Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5757/11.0TBBRG.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: ESTABELECIMENTO
MEDIDAS DE SEGURANÇA
ARMA
HOMICÍDIO
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
AUTOR
SOCIEDADE
GERENTE
SEGURADORA
RISCO
LIMITE DA RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA
NULIDADE DE CLÁUSULA
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
COMISSÃO
Data do Acordão: 02/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CADERNOS DE DIREITO PRIVADO N.º 72
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / NULIDADE E ANULABILIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / RESPONSABILIDADE PELO RISCO.
Doutrina:
- A. Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão da Responsabilidade Civil, p. 171 e 442;
- Ana Serra Calmeiro, Das Cláusulas Abusivas no Contrato de Seguro, p. 16, 17, 50 e 51;
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 10.ª edição, p. 639, 890 e 894;
- C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, (por A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto), p. 632 e ss.;
- Joana Galvão Teles, Liberdade contratual e seus limites, em Temas de Direito dos Seguros (Coord. de Margarida Lima Rego), 2.ª edição, p. 115;
- Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, p. 234;
- Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, p. 677;
- Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil por Facto de Terceiro, p. 267;
- Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, p. 461 e 676;
- Pedro Eiró, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, p. 728;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, p. 267;
- Rui Pinto, Valor extraprocessual da prova penal na demanda cível, Colectânea de Estudos de Processo Civil, p. 93;
- Sofia Sequeira Galvão, Reflexão acerca da Responsabilidade do Comitente no Direito Civil Português, p. 77 e 105.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 292.º, 483.º, 486.º, 487.º, N.º 2 E 500.º, N.º 1.
REGIME JURÍDICO DOS SISTEMAS DE SEGURANÇA PRIVADA DOS ESTABELECIMENTOS DE RESTAURAÇÃO OU DE BEBIDAS, APROVADO PELO DL N.º 101/2008, DE 16-06: - ARTIGOS 1.º, N.º 1, ALÍNEA B), 2.º, N.º 1 E 3.º, N.º 1.
INSTALAÇÃO E FUNCIONAMENTO DE RECINTOS DE ESPECTÁCULOS, APROVADO PELO DL N.º 309/2002, DE 16-12.
LEI DO CONTRATO DE SEGURO (LCS): - ARTIGOS 13.º E 146.º, N.º 4.
Sumário :
I - O uso intermitente de dispositivo de deteção de metais no estabelecimento de diversão em questão permitiu a introdução no seu interior de navalha que, após, veio a ser utilizada pelo 1.º réu e causou a morte do pai da autora.

II - A 2.ª ré, sociedade exploradora do estabelecimento, e o 3.º réu, gerente da sociedade, praticaram conduta ilícita, traduzida na omissão do cumprimento do dever legal de garantir o funcionamento do sistema de segurança – arts. 486.º do CC e 1.º, n.º 1, al. b), 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, do DL n.º 101/2008, de 16-06.

III - A utilização intencional da navalha inclui-se no risco que o sistema de segurança tinha por escopo prevenir, pelo que a conduta dolosa do 1.º réu não quebra o nexo de causalidade entre aquela omissão e o homicídio perpetrado.

IV - O seguro obrigatório que visa cobrir o elevado grau de risco e o iminente perigo para a integridade física dos utentes – DL n.º 309/2002, de 16-12 – derivados da exploração do estabelecimento de diversão em questão, não se concilia com a cláusula, constante das condições particulares do contrato de seguro, que reduz o montante máximo de indemnização em caso de responsabilidade civil extracontratual a € 15 000.

V - A cláusula é nula, por introduzir limitação excessiva e desproporcionada ao âmbito e finalidade da cobertura do seguro – arts. 13.º e 146.º, n.º 4, ambos da LCS.

VI - A nulidade da cláusula determina a redução do contrato de seguro – art. 292.º do CC – e a validade do mesmo quanto ao restante conteúdo, subsistindo como limite da indemnização por responsabilidade civil extracontratual o montante do “capital seguro”, até ao montante de € 150 000.

VII - A interveniente principal, que celebrou contrato de prestação de serviços com a 2.ª ré, segundo o qual o sistema de segurança era assegurado por um vigilante ao seu serviço, que cumpriu, de forma defeituosa e negligente, o controlo de metais nos termos descritos em I, é solidariamente responsável, o que se estende à interveniente seguradora com quem celebrou contrato de seguro, por força do disposto nos arts. 483.º, 487.º, n.º 2 e 500.º, n.º 1, do CC.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

      

I.

AA, menor, representada por sua mãe BB, intentou a presente acção declarativa de condenação contra CC, DD, LDA, e EE.

Pediu a condenação solidária dos Réus a:

a) Indemnizarem o falecido FF, na pessoa da Autora, enquanto representante legal da sua filha e única herdeira, no montante de € 70.000,00 (setenta mil euros), pelo dano de supressão do direito à vida e de € 20.000,00 (vinte mil euros) pelos danos morais decorrentes do sofrimento e agonia que antecederam a sua morte;

b) Indemnizarem a AA no montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), por danos não patrimoniais passados, presentes e futuros, decorrentes da morte do seu pai;

c) Indemnizarem a AA no montante de € 91.832,88 (noventa e um mil, oitocentos e trinta e dois euros e oitenta e oito cêntimos), quantia que a Iara receberia do seu pai até completar os estudos universitários, e na qual se computam também despesas extraordinárias expectáveis, que habitualmente são tidas em conta à margem da pensão de alimentos;

d) Pagarem os juros de mora incidentes sobre a quantia total reclamada, contados desde a citação.

Como fundamento, alegou que: é filha única de FF que foi vítima de homicídio doloso perpetrado pelo Réu CC, tendo este já sido condenado por decisão transitada em julgado na pena de 17 anos de prisão; esse crime foi perpetrado pelo Réu CC, quando ele e o DDD se encontravam no interior da discoteca DD, utilizando aquele uma navalha; essa navalha foi levada pelo Réu CC ou por outrem a seu mando para o interior daquele estabelecimento; o Réu DD não tinha accionados os dispositivos legais devidos ou não estavam em perfeito funcionamento, posto que, doutro modo, o Réu CC ou outrem não teriam conseguido penetrar no interior do estabelecimento com a referida arma e o crime não teria sido cometido; o 3.º Réu EE era o sócio gerente da sociedade que explora a discoteca, recaindo sobre ele a obrigação de dotá-la dos mecanismos de segurança previstos na lei, sendo pessoalmente responsável, como determina o Decreto-Lei n.º 101/2008, de 16.06.

Os Réus DD e EE apresentaram contestação conjunta, na qual, com excepção do sinistro, impugnaram a factualidade alegada, acrescentando que o estabelecimento dispunha do sistema de segurança privada, desenvolvido pela prestadora de serviços GG, Lda, onde era utilizada raquete de detecção de metais, cumprindo as normas regulamentares aplicáveis, tendo o Réu CC sido sujeito a revista.

Deduziram o incidente de intervenção da sociedade GG, Lda, por ter com ela celebrado o contrato de prestação de serviços de segurança, bem como da HH, SA, na qualidade de empresa seguradora da Ré.

O Réu CC contestou, impugnando que existisse entre a filha e o falecido uma relação de íntima convivência e que aquele tivesse expectativas de melhorar a sua condição salarial. Bem assim, questionou que a Autora tenha tido a noção da morte do pai e que a obrigação de alimentos perdure para lá da maioridade.

A Autora apresentou réplica.

Foi admitida a intervenção principal das sociedades GG, LDA e HH, SA.

A "HH" apresentou contestação, na qual aceitou a celebração dum contrato de seguro com a sociedade Ré DD, Lda, do ramo riscos múltiplos Protecção Total do Negócio, sendo o valor máximo garantido pela apólice de € 150.000,00. No entanto, quanto à cobertura de responsabilidade civil, acrescentou que o limite de indemnização ascende a 10% do capital da apólice, estando prevista uma franquia de 10% nos danos materiais com o mínimo de € 74,82. Para além disso, sustentou que o acto praticado não está coberto pelo seguro, pois que não decorreu da exploração normal do estabelecimento, não cobrindo aquele, ademais, a responsabilidade criminal, nem os danos não patrimoniais. Subsidiariamente, impugnou a matéria factual alegada na petição inicial.

A sociedade "GG" contestou, alegando que os seus funcionários usavam a raquete de detecção de metais, tendo sido revistado o Réu CC à entrada do estabelecimento. Após a entrada, os clientes do estabelecimento deixam de ser controlados pela Interveniente, pois os serviços não foram contratados para a área onde se servem refeições e existem, por conseguinte, objectos cortantes.

Os Réus "DD" e EE e a autora responderam às referidas contestações.

Após a realização duma audiência preliminar, vieram II e JJ deduzir o incidente de intervenção espontânea, com o argumento de, por serem pais do falecido, são titulares do direito a ser indemnizados pelos danos não patrimoniais causados pela morte de seu filho

Repristinaram a factualidade invocada na petição inicial pela filha do falecido, quer quanto à descrição do evento causador da morte, quer quanto à ausência de dispositivos de segurança de detecção de metais, a permitir a entrada do Réu CC com a arma que vitimaria o pai da Autora, formulando o pedido contra os primitivos Réus e as Intervenientes HH e GG.

Para além disso, deduziram o incidente de intervenção principal da sociedade KK, Lda, e respectivas seguradoras. Sustentaram, nesse particular, que um dos seguranças tinha vínculo contratual com esta Interveniente, tendo sido por omissão dos deveres de vigilância que o Réu CC penetrou no interior com a arma e se verificou o homicídio.

Pediram, em consequência, a condenação solidária dos Réus e Intervenientes no pagamento da quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros).

Os Réus "DD " e EE apresentaram contestação contra o conteúdo do pedido formulado pelos Intervenientes pais, com os argumentos que já haviam invocado perante a Autora

 A Ré "HH" impugnou a legitimidade dos Intervenientes pais para a dedução do pedido, pois que, nos termos do artigo 496º do Código Civil, a titularidade do direito aí consagrado só lhes caberia no caso de inexistirem descendentes.

Quanto ao mais, a Ré HH reproduziu os fundamentos que já havia invocado na sua primitiva contestação.

Os Intervenientes/pais apresentaram articulado, que denominaram de réplica, onde se pronunciaram sobre as excepções arguidas pelas Rés e Intervenientes primitivas.

Foi admitida a intervenção espontânea, como associados da Autora, de II e JJ, e a intervenção principal, como associada dos Réus, da KK – …, LDA.

A KK – …, L.da, apresentou contestação, em que sustentou a sua ilegitimidade, por inexistir qualquer relação contratual entre a Interveniente e os Réus DD, Lda e EE. Disse ainda que LL era seu trabalhador, mas não prestava serviços ao Bar DD. Impugnou, subsidiariamente, a factualidade alegada e, por cautela, chamou à demanda a sua seguradora MM, SA.

Responderam a Autora e os Intervenientes pais à referida contestação.

Por falecimento de II, foram habilitadas, como suas sucessoras JJ, NN e a Autora.

Foi admitida a intervenção de OO, SA (que incorporou, por fusão, a MM, SA) que veio contestar, alegando que o seguro não abrange os danos decorrentes do evento, pois este não decorre, segundo sustenta, da actividade de segurança privada. Para além do mais, o trabalhador da KK, Lda., não se encontrava ao seu serviço quando estava no Bar DD. Impugnou, por fim, a factualidade que sustenta a acção.

A Autora e as Intervenientes responderam a esta contestação.

Já após o saneador, foi admitida a intervenção da PP, LDA com quem a GG, Lda celebrou contrato de seguro.

A PP, SA apresentou contestação, na qual sustentou que a morte do pai da Autora não pode ser imputada a qualquer actuação dos funcionários da GG; que os pais do falecido carecem de legitimidade substantiva para a dedução de pedido indemnizatório, dado que ele cabe unicamente à filha; que o Réu CC foi objecto de revista à entrada do estabelecimento; que o limite do capital seguro era de € 250.000,00.

A Autora e os Interveniente apresentaram articulados de réplica.

Realizado o julgamento foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

Em face do exposto, julgo a ação parcialmente procedente, e, em consequência:

1. Condeno o Réu CC a pagar à Autora AA:

a. A quantia indemnizatória de € 85.000,00 (oitenta e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, vencendo juros à taxa legal de 4%, desde a presente decisão até integral pagamento, sem prejuízo de posterior alteração legislativa;

b. A quantia indemnizatória de € 80.000,00 (oitenta mil euros), a título de danos patrimoniais, vencendo juros, à taxa legal de 4%, desde a presente decisão até integral pagamento, sem prejuízo de posterior alteração legislativa.

2. Absolvo o Réu CC do restante peticionado contra ele pela Autora e pelos Intervenientes pais;

3. Absolvo os Réus DD, Lda., EE, e as Intervenientes passivas dos pedidos contra eles formulados pela Autora e pelos Intervenientes pais.

Inconformadas, a autora AA e as intervenientes JJ e NN apresentaram recursos de apelação, que a Relação decidiu nestes termos:

Pelo exposto, na parcial procedência da apelação interposta pela Recorrente AA e na improcedência da apelação interposta pelas Intervenientes, acordam os juízes desta Relação em, mantendo a decisão relativa às Intervenientes/Recorrentes, revogar a decisão recorrida na parte correspondente ao primeiro dos aludidos recursos, decidindo, consequentemente:

1. Condenar os Réus DD e EE, em solidariedade com o já condenado Réu CC, a pagar à Autora AA:

a. A quantia indemnizatória de € 85.000,00 (oitenta e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, vencendo juros à taxa legal de 4%, desde a presente decisão até integral pagamento, sem prejuízo de posterior alteração legislativa;

b. A quantia indemnizatória de € 80.000,00 (oitenta mil euros), a título de danos patrimoniais, vencendo juros, à taxa legal de 4%, desde a presente decisão até integral pagamento, sem prejuízo de posterior alteração legislativa.

2. Absolver os Réus DD, Lda. e EE do restante contra eles peticionado pela Autora;

3. Condenar a Interveniente HH, em solidariedade com os Réus, a pagar à Autora AA a indemnização fixada, até ao limite de 15.000 €, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde a presente decisão até integral pagamento, sem prejuízo de posterior alteração legislativa;

4. Absolver a Interveniente HH do restante peticionado pela Autora;

5. Manter a absolvição das restantes Intervenientes Passivas relativamente aos pedidos formulados pela Autora AA.

Discordando desta decisão, os réus DD e EE e a autora AA vieram pedir revista, tendo apresentado estas conclusões:

Dos réus:

1- Artigo 1º do Decreto-Lei 101/2008, no seu número 2, refere a obrigatoriedade de ter aposta a seguinte inscrição: "A entrada neste estabelecimento é vedada às pessoas que se recusem a passar pelo equipamento de deteção de metais de objetos perigosos ou de uso proibido". Não obriga a que todos os utentes se submetam a esse controle. Aliás, em 2014, o Decreto-Lei 235/2014, que veio republicar o DL 101/2008, refere no artigo 7º que o equipamento de deteção de metais refere-se a "raquetes de deteção de metais, não obriga à existência de pórtico de deteção de metais, pelo que não deverão os ora recorrentes ser responsáveis pelo pagamento da indemnização.

 2- Os sistemas de segurança privada a adotar pelos estabelecimentos referidos nas alíneas b) e c) do n.° 1 do artigo anterior devem incluir equipamentos técnicos destinados à deteção de armas, objetos, engenhos ou substâncias de uso e porte legalmente proibido ou que ponham em causa a segurança de pessoas e bens (cfr. artigo 2°/1, do Decreto-Lei n.° 101/2008, de 16.06).

3- Por outro lado, os proprietários e os administradores ou gerentes de sociedades que explorem os estabelecimentos referidos no artigo 1º são obrigados a garantir o funcionamento efetivo dos sistemas de segurança privada previstos no artigo 1º e no n.° 1 do artigo anterior (cfr. artigo 3°/1, a), do Decreto-Lei n.° 101/2008, de 16.06). Pode ler-se no preâmbulo deste diploma que este teve como objetivo reforçar a segurança de pessoas e bens, estabelecendo-se maiores exigências de segurança no que se refere ao controlo da entrada de armas, objetos, engenhos ou substâncias de uso e porte legalmente proibido ou que ponham em causa a segurança de pessoas e bens, em estabelecimentos de dimensão significativa, cuja lotação exceda 100 lugares.

4- Em sede de nexo de causalidade, dispõe o artigo 563°, do Código Civil, que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

5- Foi adotada nesse dispositivo a teoria da causalidade adequada, com o que se procurou restringir a amplitude do que seriam os resultados da aplicação de uma teoria da imputação fundada exclusivamente num conceito de causalidade herdado das ciências naturais.

6- Tal era o caso da chamada teoria da conditio sine qua non, segundo a qual um facto é causa de um evento quando esta não se teria dado sem aquele, ainda que tal se traduzisse na imputação ao agente de um resultado perfeitamente imprevisível ante as circunstâncias em que o mesmo atuou.

7- Segundo a teoria da causalidade adequada, ao Direito importa selecionar, entre as várias condições de um determinado evento danoso, quais as que legitimam a imposição, ao respetivo autor, da obrigação de indemnização. Há, assim, que escolher, entre os antecedentes históricos do dano, aquele que, segundo o curso normal das coisas, se pode considerar apto para o produzir, afastando aqueles que só por virtude de circunstâncias extraordinárias o possam ter determinado (vd., sobre o assunto, Pires de Lima/Antunes Varela, com a colaboração de H. Mesquita, Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, 4ª ed. rev. e aum., p. 578 a 579).

8- Sem conceder, ainda que tivesse havido relaxamento na atividade de fiscalização, ou a omissão de uma conduta dos recorrentes, conducente ao resultado morte. Ora esta surgiu como um evento extraordinário e imprevisível e teria de ser sempre imputável à empresa de segurança que fazia o controle das entradas e não aos recorrentes que não tinham nesse controle qualquer responsabilidade que não fosse o dotar os vigilantes de aparelhos de deteção de metais como é um facto assente.

9- O réu EE era apenas gerente da sociedade à data dos factos e os deveres e a responsabilidade dos gerentes, tal como previstos nos art. 72°, 79° e 259° do CSC, sempre se restringe à obrigatoriedade da correta realização do objeto social da sociedade.

10- A vontade do primeiro Réu situou-se para lá da utilização da navalha; serviu-se dela para a concretização do seu intento, mas este consistiu na provocação do dano morte, pelo que não é evidente que, sem a navalha, ele não teria perseguido a sua intenção, usando outro qualquer objeto cortante ou perfurante como um picador de gelo. Pelo que a vontade do 1.° Réu apresenta características de inevitabilidade e de imprevisibilidade face à atividade de segurança privada e muito mais da atividade de exploração de atividades de diversão noturna, sendo certo que era um individuo com cadastro.

11- Os contratos de seguros, como contratos de adesão, devem ser submetidos a controlo judicial não só ao nível da tutela da vontade do segurado, tomando-se em conta os critérios interpretativos dos arts. 236 e 237 do CC, como também ao nível do conteúdo das condições gerais do contrato, relevando, para tanto, as normas de ordem pública (art. 280 do CC) e as cláusulas gerais da boa fé (arts. 227 n°1 e 762 n°2 do CC).

12- O DL 446/85 de 25/10, com as alterações introduzidas pelo DL 220/95 de 31/8, estabelece, como princípio geral, que "as cláusulas gerais são interpretadas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular, em que se incluam" (art. 10°). Adoptando-se uma metodologia semelhante à do Código Civil (art. 236 e segs.), dá-se, no entanto, prevalência a uma justiça individualizadora, ao remeter-se para o contexto de cada contrato singular.

13- Na interpretação das cláusulas do contrato de seguro deve apurar-se o sentido normal da declaração, ou seja, o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, segundo a teoria da impressão do destinatário (art. 236° n° 1 do CC). As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contraente indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real", prevalecendo, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente (n° 2) (cf., sobre as regras de interpretação do contrato de seguro, J.C. MOITINHO DE ALMEIDA, Contrato de Seguro, 2009, pág.116 e segs.).

14- Por força do disposto no art.° 7º do CPP, deveriam as Autoras ter deduzido pedido cível no processo-crime que correu seus termos neste mesmo Tribunal. Não alegam as Autoras nenhuma das circunstâncias que, nos termos do disposto no art.° 72° do CPP, poderiam legitimar a presente ação enquanto pedido separado de indemnização civil.

15- Quer a sociedade, quer o Réu ora recorrentes poderiam ter sido demandados no pedido cível deduzido nesse mesmo processo, por força do disposto no art° 73° do CPP. Pelo que deverão ser consideradas partes ilegítimas e, como tal, absolvidas da instância.

16- Ainda que a A. tivesse alegado um motivo justificativo válido para vir deduzir em separado o pedido de indemnização civil, conforme exige o art. 72° do CPP não o tendo feito, nunca poderiam os ora recorrentes ser condenados no pagamento de tais indemnizações. Pois tais montantes apenas deveriam ser exigidos ao 1º réu, CC, enquanto autor exclusivo do homicídio de FF.

Pelo que absolvendo os Réus ora recorrentes se fará a esperada Justiça.

Da autora

I- É fundamento de revista perante o Supremo Tribunal de Justiça o desacordo parcial relativo ao acórdão proferido por um tribunal de relação, o qual se funda em erro na aplicação da lei de processo e erro de interpretação de lei substantiva, erro de aplicação de lei substantiva e erro de determinação de norma aplicável.

II- Incorre em erro na aplicação da lei de processo o tribunal de recurso que, existindo prova extrajudicial valorada e objecto de contraditório nos autos, considere que a mesma não constitui princípio de prova por não existir identidade de partes entre o processo crime (onde a prova foi produzida) e o processo cível (onde a prova foi reproduzida).

III- Quando uma testemunha absolutamente imprescindível para a descoberta da verdade tenha anteriormente prestado depoimento ao abrigo de processo crime, pelos mesmos factos que originaram um processo cível em separado, não sendo possível a notificação da mesma para a Audiência de Discussão e Julgamento no âmbito do processo cível, é admissível a reprodução do seu depoimento no processo crime, através de transcrição, desde que dado o contraditório às partes contrárias.

IV- Existindo contraditório de todas as partes e, assim, o tribunal de primeira instância admita a transcrição do depoimento, afiguram-se preenchidos todos os pressupostos para a existência de prova extrajudicial ao abrigo do artigo 421.º do Código de Processo Civil que constitui princípio de prova relativo à matéria vertida nos autos.

V- Ao desvalorizar o depoimento transcrito do vigilante em serviço na fatídica noite onde se deu o homicídio do progenitor da Recorrente por violação de regras de segurança, existindo neste depoimento a confissão de que não se efectuava revista integral às mulheres clientes da discoteca, o mesmo deve constituir princípio de prova e, bem assim, ser valorado nos autos cíveis, sendo que o desprezo pelo depoimento com base no artigo 421.º do CPC constitui erro na aplicação do processo.

VI- 0 seguro de responsabilidade civil obrigatório ao abrigo do Decreto-Lei n.º 309/2002 de 16 de dezembro tem como finalidade "a garantia do ressarcimento dos danos e prejuízos causados em caso de acidente, dado o elevado grau de risco e o iminente perigo para a integridade física dos utentes", sendo que, nessa medida, é considerado elevado o risco da actividade segurada.

VII- 0 legislador, ao estabelecer a obrigatoriedade de seguros de responsabilidade civil, quis garantir a efectiva tutela do risco das actividades seguradas mas, também, garantir a ressarcibilidade desses danos na esfera jurídica dos terceiros lesados.

VIII- Apesar do legislador não ter regulamentado os conteúdos mínimos deste seguro de responsabilidade civil obrigatório tal não significa que haja livre arbítrio na sua regulação e negociação, tendo sempre que ser respeitada a legislação nacional e os princípios dos direitos dos seguros.

IX- Nos termos do artigo 146º nº 5 do regime jurídico do contrato de seguro o "contrato de seguro" tem que cumprir "a obrigação legal" e não pode conter "exclusões contrárias à natureza".

X- A existência de uma cláusula limitativa de responsabilidade civil ao montante de 10% do capital é uma exclusão contrária à natureza e fundamentos do seguro obrigatório, sendo violadora da tutela que o legislador quis consagrar ao estabelecer a obrigatoriedade de certos seguros.

XI- 0 direito dos seguros tem uma função indemnizatória que, quando afastada pelas partes, leva a que o clausulado violador desta importante função seja nulo.

XII- As cláusulas que limitem, seja directa ou indirectamente, a responsabilidade por danos extrapatrimoniais ou por danos causados à vida ou por danos causados à integridade física conforme entendimento jurisprudencial, apresentam-se como nulas no nosso ordenamento jurídico, não produzindo efeitos volitivo-finais.

XIII-   Ao existir um homicídio na discoteca, que gerou danos patrimoniais e extrapatrimoniais, a cláusula que limita em €15.000,00 o ressarcimento desses danos - sendo um deles a morte - afigura-se nula, por limitadora dos danos causados à vida, por danos causados à integridade física e por danos extrapatrimoniais que serão ressarcidos na esfera jurídica da Recorrente, filha do falecido.

 XIV- Deve ser declarada nula a cláusula que limita em €15.000,00 o ressarcimento de danos extracontratuais em caso de homicídio numa discoteca.

XV-    Com a nulidade de uma cláusula opera o instituto da redução, previsto no artigo 492.º do Código Civil, sendo válido o contrato seguro, mas sem a cláusula declarada nula.

XVI-   O contrato celebrado entre a Recorrida DD e HH é um contrato dotado de cláusulas contratuais gerais e, por isso, regulado também pelo DL 446/85, de 25 de Outubro.

XVII- O artigo 18.º do DL 446/85, de 25 de Outubro indica, expressamente, que as cláusulas que limitem, de forma directa ou indirecta, "a responsabilidade por danos causados à vida, à integridade moral ou física ou à saúde das pessoas (...) a responsabilidade por danos patrimoniais extracontratuais, causados na esfera da contraparte ou de terceiros", são cláusulas absolutamente proibidas.

XVIII- Os danos indemnizáveis à Recorrente inserem-se em danos causados à vida, integridade moral, integridade física e danos patrimoniais extracontratuais causados na esfera de terceiro, pelo que, a cláusula que os limita, é absolutamente proibida, tendo como cominação a nulidade nos termos do artigo 12.º ex vi artigo 18º a) e b) do DL 446/85, de 25 de Outubro.

XIX-   Ao existirem cláusulas contratuais não assinadas pela parte segurada, após a assinatura do contrato entre as partes, as mesmas deverão ser tidas como excluídas dos contratos singulares nos termos do artigo 8.Q alínea d) do DL 446/85, de 25 de Outubro.

XX-    As condições de limitações ao capital seguro de €150.000,00 celebradas entre a Recorrida HH e a Recorrida DD apenas se encontram assinadas pela seguradora, sendo que, nessa medida, apenas vigorará entre as partes o limite de capital seguro para o seguro riscos múltiplos contratado, nos termos do artigo 8.º alínea d) do DL 446/85, de 25 de Outubro.

XXI-   Ao existir um dano morte tutelado pela jurisprudência portuguesa em €65.000,00 (sessenta e cinco mil euros) e, ainda, seguros obrigatórios de responsabilidade civil que, tendo os capitais mínimos regulados, ascendem a valores superiores a €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), não se vislumbra conforme à boa fé o seguro que limita a responsabilidade civil a €15.000,00 por esses mesmos danos, sendo, por isso, nula.

XXII- Tendo declarado a parte que transferiu, nos termos da legislação, a sua responsabilidade para uma seguradora - aceitando essa expressamente a celebração desse contrato - e existindo a obrigatoriedade de dois seguros, quando a apólice se denomina "riscos múltiplos", não estando clausulada qualquer limitação ao seguro de acidentes pessoais será aplicável o capital de €150.000,00 vigente no seguro.

XXIII- O seguro de acidentes pessoais, não tendo uma denominação muito feliz, quis tutelar danos e lesões corporais nos termos do artigo 16º do Decreto-Lei n.º 309/2002 de 16 de Dezembro.

XXIV- O dano morte é resultado de danos e lesões corporais, conforme consta no caso vertido nos autos, por isso, será, também, enquadrável no conceito de acidente pessoal para efeitos do mencionado DL a indemnização a ser atribuída à Recorrente.

XXV- O contrato de seguro é um contrato dotado de sinalagmaticidade, regendo-se, a nível obrigacional, pelo Código Civil.

XXVI- O princípio da relatividade dos contratos implica que não exista atribuição de eficácia externa às obrigações quando a lei não o preveja.

XXVII- No campo do seguro obrigatório do DL 309/2002 de 16 de Dezembro não pode ser oponível qualquer cláusula celebrada entre as partes a terceiro lesado, sem que isso signifique qualquer derrogação ao princípio da relatividade dos contratos.

XXVIII- A cláusula que limita a responsabilidade de €15.000,00 ao nível de responsabilidade civil não pode ser oponível à Recorrente, situando-se no campo das obrigações internas do negócio jurídico.

XXIX- Nessa medida, do mesmo modo que a cláusula de franquia em casos de seguros obrigatórios não é oponível a terceiros lesados, a cláusula de limitação de capital segurado é inoponível sob pena de se colocar em causa as finalidades do seguro obrigatório.

XXX- As seguradoras com cláusulas de limitação de responsabilidade, caso sejam válidas, terão na mesma responsabilidade integral perante terceiros lesados, sem prejuízo do direito de regresso na proporção da limitação perante o tomador de seguro.

XXXI- A eficácia externa das obrigações não é aceite no ordenamento jurídico português salvo quando a legislação expressamente o preveja.

XXXII- O artigo 137º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, o artigo 406.º n.º 2 do Código Civil e o preâmbulo do DL n.º 35/2004 de 21 de Fevereiro afastam a eficácia externa das obrigações no campo do seguro obrigatório de responsabilidade civil,

XXXIII- Ao existir várias obrigações ao nível da segurança privada no funcionamento de recintos de espectáculos, tendo a sociedade que explora o estabelecimento comercial contratado a prestação de serviços para o cumprimento da existência de um vigilante nos termos do n.º 1 do artigo 1º alínea b) do DL 101/2008 de 16 de Junho, a relação que se estabelece entre ambos é de comitente-comissário nos termos do artigo 500.º do Código Civil.

XXXIV- Existindo violação de deveres quer pelo comitente, quer pelo comissário, ambos são            solidariamente responsáveis nos termos do artigo 500.º     n.º 3 e 497.º do Código Civil, sem prejuízo do direito de regresso na proporção efectiva da culpa.

XXXV- Deve, nessa medida, a empresa de segurança privada e a respectiva seguradora serem condenadas a, solidariamente com a Recorrida DD e o seu sócio-gerente, e sem prejuízo do direito de regresso nos termos do artigo 497.º ex vi 500.º n.º 3, ressarcirem a Recorrente da indemnização que lhe foi arbitrada.

XXXVI- 0 acórdão recorrido viola os artigos 421.º, 675.º e 676.º do CPC, artigo 146.º n.º 3 da Lei do Seguro, artigo 138.º da Lei do Seguro, artigos l.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 101/2008, artigo 10.º n.º 5 b) do Decreto-Lei n.º 309/2002 de 16 de Dezembro, artigo 5.º do DL n.º 101/2008 de 16 de Junho, artigo 405.º do Código Civil, artigo 146.º n.º 5 da regulamentação do Contrato de Seguro, artigo 146.º n.º 5 do Regime Jurídico do Seguro, artigo 292.º do Código Civil Português, artigo 18.º das Cláusulas Contratuais Gerais, artigo 12.º das Cláusulas Contratuais Gerais, artigo 8.º alínea d) das Cláusulas Contratuais Gerais, artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 309/2002 de 16 de Dezembro, artigo 406.º do Código Civil, artigo 137.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, 406.º do Código Civil, preâmbulo do DL n.º 309/2004 de 16 de Dezembro, artigo 1º n.º 1 b), artigo 2.º, artigo 3.º do DL 101/2008 de 16 de Junho, artigo 500.º e artigo 497º do Código Civil.

Termos em que se requer que julguem a presente revista como procedente por provada e, em consequência, seja revogado parcialmente o acórdão recorrido e alterada a condenação nos termos peticionados pela Recorrente, delimitados devidamente nas conclusões do recurso de revista que se apresentam, designadamente:

a)      Seja declarada a existência de erro na aplicação do processo e, consequentemente, ser valorado o depoimento da testemunha do LL.

b)      Seja declarada a existência de erro de interpretação de lei substantiva, erro de aplicação de lei substantiva e erro de determinação de norma aplicável, e, em consequência, declarar nula a cláusula que limita a 10% a responsabilidade da Recorrida HH, por limitadora dos danos tuteláveis e indemnizáveis pela exigência de um seguro de responsabilidade civil obrigatório.

Cumulativamente com b)

c)       Condenar a Recorrida HH      ao pagamento, em solidariedade com a Recorrida DD ao pagamento à Recorrente da indemnização fixada.

Subsidiariamente

d)      Seja declarada nula com os devidos e legais efeitos a cláusula limitadora a 10% da responsabilidade da HH, operando-se o mecanismo da redução p. no artigo 292.º do Código Civil e, em consequência, ser a Interveniente condenada ao pagamento em solidariedade com a Ré DD ao montante da indemnização fixado e condenado por acórdão proferido pelo Tribunal a quo.

Subsidiariamente

e)       Seja excluída do contrato de seguro a cláusula de limitação da responsabilidade a 10% do capital seguro nos termos e para os efeitos legais, com as devidas e legais consequências, designadamente, a condenação, em solidariedade, da Interveniente Recorrida ao pagamento da indemnização integral fixada nos autos.

Subsidiariamente

f)       Seja declarada como nula por contrária à boa fé e imperatividade do regime do seguro a cláusula de limitação da responsabilidade a 10% do capital seguro, com as devidas e legais consequências de condenação da Recorrida HH a, solidariamente com a Recorrida DD, liquidarem a quantia integral objeto de condenação.

Subsidiariamente, e caso assim não se entenda, o que apenas se concebe por mera cautela de patrocínio,

g)      Seja reconhecido que a Recorrida HH é solidariamente responsável com a Recorrida DD no que se coaduna com o pagamento da quantia indemnizatória de €85.000,00 (oitenta e cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais, com o acréscimo de juros de mora à taxa legal desde a decisão até integral pagamento, porquanto o mesmo é integrável no capital seguro de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).

Subsidiariamente, e caso assim não se entenda, o que apenas se concebe por mera cautela de patrocínio, 

h) Seja revogado parcialmente o acórdão revogado, retirando-se o limite de €15.000,00 na condenação da HH, aqui Recorrida, acrescentando-se, a final, o "sem prejuízo do direito de regresso entre as partes", em total respeito pelo disposto no artigo 137.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, 406.º do Código Civil e preâmbulo do DL n.º 309/2004 de 16 de Dezembro, por impossibilidade de conferir eficácia externa às obrigações contratuais.

Subsidiariamente, e caso assim não se entenda, o que apenas se concebe por mera cautela de patrocínio,

i) Seja reconhecida a relação comitente-comissário entre a Recorrida DD e a GG, que levam a que exista, necessariamente, uma obrigação solidária, sem prejuízo do direito de regresso na proporção da medida da culpa, o que tutelará, com maior evidência e em respeito pelos princípios dos direitos dos seguros, a indemnização arbitrada à Recorrente.

Cumulativamente com i)

j) Sejam condenados a ser solidariamente responsáveis no pagamento da indemnização arbitrada à Recorrente, em conjunto com a Recorrida DD e com o seu sócio-gerente, sem prejuízo do direito de regresso na medida da culpa, a recorrida GG e a sua seguradora.

Contra-alegaram as recorridas "HH" e "Seguradoras Reunidas" e a autora, concluindo aquelas pela improcedência dos recursos e esta pela improcedência do recurso dos réus.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a decidir:

- Revista dos réus -

- Ilegitimidade dos réus recorrentes por não terem sido demandados no processo crime;

- Inexiste responsabilidade dos réus, uma vez que não foram violadas as regras legais de segurança;

- Inexiste nexo de causalidade entre a eventual falha de segurança e o evento (homicídio) que veio a ocorrer no interior do estabelecimento;

- A existir responsabilidade da ré DD, a ré "HH" deve ser responsabilizada pelo pagamento da indemnização;

- Responsabilidade da ré GG.

- Revista da autora -

- Valor extraprocessual de depoimento prestado no processo crime;

- Nulidade da cláusula de limitação da responsabilidade da seguradora "HH" a 10% do capital;

- Inoponibilidade dessa cláusula;

- Responsabilidade da ré GG e da respectiva seguradora.

III.

A factualidade provada, após as alterações introduzidas pela Relação, é a seguinte:

§ Admitidos por acordo (provenientes da petição inicial):

1) No estabelecimento DD, encontrava-se o 1º Réu CC, acompanhado da sua namorada, QQ, alguns familiares e amigos, nomeadamente RR, SS, TT, UU e VV – artigo 12º.

2) A determinada altura, cerca de meia hora após a entrada do grupo do FF no estabelecimento e quando se encontravam na zona destinada aos fumadores, junto às casas de banho, o 1º Réu dirigindo-se à XX e à ZZ apelidou-as de «porcas» e «putas» – artigo 13º.

3) Decorrido algum tempo, o 1º Réu aproximou-se do mesmo grupo e, dirigindo-se novamente à XX e à ZZ, disse «vocês até são boas de corpo mas de cara são feias» – artigo 14º.

4) Nessa altura, gerou-se uma discussão, em tom de voz elevado, entre o 1º Réu e a XX – artigo 15º.

5) Entretanto, a prima do 1º Réu, RR e a amiga, VV, afastaram-no do grupo e pediram desculpas pelo seu comportamento, justificando que se devia ao facto do mesmo estar embriagado – artigo 16º.

6) Porém, o 1º Réu continuou a dirigir-se à XX e esta a retorquir-lhe – artigo 17º.

7) Então, o 1º Réu acercou-se de novo do grupo desta XX, gerando-se uma discussão entre ele e o referido FF – artigo 18º.

8) E, na sequência dessa discussão, o 1º Réu e o FF envolveram-se em confronto físico, agarrando-se e desferindo murros um ao outro – artigo 19º.

9) Foi então que, no decurso da contenda, o 1º Réu curvou-se, ficando, de momentos, de costas voltadas para o FF, altura em que abriu e empunhou uma navalha, que trazia escondida – artigo 20º.

10) De seguida, voltando-se de novo para o FF, o 1º Réu desferiu-lhe um golpe com a navalha de baixo para cima, na zona do tronco – artigo 21º.

11) Atingindo-o, dessa forma, entre o abdómen e o tórax, do lado esquerdo – artigo 22º.

12) E trespassando-lhe o coração desde a parede posterior até à parede anterior – artigo 23º.

13) Assim atingido, o FF afastou-se do 1º Réu, dirigindo-se para a XX que estava atrás dele – artigo 24º.

14) Nesse momento, encontrando-se o FF de costas para o 1º Réu, este desferiu-lhe outro golpe com a referida navalha – artigo 25º.

15) Atingindo o FF na zona lombar, do lado direito – artigo 26º.

16) Após o esfaqueamento de que foi vítima, o FF foi transportado para o exterior do estabelecimento – artigo 27º.

17) Tendo sido posteriormente assistido pela equipa de médicos do INEM – artigo 28º.

18) De seguida, foi transportado ao Hospital de ..., onde veio a falecer pelas 05 horas e 10 minutos – artigo 29º.

19) Por sua vez, o 1º Réu, após ter desferido o último golpe, saiu do estabelecimento da 2ª Ré, levando consigo a referida navalha – artigo 30º.

20) Navalha essa que escondeu, mais tarde, numa sebe do jardim de ..., nesta cidade – artigo 31º.

21) Em resultado da conduta do arguido o FF sofreu as lesões que vêm descritas no relatório da autópsia do processo n.º 388/09.8JABRG – artigo 32º.

22) Assim, e em conformidade com o aludido relatório de autópsia, o FF sofreu, ao nível do hábito externo:

«- No tórax, uma solução de continuidade linear de bordos lisos,regulares, coaptáveis e desidratados, com 1,5 cm de comprimento, disposta obliquamente de cima para baixo e fora para dentro ao nível do 8º espaço intercostal no terço inferior do hemitorax esquerdo, distando 8,7 cm da linha médio-esternal e 13 cm da mamilo esquerdo (lesão 1).

- Na região dorso-lombar, solução de continuidade linear de bordos lisos, regulares, coaptáveis, com 1,2 cm de comprimento, disposta obliquamente de cima para baixo e de fora para dentro ao nível da região lombar direita, distando 3,5 cm da linha média e 22 cm da espinha ilíaca antero-superior (lesão 2)» – artigo 33º.

23) Ao nível do hábito interno:

«- No tórax (lesão 1): Paredes – solução de continuidade em correspondência com a descrita no hábito externo ao nível do 8º espaço intercostal, no terço inferior do hemitórax esquerdo, produzindo entalhe ao nível da 8ª cartilagem costal esquerda e rodeada por área de infiltração sanguínea dos planos musculares, com 8X4 cm de maiores dimensões, seguida de trajecto perfurante na cavidade toráxica; Pericárdio e cavidade pericárdica – solução de continuidade com 8mm de maiores dimensões, localizada ao nível da parede posterior do saco pericárdico, em correspondência com a descrita ao nível da parede interna do hemitórax esquerdo;

Coração – solução de continuidade com 1,4 cm de comprimento, bordos lisos, regulares e coaptáveis, localizada ao nível da face posterior do ápex cardíaco, em correspondência com a descrita ao nível da parede posterior do saco pericardíaco. Solução de continuidade com 1,2 cm de comprimento de bordos lisos, regulares e coaptáveis, localizada ao nível da face anterior do ápex cardíaco, em correspondência coma a descrita ao nível da parede posterior do ápex cardíaco. Ambas soluções de continuidade, juntamente com aquelas descritas ao nível do saco pericardíaco e da parede torácica, definem um trajecto da esquerda para a direita, de baixo para cima e da frene para trás (trajecto 1). O referido trajecto interessa a parede externa e interna do hemitórax esquerdo, a parede posterior do saco pericardíaco e as paredes posterior e anterior do coração.

- No abdómen (lesão 2): Paredes – solução de continuidade em correspondência com a descrita no hábito externo na metade direita da região lombar, rodeada por área de infiltração sanguínea dos planos musculares direitos, com 7,5 x 3 cm de maiores dimensões, seguida de trajecto perfurante dirigindo-se medialmente em direcção à coluna lombar. Espaço retro-peritoneal – solução de continuidade de bordos lisos e regulares, infiltrados de sangue, ao nível da inserção superior, na coluna lombra, do músculo direito.

- Coluna (lesão 2): Coluna Lombar – Solução de continuidade com perda de substância óssea, localizada ao nível da face direita do corpo vertebral de L1, sem atingimento do canal medular.

Esta lesão, conjuntamente com as descritas ao nível dos planos musculares da região lombar, define um trajecto de baixo para cima, de trás para a frente e da direita para a esquerda (trajecto 2). O referido trajecto interessa a parede externa e interna da região lombar e o corpo da primeira vértebra lombar (L1)» – artigo 34º.

24) Em consequência das lesões descritas, o FF morreu, já no Hospital de …, pelas 05 horas e 10 minutos, do dia ... – artigo 35º.

25) Cerca de meia hora depois de ter sofrido os golpes de navalha desferidos pelo 1º Réu – artigo 36º.

§ Oriundos da discussão da causa

- Provenientes da petição inicial:

26) Em 16.11.2007, nasceu AA, estando registada como sendo filha de BB e de FF (por averbamento, quanto a este, efetuado a 22.08.2008) – artigo 1º.

27) Em 03.07.2009, faleceu o pai da Autora AA – artigo 2º.

28) Na escritura de 14.07.2011, celebrada no Cartório Notarial de AAA, consta que a Autora AA é a única e universal herdeira do falecido FF – artigo 5º.

29) No processo com o nº 338/09.8JABRG, o 1º Réu foi condenado pelo crime de homicídio qualificado na pena de 17 anos de prisão, por acórdão de 26.04.2010, proferido pela extinta Vara Mista do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, confirmado pela Relação de Guimarães em 27.09.2010, já transitado em julgado – artigo 9º.

30) No dia 3.07.2009, cerca das 4:00 horas, no interior do espaço de diversão noturna denominado DD, pertencente à 2.ª Ré, sito no … (praça …), nº …, …, encontrava-se o referido FF acompanhado pela sua namorada, XX e por uma amiga, BBB– artigo 11º.

31) A 2.ª Ré era proprietária da discoteca DD – artigo 40º.

32) O 3.º Réu era gerente da 2.ª Ré – artigo 42º/parte.

33) A 2.ª Ré explora uma discoteca conhecida por DD – artigo 53º.

34) À data da morte do FF, a 2.ª Ré não tinha instalado pórtico de deteção de metais à porta da discoteca DD e apenas utilizava intermitentemente um sistema/equipamento de deteção de metais (raquete) à porta da discoteca DD – artigo 64º.

34-A) Este equipamento, se devidamente homologado e utilizado conforme especificações do fabricante e relativamente a todos os clientes, teria detetado a navalha utilizada pelo 1.º Réu e, com grande probabilidade, o FF estaria vivo - formulação restritiva do artigo 65º;

35) A arma entrou no interior da discoteca DD – artigo 82º/parte.

36) À data da sua morte, o falecido FF trabalhava como pintor de segunda na empresa CCC, L.da, onde auferia o ordenado mensal de € 531,00 (quinhentos e trinta e um euros) – artigos 88º e 89º.

37) O FF sofreu dores resultantes da navalhada no torax e nas costas – artigo 100º.

38) Apercebeu-se que estava ferido e que iria morrer – artigo 101º.

39) E que lhe restavam alguns minutos de vida – artigo 102º.

40) Esta consciência ainda lhe provocou maior sofrimento – artigo 103º.

41) A AA soube e sabe perfeitamente, ainda que à maneira das crianças, que ficou sem pai – artigo 106º.

42) A AA terá sempre consciência de que não tem pai – artigo 107º.

43) A AA sabe que nunca terá o seu pai para esperá-la e levá-la a casa – artigo 111º.

44) E fica desgostosa e sofre sempre que se celebra o dia do pai na escola e não tem a quem entregar uma prenda ou um postal do dia do pai – artigo 112º.

45) Ou quando cumpre o seu aniversário e não tem o seu pai para lhe dar os parabéns e dar uma prenda – artigo 113º.

46) E quando quer um mimo do pai e sabe que nunca o terá – artigo 114º.

47) O DDD estava obrigado a contribuir com a prestação de alimentos no montante de € 150,00, atualizável anualmente em função do índice de preços do consumidor, mas no mínimo em 5%, e a suportar metade das despesas de saúde, das despesas escolares no início de cada ano e da mensalidade do colégio suportado pela Autora – artigos 122º a 124º.

- Provenientes da petição de intervenção de II e JJ (cfr. fls. 299 a 327):

48) A 2.ª Ré explorava um estabelecimento com espaço com música, pistas de dança e bar, com capacidade para 180 pessoas – cfr. artigos 32º e 39º.

48-A) Não eram utilizados equipamentos de deteção de armas em todos os clientes, o que permitiu que a navalha tivesse passado pelo controlo dos vigilantes à entrada - formulação restritiva dos artigos 45º e 46º.

49) A navalha passou pelo controlo dos vigilantes à entrada – artigos 58º/parte e 59º.

50) A navalha usada pelo 1.º Réu tinha 7,5 cm de comprimento e 1,5 cm de largura – artigo 68º/parte.

51) Os Intervenientes mergulharam em tristeza, dor e desgosto, tendo ficado desnorteados e tendo a vida deixado de fazer sentido depois da morte do DDD – artigos 96º e 97º.

52) Os Intervenientes passaram a ter acompanhamento psiquiátrico e necessitaram de medicação, resvalando, se os interromperem, para um quadro de depressão – cfr. artigos 101º a 103º.

53) O DDD trabalhava como operário numa fábrica de produção de jantes para automóveis – artigo 109º.

54) O DDD vivia com os pais – artigo 125º/parte.

- Provenientes da contestação da 2.ª Ré e da HH, SA (fls. 156 a 169 e 227 a 232):

55) A 2.ª Ré dispunha de raquete de deteção de metais, sendo a mesma utilizada pelos funcionários da empresa de segurança privada de forma intermitente, sendo por vezes dispensada, nomeadamente, quando estavam em causa clientes do sexo feminino - formulação restritiva dos artigos 13 e 14º;

56) A 2.ª Ré tinha celebrado com a Interveniente GG um acordo relativo à prestação de serviços de segurança privada, corporizado no documento de fls. 176 a 182 – artigo 15º.

57) A 2.ª Ré celebrou com a Interveniente HH, SA, um acordo de seguro titulado pela apólice n.º ME …, com as coberturas enunciadas a fls. 183 - com o valor máximo garantido pela apólice de 150.000 € -, dentre as quais a de «responsabilidade extracontratual», com o limite de indemnização correspondente a 10% do “Capital conteúdo”, sendo o mínimo de 4.987,98 € e o máximo de € 49.879,79, com uma franquia de 10% dos danos, num mínimo de 74,82 € (“aplicável a danos materiais” ou “não aplicável a danos pessoais”) – cfr. documento de fls. 183 e quadro de fs. 279 (artigo 54º).

58) De acordo as condições gerais da apólice referida na al. anterior, artigo 5º/6.,1, «(…) a Seguradora garante o pagamento das indemnizações emergentes da responsabilidade civil extracontratual que, nos termos da lei, possam ser exigidas ao Segurado em consequência de danos decorrentes de lesões corporais ou materiais involuntariamente causadas a terceiros, devido a um facto fortuito, imprevisível e acidental originado pela exploração normal do estabelecimento seguro, ocorridos no local do risco indicado nas Condições Particulares» - artigo 5º (fls. 228) e documento de fls. 265.

59) De acordo com as condições gerais da apólice referida na al. 57), artigo 8º/5.,1, «Responsabilidade civil – Não fica garantida: (…) b) a responsabilidade criminal e (…) l) os danos não patrimoniais» – artigo 13º (fls. 230) e documento de fls. 268/269.

- Provenientes da contestação apresentada pela KK, L.da (fls. 511 a 517):

60) O LL era trabalhador da Interveniente KK à data do falecimento do DDD, sendo o seu horário de trabalho das 9h às 16h, na portaria do INL, em Braga – cfr. artigos 5º a 7º.

61) A Interveniente KK celebrou com a MM, SA (agora OO, SA), o acordo de seguro de responsabilidade civil através da apólice n.º … – artigo 22º e documento de fls. 522.

- Provenientes do articulado de fls. 526:

62) O Interveniente II faleceu no dia 23.10.2012 – artigo 1º e documento de fls. 544.

- Provenientes da contestação apresentada pela OO, L.da (fls. 647 a 653):

63) Da apólice de seguro referida em 61) consta que o objeto seguro é «responsabilidade civil do titular por danos materiais e/ou corporais causados a terceiros decorrentes da sua actividade de serviços de controlo – prevenção – vigilância.» – artigo 7º e documento de fls. 656.

64) Das Condições Gerais da apólice referida em 61) consta, no artigo 4º/1, «Ficam sempre excluídos da garantia deste contrato os seguintes danos: a) Decorrentes de actos ou omissões dolosas do Tomador do seguro, do Segurado ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis» - artigo 8º e documento de fls. 658.

- Provenientes da contestação apresentada pela PP Seguros, SA (fls. 948 a 962):

65) Entre a Interveniente GG, L.da e a PP Seguros, SA, foi celebrado o acordo de seguro titulado pela apólice n.º … a transferir a responsabilidade dos danos causados a terceiros decorrentes do exercício da sua atividade – artigo 1º e documento de fls. 967 a 968.

- Considerados nos termos do artigo 607º/4, do CPC:

66) Da certidão do assento de nascimento relativo à Autora consta que, aquando do termo de perfilhação, o falecido DDD tinha 22 anos de idade – documento de fls. 35 a 36.

IV.

A. Revista dos réus

1. Os recorrentes alegam que, por força do art. 72º do CPP, deveria a autora ter deduzido pedido cível no processo crime em que foi julgado o aqui primeiro réu. Não o tendo feito "deverão ser considerados parte ilegítima e, como tal, absolvidos da instância".

Não têm razão, como é manifesto.

O princípio da adesão do pedido de indemnização civil ao processo penal encontra-se consagrado no art. 71º do CPP, mas, logo aí, se admite que esse pedido possa ser deduzido em separado, "nos casos previstos na lei".

Estes casos, que constituem excepção à adesão obrigatória, estão indicados no art. 72º do CPP, interessando-nos o que consta do nº 1, al. f):

O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando for deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil (…).

Assim, tendo a presente acção e correspondente pedido sido deduzidos contra outros réus, para além do arguido do processo crime, ocorre a referida excepção, pelo que não era obrigatória a dedução do pedido de indemnização no processo crime.

Acresce, de todo o modo, que daí não adviria, nem se vislumbra, qualquer fundamento para a ilegitimidade dos réus.

2. No entendimento dos réus recorrentes não foram violadas as condições de segurança legalmente exigidas de acesso ao seu estabelecimento.

Neste sentido, alegam que a recorrente tinha contratado dois "seguranças", um deles para fazer o controlo do referido acesso, utilizando instrumento (raquete) adequado para o efeito, competindo ao "segurança" escolher os clientes que deveriam ser submetidos a controlo, uma vez que este não era obrigatório para todos os clientes. Acrescentam que não se apurou se e como a navalha entrou no estabelecimento e que os instrumentos de detecção não estivessem a funcionar.

Não têm razão, parecendo evidente que os recorrentes nem sequer atentam devidamente na factualidade provada.

Com efeito, a este respeito, cumpre destacar os seguintes factos provados:

- À data da morte do FF, a 2.ª Ré não tinha instalado pórtico de detecção de metais à porta da discoteca DD e apenas utilizava intermitentemente um sistema/equipamento de detecção de metais (raquete) à porta da discoteca (34);

- Este equipamento, se devidamente homologado e utilizado conforme especificações do fabricante e relativamente a todos os clientes, teria detectado a navalha utilizada pelo 1.º Réu (34-A);

- Não era utilizado o equipamento de detecção de armas em todos os clientes, o que permitiu que a navalha tivesse passado pelo controlo dos vigilantes à entrada (48-A);

- A navalha passou pelo controlo dos vigilantes à entrada (49);

- A 2.ª Ré dispunha de raquete de detecção de metais, sendo a mesma utilizada pelos funcionários da empresa de segurança privada de forma intermitente, sendo por vezes dispensada, nomeadamente, quando estavam em causa clientes do sexo feminino (55);

- A 2.ª Ré tinha celebrado com a Interveniente GG um acordo relativo à prestação de serviços de segurança privada, corporizado no documento de fls. 176 a 182 (56).

Dispõe o art. 1º, nº 1, al. b), do DL 101/2008, de 16/6, que os estabelecimentos de restauração ou de bebidas previstos no art. 2º do DL 234/2007, de 19/6, que disponham de espaços ou salas destinados a dança ou onde habitualmente se dance são obrigados a adoptar um sistema de segurança privada que inclua, no mínimo, em estabelecimentos com lotação entre 101 e 1000 lugares, um vigilante no controlo de acesso e sistema de controlo de entradas e saídas por vídeo.

Nos termos do art. 2º, nº 1, os sistemas de segurança privada a adoptar pelos referidos estabelecimentos devem incluir equipamentos técnicos destinados à detecção de armas, objectos, engenhos ou substâncias de uso e porte legalmente proibido ou que ponham em causa a segurança de pessoas e bens.

Ainda segundo o art. 3º, nº 1, do mesmo diploma, os proprietários e os administradores ou gerentes de sociedades que explorem os estabelecimentos referidos no art. 1º são obrigados a garantir o funcionamento efectivo dos sistemas de segurança privada previstos no art. 1º e no nº 1 do artigo anterior.

 

Introduziram-se, assim, como se refere no preâmbulo do referido diploma, os ajustamentos que se revelaram necessários para reforçar a segurança de pessoas e bens, estabelecendo-se "maiores exigências de segurança no que se refere ao controlo da entrada de armas, objectos, engenhos ou substâncias de uso e porte legalmente proibido ou que ponham em causa a segurança de pessoas e bens, em estabelecimentos de dimensão significativa, cuja lotação exceda 100 lugares".

Repare-se que nos termos do nº 2 do art. 2º do aludido diploma, deveria ser afixado, à entrada do estabelecimento, um aviso a alertar que seria vedado o acesso a pessoas que se recusassem a passar pelo equipamento de detecção de objectos perigosos ou de uso proibido.

Perante estas exigências, não se compreende a afirmação dos recorrentes de que o sistema de segurança não obrigava a que todos os utentes do estabelecimento se submetessem ao referido controlo. A ser assim, como parece evidente, não estaria garantido o funcionamento efectivo do sistema de segurança imposto legalmente.

E foi realmente isso o que se passou, uma vez que ficou provado que a raquete de detecção de metais só era usada de forma intermitente, sendo, por vezes, dispensada, nomeadamente em relação a clientes do sexo feminino, o que permitiu, como se provou, que a navalha, que veio a ser utilizada depois pelo 1º réu, tivesse passado sem ser detectada pelo controlo da entrada.

Daí que se tenha concluído no acórdão recorrido que:

"Face a este quadro, podemos com toda a segurança afirmar que os Réus DD e EE, nas suas qualidades de, respetivamente, proprietária do estabelecimento e gerente daquela sociedade, violaram a sua obrigação de garantir o funcionamento efetivo do equipamento técnico destinado à deteção de armas, uma vez que tal obrigação só se poderia ter por inteiramente satisfeita se o equipamento de deteção de metais funcionasse de forma sistemática e permanente e não apenas intermitentemente, na medida em que só do primeiro modo se poderia ter por garantida a finalidade legalmente visada com a imposição da instalação e efetivo funcionamento do dito equipamento, norma diretamente dirigida à proteção da segurança dos frequentadores dos espaços de diversão elencados na lei - onde, pelas suas características, se inclui o estabelecimento onde se deu o fatídico evento -, que não pode, por isso, deixar de ser entendida como “disposição legal destinada a proteger interesses alheios”, conceito a que alude o art. 483º, nº 1, do Cód. Civil, cuja violação integra o pressuposto “ilicitude” aí previsto".

Conclusão que se subscreve sem qualquer reserva.

Saliente-se que o referido regime obrigava não só o proprietário do estabelecimento – a 2ª ré sociedade – mas também o gerente dessa sociedade – o 3º réu – a garantir o funcionamento efectivo do sistema de segurança imposto legalmente, pelo que não tem cabimento a afirmação dos recorrentes de que nunca poderia haver responsabilidade pessoal do gerente, por esta responsabilidade não decorrer da lei. Não é assim, como se referiu, estando esta responsabilidade pessoal expressamente prevista no citado diploma legal (art. 3º, nº 1).

Houve, pois, conduta ilícita dos réus, nos termos referidos, que se traduziu na omissão de cumprimento do dever legal de garantir o funcionamento efectivo do sistema de segurança – art. 486º do CC.

3. Outro dos pressupostos da responsabilidade civil posto em causa pelos recorrentes é o do nexo de causalidade: afirmam que a interposição da conduta dolosa do 1º réu, constituindo evento extraordinário e imprevisível, neutraliza a existência de uma eventual falha no procedimento de fiscalização, quebrando o nexo de causalidade entre essa eventual falha e o homicídio que veio a ser perpetrado.

Estas considerações, apoiadas na fundamentação da sentença da 1ª instância, foram, a nosso ver, proficientemente rebatidas no acórdão recorrido, vindo aí a concluir-se que:

"(A)s condutas omissivas dos Réus DD e EE violadoras do dever de garantir o efetivo funcionamento do sistema de deteção de metais, foram, no mínimo, incrementadoras do risco da ocorrência de lesões à vida dos frequentadores do espaço de diversão em causa, surgindo, num juízo de prognose póstuma, a morte da vítima, no interior da discoteca e por agressão com recurso a arma branca que passou pelo controlo dos vigilantes à entrada, como consequência típica da omissão verificada.

Não há, pois, razões para considerar a conduta do 1º Réu como imprevisível ou inevitável: se a intenção (nas palavras da decisão recorrida) daquele era incontrolável, já não o era a condição altamente favorável que lhe foi proporcionada pela omissão dos Réus DD e EE, qual seja, a possibilidade de utilização de um instrumento de agressão com elevado potencial letal, possibilidade, essa, ínsita à própria imposição do dever em causa que a visava impedir e, portanto, previsível (…)".

Conforme dispõe o art. 563º do CC, a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Assim, para que um dano seja indemnizável é necessário que o facto tenha actuado como condição do dano, exigindo-se ainda que, em abstracto, o facto seja causa adequada desse dano.

Pode, porém, não ser a única causa do dano uma vez que a causalidade adequada não pressupõe a exclusividade da condição (basta que seja uma dessas condições do dano).

Por outro lado, tem-se entendido preferível uma formulação (negativa) mais ampla da causalidade adequada – "o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto".

Assim, "só quando para a verificação do dano tenham concorrido decisivamente circunstâncias extraordinárias, fortuitas ou excepcionais (que tanto poderiam sobrevir ao faco ilícito como a um outro facto lícito) repugnará considerar o facto (ilícito) imputável ao agente como causa adequada do dano"[2].

No caso, não se pode dizer que a omissão ilícita imputada aos réus recorrentes, de assegurar o funcionamento efectivo do sistema de segurança, se possa considerar de todo indiferente para a prática do crime que veio a ser perpetrado pelo 1º réu no interior do estabelecimento, uma vez que foi aquela omissão que proporcionou a utilização do instrumento letal por parte deste réu, possibilitando, no fundo, a concretização do risco (pondo em causa a segurança das pessoas, utentes do estabelecimento) que aquele sistema de segurança visava justamente evitar.

Ora, se a utilização intencional da navalha pelo 1º réu se inclui no risco que o sistema de segurança tinha por escopo prevenir, essa conduta não pode, manifestamente, considerar-se como circunstância anómala ou imprevisível que interceda no caso e quebre o nexo de causalidade que também existe entre a omissão dos réus recorrentes e o ilícito criminal cometido nesse condicionalismo.

Conclui-se, por conseguinte, como no acórdão recorrido, que existe nexo de causalidade adequada entre a omissão da 2º e 3º réus e a morte da vítima.

4. Defendem ainda os recorrentes que, a entender-se que existe responsabilidade da ré "DD", deve então a ré "HH" ser responsabilizada pelo pagamento da indemnização, uma vez que o contrato de seguro celebrado com esta cobria integralmente a responsabilidade civil extracontratual até ao montante de € 150.000,00.

A argumentação dos recorrentes não é, a este respeito, clara: invocam a necessidade de os contratos de seguro, como contratos de adesão, serem submetidos a controlo judicial, ao nível do conteúdo das condições gerais do contrato; aludem, por outro lado, às regras que devem reger a interpretação das cláusulas gerais e referem que o DL 35/2004, de 21/2, impõe o seguro obrigatório, com o valor mínimo de € 250.000,00.

Sobre este último ponto, importa referir que esse seguro obrigatório é imposto às empresas de segurança privada, sendo a regulamentação da actividade destas empresas que constitui objecto daquele diploma, então em vigor.

O seguro aqui em causa respeita, porém, ao contrato celebrado entre a ré "DD" e a ré "HH", visando, para além do mais, a transferência da responsabilidade civil decorrente do exercício da actividade daquela segurada (exploração do estabelecimento).

No acórdão recorrido foram julgadas nulas as cláusulas gerais que, neste contrato de seguro, obrigatório, faziam depender a cobertura da responsabilidade da circunstância de esta ter origem em "facto fortuito, imprevisível e acidental", assim como da cláusula que excluía os danos não patrimoniais e da que estabelecia uma franquia (oponível ao lesado).

Todavia, por inexistir qualquer limite mínimo legalmente fixado, atendeu-se ao montante efectivamente contratado para a responsabilidade civil extracontratual de € 15.000,00 (10% do valor máximo da apólice).

É este o montante que consta realmente das condições particulares do referido contrato de seguro (fls. 183).

Estas cláusulas particulares não são, porém, predispostas unilateralmente pela seguradora, respeitando antes ao tomador do seguro em concreto, regulando elementos especiais do contrato, designadamente, como no caso, o valor do capital seguro concretamente acordado (cfr. art. 49º da LCS)[3].

Nesta medida, não lhes é aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais – art. 1º do DL 446/85, de 25/10 – não estando sujeitas ao controlo de conteúdo e às regras de interpretação invocadas pelos recorrentes.

Não é possível, por isso, estender às cláusulas efectivamente negociadas pelas partes as razões invocadas no acórdão recorrido, com fundamento nos arts. 15º, 16º e 18º do referido diploma, em que os recorrentes se apoiam e que levaram a concluir pela nulidade das condições gerais acima referidas.

Mas, será que, no caso, nos devemos ater ao limite de capital de €15.000,00, fixado nas condições particulares do contrato de seguro para a responsabilidade civil extracontratual, como se decidiu no acórdão recorrido?

No preâmbulo do DL 309/2002, de 16/12, que regula a instalação e funcionamento de recintos de espectáculos e divertimentos públicos, refere-se o seguinte:

Por último, e tendo em vista a garantia do ressarcimento dos danos e prejuízos em caso de acidente, dado o elevado grau de risco e o iminente perigo para a integridade física dos utentes, estabelece-se a obrigatoriedade da celebração de um seguro de responsabilidade civil que cubra os riscos do exercício das actividades dos intervenientes no processo e de um seguro de acidentes pessoais que cubra os danos causados nos utentes, em caso de acidente.

Este objectivo foi concretizado nos arts. 10, nº 5, als. b) e c) e 16º do referido diploma, exigindo-se, assim, para emissão da licença de utilização do estabelecimento, a apresentação de apólice de seguro de responsabilidade civil válida.

Está em causa um seguro de responsabilidade civil, em que o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros – art. 137 da LCS.

Este seguro garante a obrigação de indemnizar, nos termos acordados, até ao montante do capital seguro e, salvo convenção em contrário, o dano a atender para efeito do princípio indemnizatório é o disposto na lei geral – art. 138º, nºs 1 e 2, do mesmo diploma.

Trata-se, por outro lado, de um seguro obrigatório, que é imposto por lei, como requisito de exercício de uma certa actividade; procura assegurar que o lesado recebe a indemnização pelos danos que sofreu de responsável solvente[4]. Visa a protecção dos terceiros lesados[5].

Apesar de obrigatório, este seguro não tem ainda, como foi reconhecido, regulamentação específica do respectivo conteúdo.

Estabelece-se no art. 146º, nº 4, da LCS:

Enquanto um seguro obrigatório não seja objecto de regulamentação, podem as partes convencionar o âmbito da cobertura, desde que o contrato de seguro cumpra a obrigação legal e não contenha exclusões contrárias à natureza dessa obrigação.

Pode, assim, afirmar-se que os interesses que fundamentam a imposição legal de segurar exigem uma determinada cobertura, cuja extensão é indispensável para a devida protecção desses interesses e que não pode ser subvertida por convenção das partes que limitem o seu âmbito[6].

Apesar de, como corolário do princípio geral da autonomia privada, se reger também pelo princípio da liberdade contratual (art. 11º da LCS), o seguro obrigatório, tendo em conta a sua natureza e finalidade, exige, pois, a satisfação de determinados elementos, que constituem "um certo padrão de conteúdo mínimo", por forma a não comprometer a pretendida protecção dos potenciais lesados.

No caso, o seguro visa cobrir os riscos – o elevado grau de risco e o iminente perigo para a integridade física dos utentes – derivados da actividade de exploração do estabelecimento de diversão em questão. São realmente frequentes as notícias de casos com contornos graves e preocupantes ocorridos neste (ou junto a este) tipo de estabelecimentos.

No contrato de seguro celebrado entre as rés, apesar de se ter estipulado que o capital máximo garantido era de € 150.000,00, no caso específico da responsabilidade civil extracontratual o capital garantido foi reduzido a € 15.000,00 (10% daquele montante).

Tendo em conta os elevados riscos que visava garantir – riscos que o caso destes autos evidencia – este montante é, a nosso ver, manifestamente exíguo, irrisório, quase simbólico, não sendo, de modo nenhum, adequado à finalidade que justifica a imposição do dever de segurar.

Esta conclusão parece-nos clara, tendo em conta esse valor em si e a diferença, abissal, entre esse montante e os valores mínimos que têm sido adoptados na regulamentação de vários seguros obrigatórios (cfr., a título de exemplo, o caso próximo das empresas de segurança, em que o capital mínimo foi fixado, no art. 26º do DL 35/2004, de 21/2, em € 250.000,00, tendo sido alterado para € 500.000,00, nos termos do art. 47º da Lei 34/2013, de 16/5).

Nesta situação, pode dizer-se que o limite de capital acordado para cobertura da responsabilidade civil extracontratual se traduz, no fundo, numa verdadeira cláusula de exclusão[7]: trata-se, na verdade, de uma limitação excessiva e desproporcionada do âmbito de cobertura do seguro que, por isso, não cumpre o fim associado à norma que impõe o dever de segurar, contornando este dever e não garantindo efectivamente o ressarcimento dos danos sofridos pelos utentes do estabelecimento dos recorrentes.

Assim, a cláusula que limita o montante da indemnização no caso da responsabilidade civil extracontratual, constante das condições particulares do contrato, não cumpre a obrigação legal, contrariando esse limite a natureza e finalidade desta, com violação do disposto no art. 146º, nº 4 da LCS.

Nesta medida, essa cláusula deve ser considerada nula, como decorre do disposto no art. 13º da LCS[8].

Da nulidade dessa cláusula não deriva, porém, a nulidade do contrato de seguro, estando consagrada a regra da redução do negócio jurídico, nos termos do art. 292º do CC: a nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.

Assim, numa opção que se explica pela ideia de conservação dos negócios jurídicos, "o negócio só não será reduzido quando se mostrar que, sem a parte viciada, não teria sido concluído".

Mesmo que permaneçam dúvidas sobre a vontade conjectural das partes, deve proceder-se à redução do negócio, em conformidade com a referida regra[9].

No caso, não se provou que as parte não teriam concluído o negócio se soubessem que, naqueles termos, o negócio não seria integralmente válido.

Deve, por isso, manter-se a validade do contrato de seguro, no que concerne ao conteúdo restante (não excluído no acórdão recorrido), subsistindo como limite da indemnização por responsabilidade civil extracontratual o montante do "capital seguro" ("o valor máximo garantido pela apólice"), como consta das condições particulares desse contrato.

Do que fica dito, decorre que a ré "HH" deve ser responsabilizada pelo pagamento da indemnização fixada, solidariamente com os réus recorrentes, até ao montante de € 150.000,00, devendo alterar-se o decidido em conformidade.

5. Por fim, sustentam os recorrentes que a ré "DD" celebrou com a ré "GG" um contrato de prestação de serviços de segurança, pelo que a eventual responsabilidade civil por violação das regras de segurança sempre seria imputável a esta ré.

No acórdão recorrido entendeu-se que não seria possível imputar a essa ré, interveniente, a responsabilidade, para efeito da sua condenação na indemnização peticionada pela autora, com esta fundamentação:

"Com efeito, a referida Autora nada alegou no sentido de imputar a tal sociedade ou aos seus colaboradores qualquer conduta - por ação ou omissão - causadora dos danos cuja reparação peticiona, muito menos tendo apontado qualquer dever legal, que eventualmente sobre a GG pudesse recair, a fim de fundamentar a respetiva responsabilidade, e, por seu turno, a Ré DD, no requerimento apresentado para efeito de intervenção dessa mesma sociedade com o fundamento de com ela ter celebrado um contrato de prestação de serviços de segurança, limitou-se a defender que, não a ela, mas à empresa de segurança incumbia executar a revista, sendo certo, porém, que, como se viu, era sobre o proprietário e o gerente da sociedade exploradora do estabelecimento de diversão que, por força da lei, recaía o dever de garantir o funcionamento efetivo dos meios de deteção de armas, não se podendo, pois, imputar à Interveniente a violação de um dever que a outrem era imposto, aqui se assinalando que nestes autos não tem que se cuidar de saber da eventual responsabilidade contratual da dita empresa de vigilância perante a Ré, uma vez que a intervenção não foi requerida com a finalidade prevista no art.329º, nº 2, da anterior versão do CPC".

Com o devido respeito, não parece que estas razões procedam, desde logo, no que respeita à razão invocada para fundamentar o pedido de intervenção da sociedade "GG": é que, sendo sobre a sociedade "DD" e respectivo gerente que recaía o dever de garantir o funcionamento do sistema de segurança, já seria àquela empresa e vigilante por esta escolhido, como se verá, que incumbia executar as operações de controlo e vigilância compreendidas nesse sistema. Esses deveres não se excluem, antes se complementam.

No fundo, estão em causa os pressupostos da intervenção principal provocada – arts. 325º e segs. do CPC (redacção em vigor à data do requerimento de intervenção).

Importa, porém, notar que a intervenção foi admitida e que a respectiva decisão transitou em julgado (art. 620º do CPC), pelo que a decisão sobre o mérito deve apreciar a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, o que se justifica por, uma vez citado, este passar a ter o estatuto de parte.

Repare-se que as chamadas ("GG" e respectiva seguradora - "PP") apresentaram articulados próprios e nada objectaram quanto à sua demanda, apenas questionando (no que aqui interessa) a sua responsabilidade, concluindo pela improcedência da acção quanto ao mérito.

Vejamos, pois, se se verifica essa responsabilidade.

Importa começar por recordar estes factos provados, já atrás destacados:

- À data da morte do FF, a 2.ª Ré não tinha instalado pórtico de detecção de metais à porta da discoteca DD e apenas utilizava intermitentemente um sistema/equipamento de detecção de metais (raquete) à porta da discoteca;

- Este equipamento, se devidamente homologado e utilizado conforme especificações do fabricante e relativamente a todos os clientes, teria detectado a navalha utilizada pelo 1.º Réu;

- Não era utilizado o equipamento de detecção de armas em todos os clientes, o que permitiu que a navalha tivesse passado pelo controlo dos vigilantes à entrada;

- A navalha passou pelo controlo dos vigilantes à entrada;

- A 2.ª Ré dispunha de raquete de detecção de metais, sendo a mesma utilizada pelos funcionários da empresa de segurança privada de forma intermitente, sendo por vezes dispensada, nomeadamente, quando estavam em causa clientes do sexo feminino;

- A 2.ª Ré tinha celebrado com a Interveniente GG um acordo relativo à prestação de serviços de segurança privada, corporizado no documento de fls. 176 a 182.

Nos termos deste contrato:

- A primeira outorgante (GG) prestará esses serviços (vigilância e segurança) através de um vigilante de reconhecida idoneidade e fisicamente apto (…) – clª 5ª, nº 1;

- Caberá à primeira outorgante a escolha do pessoal indicado (…) – clª 5ª, nº 2;

- O vigilante indicado ficará sob as ordens directas e responsabilidade da primeira outorgante – clª 6ª, nº 1.

Provou-se ainda que:

- Entre a Interveniente GG, Lda e a PP Seguros, SA, foi celebrado o acordo de seguro titulado pela apólice n.º … a transferir a responsabilidade dos danos causados a terceiros decorrentes do exercício da sua actividade – artigo 1º e documento de fls. 967 a 968.

Já acima referimos que os proprietários de estabelecimentos de diversão, como este da ré "DD", estão obrigados a adoptar um sistema de segurança privada que inclua um vigilante no controlo de acesso ao estabelecimento e equipamento técnico destinado à detecção de armas e objectos proibidos, que possam pôr em causa a segurança de pessoas e bens – arts. 1º, nº 1 e 2º, nº 1, do DL 101/2008.

À data, a actividade de segurança privada era regulamentada pelo DL 35/2004, de 21/2.

Nos termos do art. 2º, nº 1, al. a), a actividade de segurança privada compreende os serviços de vigilância de bens móveis e imóveis e o controlo de entrada, presença e saída de pessoas, bem como a prevenção da entrada de armas, e artigos de uso e porte proibidos ou susceptíveis de provocar actos de violência no interior de edifícios ou locais de acesso vedado ou condicionado ao público, designadamente estabelecimentos (…).

Por outro lado, conforme dispõe o art. 6º, nº 2, os vigilantes de segurança privada exercem, entre outras, as seguintes funções:

a) Vigiar e proteger pessoas e bens em locais de acesso vedado ou condicionado ao público, bem como prevenir a prática de crimes;

b) Controlar a entrada, presença e saída de pessoas nos locais de acesso vedado ou condicionado ao público. (…)

A 2ª e 3º réus estavam obrigados a garantir o funcionamento efectivo do sistema de segurança – art. 3º, nº 1, do DL 101/2008.

No caso, conforme clausulado no aludido contrato, o funcionamento do sistema de segurança era assegurado por um vigilante, que estava ao serviço da ré "GG": era este vigilante quem, munido do equipamento (raquete) de detecção de metais, procedia ao controlo de acesso à discoteca da 2ª ré.

O problema, como ficou provado, é que esse vigilante cumpriu deficientemente esse serviço de controlo, utilizando o equipamento de detecção de metais apenas intermitentemente, não o fazendo em relação a todos os clientes, o que permitiu que a navalha, que veio a ser utilizada depois pelo 1º réu, não tivesse sido detectada à entrada e tivesse sido levada para o interior do estabelecimento.

O referido vigilante, no exercício da sua actividade de segurança, não actuou, por isso, com o cuidado e a diligência – de um homem normal, medianamente prudente e sagaz – que lhe eram exigíveis em face das circunstâncias do caso, tendo em conta a natureza das suas funções: se a entrada no estabelecimento dos réus seria vedada a quem recusasse ser submetido a controlo com o referido equipamento, é evidente que a utilização deste não poderia ser intermitente, devendo ser usado, como poderia sê-lo, em todos os clientes.

Só assim esse controlo seria eficaz e apto a prevenir – como se pretendia com a imposição legal do sistema de segurança – a entrada de objectos que poderiam comprometer a integridade física dos utentes do estabelecimento.

Esse vigilante actuou, pois, censuravelmente e com culpa (art. 487º, nº 2, do CC).

Assim e como decorre também do que acima se expôs, não oferece dúvidas a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil, impendendo sobre o vigilante o dever de indemnizar que deriva dessa sua omissão culposa.

Por outro lado, já se afirmou que o referido vigilante actuava, na altura, "sob as ordens directas e responsabilidade" da ré "GG", sendo, pois, clara a verificação dos elementos que caracterizam a relação de comissão: a actuação por conta de outrem; a existência de uma relação de subordinação ou dependência e até a escolha do comissário por parte do comitente[10],[11].

A ré "GG" responde, assim, pelos danos decorrentes da actuação negligente do referido vigilante, seu comissário, nos termos do art. 500º, nº 1, do CC.

Por força do contrato de seguro que celebrou com a ré "PP" a ré "GG" transferiu para esta a responsabilidade pelos danos causados a terceiros decorrentes do exercício da sua actividade, até ao montante de € 250.000,00.

Consequentemente, esta seguradora responde também, solidariamente, pelo pagamento da indemnização fixada.

B. Revista da autora

1. A autora começa por discordar do entendimento adoptado no acórdão recorrido de não poder ser considerado neste processo o depoimento prestado pela testemunha LL no processo crime que correu termos contra o 1º réu, depoimento que, a seu ver, era imprescindível para a descoberta da verdade, não tendo sido possível, todavia, notificar e fazer comparecer essa testemunha no julgamento destes autos.

Não tem razão.

Conforme dispõe o art. 421º, nº 1, do CPC, os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte (…).

A "transportabilidade" de depoimentos e perícias depende, assim, destes requisitos: identidade da parte contra quem a prova é pela segunda vez invocada; audiência contraditória no primeiro processo; vontade da parte beneficiada pela prova; natureza jurisdicional do primeiro procedimento[12].

No caso, sendo evidente a verificação dos demais requisitos, não o é menos a não satisfação do primeiro, uma vez que existem nesta acção sujeitos processuais, contra quem a prova é apresentada, que não foram parte na primeira causa, ou seja, no processo crime.

Não sendo de exigir a identidade das partes em ambos os processos – aquele em que a prova foi produzida e aquele em que a prova é invocada – é indispensável que a parte contra quem a prova é invocada tenha sido parte no primeiro processo, o que não ocorre neste caso, uma vez que a 2ª e o 3º réus aqui demandados e também os intervenientes não foram parte no processo crime.

Esta questão tem, pois, de improceder.

2. A recorrente invoca a nulidade da cláusula do contrato de seguro celebrado entre a ré "DD" e a ré "HH", que fixou em € 15.000,00 o limite da cobertura por responsabilidade civil extracontratual, apoiando-se em diversos fundamentos, que alinha sucessiva e subsidiariamente.

2.1. Em primeiro lugar, defende que tal cláusula é nula, por ser contrária à natureza e fundamentos do seguro obrigatório, devendo operar-se a redução do contrato de seguro, que deve subsistir, como contrato válido, mas sem a aludida cláusula.

Esta questão já acima foi apreciada (ponto A.5.), tendo-se preconizado a solução agora defendida pela recorrente quanto à nulidade da referida cláusula e manutenção do conteúdo restante do contrato de seguro (não excluído no acórdão recorrido).

Concluiu-se, porém, que a ré "HH" deveria ser responsabilizada, mas tão só pelo montante de € 150.000,00, que era o valor máximo garantido pelo seguro.

A recorrente, neste ponto, manifesta entendimento diferente, defendendo (nas alegações, que não nas conclusões) que a referida seguradora deveria ser condenada (solidariamente) no pagamento da indemnização fixada, ou seja, no montante de € 165.000,00.

Não explica, porém, como chega a este montante, que não deriva da simples exclusão da cláusula de limitação da cobertura, excedendo o valor máximo seguro.

Daí que esta questão colocada pela recorrente não possa proceder inteiramente, reiterando-se aqui a solução que acima se encontrou.

2.2. Subsidiariamente, a recorrente invoca a nulidade da aludida cláusula, por limitar de modo directo a responsabilidade (art. 18º da LCCG), ou a sua exclusão do contrato, "por estar inserida num formulário após a assinatura do segurado" (art. 8º, al. d) do referido diploma), concluindo, como no caso anterior, que a seguradora deve ser condenada no pagamento da indemnização integral fixada nos autos.

Afigura-se-nos que a apreciação desta questão deve considerar-se prejudicada, tendo em conta a invocação subsidiária, uma vez que já foi reconhecida a invalidade da dita cláusula e por a consequência que derivaria da nulidade por estes outros motivos ser sempre a mesma: exclusão da cláusula e condenação da seguradora limitada pelo capital seguro.

De todo o modo, será de acrescentar, como acima foi sublinhado, que a condição particular que limitou a cobertura por responsabilidade civil não foi predisposta unilateralmente pela seguradora, não estando sujeita ao regime das cláusulas contratuais gerais.

Por outro lado, a razão assente no art. 8º, al. d) desse regime constitui questão nova que, podendo ser conhecida oficiosamente, não tem de ser aqui apreciada por não se encontrar minimamente alicerçada na factualidade provada.

3. Prejudicados se nos afiguram também os fundamentos a seguir alegados pela recorrente.

Com efeito, não parece que o evento dos autos – a violação de regras de segurança que permitiu a introdução da arma branca na discoteca e a sua posterior utilização, com ela tendo sido causadas lesões corporais no pai da autora e a morte deste – possa ser enquadrado na cobertura de acidentes pessoais, para o qual não foi estabelecido um limite de capital específico.

O caso é, evidentemente, de responsabilidade civil.

De todo o modo, mesmo a seguir-se o entendimento da recorrente, este sempre teria de conformar-se com o limite máximo de cobertura, já considerado na solução que acima se preconizou. 

Por outro lado, tendo sido reconhecida a nulidade da cláusula que limita a cobertura por responsabilidade civil, não tem cabimento discutir-se a oponibilidade dessa cláusula em relação à lesada.

4. Por fim, a recorrente defende que a ré "GG" e a sua seguradora, a "PP Seguros" devem ser também responsabilizadas pelo pagamento da indemnização arbitrada à autora.

Esta responsabilidade já acima foi reconhecida (que não inteiramente pelas razões invocadas pela recorrente).

O recurso da autora deve, pois, proceder nesta parte.

V.

Em face do exposto, concede-se parcial provimento ao recurso dos réus "DD " e EE e da autora AA e, em consequência:

- Mantém-se a condenação solidária dos réus "DD Bar", EE e CC decretada no acórdão recorrido – ponto 1, a) e b);

- Altera-se o decidido nos pontos 3, 4 e 5, condenando-se as rés "GG", "PP" e "HH" – esta até ao limite de € 150.000,00 –, em solidariedade com os demais réus condenados, a pagarem à autora a indemnização, acrescida de juros de mora, tal como foram fixados no acórdão recorrido.

Custas da acção pela autora e réus condenados, na proporção do decaimento.

Custas dos recursos da autora a cargo desta e dos réus condenados (excluindo o 1º réu), na proporção de 1/4 e 3/4, respectivamente;

Custas do recurso dos réus "DD" e EE a cargo destes e dos demais réus condenados (excluindo o 1º réu), na proporção de metade para aqueles e estes.

                                               Lisboa, 26 de Fevereiro de 2019

Pinto de Almeida (Relator)

José Rainho

Graça Amaral

_______________
[1] Proc. nº 57578/11.0TBBRG.G1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 266)
Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral
[2] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª ed., 890 e 894.
[3] Cfr. Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, 676; Ana Serra Calmeiro, Das Cláusulas Abusivas no Contrato de Seguro, 16 e 17.
[4] Ana Serra Calmeiro, Ob. Cit. 50.
[5] Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, 677.
[6] Ana Serra Calmeiro, Ob. Cit. 51.
[7] Cfr. A. Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão da Responsabilidade Civil, 171.
[8] Cfr. Menezes Cordeiro, Ob. Cit., 461; Joana Galvão Teles, Liberdade contratual e seus limites, em Temas de Direito dos Seguros (Coord. de Margarida Lima Rego), 2ª ed., 115.
[9] Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., 267: A. Pinto Monteiro, Ob. Cit., 442; C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed. (por A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto), 632 e segs; Pedro Eiró, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, 728.
[10] Cfr. Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil por Facto de Terceiro, 267.
[11] A relação de comissão não existe já entre a ré "DD" e a ré "GG" por, desde logo, não se verificar ou, pelo menos, não ter ficado provada uma situação de subordinação ou dependência entre ambas. Acresce que, mesmo que se verificasse esta situação, a existência de culpa, por parte da ré "DD", levaria a excluir a imputação pelo risco a essa comitente – cfr. Sofia Sequeira Galvão, Reflexão acerca da Responsabilidade do Comitente no Direito Civil Português, 77 e 105; também Antunes Varela, Ob. Cit., 639.
[12] Rui Pinto, Valor extraprocessual da prova penal na demanda cível, em Colectânea de Estudos de Processo Civil, 93; cfr. também Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª ed., 234.