Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1769/12.5TBCTX.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PRESSUPOSTOS
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
UNIÃO DE FACTO
CONTA BANCÁRIA
CONTA SOLIDÁRIA
PRESUNÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS.
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS ( ATOS BANCÁRIOS ) / CONTA BANCÁRIA / COMPENSAÇÃO.
Doutrina:
- António Menezes Cordeiro, «Depósito Bancário e Compensação», C.J./ S.T.J., Ano X, T1, 2002, 5 a 10.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, revista e actualizada (reimpressão), Almedina, Coimbra, 2003, 480 e ss..
- Armindo Saraiva Matias, Direito Bancário, Coimbra Editora, 1998, 101.
- Carlos Lacerda Barata e Fernando Conceição Nunes, «Direito Bancário», in Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, II, 22.
- Diogo Leite de Campos, A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir e Enriquecimento, 317 e 412.
- F. M. Pereira Coelho, «O enriquecimento e o Dano», Separata dos anos XV e XVI da Ver de Direito e Estudos Sociais, 2.ª reimpressão, Coimbra 2003, 24 e ss. e 36 e ss..
- Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, 195, 197, 198, 199, 200, 205.
- José Ibraimo Abudo, «Do Contrato de Depósito Bancário», Instituto de Cooperação Jurídica/F.D.U.L., 2004, 157.
- Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 2.ª edição, Almedina, 381, 395.
- Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Almedina, 491-493, 495 e 496, 501 (nota 1), 505.
- Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, 1998, 131, 132 134-135, 237.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2012, 7.ª edição, 263-271.
- Pinto Coelho, in B.M.J., nº 304, 449; «Operações e Banco e Depósito Bancário», R.L.J., 81, 227.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” anotado, Volume I, 4.ª edição, 454 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, 473.º, N.ºS 1 E 2, 474.º, 512.º, 516.º, 533.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 24/4/1985, B.M.J. 346.º, 254; DE 28/10/1993 (PROC. N.º 083871), DE 22/06/2004 (PROCESSO N.º 1688/04-1), DE 25/11/2008 (PROCESSO N.º 08A3501), DE 02/02/2010 (PROC. N.º 1761/06.97UPRT.S1), DE 14/10/2010 (PROCESSO N.º 5938/04.3TCLRS.L1.S1), DE 19/02/2013 (PROCESSO N.º 2777/10.6TBPTM.E1.S1), DE 20/03/2014 (PROCESSO N.º 2152/09.5TBBRG.G1.S1) E DE 29/04/2014 (PROCESSO N.º 246/12.9T2AND.C1.S1), ACESSÍVEIS ATRAVÉS DE WWW.DGSI.PT .
-DE 26/10/2004 (PROC. N.º 04A3101), DE 06/10/2005 (PROC. N.º 04B2753), DE 15/03/2012 (PROC. N.º 492/07.TBTNV.C2.S1), E DE 04/06/2013 (PROC. N.º 226/11.1TVLSB.L1.S1).
Sumário :
I - Para que se constitua uma obrigação de restituir fundada no enriquecimento, não basta que uma pessoa tenha obtido uma vantagem patrimonial, à custa de outrem.

II - É ainda necessário que não exista uma causa justificativa para essa deslocação patrimonial, quer porque nunca a houve, por não se ter verificado o escopo pretendido, ou, porque, entretanto, deixou de existir, devido à supressão posterior desse fundamento.

III - A falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elemento constitutivo do direito à restituição.

IV - Cabe ao autor do pedido de restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da prova dos respetivos factos integradores ou constitutivos, incluindo a falta de causa justificativa desse enriquecimento.

V - Não tendo o autor demonstrado a falta de causa justificativa, improcede o pedido de restituição, com fundamento no enriquecimento sem causa.

VI - Sendo autor e ré co-titulares de conta bancária solidária, presume-se, nos termos dos art.ºs 512º e 516º do Cód. Civil, que participam no crédito em partes iguais.

VII - E tendo a última visto o seu direito satisfeito para além do que lhe cabia na relação interna entre os concredores, terá de satisfazer ao primeiro a parte que lhe pertence no crédito comum (art.º 533º do Cód. Civil), ou seja, metade do que levantou (€75 000,00) e utilizou na compra do imóvel.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório


I AA, divorciado, residente em …, ..., instaurou acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra BB, viúva, residente no ..., alegando, em síntese, que:

Viveu em união de facto com a Ré, desde Dezembro de 1999 a Setembro de 2011, período durante o qual partilharam casa, leito e mesa, provendo em conjunto à satisfação das suas necessidades de vida.

No âmbito dessa vivência, perante o receio frequentemente manifestado pela Ré de vir a ser posta fora de casa pela filha do Autor, se lhe sobrevivesse, acedeu a financiar com €150 000,00 a aquisição de um imóvel em nome da Ré.

Foi sempre claro e assumido pelo Autor e pela Ré que esse financiamento era efectuado no âmbito e subsistência dessa vivência em comum e que se porventura essa união terminasse antes da morte de um deles, à Ré caberia entregar ao Autor o imóvel adquirido ou o montante do financiamento.

Adquirido o imóvel, em 2008, em nome exclusivo da Ré, passou a ser utilizado em comum até 2011, altura em que a Ré fez cessar a convivência, nele passando a residir.

O financiamento feito configura um empréstimo nulo, por falta de forma, o que obriga a Ré a restituir o referido montante que sempre será devido, a título de enriquecimento sem causa.

Com tais fundamentos, concluiu por pedir a condenação da Ré a devolver-lhe a importância de €150 000,00, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde a citação.

A Ré contestou, aceitando a convivência análoga à de cônjuges, mas contrapôs diferente versão factual quanto à entrega do aludido montante, sustentando tratar-se de doação feita pelo Autor, sem quaisquer condições, e, desse modo, concluindo pela improcedência da acção e inerente absolvição do pedido.

Saneado o processo, com delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova, e realizada a audiência final, foi proferida sentença (em 17 de Junho de 2015) que, na procedência da acção e com base no enriquecimento sem causa, condenou a Ré a restituir ao Autor a importância de €150 000,00, acrescida de juros moratórios, à taxa anual de 4%, desde a citação.

Discordando dessa decisão, apelou a Ré, com êxito, tendo a Relação de Évora revogado a sentença da 1ª instância e decidido absolver a Ré do pedido.

Agora inconformado, interpôs o Autor recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as seguintes conclusões:

1.  Autor e Ré viveram em união de facto, situação que cessou em setembro de 2011.

2. O Autor providenciou que uma conta solidária, em nome de ambos, ficasse provisionada com o montante de € 150.000,00, mediante três depósitos de três cheques, de € 50.000,00 cada um, por si efetuados nos dias 28 de Janeiro, 01 de Fevereiro e 25 de Fevereiro de 2008, sacados sobre a conta pessoal, de sua única titularidade, no Banco CC.

3. Provou-se, assim, que entre Janeiro e Fevereiro de 2008, o Autor possibilitou à Ré o acesso à quantia de € 150.000,00, seus, no âmbito da solidariedade da conta bancária provisionada, e no âmbito e no decurso da união de facto existente.

4. A Ré fez a transferência da quantia de € 150.000,00 que se encontrava depositada na conta solidária em nome de A. e Ré para uma conta pessoal da Ré, em 03 de Março de 2008, isto é, passados seis dias do último depósito do Autor na conta solidária de ambos.

5. A Ré adquiriu, exclusivamente para si e integrou unicamente no seu, dela, património, um apartamento no ..., cujo preço foi pago, com os € 150.000,00 que a Ré tinha transferido da supra aludida conta solidária para a sua conta pessoal e mais € 5.000,00 pertencentes à Ré.

6. Se resultou provado que o Autor, no âmbito e no decurso de uma união de facto entre ambos, abriu uma conta solidária com a Ré, que provisionou com €150.000,00 com cheques sacados da sua conta pessoal, sendo o proprietário dessa importância, e que passados seis dias, a Ré transferiu a referida importância para a sua conta pessoal e se nenhum negócio jurídico válido ou qualquer razão atendível ou subsistente se provou, não se justifica que a Ré, finda a união de facto, se enriqueça com o montante de €150.000,00 à custa do empobrecimento, em igual montante, do Autor.

7. Tanto mais que o que se apurou não foi uma transmissão voluntária da referida quantia do património do Autor para o património da Ré, o que se provou foi que o Autor transferiu fundos seus para uma conta bancária que igualmente possibilitava fosse movimentada pela Ré e que, seis dias depois do último provisionamento dessa conta solidária, foi a Ré quem, por si, transferiu esses fundos – que sabia serem do Autor! – para uma conta exclusivamente sua.

8. Ou seja, provou-se que a Ré se apropriou de € 150.000,00 que sabia não serem seus (não que o Autor lhe deu essa quantia).

9. Essa apropriação, mediante o ato unilateral da Ré constitui prova bastante da falta de causa justificativa do enriquecimento da Ré à custa do Autor.

10.   Tal como o ato de furto prova por si só a falta de causa do enriquecimento do ladrão e o empobrecimento do furtado, sem justa causa.11.

11. De qualquer forma, sempre a cessação da união de facto entre A. e Ré, constitui facto que consubstancia a perda da causa para a deslocação patrimonial, fundamentando a restituição pedida.

12. A falta de causa justificativa pode decorrer da circunstância de nunca ter existido ou, tendo existido, se ter, entretanto, perdido.

13. A decisão recorrida, ao não dar relevância aos factos constantes das conclusões anteriores, errou e violou o disposto no art. 473.º do Código Civil.


A Ré ofereceu contra-alegação a pugnar pelo insucesso do recurso e, colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II - Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, nas instâncias, é a seguinte:

A) A partir de Dezembro de 1999, Autor e Ré passaram a coabitar juntos, numa moradia do Autor na …, Cartaxo, partilhando casa, leito e mesa, como se marido e mulher se tratasse;

B) Em Janeiro de 2008, Autor e Ré abriram uma conta bancária solidária, em nome de ambos, movimentável indiferentemente por qualquer deles, no Banco DD [Conta nº 29…].

C) O Autor providenciou que a referida conta ficasse provisionada com o montante de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) mediante três depósitos de €50.000,00 cada, por si efectuados nos dias 28 de Janeiro, 01 de Fevereiro e 25 de Fevereiro de 2008 de três cheques, cada um no montante referido, sacados sobre a conta pessoal, de sua única titularidade, no Banco CC.

D)   Em 03 de Março de 2008, a Ré transferiu a referida quantia de €150.000,00 mais €142,43, referente a juros que entretanto se venceram, da conta solidária do Banco DD, para a conta nº 29… do Banco DD, balcão do Cartaxo, da qual a Ré e o seu filho EE eram titulares.

E) No dia 07 de Setembro de 2007, a Ré, na qualidade de promitente compradora e “FF - Construções, Lda.”, na qualidade de promitente vendedora, outorgaram o escrito de fls. 35 a 40 “contrato promessa”, mediante o qual a Ré se prometeu a comprar e a “FF” prometeu vender, pelo preço de €155.000,00, a fracção autónoma que vier a corresponder ao 2º andar direito, do prédio urbano em construção, com o Alvará de Licença de Construção nº 1…/2006, sito na Rua …, da freguesia e concelho de Cartaxo.

F) Com a outorga do contrato referido no ponto anterior a Ré entregou à “FF - Construções, Lda.”, a quantia de €10.000,00 a título de sinal.

G) Em 18 de Outubro de 2008, a Ré e a referida “FF - Construções, Lda.”, subscreveram um “aditamento ao referido “contrato promessa” [fls.43 e 44] no cláusula inseriram uma cláusula de reforço do sinal da quantia de €10.000,00, quantia essa que a Ré entregou na altura à “FF - Construções, Lda.

H)   A aquisição do imóvel referido no ponto anterior foi registada provisoriamente me nome de EE, pela Ap. Nº 13… de 02/02/2009 na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo.

I) Em 15 de Outubro de 2007, através do escrito de fls. 32 a 34, EE, conferiu poderes à Ré para, em seu nome, “.. prometer vender ou vender, prometer comprar ou comprar quaisquer bens imóveis, pagar ou receber o preço e deles dar quitação outorgar e assinar contratos de promessa e a competentes escritura, requerer quaisquer actos de registo predial provisórios ou definitivos, averbamentos ou cancelamentos requere tudo o que for necessário junto de Repartição de Finanças, Câmara Municipal…”.

J)  No dia 24 de Março de 2009, a Ré celebrou, como adquirente, no Cartório do Notário GG, no Cartaxo, escritura de compra e venda da fracção autónoma, individualizada pela letra “H”, correspondente à habitação do segundo andar direito do Bloco C, com um lugar de estacionamento e uma arrecadação na cave do mesmo bloco, do prédio urbano sito na Rua …, na cidade, freguesia e concelho do Cartaxo, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 67… e descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o nº 35… daquela freguesia, com a inscrição da constituição da propriedade horizontal registada pela apresentação número um, de 18 de Abril de 2008.

K) O preço da referida aquisição foi de €155.000,00.

L) Esse preço foi pago, com os €150.000,00 que a Ré tinha transferido da sua conta conjunta para a sua conta pessoal e mais €5.000,00 pertencentes à Ré.

M) Desde então Autor e Ré passaram a utilizar também, sempre em conjunto e no âmbito da sua vivência análoga à dos cônjuges, a referida fracção, sempre que algum deles, precisava de se deslocar ao Cartaxo e aí pernoitar ou passar algum tempo.

N) Em Setembro de 2011, cessou a vivência em comum, entre Autor e Ré.


*


Não foram considerados provados os seguintes factos:

- O financiamento de €150.000,00 feito pelo Autor à Ré para aquisição do imóvel, destinava-se a garantir, na eventualidade de óbito do Autor antes do decesso da Ré, que esta não ficasse desamparada e sem ter onde habitar, em face de eventual atitude hostil da filha e herdeira do Autor (carreado do artº 8º da petição inicial).

- Foi assumido por ambos que não fora a união de facto, o Autor não financiaria a aquisição do imóvel, e que, se porventura a união de facto terminasse antes da morte de um dos parceiros desapareceria o pressuposto do financiamento, devendo a Ré entregar ao Autor, ou o imóvel adquirido, ou o montante do financiamento (carreado dos artºs 9º e 10º da p.i.);

- O Autor mercê da relação de profundo afecto com o filho da Ré - EE – decidiu oferecer-lhe uma casa que não ultrapassasse o valor de €150.000,00, e ambos, Autor e Ré, acabaram por escolher essa casa que é precisamente a casa dos autos (carreado do artº25º da contestação);

- e foi nesse pressuposto que foi outorgada a procuração referida no ponto 2.1.9. (carreado do artº 26º da contestação);

- A abertura da conta referida e os depósitos foram feitos de acordo entre Autor e Ré e o filho EE, para cumprimento da oferta da casa (carreado do artº 29º da contestação);

- e foi igualmente por acordo entre os três que a Ré transferiu a quantia de €150.142,43 (carreado do artº 30º da contestação);

- O EE, com o fundamento que tinha a sua vida organizada no …, insistiu com o Autor, para ao invés do imóvel em causa ser comprado para si, ser antes comprado e oferecido à sua mãe e ora Ré (carreado do artº 34º da contestação);

- Após a aquisição do imóvel a Ré, exclusivamente a suas expensas passou a efectuar todas as despesas inerentes ao mesmo (consumos de água, luza, gás condomínio, seguros) e realizou algumas obras e mandou instalar equipamentos (carreado do artº 41º da contestação);

- O Autor entregou a quantia de €150.000,00 à Ré, com a obrigação de proceder à sua restituição logo que conseguisse vender a casa que tinha no Cacém.


         III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão do presente recurso de revista passam, atentas as conclusões da alegação do Recorrente (art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil[1]), pela análise e resolução da única questão jurídica por ele colocada a este tribunal e que consiste em determinar se a Recorrida deve restituir-lhe a peticionada quantia de €150 000,00.

O acórdão recorrido, divergindo da sentença, concluiu pela inverificação do enriquecimento sem causa, absolvendo, por isso, a Recorrida do pedido de restituição formulado pelo Recorrente que se insurge contra tal veredicto, persistindo na argumentação de que se encontram preenchidos os requisitos do enriquecimento sem causa e, por consequência, pugna pela condenação da Recorrida.

Vejamos, então, se lhe assiste razão.

A obrigação de restituir fundada no injusto locupletamento, à custa alheia, pressupõe, como resulta do artigo 473º, nº 1, do Cód. Civil, a verificação simultânea de três requisitos: a existência de um enriquecimento; obtenção deste à custa de outrem; e falta de causa justificativa dessa valorização patrimonial[2].

O enriquecimento representa uma vantagem ou benefício, de carácter patrimonial e susceptível de avaliação pecuniária, produzido na esfera jurídica da pessoa obrigada à restituição e traduz-se numa melhoria da sua situação patrimonial, «encarada sob dois ângulos: o do enriquecimento real, que corresponde ao valor objectivo e autónomo da vantagem adquirida; e o do enriquecimento patrimonial, que reflete a diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efectiva (real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado (situação hipotética)»[3].

A vantagem patrimonial obtida por alguém tem como contrapartida, em regra, uma perda ou empobrecimento efectivo de outrem, ou seja, ao enriquecimento de um corresponde o empobrecimento de outro, existindo entre esses dois efeitos uma «correlação, no sentido de que o facto ou factos que geram um geram também o outro. Numa palavra, enquanto o património de um valoriza, aumenta ou deixa de diminuir, com o outro dá-se o inverso: desvaloriza, diminui ou deixa de aumentar»[4].

Essa deslocação patrimonial, quando realizada, sem causa justificativa, obriga à restituição que tem por objecto o que for, indevidamente, recebido, ou o que for recebido, por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (artigo 473º, n.º 2, do Cód. Civil). Prevêem-se aí, numa enumeração exemplificativa destinada a dar uma linha de rumo interpretativa, três situações especiais de enriquecimento desprovido de causa: condictio in debiti (repetição do indevido), condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir) e condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto)[5].

A noção de falta de causa do enriquecimento[6] é, contudo, muito controvertida e difícil de definir, inexistindo uma fórmula unitária que sirva de critério para a determinação exaustiva das hipóteses em que o enriquecimento deve considerar-se privado de justa causa. Perante tais dificuldades, há que saber, em cada caso concreto, «se o ordenamento jurídico considera ou não justificado o enriquecimento e se portanto acha ou não legítimo que o beneficiado o conserve»[7] ou, então, se «o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, ou se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa”[8].

Pode, assim, dizer-se que «o enriquecimento carece de causa, quando o Direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios jurídicos, justifique a realizada deslocação patrimonial», hipótese em que a lei «obriga a restabelecer o equilíbrio patrimonial por ele rompido, por não desejar que essa vantagem perdure, constituindo o «accipiens» no dever de restituir o recebido». Deste modo, operando-se deslocação patrimonial mediante uma prestação, a causa há-de ser a relação jurídica que essa prestação visa satisfazer, e se esse fim falta, a obrigação daí resultante fica sem causa.

De frisar, no entanto, que, sendo o enriquecimento fonte autónoma da obrigação de restituir, embora subsidiária (art.º 474º do Cód. Civil), a falta de causa da atribuição ou vantagem patrimonial que integra o enriquecimento terá de ser alegada e demonstrada por quem invoca o direito à restituição dela decorrente, em conformidade com as exigências das regras gerais sobre os ónus de alegação e prova (art.º 342º do Cód. Civil). A mera falta de prova da existência de causa da atribuição não é suficiente para fundamentar a restituição do indevidamente pago, sendo necessário provar também que efectivamente a causa falta[9].

No caso, provou-se que o Recorrente e a Recorrida viveram em união de facto durante cerca 12 anos (de 1999 a 2011), partilhando casa, leito e mesa, como se marido e mulher fossem, tendo nesse âmbito, em 2008, aberto uma conta bancária solidária, em nome de ambos, movimentável indiferentemente por qualquer deles, conta que o primeiro providenciou por provisionar com o montante de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), dinheiro esse que veio a ser utilizado, em Março de 2009, na compra da fracção autónoma, individualizada pela letra “H”, correspondente à habitação do segundo andar direito do Bloco C do prédio urbano sito na Rua …, Cartaxo, que foi utilizada em conjunto por ambos até à cessação da vivência em comum (Setembro de 2011).

Não se provou que, como alegado pelo Recorrente, a referida deslocação patrimonial constituiu um financiamento feito por ele à Recorrida, para aquisição do imóvel, visando garantir, na eventualidade de óbito anterior ao decesso dela, que esta não ficasse desamparada e sem ter onde habitar, ou sequer que foi assumido por ambos que se porventura a união de facto terminasse antes da morte de um dos parceiros desapareceria o pressuposto do financiamento, devendo a Recorrida entregar-lhe o imóvel adquirido, ou o montante do financiamento.

Não logrou, pois, o Recorrente provar, como lhe competia, segundo as regras de repartição do ónus probatório, a alegada falta de causa justificativa, pelo que não pode acompanhar-se o Recorrente na sua pretensão de fazer derivar o direito à restituição da mera demonstração de uma deslocação patrimonial, desconsiderando os demais requisitos legalmente exigidos para a existência da obrigação de restituir, designadamente a prova da falta de causa da deslocação.

Aliás, a vivência em união de facto criou necessariamente entre Recorrente e Recorrida um espectro de interesses e de fins comuns, quer a nível pessoal, quer a nível patrimonial, que, finda a relação, nem sempre são restituíveis mediante o instituto do enriquecimento sem causa.

Com efeito, atento à realidade sociológica que o rodeia, o legislador português tem vindo, ao longo das últimas décadas, a adoptar um conjunto de medidas de protecção desta convivência análoga ao casamento, tendo o seu esforço culminado na elaboração de um diploma legal que se ocupa exclusivamente da protecção das uniões de facto: a Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, mais tarde revogada pela Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, alterada entretanto pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto.

Porém, e talvez devido à informalidade subjacente à união de facto, o legislador, ao invés do que sucede com o casamento, não ousou prever uma disciplina patrimonial aplicável especificamente aos membros da união de facto, originando, desta forma, um conjunto de incertezas nesta área tão próspera em litígios, nomeadamente quando está em causa o fim da comunhão plena de vida entre duas pessoas que nada preveniram, para tal efeito, na salvaguarda de aspectos relevantes e merecedores de uma tutela mais aprofundada, como sejam, a titularidade dos fundos da conta bancária colectiva e a aquisição do imóvel em nome apenas de um dos conviventes, sendo certo que são desconhecidos também os moldes em que terá decorrido, sob o ponto de vista patrimonial, essa convivência, nomeadamente o contributo de cada um para essa comunhão de vida, não se ignorando que, na maior parte dos casos, a comunhão de vida acaba por provocar uma interpenetração de facto dos bens e implica que os conviventes levem a cabo realizações económicas conjuntas.

Tudo isto impede, como atrás se referiu, que possa com propriedade dizer-se, por um lado, que ocorreu uma efectiva deslocação patrimonial em benefício da Recorrida e detrimento do Recorrente (ou melhor, à custa deste), e, por outro que se verificou um enriquecimento daquela que, por ser substancialmente ilegítimo ou injusto, e por isso desaprovado pelo direito, deva implicar a obrigação de restituição da totalidade da quantia peticionada.

Não obstante isso e tomando ainda em consideração que a Recorrida não logrou provar, como alegou, que o dinheiro lhe foi doado, nem tal decorre apenas da sua mera entrega para depósito na conta bancária colectiva, há que atentar na natureza desta (colectiva solidária), caracterizada, como se sabe, pela faculdade conferida a cada um dos seus titulares de exigir a prestação integral, ou seja, o reembolso pelo banco depositário de toda a quantia que lhe foi entregue[10], vigorando tal regime independentemente de quem seja, de facto ou de direito, o dono dos valores ou fundos nela depositados.

Aliás, a titularidade da conta não predetermina a propriedade dos fundos nela contidos, que pode pertencer apenas a algum ou alguns dos seus titulares ou mesmo até porventura a um terceiro, não havendo, assim, que confundir a titularidade da dita conta com a propriedade dos valores/importâncias nela depositadas[11]. Porém, nas relações internas, desconhecendo-se o acordo ou a relação jurídica de que resultou a sua abertura, há que presumir, nos termos dos art.ºs 512º e 516º do Cód. Civil, que Recorrente e Recorrida participam no crédito em partes iguais, presunção que não é sequer ilidida pela circunstância de ter sido o Recorrente a providenciar por provisionar a conta, dado continuar a desconhecer-se a propriedade desses fundos e isto, não obstante provindos de conta da sua titularidade, o que, pelas razões já antes sublinhadas, é insuficiente para conduzir ao reconhecimento desse direito em exclusivo ao Recorrente.

Neste contexto, participando ambos, em partes iguais, no referido crédito e tendo a Recorrida visto o seu direito satisfeito para além do que lhe cabia na relação interna entre os concredores, terá de satisfazer ao Recorrente a parte que lhe pertence no crédito comum (art.º 533º do Cód. Civil), ou seja, metade do que levantou (€75 000,00) e utilizou na compra do imóvel.

Nesta conformidade, ainda que por razões não coincidentes com as invocadas, assiste razão, em parte, ao Recorrente para se insurgir contra o decidido pela Relação.


*


Pode, assim, concluir-se o seguinte:

1 - Para que se constitua uma obrigação de restituir fundada no enriquecimento, não basta que uma pessoa tenha obtido uma vantagem patrimonial, à custa de outrem.

2 - É ainda necessário que não exista uma causa justificativa para essa deslocação patrimonial, quer porque nunca a houve, por não se ter verificado o escopo pretendido, ou, porque, entretanto, deixou de existir, devido à supressão posterior desse fundamento.

3 - A falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elemento constitutivo do direito à restituição.

4 - Cabe ao autor do pedido de restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da prova dos respetivos factos integradores ou constitutivos, incluindo a falta de causa justificativa desse enriquecimento.

5 - Não tendo o autor demonstrado a falta de causa justificativa, improcede o pedido de restituição, com fundamento no enriquecimento sem causa.

6 - Sendo autor e ré co-titulares de conta bancária solidária, presume-se, nos termos dos art.ºs 512º e 516º do Cód. Civil, que participam no crédito em partes iguais.

7 - E tendo a última visto o seu direito satisfeito para além do que lhe cabia na relação interna entre os concredores, terá de satisfazer ao primeiro a parte que lhe pertence no crédito comum (art.º 533º do Cód. Civil), ou seja, metade do que levantou (€75 000,00) e utilizou na compra do imóvel.


 IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se conceder, em parte, a revista, revogando-se o acórdão recorrido e, na parcial procedência da acção, condena-se a Ré a restituir ao Autor a quantia de €75 000,00 (setenta e cinco mil euros), acrescida de juros moratórios desde a citação, à taxa anual de 4%.


 Custas (em todas as instâncias) pelo Autor e pela Ré, na proporção de metade para cada um.


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Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

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Lisboa, 24 de Março de 2017


António Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

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[1] Na versão aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, uma vez que o recurso tem por objecto decisão proferida já depois de 01 de Setembro de 2013 e o processo é posterior a 01 de Janeiro de 2008 (cfr. os seus art.ºs 5º, n.º 1, 7º, n.º 1, e 8º).
[2] Cfr, neste sentido, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 491, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, pág. 195, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, 2004, págs. 480 e segts, e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 381.
[3] Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, págs. 492 e 493, e F.M. Pereira Coelho, O enriquecimento e o dano, separata dos anos XV e XVI da Ver de Direito e Estudos Sociais, 2ª reimpressão, Coimbra 2003, págs. 24 e sgts e 36 e sgts.
[4]Cfr., neste sentido, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, págs. 197 e 198, e Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, págs. 495 e 496.
[5] Cfr, a este propósito, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, pág. 205, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 505, e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 395.
[6] Cfr, sobre as várias noções e modalidades de causa, com relevância jurídica, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2012, 7ª edição, págs. 263 a 271.
[7] Cfr., neste sentido, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, págs. 199 e 200.

[8] Cfr, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Volume I, 4ª edição, págs. 454 e sgts e Diogo Leite de Campos, A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir e Enriquecimento, págs. 317 e 412.

[9] Cfr, neste sentido, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª edição, revista e actualizada (reimpressão), Almedina, Coimbra, 2003, 482 e 483, nota (1), Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 501, nota (1), e, entre outros, os acórdãos do STJ, de 24/4/1985, BMJ 346º, pág. 254, de 28/10/1993 (proc. 083871), de 22/06/2004 (processo 1688/04-1), de 25/11/2008 (processo 08A3501), de 02/02/2010 (proc. 1761/06.97UPRT.S1), de 14/10/2010 (processo 5938/04.3TCLRS.L1.S1), de 19/02/2013 (processo 2777/10.6TBPTM.E1.S1), de 20/03/2014 (processo 2152/09.5TBBRG.G1.S1) e de 29/04/2014 (processo 246/12.9T2AND.C1.S1), acessíveis através de www.ggsi.pt.
[10] Cfr., a este propósito, António Menezes Cordeiro, Depósito Bancário e Compensação, CJ de acs. do STJ, Ano X, T1, 2002, págs. 5 a 10, Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, 1998, págs. 131, 132 e 237, Carlos Lacerda Barata e Fernando Conceição Nunes, Direito Bancário, in Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, II, pág. 22, e Armindo Saraiva Matias, Direito Bancário, Coimbra Editora, 1998, pág. 101, e entre outros, os acórdãos do STJ de 26-10-2004 (proc. 04A3101), de 06/10/2005 (proc. 04B2753), de 15/03/2012 (proc. 492/07.TBTNV.C2.S1), e de 04/06/2013 (proc. 226/11.1TVLSB.L1.S1).
[11] Cfr., neste sentido, José Ibraimo Abudo, Do Contrato de Depósito Bancário, Instituto de Cooperação Jurídica/FDUL, 2004, pág. 157, Pinto Coelho, in BMJ, nº 304, pág. 449, e “Operações e Banco e Depósito Bancário, RLJ, 81, pág. 227, Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, 1998, págs. 134 e 135, e doutrina e jurisprudência aí citadas.