Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B153
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: VALORES MOBILIÁRIOS
ACÇÕES
TRANSMISSÃO
MODO
Nº do Documento: SJ20080515001532
Data do Acordão: 05/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. A transmissão das acções tituladas e escriturais, fora do mercado bolsista, só fica perfeita com a entrega (acções tituladas ao portador), a declaração de transmissão escrita no título (acções tituladas nominativas), ou o registo em conta (acções escriturais); mas estes actos – que integram e traduzem o modo – não bastam, só por si, para operar a transmissão, que exige que eles se apoiem num título válido, num negócio jurídico, o negócio causal subjacente.

2. Tal significa que a transmissão não se opera por mero efeito do contrato, nem apenas e só por efeito do modo, só se efectuando por força do contrato e do modo.

3. A compra e venda de acções não é um contrato real quoad effectum – é um contrato com efeitos imediatos meramente obrigacionais, como os contratos do mesmo tipo tendo por objecto títulos de crédito em papel, para cuja transmissão se exige a tradição, o endosso ou acto equivalente.

4. Os actos exigidos por lei, e que integram o modo, não se referem ao contrato, mas sim à transmissão da propriedade das acções: são actos essenciais para a transmissão destas, mas não contendem com a validade formal do contrato.

5. Assim, um contrato de compra e venda de acções ao portador não deixa de ser válido pelo facto de o transmitente não ter feito entrega, ao adquirente, dos títulos representativos das acções; e este pode requerer judicialmente o cumprimento do contrato, a entrega das acções.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1.


Nas Varas Cíveis de Lisboa, MHT – M……, H……. e S…… no T……, L.da intentou contra A…… S…… L…… - G…… de S…… U……., L.da acção com processo ordinário, pedindo seja declarada a nulidade do contrato entre ambas celebrado, com fundamento em preterição de formalidades essenciais, e a ré condenada

• a restituir à autora o preço pago, no montante de € 69.831,71, acrescido de juros á taxa legal desde a citação até integral pagamento;

• a restituir à autora todas as quantias pagas, no montante de € 2.394,23; e ainda

• no pagamento à autora de sanção pecuniária compulsória, nos termos do n.º 4 do art. 829°-A do CC.

Para tanto, alegou, em síntese, ter celebrado com a ré contrato-promessa de compra e venda de 20.000 acções da sociedade UIS – U…… I…… de S……, SA, de que aquela era titular, pelo preço de 14.000.000$00, tendo-lhe entregue, sucessivamente, as quantias de 2.000.000$00, 2.500.000$00 e 6.000.000$00. Posteriormente e por escrito particular, foi celebrado entre as partes o contrato de compra e venda das referidas acções, tendo a autora entregue o valor remanescente (Esc. 3.500.000$00), mas não tendo a ré feito entrega dos títulos nem de qualquer documento que suprisse a falta destes.

Entregou ainda à ré, a pedido desta, os montantes de € 997,60 e de € 1396,63.

Ora, a falta de entrega das acções é uma formalidade essencial que não foi observada e determina a nulidade do negócio; mesmo que as acções sejam nominativas, não foram observadas as formalidades legais para a transmissão destas acções: declaração de transmissão escrita no título e registo junto do emitente; e a não observância das referidas formalidades gera a nulidade do negócio, nos termos do art. 220°, n.° 1, do Código Civil.

A ré, regularmente citada, não contestou, pelo que foi proferido despacho a considerar confessados os factos articulados pela autora. E, depois de apresentadas alegações, pela demandante, foi proferida (em 23/11/2006) sentença final que julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolveu a ré da totalidade do pedido.

Entendeu o Ex.mo Juiz que o contrato celebrado entre autora e ré não é nulo, pelo que teria de improceder o pedido de declaração de nulidade do mesmo e, consequentemente, também os pedidos de condenação da ré a restituir o preço e em sanção pecuniária compulsória. No tocante à restituição do montante de € 2.394,23, entendeu igualmente carecer de fundamento a pretensão da autora, na medida em que essa quantia – como confirmam os cheques juntos aos autos – foi entregue a uma entidade que não é parte na causa, a UIS – U….. I….. de S….., SA.

A autora interpôs recurso de apelação da referida sentença, mas sem qualquer proveito, já que a Relação de Lisboa, em acórdão oportunamente proferido, negou provimento à apelação, confirmando integralmente a sentença recorrida.

De novo inconformada, a demandante traz agora a este Supremo Tribunal o presente recurso de revista, tendo rematado as alegações que apresentou com o enunciado das seguintes conclusões:

1. O tribunal recorrido fez uma interpretação errada dos arts. 101º e 102º do CVM, bem como dos artigos 219º, 220º e 874º do CC, violando deste modo os citados preceitos legais;

2. A transmissão de acções ao portador exige a traditio como condição de validade do negócio, sendo que essa entrega das acções ao portador consubstancia um requisito de forma do contrato transmissivo, cuja falta determina a invalidade do contrato celebrado, nos termos do artigo 220º do CC;

3. O contrato de compra e venda de acções ao portador é um contrato quoad constitutionem ou real, ou seja, um contrato que exige, para além das declarações de vontade das partes, a entrega de uma certa coisa como requisito de validade, pelo que a não entrega das acções determina a nulidade do contrato;

4. A transmissão de acções nominativas exige, a par do acordo das partes, como requisito de forma (i) a declaração no título, ou (ii) o registo na conta do adquirente, ou (iii) o registo nos livros da sociedade, cuja preterição determina a nulidade do contrato subjacente;

5. Os requisitos referidos no CVM para a transmissão, quer de acções ao portador, quer de acções nominativas consubstanciam requisitos de forma do contrato transmissivo, in casu uma compra e venda, pelo que a sua falta determinará, conforme consagrado no artigo 220º do CC, a nulidade do contrato celebrado;

6. As normas constantes do CVM relativas à transmissão de valores mobiliários são normas especiais e, neste sentido, prevalecem sobre o regime consagrado no CC, afastando o princípio da liberdade de forma consagrado no artigo 219º do CC;

7. O artigo 220º do CC, conjugado com o disposto nos artigos 101º e 102º do CVM, consagra explicitamente, como regra, a solução que considera as formalidades da entrega das acções, para as acções ao portador, e as outras formalidades previstas para a transmissão das acções nominativas, como formalidades ad substantiam;

8. A jurisprudência dominante e a doutrina sufragam o entendimento de que os requisitos exigidos pelo CVM para a transmissão da titularidade dos valores mobiliários consubstanciam requisitos de forma do contrato transmissivo, pelo que a sua falta determinará, nos termos do art. 220º do CC, a nulidade do contrato;

9. A solução jurídica vertida no acórdão recorrido está em manifesta contradição com a sufragada no acórdão da própria Relação de Lisboa, de 07.12.99 (CJ 1999, t. 5, pág. 123), bem como nos acórdãos do STJ de 06.10.98 (BMJ 480/490) e de 06.02.97 (BMJ 464/551), da Relação do Porto, de 27.11.2000 (Proc. 0050931) e de 20.03.2001 (CJ 2001, t. 2, pág. 183) e da Relação de Coimbra, de 04.10.2005 (Proc. 2368/05).

A recorrente pediu ainda o julgamento alargado da revista, para uniformização da jurisprudência – pretensão que, todavia, foi indeferida por decisão do Ex.mo Conselheiro Presidente deste Supremo Tribunal.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


2.

Vêm, das instâncias, provados os factos seguintes:

1. Está matriculada na CRC de Torres Vedras, sob o n.°……., uma sociedade anónima denominada UIS – U….. I…… de S….., SA;

2. O capital da referida sociedade é de € 500.000,00, realizado quanto a € 150.000,00, representado por 50.000.000 de acções com o valor nominal de um cêntimo cada uma, nominativas ou ao portador, reciprocamente convertíveis, havendo títulos de uma, dez, cinquenta, cem e mil acções;

3. A 25 de Maio de 2001, a autora e a ré subscreveram o instrumento junto por cópia a fls. 25-29 denominado “Contrato Promessa de Transmissão de Participações Sociais” e que aqui se dá integralmente por reproduzido, nos termos do qual a ré promete vender e a autora promete comprar 20.000 acções representativas do capital social da UIS, SA pelo valor global de 14.000.000$00, sendo o preço pago em duas prestações: 2.000.000$00 no momento da outorga do contrato, a título de sinal e princípio de pagamento; 12.000.000$00 na data da outorga do contrato definitivo;

4. Na referida data a autora entregou à ré a quantia de 2.000.000$00;

5. A 29 de Junho de 2001, autora e ré subscreveram o instrumento junto por cópia a fls. 30-31, denominado “Documento Complementar ao Contrato Promessa de Transmissão de Participações Sociais”, que aqui se dá integralmente por reproduzido, em que se declara que do preço referido no contrato promessa celebrado entre as partes em 25 de Maio de 2001, de 14.000.000$00, já foram pagas as quantias de 2.000.000$00, no momento da outorga do presente contrato, a título de sinal e princípio de pagamento, e de 2.500.000$00, no dia 29 de Junho, por transferência bancária, e que com a celebração do contrato definitivo será paga a restante quantia de 9.500.000$00;

6. A 23 de Julho de 2001, a autora pagou através de cheque a quantia de 6.000.000$00, por conta do preço acordado;

7. A 24 de Agosto de 2001, autora e ré subscreveram o instrumento junto por cópia a fs. 33-35, denominado “Contrato de Transmissão de Acções”, que aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta que a ré declara vender e a autora comprar 20.000 acções da UIS – U…. I….. de S….., SA, pelo preço de 14.000.000$00, pagando a autora no referido acto a quantia de 3.500.000$00, montante em falta até perfazer o preço acordado;

8. A ré não entregou à autora os títulos representativos das acções;

9. A autora entregou à UIS as quantias de € 997,60 e € 1.396,63.


3.

Como se sabe, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.

No caso sub judice, as conclusões da alegação de recurso apresentada pela autora ora recorrente restringem o objecto do presente recurso a uma única questão – a mesma que já fora colocada à Relação: a de saber se a transmissão de acções (sejam elas nominativas ou ao portador), fora do mercado bolsista, se dá por mero efeito da celebração do negócio jurídico translativo (v.g., do contrato de compra e venda), nos termos do artigo 408º n.º 1 do Código Civil, ou se, pelo contrário, exige ainda, como requisito de validade, a observância das formalidades exigidas pelos artigos 101º e 102º n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, a saber:

a) no caso da transmissão de acções ao portador, a traditio, a entrega física das próprias acções;

b) tratando-se de acções nominativas, a (i) declaração no título, ou (ii) o registo na conta do adquirente, ou (iii) o registo nos livros da sociedade.

Acolhendo o segundo termo da alternativa, entende a recorrente que o denominado “Contrato de Transmissão de Acções” que celebrou com a recorrida deve ser havido como nulo, ao contrário do que defendeu o acórdão recorrido.

Vejamos, pois.

3.1. Como se refere no aludido acórdão, antes da entrada em vigor do Dec-lei 486/99, de 13 de Novembro (que aprovou o actual Código dos Valores Mobiliários), as formas de transmissão entre vivos das acções eram reguladas pelos artigos 326º e 327º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), que estatuíam, para as acções nominativas, a sua transmissibilidade por declaração do transmitente escrita no título e pelo pertence lavrado no mesmo e averbado no livro de acções da sociedade por esta efectuados (art. 326º/1), e para as acções ao portador, a sua transmissão pela entrega dos títulos, dependendo da posse dos mesmos o exercício dos direitos sociais (art. 327º/1).

Ou seja: o modelo estabelecido no CSC – que se reportava apenas às acções tituladas – podia sintetizar-se desta forma:

- transmissão por endosso, no caso de acções nominativas;

- transmissão por tradição, no das acções ao portador (1) .

Para as acções escriturais, o regime de transmissão era o definido no artigo 5º/1 do Dec-lei 229-D/88, de 4 de Julho, que as introduziu no nosso sistema jurídico: “A transmissão de acções escriturais opera-se pela inscrição da alienação, na conta do alienante, e da aquisição, na conta do adquirente, a qual, no caso de este ainda não ser accionista, será para o efeito aberta ”.

Posteriormente, com o Código do Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo Dec-lei 142-A/91, de 10 de Abril, a matéria relativa à transmissão das acções escriturais transitou para esse Código (arts. 67º, 68º e 69º), que revogou o citado Dec-lei 229-D/88, ficando a regulamentação da transmissão das acções repartida, no essencial, pelo CSC e pelo CMVM.

O vigente Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Dec-lei 486/99, de 13 de Novembro, revogou os artigos 326º e 327º do CSC e chamou a si a disciplina da matéria a que tais preceitos se reportavam.

Pode, pois, dizer-se que as regras imediatas sobre transmissão de acções – escriturais e tituladas – têm hoje o seu assento no Código dos Valores Mobiliários, sendo, em síntese, as seguintes:

- as acções escriturais transmitem-se pelo registo na conta do adquirente (art. 80º/1);

- as acções tituladas ao portador transmitem-se por entrega do título ao adquirente ou ao depositário por ele indicado (art. 101º/1);

- as acções tituladas nominativas transmitem-se por declaração de transmissão, escrita no título, a favor do transmissário, seguida de registo junto do emitente ou junto do intermediário financeiro que o represente (art. 102º/1) (2) .

A partir dos indicados textos legais, e da sua expressão literal, que conclusão deverá ser extraída quanto ao sistema transmissivo das acções que deles emerge?

Operar-se-á a transmissão da propriedade por mero efeito do contrato, nos termos do art. 408º do CC? Estará antes consagrado um sistema em que a transmissão da propriedade não depende da existência de um contrato, mas apenas da realização de actos independentes do contrato (os especialmente previstos nas indicadas normas do CVM)? Ou um sistema misto, que congloba um contrato e o mencionado conjunto de actos independentes do contrato?

Não obstante as divergências entre os autores, cremos que começa a ganhar força e a impor-se o entendimento, a que aderimos, segundo o qual a transmissão das acções tituladas e escriturais só fica perfeita com a entrega (acções tituladas ao portador), a declaração de transmissão escrita no título (acções tituladas nominativas), ou o registo em conta (acções escriturais); mas estes actos – que integram e traduzem o modo – não são, só por si, bastantes para operar a transmissão, que exige que eles se apoiem num título válido, num negócio jurídico, o negócio causal subjacente.

É esta a posição de COUTINHO DE ABREU (3) .

Segundo este autor “as acções-títulos (bem como as acções escriturais) estão sujeitas a regras próprias de circulação. E a lei marca ou acentua exactamente as especialidades dessa circulação. Omite (porque pressuposta) a necessidade do acordo entre as partes (circulação entre vivos) e explicita a necessidade da entrega ou da declaração de transmissão escrita no título (acções tituladas), ou do registo em conta (acções escriturais). Estas formalidades são essenciais para que a transmissão das acções se efective. O mero acordo entre transmitente e transmissário produz efeitos entre as partes – mas não produz, por si só, a transmissão das acções” (4) .

Este entendimento foi igualmente adoptado – e justificado por forma particularmente impressiva e convincente – em recente estudo de VERA EIRÓ (5) , que, pondo em confronto os três sistemas transmissivos acima aludidos, conclui, com boas razões, que “a propriedade sobre as acções – independentemente da sua forma de representação ou da modalidade que revestem – não se transmite por mero efeito do contrato” (6) , e também que “não se dá apenas e tão só por efeito do modo (7) , só se efectuando por força do contrato e do modo(8) Ibidem, págs. 172/175. .

Deve dizer-se que – como o reconhecem COUTINHO DE ABREU e VERA EIRÓ – não tem sido este o entendimento maioritário da doutrina nacional, quase sempre expresso, é certo, no quadro da legislação pregressa, mas cuja regulamentação não divergia significativamente da estabelecida no actual Código dos Valores Mobiliários. Para a maioria dos autores, “a propriedade dos títulos transmitir-se-ia (entre vivos) por mero acordo de vontades, por contrato consensual entre cedente e cessionário (art. 408º, 1, do CCiv.); a entrega (das acções ao portador), assim como as formalidades previstas para as acções nominativas, seriam tão-só requisitos de legitimação do adquirente para o exercício dos direitos sociais” (9).

Não é, todavia, assim.

O facto de ser apenas com o registo ou com a posse da acção que o adquirente pode exercer os direitos que a esta são inerentes não convalida a tese de que a propriedade sobre as acções se transmite por mero efeito do contrato, antes confirma a tese oposta.

O adquirente que não recebeu as acções (ao portador) ou que não beneficia de declaração de transmissão e de registo a seu favor (acções nominativas) não pode aliená-las (a aquisição de acção por si alienada seria considerada uma aquisição a non domino) nem onerá-las, nem exercer qualquer das faculdades inerentes à titularidade da acção, designadamente as de votar, receber dividendos, juros ou outros rendimentos (porque lhe falta a legitimidade para tal).

Não pode, pois, ser qualificado como titular das acções, como titular de um direito de propriedade sobre elas, não se compreendendo nem tendo sentido a afirmação da titularidade de um direito vazio de conteúdo.

Não está, com isto, a afirmar-se que ele não tem quaisquer direitos. Na verdade, por mero efeito do contrato adquire o direito a requerer o registo das acções (nominativas) ou o direito a exigir do transmitente a entrega das acções (ao portador). Mas estes são meros direitos de crédito, não são faculdades de um direito absoluto, do direito de propriedade. O contrato, por si só, não fez nascer, na esfera jurídica do adquirente, o direito de propriedade sobre as acções; a mera celebração do contrato entre o transmitente e o adquirente, desacompanhada do “modo”, não transfere para este a propriedade das acções.

3.2. A compra e venda de acções não é, assim, um contrato real quoad effectum – é um contrato com efeitos imediatos meramente obrigacionais, como os contratos do mesmo tipo tendo por objecto títulos de crédito em papel, para cuja transmissão se exige a tradição, o endosso ou acto equivalente.

É certo que, como refere CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, no nosso direito o contrato de compra e venda é, por regra, um contrato real quoad effectum. Mas, como também adverte o mesmo autor, nem sempre assim sucede, porque nem sempre os efeitos reais se produzem imediatamente e nem sempre prescindem de um outro facto jurídico.

“Quando um contrato de compra e venda tenha por objecto valores mobiliários e títulos de crédito em geral, o seu efeito translativo depende sempre de um outro facto jurídico: a entrega do título, o endosso ou a declaração de transmissão, quando sejam valores mobiliários em papel; o registo, quando sejam valores mobiliários escriturais ou equiparados. Apesar do princípio geral do artigo 408º do Código Civil, ninguém consegue, mesmo no direito português, transferir a propriedade por mero efeito do contrato, quando este tenha como objecto valores mobiliários” (10) .

O CVM afasta o princípio consensualista consagrado pelo art. 879º/a) do Cód. Civil. Só no momento da entrega das acções (ao portador) ou da declaração de transmissão, seguida de registo (acções nominativas) é que o adquirente será o titular das mesmas e poderá exercer o direito de propriedade sobre elas face ao alienante, a terceiros e à sociedade.

3.3. Aqui chegados, é tempo de analisarmos mais de perto a pretensão da recorrente.

Quais as ilações a extrair da consideração de que as formalidades prescritas no CVM são essenciais para que se concretize a transmissão das acções, ou de que o mero acordo entre o transmitente e o adquirente apenas produz efeitos entre eles, mas não produz, por si só, a transmissão das acções?

Não tendo sido, no caso em apreço, o “contrato de transmissão de acções” celebrado entre a recorrente e a recorrida seguido da entrega dos títulos à recorrente, quid juris?

Deve, antes de mais, assinalar-se que a autora não identifica, com rigor, a natureza das acções envolvidas no negócio. E não é indiferente que se trate de acções nominativas ou de acções ao portador. O regime de transmissão de umas e outras não é o mesmo, como fácil é intuir da leitura dos arts. 101º e 102º do CVM; e se vem provado que “a ré não entregou à autora os títulos representativos das acções” – facto que releva no que concerne às acções ao portador – já nada consta, do acervo fáctico que vem dado como assente, quanto à (não) efectivação da declaração de transmissão, nos títulos, a favor da autora, e do sequente registo, a que aludem os n.os 1 e 2 do indicado art. 102º.

Ora, como é sabido, este Supremo Tribunal, como tribunal de revista, apenas conhece, em regra, da matéria de direito (art. 29º da LOFTJ), aplicando definitivamente, aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o regime jurídico que julga adequado.

A definição da matéria de facto necessária para a definição do litígio pertence, pois, às instâncias, com a última palavra a pertencer, neste capítulo, à Relação, cuja decisão só pode ser alterada pelo Supremo se se verificar alguma das excepções contempladas no n.º 2 do art. 722º do CPC, o que, manifestamente, não acontece.

Assim, o acervo factual a ter em conta é apenas o elencado no n.º 2. supra.

E, não se sabendo se em causa estão valores mobiliários nominativos ou ao portador, o simples facto de eles não terem sido entregues à autora não é bastante para se poder concluir, de jure, com segurança, que não se operou a sua transmissão para a ora recorrente.

Circunstância que, por si só, comprometeria o êxito do recurso.

Ainda assim, não deixaremos de analisar a questão suscitada pela recorrente, indagando se o contrato celebrado entre ela e a recorrida enferma de vício determinante da sua nulidade.

3.4. Já se deixou manifestada a nossa adesão à tese segundo a qual a propriedade sobre as acções – independentemente da sua forma de representação ou da modalidade que revestem – não se transmite por mero efeito do contrato, antes se concretiza por força do contrato e do modo.

Mas importa não confundir o modo – conjunto de actos autónomos especialmente previstos pela lei (arts. 101º, n.os 1 e 2 e 102º, n.º 1 do CVM) com as exigências de forma do contrato. Como refere VERA EIRÓ (11), há que evitar a confusão entre a forma, entendida como requisito para que o negócio produza determinados efeitos (o modo) e a forma, enquanto condição de validade da declaração negocial.

Neste último sentido, a falta de forma legalmente exigida acarreta a nulidade do negócio jurídico; já a falta de forma no primeiro sentido (modo) apenas tem como consequência a não produção de determinados efeitos do contrato (no caso, a não transmissão da propriedade das acções).

O modo é independente do contrato: o contrato de compra e venda não transmite, por si, a propriedade das acções, apenas serve de causa à transmissão, efectuando-se esta através do modo. Os actos autónomos ao contrato que integram o modo não são formalidades ad substantiam do contrato, não consubstanciam requisitos de forma do contrato.

O contrato tem, já o dissemos, natureza meramente obrigacional, valendo, para ele, o princípio da liberdade de forma ancorado no art. 219º do Cód. Civil.

E, por isso, o contrato celebrado entre a ora recorrente e a recorrida não enferma de vício de forma que ponha em causa a sua validade. A não efectivação do modo aplicável, não tendo a ver com a forma (hoc sensu), não afecta a validade do contrato, o qual continua a obrigar as partes, nos termos acordados. A obrigação da ré, de transmitir a propriedade das acções para a autora, mantém-se, podendo o incumprimento desta obrigação contratual gerar responsabilidade contratual nos termos dos arts. 798º e seguintes do Cód. Civil, e dar lugar a que a autora requeira judicialmente, nos termos do art. 827º do mesmo diploma, a entrega das acções que aquela se obrigou a transmitir-lhe.

A recorrente invoca, em sufrágio da posição que defende, algumas decisões dos tribunais superiores, entre elas dois acórdãos deste Supremo Tribunal, dos quais se extrairia que os requisitos para a transmissão da titularidade das acções constituem requisitos de forma do contrato, determinando a sua falta a nulidade deste, nos termos do art. 220º do Cód. Civil.

Sucede, porém, que os dois aludidos acórdãos, tirados antes do início de vigência do CVM, não versaram sobre questão idêntica à que é objecto destes autos, em que se cura de indagar da validade ou nulidade do negócio causal celebrado para servir de base à transmissão das acções.

E, com o devido e merecido respeito, e ainda em sintonia com VERA EIRÓ, não temos por correcto, no quadro da lei actual, o entendimento que parece estar-lhes subjacente.

A ser exacta a tese acima aludida, a que a recorrente se apega, impor-se-ia concluir que um contrato de compra e venda de acções tituladas ao portador seria, antes da entrega das acções, nulo por falta de forma. Como nulo seria um contrato de compra e venda de acções tituladas nominativas antes do registo, junto do emitente, da declaração de transmissão.

Ora, o n.º 5 do art. 102º do CVM afasta claramente esta conclusão: ao estatuir que a transmissão produz efeitos (é dizer, torna-se eficaz) a partir da data do requerimento de registo junto do emitente, o preceito tem ínsita a ideia de um negócio causal formalmente válido. Só assim o preceito tem sentido e não atropela a lógica.

É, decerto, por isso, que COUTINHO DE ABREU, depois de aludir ao modo de transmissão das ditas acções (tituladas nominativas), previsto no n.º 1 daquele art. 102º, conclui que, apesar da redacção do preceito, deve entender-se que o registo junto do emitente ou junto do intermediário financeiro “não é condição de validade nem de eficácia da transmissão entre as partes” – “é somente condição de eficácia para com a sociedade emitente (esta não considerará o transmissário como sócio enquanto não for requerido o registo)” (12) .

E, exemplifica, mais adiante (13) , sustentando:

“Por exemplo, o cedente de acções tituladas ao portador (A) fica obrigado a entregar as acções ao cessionário (B) e a não transmiti-las a terceiro (C). Mas se A, em vez de as entregar a B, as transmite, com entrega, a C, o negócio não é, por isso, inválido ou ineficaz: antes da entrega, a propriedade mantém-se em A, que pode, pois, transmiti-la (o contrato entre A e B tem eficácia meramente obrigacional); perante o não cumprimento da obrigação de A para com B, resta a este exigir indemnização daquele”.

Vale, pois, concluir, tendo por base tudo quanto vem de ser expresso, que o intitulado “Contrato de Transmissão de Acções”, titulado pelo escrito junto aos autos, no qual a ré declarou vender à autora e esta declarou comprar-lhe 20.000 acções da UIS-U..... I..... de S....., SA, pelo preço de 14.000.000$00, não enferma de vício formal gerador da sua nulidade, sendo um contrato formalmente válido.

Os actos exigidos por lei, e que integram o modo, não se referem ao contrato, mas antes à transmissão da propriedade das acções: são actos essenciais para a transmissão das acções, mas não contendem com a validade formal do contrato. Este não deixa de ser válido – se nenhum dos seus requisitos de validade estiver em falta, como acontece no caso – pelo facto de a ré não ter entregue à autora os títulos representativos das acções; e esta pode, em qualquer altura, como já ficou referido, requerer judicialmente o cumprimento do contrato, isto é, requerer judicialmente, nos termos do artigo 827º do Código Civil, a entrega das acções que a ré se obrigou a transmitir-lhe.

O recurso improcede, mantendo-se inabaladas as razões em que se estribou o muito bem estruturado acórdão recorrido.


4.


Nega-se, pois, a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 15 de Maio de 2008

(Santos Bernardino)

(Bettencourt de Faria)

(Pereira da Silva)

______________________________________________________
1- MENEZES CORDEIRO in “Manual de Direito das Sociedades”, Vol. II, “Das Sociedades em Especial”, 2ª ed., 2007, p. 684.
2- MENEZES CORDEIRO, ob. e loc. cits., pág. 685.
3- “Curso de Direito Comercial”, Vol. II, “Das Sociedades”, 2002, p. 370 e 371.
4- Ob. e vol. cits., págs. 371/372.
5- “A Transmissão de Valores Mobiliários – As Acções em Especial”, publicado in “THEMIS” – Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano VI, n.º 11, 2005, págs. 145 e ss.
6- Estudo e revista cits., pág. 167.
7- Ibidem, pág. 171.
8- Ibidem, págs. 172/175.
9- COUTINHO DE ABREU, ob. e vol. cits., pág. 371.
10 - Registo de Valores Mobiliários, in ESTUDOS EM MEMÓRIA DO PROFESSOR DOUTOR ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, vol. I, págs. 926 e 928.
11- Estudo e revista cits., pág. 168.
12- Ob. e vol. cits., pág. 370.
13- Ibidem, pág. 372.