – «uma sociedade ou outra pessoa coletiva ou associação de pessoas singulares ou coletivas tem domicílio no lugar em que tiver: a) A sua sede social; / b) A sua administração central; (…).» –, a sede/administração principal da Ré transportadora área (na Suíça) implica a exclusão do instrumento jurídico-regulamentar por ausência do respectivo âmbito espacial de aplicação ao caso.


3.4. É, depois, objecto de controvérsia nos autos a aplicação das regras da Convenção assinada em Lugano, a 30 de Outubro de 2007, entre os Estados da União Europeia, a Suíça, a Noruega e a Islândia, relativa à “Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial” (Convenção de Lugano II[3]). Esta convenção teve como escopo primordial estender às partes contratantes (União Europeia e certos Estados da EFTA) os princípios do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 (antecessor do Regulamento nº 1215/2012, Bruxelas I Bis). De acordo com as regras previstas nos arts. 63º, 1, e 69º, 4 e 5, esta Convenção entrou em vigor entre a União Europeia e a Suíça em 1 de Janeiro de 2011[4].
No respectivo art. 4º, 1, da Convenção prescreve-se que: «Se o requerido não tiver domicílio no território de um Estado vinculado pela presente convenção, a competência será regulada em cada Estado vinculado pela presente convenção pela lei desse Estado, sem prejuízo da aplicação do disposto nos artigos 22.º e 23.º.» Como se interpreta a norma? “Deste modo, o âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II é também definido em razão de o demandado ter domicílio no território de uma das partes contratantes”[5]. O que acontece, pois a Ré tem domicílio/administração principal (art. 60º, 1, a) e b)) na Suíça, ficando a causa submetida ao âmbito de aplicação da Convenção de Lugano II.
*

Esse contexto espacial faz demandar materialmente a aplicação do art. 2º, 1, da Convenção Lugano II: «Sem prejuízo do disposto na presente convenção, as pessoas domiciliadas no território de um Estado vinculado pela presente convenção devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado
Porém, há excepções, a que a Convenção chama de “competências especiais” (art. 5º).
Vejamos as que são previstas com pertinência para a causa dos autos:

«Uma pessoa com domicílio no território de um Estado vinculado pela presente convenção pode ser demandada noutro Estado vinculado pela presente convenção:

1. a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

— no caso da venda de bens, o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,
— no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;
c) Se a alínea b) não se aplicar, será aplicável a alínea a).
(…)»


3.5. Por fim, traz-se à discussão a exclusão das regras da Convenção de Lugano II, por força da previsão do seu art. 67º, 1: «A presente convenção não prejudica as convenções a que as partes contratantes e/ou os Estados vinculados pela presente convenção estejam vinculados e que, em matérias especiais, regulem a competência judiciária, o reconhecimento ou a execução de decisões. Sem prejuízo das obrigações resultantes de outros acordos entre algumas partes contratantes, a presente convenção não as impede de serem parte em tais convenções.»). Tal teria o condão de convocar materialmente a prevalência da Convenção de Montreal “Convenção para a Unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional” –, celebrada em Montreal a 28 de Maio de 1999, no âmbito da Organização Internacional de Aviação Civil (ICAO). Foi assinada por Portugal, em 28/05/1999, aprovada e publicada pelo Decreto nº 39/2002, de 27 de Novembro, tendo o instrumento de ratificação sido depositado em 03/03/2003 (cfr. Aviso nº 142/2003, publicado no Diário da República, Série I-A, de 07/05/2003). Foi também assinada pela Comunidade Europeia, em 09/12/1999, e aprovada, em nome desta, pelo Conselho da União Europeia, em 05/04/2001. No que respeita à União Europeia, entrou em vigor em 28/06/2004.
O âmbito material de aplicação da Convenção de Montreal é definido no seu art. 1º: “1 – A presente Convenção aplica-se a todas as operações de transporte internacional de pessoas, bagagens ou mercadorias em aeronave efectuadas a título oneroso. A presente Convenção aplica-se igualmente às operações gratuitas de transporte em aeronave efectuadas por uma empresa de transportes aéreos. / 2 – Para efeitos da presente Convenção, entende-se por «transporte internacional» todas as operações de transporte em que, segundo as estipulações das Partes, o ponto de partida e o ponto de destino, independentemente de se verificar uma interrupção do transporte ou um transbordo, se situam no território dos dois Estados Partes ou no território de um único Estado Parte, caso tenha sido acordada uma escala no território de um terceiro Estado, mesmo que este não seja Parte na Convenção. O transporte entre dois pontos situados no território de um único Estado Parte, sem uma escala acordada no território de outro Estado, não é considerado transporte internacional para efeitos da presente Convenção. (…)»
Pois bem.
A denominada Convenção de Montreal contém regras próprias de competência internacional, de acordo com o art. 33º, 1, para a responsabilidade indemnizatória: «A acção por danos deve ser intentada, à escolha do autor, no território de um dos Estados Partes, seja perante o Tribunal da sede da transportadora, do estabelecimento principal desta ou do estabelecimento em tenha sido celebrado o contrato, seja perante o Tribunal do local de destino». Se estas forem aplicáveis ao caso dos autos e em regime de exclusividade e exclusão da Convenção de Lugano II, tal conduzira a um resultado distinto daquele que resulta da aplicação das normas da Convenção de Lugano II, a saber, a competência do “tribunal do lugar onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou deviam ser prestados”.
Estamos perante uma verdadeira opção de determinação do tribunal competente. Assim sendo, qual o instrumento normativo prevalecente quando está em causa uma acção em que se pretende exercer o direito de indemnização previsto no referido artigo 7° do Regulamento n° 261/2004?
*
Julgamos que o acórdão recorrido tem razão, quando afirma a regra da especialidade normativa da Convenção de Lugano II, onde, recorde-se, se estende a aplicação à Suíça do regulamento de base.
Mas ainda mais argumentos concorrem para essa conclusão, que podem ser apreendidos com completude no citado, e exaustivo, Ac. do STJ de 3/10/2019, que aqui se segue quanto aos “princípios e normas a que a própria interpretação da Convenção de Lugano II se encontra sujeita, consagrados no Protocolo nº 2 à mesma Convenção” e, em particular, no que toca às conclusões extraídas em vários arestos do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre a questão de saber “se uma acção destinada ao exercício do direito de indemnização, previsto no artigo 7° do Regulamento n° 261/2004, se insere no âmbito material de aplicação da Convenção de Lugano II ou no âmbito material de aplicação da Convenção de Montreal”.
E os comandos do aresto são claros:
(i) “a jurisprudência do Tribunal de Justiça orientou-se no sentido da equiparação, para efeitos de reconhecimento do direito de indemnização do artigo 7º do Regulamento nº 261/2004, da situação dos passageiros com voos “atrasados” à situação dos passageiros com voos “cancelados”, afirmando simultaneamente, e de forma crescentemente acentuada, a autonomia do regime do Regulamento nº 261/2004 em relação ao regime da Convenção de Montreal”;
(ii) “o Tribunal de Justiça resolveu a questão preliminar de delimitação do âmbito material de aplicação do Regulamento nº 44/2001 em relação ao âmbito material de aplicação da Convenção de Montreal. Fê-lo, como se viu, no Acórdão de 9 de Julho de 2009, proferido no Processo C-204/08 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation) (…) em termos que aqui se transcrevem de novo: (…) 28. Daqui decorre que, tendo o pedido no processo principal sido apresentado com base apenas no Regulamento n.° 261/2004, deve ser examinado à luz do Regulamento n.° 44/2001 (…)”. Assim, e mais uma vez tendo presente a necessidade de, na interpretação das normas da Convenção de Lugano II, se respeitar a interpretação do Tribunal de Justiça relativamente às normas do Regulamento nº 44/2001, desde que substancialmente equivalentes a normas da Convenção, considera-se que a interpretação do nº 1 do artigo 67º da Convenção de Lugano II que ressalva as convenções especiais, sendo norma substancialmente idêntica à norma do nº 1 do artigo 71º do Regulamento nº 44/2001, deve ser interpretada de acordo com a orientação do Acórdão do Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 2009 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation)”.
Assim, nessa esteira, julga-se que é a Convenção de Lugano II a fonte normativa a gerar a resposta quanto à regra de competência internacional aplicável, em detrimento da Convenção de Montreal, suscitando, destarte, a convocação dos preceitos do respectivo art. 5º, 1, b), 2º travessão, em conjugação com a al. a) desse mesmo n.º 1.

3.6. Se assim é, mais do que fazer prevalecer a vontade do demandante na escolha (vista como) alternativa do foro para exercer o direito de indemnização previsto no artigo 7º do Regulamento nº 261/2004[6], importa saber qual o lugar em que os serviços de transporte aéreo foram ou deveriam ter sido prestados, considerando o lugar onde foi ou deveria ter sido cumprida a obrigação: local/aeroporto de partida ou local/aeroporto de destino?
Por outras palavras: como acentua LUÍS LIMA PINHEIRO, para identificar o “lugar de cumprimento da obrigação do prestador de serviços”, releva “o lugar em que foi ou deve ser efectuada a prestação característica do contrato”[7].
Para este efeito, é decisivo identificar o facto ilícito gerador da responsabilidade por incumprimento do contrato de transporte aéreo convencionado com as Autoras: o cancelamento do voo. Este é o busílis da questão.

3.7. Este facto faz demandar a al. l) do art. 2º do Regulamento 261/2004: “cancelamento” é a “não realização de um voo que anteriormente estava programado e em que, pelo menos, um lugar foi reservado”.
E, naturalmente, este incumprimento só pode ocorrer no local programado de partida, pois só se cancela o que está programado para partir.
Tal como, aliás, resulta dos termos do art. 5º do mesmo Regulamento 261/2004: «1. Em caso de cancelamento de um voo, os passageiros em causa têm direito a: a) Receber da transportadora aérea operadora assistência nos termos do artigo 8.º; e b) Receber da transportadora aérea operadora assistência nos termos da alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 9.º, bem como, em caso de reencaminhamento quando a hora de partida razoavelmente prevista do novo voo for, pelo menos, o dia após a partida que estava programada para o voo cancelado, a assistência especificada nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 9.º; e c) Receber da transportadora aérea operadora indemnização nos termos do artigo 7.º, salvo se: i) tiverem sido informados do cancelamento pelo menos duas semanas antes da hora programada de partida, ou ii) tiverem sido informados do cancelamento entre duas semanas e sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até duas horas antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até quatro horas depois da hora programada de chegada, ou iii) tiverem sido informados do cancelamento menos de sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até uma hora antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até duas horas depois da hora programada de chegada.»
E ainda do enunciado do art. 3º, 1, a), que faz aplicar o Regulamento aos «passageiros que partem de um aeroporto localizado no território de um Estado-membro a que o Tratado se aplica».
Logo, como bem concluiu o acórdão recorrido, “o local onde o serviço de transporte aéreo deveria ter sido prestado coincide, em caso de Cancelamento do voo, com o local de partida desse voo que não se realizará. (…) não fará sentido eleger como elemento relevante de conexão o local de destino desse voo cancelado”. Pelo que “o elemento de conexão relevante para definir a competência internacional do tribunal é o aeroporto de partida, visto que é neste que o serviço deixou de ser prestado”.
*
Improcedem, pois, as pertinentes Conclusões a. a z. da Recorrente, confirmando-se o acórdão recorrido e declarando-se o tribunal português como internacionalmente competente para conhecer e apreciar a acção pendente.

IV. DECISÃO

Em conformidade, acorda-se em julgar o recurso improcedente e negar a revista, prosseguindo-se os demais termos do processo.

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Custas pela Recorrente.

STJ/Lisboa, 13 de Outubro de 2020

Ricardo Costa (Relator)

Ana Paula Boularot

José Rainho


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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[1] V. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito internacional privado, Volume III – Tomo I, Competência internacional, 3.ª ed., AAFDL, Lisboa, 2019, págs. 100 e ss, 332-334.
[2] Assim, neste sentido, o Ac. do STJ de 3/10/2019, processo n.º 262/18.7T8LSB-A.L1-A.S1, Rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO, in www.dgsi.pt.
[3] JOUE L 339, pág. 3 e ss, de 21/12/2007.
[4] V. JOUE L 138, pág. 1, de 26/05/2011.
[5] Ac. do STJ de 3/10/2019, cit. nt. (2).
[6] V.: na doutrina – LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito internacional privado… cit., pág. 126 (no caso do contrato de transporte aéreo, “lugares da prestação principal” são “quer o lugar de partida quer o lugar de chegada do avião”);
na jurisprudência do STJ –  Ac. de 3/10/2019, cit. nt (2): “(…) o Tribunal de Justiça respondeu às questões prejudiciais da seguinte forma: “O artigo 5.º, n.º 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que, em caso de transporte aéreo de pessoas de um Estado-Membro com destino a outro Estado-Membro, realizado com base num contrato celebrado com uma única companhia aérea que é a transportadora operadora, o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado nesse contrato de transporte e no Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.° 295/91, é aquele, à escolha do requerente, em cujo foro se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do avião, tal como esses lugares são estipulados no referido contrato.” [negritos nossos] Perante esta decisão do Tribunal de Justiça, não oferece dúvidas que (…) a interpretação da norma do artigo 5º, nº 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento n° 44/2001, deve ser estendida à interpretação de idêntica norma de competência, consagrada no artigo 5º, nº 1, alínea b), segundo travessão, daquela Convenção. (…) Conclui-se, assim, que a questão da interpretação da norma relevante para a resolução da questão objecto do presente recurso – interpretação do artigo 5º, nº 1, alínea b), segundo travessão, da Convenção de Lugano II – foi apreciada e decidida pelo Tribunal de Justiça a respeito da norma equivalente do Regulamento nº 44/2001, no supra referido Acórdão de 9 de Julho de 2009 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation), interpretação essa que, nos termos do Protocolo nº 2 à Convenção, é válida para a interpretação da referida norma da Convenção, a saber: “O tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado em contrato de transporte aéreo e no Regulamento n° 261/2004 (que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque, de cancelamento ou de atraso considerável dos voos), é aquele, à escolha do demandante, em cujo foro se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do voo, tal como esses lugares são estipulados no referido contrato; sem prejuízo da possibilidade de o demandante se dirigir ao tribunal do lugar do domicílio do demandado, que, no caso de pessoa colectiva, e de acordo com o artigo 60º, nº 1, da Convenção de Lugano II, é o lugar da sede social, ou da administração central ou do estabelecimento social.”
[7] V. Direito internacional privado… cit., pág. 122.