Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
680/09.1YFLSB
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
REQUISITOS
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I) O instituto do enriquecimento sem causa visa evitar que alguém avantaje o seu património à custa de outrem, sem motivo que o justifique, sendo que, a relação entre o enriquecimento e o correspectivo empobrecimento, tem de assentar em vantagens exclusivamente de carácter patrimonial, que não em relações espirituais, morais, ou afectivas.

II) - Tendo o Autor, durante o seu processo de divórcio e na vigência de união de facto com a Ré, concordado que, em nome desta seria contraído um empréstimo para aquisição e remodelação de um imóvel onde iriam viver, assumindo o Autor o compromisso de satisfazer todos os encargos com esse negócio, com a condição de findo o divórcio, a Ré transferir para ele a propriedade do imóvel – que entretanto foi registado em nome dela – existe enriquecimento sem causa, por parte da Ré, quando, cessada a união de facto e decretado o divórcio do Autor, a Ré, que em termos materiais nada contribuiu para a aquisição do imóvel nem comparticipou nas despesas que tiveram de ser feitas, se recusa a honrar o compromisso assumido, porque, entretanto, ocorreu ruptura na união de facto.

III) - O enriquecimento implica vantagem material, excluindo-se do conceito legal, quaisquer vantagens que não tenham essa natureza, pelo que a Ré não pode contrapor com vantagens de índole não patrimonial proporcionadas ao Autor, alegando o seu contributo pessoal para a união de facto e a expectativa de uma relação duradoura, para daí afirmar que existe relação entre o enriquecimento e o empobrecimento.

IV) - O Autor, ao pretender que a Ré restitua as quantias por si exclusivamente despendidas com a aquisição e realização de obras no imóvel, face à violação do compromisso assumido pela Ré, não actua com abuso do direito ao desconsiderar qualquer “compensação” dada pela Ré “pelo contributo para a vida quotidiana da economia conjunta de ambos”.

V) - Se se tivesse provado que o Autor, de alguma forma, tinha incutido na Ré, com a sua actuação, que não pretendia reaver aquilo que despendeu e que agora, quiçá pela desavença amorosa, retaliava com a exigência da transferência da propriedade, aí haveria violação da regra da boa-fé e do princípio da confiança a evidenciar claro “venire contra factum proprium”.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA intentou, pelo Tribunal de Família e Menores de Cascais – 1º Juízo Cível – acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra:

BB

Pedindo que a Ré seja condenada a:

a) Pagar-lhe a quantia de € 120.509,91, relativa ao pagamento dos montantes a que se referem os arts. 55º, 56º e 59º da P.I. (a título de empréstimos) e os juros vincendos à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, bem como a quantia de € 1.713,59, relativo ao pagamento dos montantes a que se refere o art. 63º da P.I. (indemnizações), acrescida de juros legais, desde a citação até integral pagamento, e, ainda, o montante das prestações mensais que se vencerem até pagamento integral, relativo ao empréstimo que este adquiriu, hipotecando a casa de morada de família, cujo montante será relegado para execução de sentença;

b) Entregar-lhe os bens que ilegitimamente retém e que lhe pertencem assim como ao seu filho menor de idade Frederico.

Alegou, em síntese, que:

Em Setembro de 1997, o Autor decidiu sair da casa de morada de família onde habitava com a mulher, M… J… P…, e filho F…, indo viver para um quarto.

Por motivos de saúde da esposa, o filho foi viver consigo, o que o obrigou a procurar um apartamento, tendo, em 29.10.99, formalizado contrato promessa de compra e venda da fracção autónoma designada pela letra “Q”, que corresponde ao 3º andar esquerdo do prédio sito na Rua M…, nº …, J…, Parede, na perspectiva de, em Fevereiro de 2000, estar divorciado e poder realizar a escritura e assumir a hipoteca.

O preço acordado para a compra foi de 23.500.000$00, a ser pago do seguinte modo: como sinal e princípio de pagamento, a quantia de 1.500.000$00, que o Autor pagou, com a assinatura do contrato promessa; reforço de sinal até 30.12.99, no valor de 850.000$00; restante preço, no valor de 21.500.000$00, no acto de outorga da escritura, que seria efectuado no prazo de 120 dias.

O estado de saúde da esposa agravou-se, e o processo de divórcio foi arquivado, vindo o Autor a acordar com os promitentes vendedores, por pressão destes, em fazer um reforço de sinal no montante de 9.480.000$00, que englobava o anterior reforço de sinal previsto.

Para pagamento da referida quantia, que efectivamente entregou, constituiu hipoteca sobre a casa de morada de família, com cuja escritura despendeu 219.098$00.

Os promitentes vendedores continuaram a pressionar o Autor para efectuar a escritura, propondo-lhe que a mesma fosse feita em nome de alguém de confiança, prontificando-se a Ré (amiga e namorada do Autor, conhecedora de toda a situação e com quem já partilhava, em alguns aspectos, vida em comum) para o efeito.

Acordaram, então, Autor e Ré que a escritura seria realizada em nome da Ré, a qual solicitaria um empréstimo para pagar o valor do preço ainda em falta, sendo todas as despesas daquele suportadas pelo Autor, para quem seria feita a transferência do imóvel, mal fosse decretado o divórcio.

Assim foi feito, tendo o Autor pago as despesas com o pedido de empréstimo, registos, escritura (em montante ainda não apurado), prestações do empréstimo, despesas com EDP, TV cabo, água, gás, condomínio, contribuição autárquica, obras (num total de 12.443,00) e móveis que constituem a mobília da casa.

Com vista a transferir a propriedade da casa para seu nome, negociou um empréstimo com o banco, para pagamento da hipoteca sobre a casa de morada de família, e fez registos provisórios, pagando honorários a solicitadora, bem como pagou a respectiva sisa.

A escritura chegou a estar marcada por 2 vezes, não se realizando da 1ª vez, porque o banco não foi avisado, e da 2ª vez, porque a Ré não compareceu.

Autor e Ré vieram a separar-se em Janeiro de 2005, altura em que a Ré disse ao Autor que nunca transferiria a propriedade da casa para seu nome.

Desde Março de 2005 que a Ré veda o acesso do Autor à casa, na qual se mantém todos os móveis e bens pessoais do Autor e do seu filho F… .

Regularmente citada, a Ré contestou, por impugnação, alegando, no essencial, que todas as quantias entregues pelo Autor à Ré foram a título de liberalidades, e deduziu reconvenção, pedindo que o Autor/Reconvindo seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 12.000,00 a título de danos morais e notificado para levantar os bens pessoais e do filho que tem depositados na residência da Ré.

A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese, que:

O Autor actuou sempre com grande baixeza de carácter, abusando da boa fé, carinho e dedicação da Ré, forçando-a a adquirir a fracção em causa, criando-lhe encargos adicionais que esta não tinha necessidade de contrair.

O Autor exigiu que a Ré lhe doasse a fracção, continuando responsável pelo pagamento das prestações.

A Ré, com a atitude do Autor, entrou em grave depressão psicológica.

O Autor replicou, impugnando a matéria reconvencional e propugnando pela sua improcedência.

Admitiu-se a reconvenção, proferiu-se despacho saneador, e foram elaboradas matéria de facto assente e base instrutória, as quais sofreram reclamação, em parte deferida.


Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, e condenou a Ré:

1) A pagar ao Autor a quantia de € 84.920,56, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

2) Bem como a quantia que se apurar em execução de sentença de encargos com as prestações do empréstimo da quantia de € 47.286,05, excluindo o reembolso do capital.

3) A entregar ao Autor o sofá, o tapete e o esquentador acima identificados, bem como os bens pessoais do Autor e do seu filho.

- Absolvendo-a do resto peticionado.

- E julgou improcedente a reconvenção, absolvendo o Autor/Reconvindo do pedido reconvencional.


Não se conformando com a decisão, a Ré recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 31.3.2009 – fls. 642 s 657 – negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.


A Ré de novo inconformada recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

A) Com excepção da confissão de união de facto e da explicitação da simulação do contrato promessa e do defraudar da beneficio concedido ao abrigo do empréstimo para habitação explicitamente assumidos pelo Autor que obviamente não pode invocar a simulação em seu beneficio verifica-se que a douta sentença recorrida ao não declarar a nulidade do articulado na Réplica de 2° a 58° que manifestamente não responde a qualquer excepção porque pura e simplesmente não foi apresentada defesa por excepção.
Efectivamente, ao não considerar tal factualidade alegada na Réplica como não escrita o acórdão recorrido é nulo por violação do disposto no n°1 do art. 502° do Código de Processo Civil.

Tal nulidade podia e devia ter si conhecida pelo Tribunal da Relação, inclusive de forma oficiosa.

B) A douta sentença recorrida não indicou os factos julgados provados e não provados, em violação do estatuído nos artigos 304°,n°5, 653°, nº2, do Código de Processo Civil, mais precisamente não elenca os factos não provados.

Contrariamente ao sustentando no acórdão recorrido, quer por força do disposto no n°5 do art. 304°, quer do n°2 do art. 653°, ambos do Código de Processo Civil, a douta sentença deveria ter feito constar quais os factos que considera não provados e ao assim não entender o acórdão recorrido viola tais disposições legais.

C) No dia 17 de Maio de 2000, foi celebrada escritura de compra e venda do imóvel referido em A) da matéria assente, em nome da Ré, constando da escritura o preço da venda de 12.100.000$00, constando que a compra era feita com recurso a um empréstimo concedido pelo CPP e, no dia 28/6/2000, essa aquisição foi registada em nome da Ré.

D) Nem a escritura de compra, nem a de mútuo com hipoteca, nem a força que decorre do registo alguma vez foram postas em causa pelo Autor e não se afigura que tal pudesse ser feito através da presente acção, atenta a forma de processo bem como a causa de pedir e o pedido.

E) O enriquecimento sem causa, a existir, é indubitavelmente do Autor ora recorrido.

Na situação em apreço, o que se verificou foi inequivocamente uma superior contribuição da Ré para os encargos da vida familiar, isto quer em termos meramente económicos, quer em termos do trabalho doméstico por esta desenvolvido e de que o Autor beneficiou.

F) O acórdão recorrido a ser mantido conduziria à situação de o Autor ser ressarcido de praticamente todas as importâncias despendidas (verdadeiras ou fictícias) na pendência da união de facto, ficando a Ré, desembolsada de tal quantia e prejudicada na medida de toda a sua contribuição, quer em termos económicos, quer mesmo em termos de trabalho doméstico, para a economia familiar resulta nula na sentença recorrida, sendo certo que o Autor não alegou e muito menos demonstrou ter sofrido algum prejuízo patrimonial ao longo dos sete anos de vivência marital com a Ré que inclusive cuidou do seu filho menor.

G) Mais, todo o esforço desenvolvido pela Ré ao longo de 7 anos em prol da referida economia familiar e do bem-estar de todo o agregado, inclusive do filho menor do Autor é valorizado em zero.
Esta posição é inaceitável à luz do instituto do enriquecimento sem causa.
Até porque não se podendo aplicar qualquer presunção legal de comunhão de bens entre Autor e Ré e sendo a Ré a única proprietária fácil será de concluir que se o Autor deu continuidade à união de facto ao longo de 7 anos foi porque em nenhum desses sete anos, no dever e haver da pretensa, obviamente omissa, causa de pedir o resultado lhe era favorável, não obstante a incita ausência de boa fé que resulta da peculiar guarda de comprovativos de despesa!

H) Pois sob o pretexto de não beneficiar a Ré, acaba por a prejudicar, valorizando a sua contribuição para a economia doméstica numa medida ridícula, por tão diminuta.
Pelo exposto, resulta que o instituto do enriquecimento sem causa, nomeadamente o disposto no art. 479° do Código Civil, foi indevidamente aplicado no caso em apreço, pois conduz ao enriquecimento do Autor, à custa do empobrecimento da Ré.

I) O acórdão recorrido, ao não revogar a sentença, faz operar uma compensação, que a Ré nunca pretendeu, optando por a verdade é que, a compensação entre as despesas suportadas por Autor e Ré ao longo dos sete anos de vivência em economia comum, foi indubitavelmente uma compensação recíproca e imediata dos gastos por ambos efectuados.

J) Tratava-se assim, de uma compensação diária, assente num acordo tácito de pagamento das despesas globais do agregado familiar, como atesta o facto de só após ter terminado a relação de união de facto entre ambos, o Autor ter vindo levantar esta questão.
Ao longo dos 7 anos de vida em comum nunca o Autor se sentiu credor da Ré, como esta nunca se sentiu credora dele.

K) O contributo que ambos diariamente davam à família de que faziam parte era prestado livremente, sem reservas, no cumprimento daquilo que ambos achavam ser o seu dever, uma sua obrigação natural, na medida das necessidades que quer um quer outro, quer os filhos sentiam.

L) Se a relação entre os dois perdurasse enquanto fossem vivos, nunca nenhum deles viria reclamar do outro o que quer que fosse.

M) O acórdão recorrido ao não revogar a sentença dá errada e injustificadamente cobertura à atitude do Autor, no entanto, porque a simples procedência integral do pedido é demasiado revoltante, inflecte a sua tendência e no fim, numa decisão salomónica, atribui ao A. uma espécie de compensação.

N) Não pode a Ré ser prejudicada pelo facto de, no âmbito de todas as despesas mensais do agregado familiar, lhe ter cabido suportar as despesas de que normalmente não se conservam os comprovativos.
Perguntar-se-á como pode o Tribunal da Relação sustentar que nunca esteve em causa a titularidade da fracção e ao mesmo tempo julgar contra a força do registo?
Mais, se poderá perguntar corno é possível sustentar-se que todos os pagamentos tinham por base um acordo verbal e não qualquer vivência em comum e ao mesmo tempo sustentar-se que o Autor tinha direito a exigir o cumprimento, qual execução especifica, à revelia da vida em comum? Então porque continuou a viver em comum? Porque simulou?

O) Em síntese, não pode legitimar-se um comportamento que, ou é motivado pelo desejo de vingança após o fim da relação, ou mais grave ainda, resulta de uma atitude de reserva mental, de má-fé que o Autor manteve ao longo de 7 anos.

P) Como resulta das regras da experiência e do que se deixou exposto, é hoje impossível à Ré quantificar em termos meramente económicos o seu contributo para a vida quotidiana da economia conjunta em que ambos (Autor e Ré) viviam.

Q) Pelo que, nunca poderia vir opor ao Autor qualquer tipo de compensação, para além daquela que diária, semanal, mensal e anualmente entre ambos operava.

R) Assim, também não pode contabilizar de modo absolutamente arbitrário, os diferentes contributos, em quantidade e em espécie que os elementos de uma economia comum prestaram.

S) Ainda que por via da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, ou de qualquer outro instituto, ou norma jurídica, se entendesse que o Autor tinha direito a receber da R. a importância peticionada, ou a importância em que esta foi condenada, o que só por mera cautela se admite, sempre se dirá que ainda assim a Ré terá de ser absolvida integralmente do pedido, à luz da aplicação do instituto do abuso de direito.

T) Efectivamente, dispõem o artigo 334° do Código Civil que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda, manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito...”

U) Admitindo hipoteticamente que o Autor teria direito a receber da Ré a importância que reclama, ou parte dela, é manifesto que o exercício desse direito excede os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes.

V) Como está até à exaustão provado, o Autor e a Ré uniram-se de facto como se de marido e mulher se tratassem e ao longo de 7 anos viveram em condições análogas às dos cônjuges, investindo a Ré nessa relação muito do seu tempo, do seu trabalho não profissional, dos seus tempos livres, do seu carinho e da sua dedicação.

W) A casa onde vivia e a família que nela habitava e que era a sua, preencheram grande parte dos seus pensamentos, deram-lhe grandes preocupações e muitas outras alegrias.

X) Da parte da recorrente e recorrido, houve ao longo dos anos inúmeras demonstrações de confiança recíproca, que levavam continuamente ao aprofundar da relação e como é evidente, ao reforçar dessa mesma confiança, por via das expectativas legitimamente criadas.

Y) Terminada a relação, a Ré é surpreendida como uma atitude do Autor, contrária a tudo aquilo que o seu comportamento anterior faria esperar.

Z) Como ensina o Prof. Vaz Serra, in RLJ, 777. °-296 - “Há abuso de direito se alguém exercer o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado...”.

AA.) No mesmo sentido, o acórdão da RC de 1.07.77, CJ 1977, 4°-80:
“...O abuso de direito pode, manifestar-se num venire contra factum proprium, ou seja, numa conduta anterior do seu titular, que, objectivamente interpretada face à lei, bons costumes e boa fé, legitima a convicção de que tal direito não será exercido...”.

BB) No caso em apreço, é evidente que à luz da conduta do recorrido ao longo de 7 anos, a ora recorrente formou a convicção de que não era nem devedora nem credora daquele.

CC) Tal convicção foi formada legitimamente, fundando-se no investimento de confiança próprio de uma relação como a que tinham.

DD) Não fora essa confiança, fundada nas expectativas criadas pelo próprio comportamento do Autor, a Ré teria mensalmente depositado no Banco toda a prestação de amortização do crédito hipotecário, como aliás começou a fazer, quando terminou a vivência de ambos em união de facto e continua a efectuar sozinha.

EE) No âmbito das relações familiares, como indubitavelmente era a existente entre Autor e Ré, a divisão de tarefas, o pagamento das despesas, assim como o auferir dos rendimentos necessários à subsistência, não obedecem a critérios puramente economicistas, pelo contrário, dependem em grande medida da confiança mútua e da boa fé com que os consortes interagem.

FF) Em conclusão, resulta evidente que o Autor pretende obter o reconhecimento de um direito, em clara oposição com o que foi o seu comportamento ao longo de 7 anos.
Em clara oposição com aquilo em que fez a Ré legitimamente acreditar.
Pelo que, ainda que se entenda que o apelado é titular do direito que se arroga, é impossível, à luz dos princípios da boa fé e dos bons costumes reconhecer-lhe esse direito, pois o exercício deste conduziria a um claro e manifesto abuso.

GG) Atenta a recusa de, tendo sido notificado com a contestação para levantar os bens móveis, não se afigura que a sentença recorrida possa condenar na entrega uma vez que tal como a versão da Ré foi apresentada não se tratava de matéria controversa e ao conhecer do que não devia a douta sentença viola o disposto no art. 668º, nº1,°al. d) do Código de Processo Civil.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, revogando-se o acórdão recorrido e absolvendo-se a Ré, quer de qualquer pagamento, quer de qualquer entrega de bens dado que os bens móveis em causa só não foram levantados pelo Autor porque o mesmo não os quis levantar.

O Autor contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão.


Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que as instâncias consideraram provados os seguintes factos:

A) Por contrato promessa escrito, de 29.10.1999, o autor prometeu comprar a Jacob Judah e mulher, que prometeram vender, a fracção autónoma designada pela letra “Q”, que corresponde ao 3º andar esquerdo do prédio sito na Rua da M…, n.º …, J…, Parede, Cascais, pelo preço de 23.500.000$00, que seria pago da seguinte forma: de imediato, como sinal, o montante de 1.500.000$00; reforço de sinal até 30.12.1999, em 850.000$00; o restante, no acto da escritura a efectuar no prazo de 120 dias.

B) Em Setembro de 1997, o autor saiu da casa de morada de família onde habitava com a mulher e filho de ambos, o menor F…, por incompatibilidade entre ambos.

C) O autor, que é dono da casa de morada de família, celebrou contrato de mútuo com hipoteca sobre a mesma, pelo montante de 9.600.000$00, dos quais entregou aos promitentes vendedores a quantia de 9.480.000$00 (€ 47.286,05).

D) O autor e a ré iniciaram relação de namoro, a partir de inícios de 1998.

E) Foi contraído um empréstimo, em nome da ré, junto do Crédito Predial Português, no montante de 12.100.000$00 e outro no montante de 900.000$00, para realização de algumas obras de que carecia a casa referida na alínea A).

F) No dia 17.05.2000, foi celebrada a escritura de compra e venda do imóvel referido em A), em nome da ré, constando da escritura o preço de venda de 12.100.000$00, constando que a compra era feita com recurso a um empréstimo concedido pelo CPP.

G) No dia 28.06.2000, essa aquisição foi registada em nome da ré.

H) O autor pagou despesas de condomínio no total de € 1.347,00.

I) O autor pagou todas as prestações mensais com os empréstimos bancários – referidos na alínea E) –, no total, até à data da apresentação da PI, de € 20.667,50.

J) Ao longo dos anos, o autor mandou fazer as seguintes obras na casa, que custeou: desmontagem da cozinha e wc`s, com remoção de azulejos antigos, levantamento de pavimento antigo, assentamento de novos azulejos e pavimentos, novas redes de esgotos, nova distribuição de águas e gás, montagem de sanitários, torneiras e esquentador; criação de novas redes de água, luz e electricidade; demolição de paredes da dispensa e marquise; renovação da rede eléctrica e compra do material necessário; pinturas de paredes e tectos; colocação de móveis, bancada em granito, lava loiças e torneiras.

Da Base Instrutória:

1. Com o empréstimo referido em C), o autor despendeu quantia concretamente não apurada.

2. Quando conheceu o autor, a ré tinha conhecimento da sua separação de facto e veio a ter conhecimento do contrato promessa referido na alínea A).

3. O autor e a ré combinaram que a escritura referida em F) iria ser feita em nome da ré e esta solicitaria a uma entidade bancária um empréstimo para pagar o preço ainda em falta e que todas as despesas com o pedido de empréstimo, bem como o pagamento das suas prestações mensais, seriam da responsabilidade do autor.

4. Também acordaram que, quando fosse decretado o divórcio do autor, e logo que lhe fosse solicitado, a ré faria a transferência da propriedade do imóvel – por venda – para o nome do autor, sem qualquer custo.

5. Após o divórcio do autor, este exigiu da ré o cumprimento deste acordo.

6. Com vista à concretização do mesmo acordo, o autor negociou com o Banco de Investimento um empréstimo para compra de habitação própria, no montante de € 63.030,00 e outro no montante de € 45.770,00 (para pagamento da hipoteca que tinha dado como garantia a casa de morada de família), pedidos de empréstimo que foram aceites.

7. O autor fez os registos provisórios e pagou € 395,00 mais os honorários de uma solicitadora, de € 75,00, no total de € 470,00.

8. E pagou os € 150,73 da sisa.

9. A escritura referida sob o n.º 4 nunca se chegou a realizar.

10. Com as obras referidas na alínea J), o autor despendeu as quantias de € 2.992,00 + € 1.646,00 + € 366,00 + € 3.100,00, no total de € 8.104,00.

11. Para utilização na casa, o autor comprou e pagou: um sofá, no valor de € 750,68; um tapete kanton no valor de € 600,79; e um esquentador vulcano, no valor de € 187,05.

12. O autor e a ré mantiveram relação amorosa que terminou em Janeiro de 2005, altura em que a ré disse que não transferia a propriedade da fracção para o autor.

13. Em data posterior, o autor deparou-se com a mudança da fechadura da casa onde vivia.

14. Os bens do autor continuam na posse da ré.

15. O autor e a ré pretendiam constituir uma vida em comum.

16. Em consequência da separação do autor, a ré entrou em depressão psicológica.

17. Como o autor, na data referida em A), ainda estava casado, combinou com os promitentes vendedores que lhes daria um reforço de sinal, no montante de 9.480.000$00, que incluía o pagamento da quantia de 850.000$00.

18. O autor pagou as despesas relacionadas com o pedido de empréstimo referido em E), bem como os registos (142.002$00 e 10.444$00, ou seja, € 760,41).

19. O autor passou a viver na casa dos autos e pagou: € 1.013,98 à EDP; € 1.719,08 à TV Cabo e Netcabo; € 906,46 aos SMAS (água).

20. O contrato de gás foi mantido em nome da antiga proprietária, a quem o autor pagou os respectivos consumos, no montante de € 916,89.

21. Pagou € 1.048,44 de despesas de condomínio.

22. Bem como € 299,29 de contribuição autárquica relativa ao imóvel.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se no caso não havia lugar à réplica;

- se na sentença objecto de apelação deveriam também constar os factos não provados;

- se no caso é inaplicável o instituto do enriquecimento sem causa;

- se o Autor actuou com abuso do direito;

- se a sentença enferma de nulidade por ter condenado além do pedido.

Vejamos:

Importa dizer, que as extensas conclusões das alegações da recorrente repetem, praticamente, as que fez no recurso de apelação e que as questões suscitadas na revista, de natureza processual e substantiva, são as mesmas.

Tratando-se de recurso de revista, o que está em causa é o Acórdão da Relação, pelo que não tendo este sido meramente confirmativo (por adesão) dos fundamentos da decisão da 1ª Instância, a razão de ser do recurso apenas logra utilidade e consistência se se pretender alterar o Acórdão recorrido, atacando-o nos seus fundamentos, desiderato apenas almejável se o recorrente puser em causa o seu conteúdo.

Não tendo o Acórdão da Relação sido proferido nos termos do art. 713º, nº5, do Código de Processo Civil, estar-se-á de novo a apreciar os fundamentos do recurso da 1ª Instância, numa clara subversão do que é o recurso de revista.

Em casos que tais, este Supremo vem entendendo, maioritariamente, que se impõe o uso da faculdade conferida pelo art. 713º, nº5, do Código de Processo Civil.

Sobre a questão permitimo-nos citar o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 23.7.2007, in www.dgsi.pt – Proc. 06A4002 (1) - de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Sebastião Póvoas.

De todo modo apreciaremos as questões suscitadas.

A recorrente suscita questões de índole processual no âmbito do recurso de revista, o que só excepcionalmente é consentido pelo art. 722º, nº1, do Código de Processo Civil. (redacção anterior ao DL.303/2007, de 24.8 aqui inaplicável).

Dispõe o nº1 do citado art. 722º:

“Sendo o recurso de revista o próprio, pode o recorrente alegar, além da violação de lei substantiva, a violação de lei de processo, quando desta for admissível o recurso, nos termos do n.°2 do artigo 754.°, de modo a interpor do mesmo acórdão um único recurso”.

E o nº2 do art. 754º estabelece:

“Não é admitido recurso do acórdão da Relação sobre decisão da lª instância, salvo se o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732.°-A e 732.°-B jurisprudência com ele conforme”.

“A violação de lei de processo só é consentida como fundamento acessório de recurso de revista se dela for admissível recurso nos termos do art. 754.º, nº2, do Código de Processo Civil, visto o exarado no art. 722.º, nºl, de tal Corpo de Leis” – Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 28.6.2007, Proc. 07B1195, in www.dgsi.pt.

No caso em apreço, não se verificam, nem sequer foram invocados pela recorrente os requisitos de que depende o recurso de agravo em 2ª instância por alegada oposição de acórdãos.

Como se sentenciou no Acórdão deste Supremo, de 17.5.2007 – Proc. 07B1379 – in www.dgsi.pt – “A excepção à proibição do recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça a que alude a segunda parte nº2 do artigo 754º do Código de Processo Civil está, naturalmente, subordinada ao normativo do seu nº1, o que se conforma, aliás, com o escopo de restrição do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões sobre matéria processual.
Assim, são requisitos da admissibilidade do recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça dos acórdãos da Relação o positivo da sua susceptibilidade no quadro da valor da causa e o negativo da inaplicabilidade na espécie da revista ou da apelação.
Acresce que a lei proíbe o recurso de agravo dos acórdãos da Relação sobre decisões proferidas em recursos de agravo vindos da 1ª instância (artigo 754º, nº2, 1ª parte, do Código de Processo Civil).
Consequentemente, a regra é no sentido de ser inadmissível recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos proferidos pelo tribunal da Relação em recursos de agravo de decisões sobre matéria processual proferidas nos tribunais de 1ª instância”.

Por, no caso, não ocorrerem os requisitos a que aludem os normativos citados, está fora do âmbito do recurso de revista saber se, no caso, não havia lugar à réplica e se na sentença objecto de apelação deveriam constar também os factos não provados.

Antes de entrarmos na abordagem das demais questões suscitadas pela recorrente, importa, sumariamente, proceder ao enquadramento factual relevante com vista à aplicação do direito, apreciando desse ângulo a decisão recorrida.

Consta provado que, estando o Autor em vias de se divorciar, conheceu a Ré que com ele passou a namorar e depois a viver em união de facto durante sete anos.

O Autor era promitente-comprador de um apartamento, contrato datado de 29.10.99, e combinou com a Ré que a escritura de compra e venda seria celebrada em nome dela, que também em seu nome contrairia um empréstimo bancário, sendo, não obstante isso, todas as despesas pagas pelo Autor, comprometendo-se a Ré a, consumado o divórcio do seu companheiro, transferir para ele a propriedade do imóvel.

O Autor cumpriu aquilo que acordou, custeando todas a despesas com o empréstimo e compra e manutenção (obras) da casa.

Não obstante este acordo e ser do conhecimento da Ré a situação pessoal do Autor, ela recusou-se, em 2005 quando findou a relação amorosa, a transferir a propriedade do imóvel para o Autor assenhorando-se da fracção como resulta do facto de ter mudado a fechadura da casa.

A fracção ficou registada em nome da Ré, é certo, o que apenas confere uma presunção de titularidade do direito real de propriedade – art. 7º do C.R. Predial.

Mas o Autor, pese embora o que ficou acertado com a Ré no que respeita ao compromisso de ulterior transferência do direito de propriedade, não se propôs ilidir aquela presunção registral, não sendo, pois, a causa de pedir a reivindicação da propriedade da casa que pertence à Ré.

O que o Autor pretende, ante a violação do compromisso da Ré, e pelo facto de ter custeado o preço da compra do imóvel e as despesas inerentes ao empréstimo, e ainda ao facto de ter custeado despesas com obras que despendeu na casa, é obter o reembolso do que pagou.

As instâncias enfrentaram tal pretensão à luz do instituto do enriquecimento sem causa e deram parcialmente provimento à sua pretensão.

A Ré, todavia, sustenta que a pretensão do Autor não pode aí ter acolhimento, não só porque ela é que empobreceu durante dos anos em que viveu em comum – sete anos – já que o seu contributo pessoal para o “lar” que constituiu com o Autor e o filho menor deste, tem de ter expressão pecuniária superior ao valor despendido pelo Autor.

Por aí sustenta que a pretensão do Autor é claramente abusiva do direito, pois tinha uma expectativa de vida em comum que fracassou sete anos volvidos, o que lhe causou depressão psicológica.

Ademais, pese embora sugerir uma espécie de compensação entre a quantia reclamada pelo Autor e o preço dos anos que empenhou na união de facto, formulou um pedido reconvencional por danos não patrimoniais.

Mas será que, no quadro factual provado, não se pode considerar a existência de enriquecimento sem causa por parte da Ré?

Não está em causa a “partilha” de património, cessada a união de facto, o que a Ré deixa entrever, não se conformando, sequer, com o facto da casa ficar para si, pretendendo ainda ser indemnizada pelo Autor.

Como a jurisprudência vem acentuando não é de equiparar o regime do casamento à união de facto, sendo que após a cessação da união de facto a situação pessoal e patrimonial dos unidos não é igual à dos casados.

Como escreve Rita Xavier – “Uniões de Facto e Pensão de Sobrevivência”, in Jurisprudência Constitucional, 3, Julho-Setembro 2004, pág. 17 e segs:

“Uma união de facto não implica forçosamente solidariedade patrimonial, logo não basta a prova dessa relação para se considerar verificada a diminuição da capacidade económica…”.

O Tribunal Constitucional, quando chamado a apreciar o regime da união de facto, numa perspectiva de violação do princípio da igualdade – art. 13º da CR – em confronto com o regime do casamento, seja nas implicações pessoais e/ou patrimoniais, tem considerado que não existe violação daquele principio em relação ao regime do casamento – cfr. inter alia o Acórdão daquele Tribunal 159/05:

“… A situação de duas pessoas que declaram a intenção de conceder relevância jurídica à sua união e a submeter a um determinado regime (um específico vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução) não tem de ser equiparada à de quem, intencionalmente, opta por o não fazer.
O legislador constitucional não pode ter pretendido retirar todo o espaço à prossecução, pelo legislador infra-constitucional, cujo programa é sufragado democraticamente, de objectivos políticos de incentivo ao matrimónio enquanto instituição social, mediante a formulação de um regime jurídico próprio – por exemplo, distinguindo entre a posição sucessória do convivente em união de facto (reduzida ao referido direito a exigir alimentos da herança) e a do cônjuge.
A diferenciação de tratamento em causa na presente norma não pode, assim, ser considerada como destituída de fundamento razoável ou arbitrária, verificando-se, por outro lado, um indiscutível paralelo entre ela e o tratamento sucessório de ambas as situações (introduzido pela reforma de 1977 e cuja conformidade com a Lei Fundamental não é aqui questionada)”.

No caso de cessação da união de facto, o instituto do enriquecimento sem causa deve, em princípio, ser aplicável no que respeita à divisão do património.

Importará, também, saber se ambos contribuíram para ele, pois pode bem acontecer que apenas um dos elementos dessa união tenha investido no património que “construíram”.

O art. 473º do Código Civil consigna:

“1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa tem por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.

Segundo Pompónio o instituto do enriquecimento sem causa – Digesto 50, 17, 206 – “iure naturae aequum est neminem cum alterius detrimento et iniuria fieri locupletiorem” [por direito natural, é justo que ninguém se enriqueça com prejuízo e ofensa de outrem] – visa evitar que alguém avantaje o seu património à custa de outrem, sem motivo que o justifique.

O nº2 daquele normativo integra três situações:

- o que foi indevidamente recebido (condictio indebiti);
- o que foi recebido em virtude de causa que deixou de existir (condictio ob causam finitam);
- o que foi recebido com base em efeito que não se verificou (condictio causa data causa non secuta, também chamada condictio ob rem).

Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, págs. 454 a 456, ensinam:

“A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos:
É necessário, em primeiro lugar, que haja um enriquecimento.
Em segundo lugar, que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.
Finalmente, que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição”.

Na mesma obra, pág. 466, escrevem:

[…] O objecto da obrigação de restituir é determinado em função de dois limites: em primeiro lugar, o beneficiado não é obrigado a restituir todo o objecto da deslocação patrimonial operada (ou o valor correspondente, quando a restituição em espécie não seja possível).
Deve restituir apenas aquilo com que efectivamente se acha enriquecido, podendo haver diferença — e diferença sensível — entre o enriquecimento do beneficiado à data da deslocação patrimonial e o enriquecimento actual […].
[…] O enriquecimento assim delimitado corresponderá à diferença entre a situação real e actual do beneficiado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria, se não fosse a deslocação patrimonial operada […]
[…] Em segundo lugar, o objecto da obrigação de restituir deve compreender “tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido”.
[…] Além do limite baseado no enriquecimento (efectivo e actual), a doutrina corrente tem aludido a um outro limite da obrigação de restituir, que consistiria no empobrecimento do lesado”.

“O enriquecimento sem causa depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) existência de um enriquecimento; b) que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique; c) que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição; d) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído” Acs. deste Supremo Tribunal de Justiça , de 23.4.1998, in BMJ, 476-370 e de 14.5.1996, CJST, 1996, II, 71.

Ora, tendo em conta o acordo feito pelo Autor e pela Ré, no que respeita à obrigação desta, após o divórcio daquele, transferir a propriedade da casa, a Ré que não teve qualquer contribuição patrimonial efectiva, recusou-se, não obstante, a proceder conforme o combinado, ou seja, a transferir a propriedade do imóvel.

Vê, sem dúvida, o seu património avantajado à custa do Autor que foi quem pagou integralmente as despesas da compra do imóvel que é agora seu, apenas por causa daquela recusa, sendo que nada despendeu para a aquisição e realização de obras na casa.

Há, pois, enriquecimento, vantagem patrimonial à custa do património do Autor.

Mas será que esse enriquecimento não tem como contrapartida, como causa [hoc sensu], o facto do Autor ter vivido em comum com a Ré durante sete anos e daí existir uma contrapartida dessa convivência que, moralmente, atribua um motivo para a recusa da Ré e assim oferte causa para deslocação patrimonial?

Respondemos negativamente.

A Ré não pode contrapor com vantagens (2) de índole não patrimonial, alegando o seu contributo pessoal para a união de facto, para sustentar que existe relação entre o enriquecimento e o empobrecimento (3).
Se a boa-fé impõe um dever de agir com lisura no contexto das relações interpessoais e negociais que demandam a protecção do direito, entendemos que a Ré não pode invocar a união de facto para considerar que a actuação do Autor exprimiu uma liberalidade, ou que tinha uma expectativa de vida duradoura e, no contexto dessa união sentimental, estava como contrapartida o ficar com a casa sem nada ter que pagar ao Autor.

Se assim fosse havia um motivo que excluía o enriquecimento. Mas não há.

A Ré sabe que violou um acordo e que essa violação é a causa directa do seu enriquecimento e do empobrecimento do Autor – do património deste não fará parte a casa – e, por sua vez a Ré, sem nada ter despendido, ficou proprietária de um imóvel, repete-se, apenas e tão só porque não honrou o acordo que estabeleceu com o Autor, não se podendo falar em qualquer contitularidade do imóvel por via do estatuto da união de facto.

Não há, assim, uma causa para a deslocação de um bem que deveria ser património do Autor para o património da Ré.

A Ré deve, pois, restituir aquilo que obteve à custa do Autor.

Sustenta Ré que a actuação do Autor exprime abuso do direito.

A figura do abuso do direito está ligada à actuação da boa-fé, tributária do princípio da confiança, e daí que quem age violando tais princípios e o faz de maneira clamorosa, chocante do sentimento de justiça prevalente na comunidade, deve ver o seu direito paralisado, ou seja, não merece a protecção da lei.

Dispõe o art. 334º do Código Civil:

“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

O instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante.

O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.” – Ac. deste STJ, de 28.11.96, in CJSTJ, 1996, III, 117.

A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.

Uma das vertentes em que se exprime tal actuação, manifesta-se, quando tal conduta viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou – “venire contra factum proprium”.

No âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória – “venire contra factum proprium” – que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.

“Há abuso do direito, segundo a concepção objec­tiva aceite no artigo 334º sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito.
Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; basta que, objectivamente, se excedam tais limites”. – “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536, Antunes Varela.

Para que se possa considerar abusivo o exercício do direito, importa demonstrar factos, através dos quais se possa considerar que, ao exercê-lo se excede, manifestamente, clamorosamente, o seu fim social ou económico, ou que a pretensão viola sérias expectativas incutidas na contraparte, assim traindo o investimento na confiança, o que exprime violação da regra da boa-fé.

O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.

A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.

Como ensina o Professor Antunes Varela, obra citada, pág. 536:

“Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.
É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido, “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.

Como ensina Fernando Cunha e Sá, in “Abuso do Direito “ – pág. 640:

“O abuso prescinde quer da causação de danos (pode haver um acto abusivo não danoso) quer, quando os haja, qualquer elemento subjectivo, na forma de dolo ou de mera culpa; ora sendo assim, a exigência de culpa requisito da responsabilidade civil por actos abusivos, depende da possibilidade de emitir um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, pois nisso mesmo é que consiste a culpa.
Dito por outras palavras, depende da existência de um dever que impenda sobre o titular do direito subjectivo ou da diversa prerrogativa jurídica e que este tenha violado voluntariamente.”.

Se se tivesse provado que o Autor, de alguma forma, tinha incutido na Ré, com a sua actuação, que não pretendia para si a casa, e que agora, quiçá pela desavença amorosa, retaliava com a exigência da transferência da propriedade, aí havia violação da boa-fé e da confiança incutida pela actuação anterior a evidenciar claro “venire contra factum proprium”.

Mas dos factos resulta que o acordo – fosse qual fosse o desfecho da relação sentimental (circunstância que nunca foi aventada) – em nada seria influenciado por ela, e assim sendo, não teria a Ré que se surpreender com o facto do Autor – após se ter divorciado lhe pedisse que, em cumprimento do incondicionado acordo, transferisse para si a propriedade do imóvel, já que suportou economicamente todos os custos – o que sem justa causa a Ré recusou.

Não há conduta abusiva do direito do Autor.

A Ré, ao contrapor como que uma “compensação” pelo contributo para a vida quotidiana da economia conjunta de ambos, sem nenhuma prova ter feito da expressão pecuniária desse contributo (não está aqui em causa o valor sentimental dessa união e a solidariedade nela implícita), de certo modo abusa do direito, ao pretender que o Autor não tem direito a exigir a restituição daquilo que despendeu.

Finalmente, cumpre dizer que o Acórdão não enferma de nulidade por pretensa condenação ultra petitum – art. 668º, nº1, e) do Código de Processo Civil – quando condena a Ré a restituir ao Autor os bens pessoais dele e do filho menor.

Esse pedido tem de se entender compreendido na al. b)

Pelo exposto soçobra pretensão recursiva da Ré.

Decisão:

Nestes termos nega-se a revista.

Custas pela Ré/recorrente.

Lisboa, 9 de Março de 2010

Fonseca Ramos (Relator)

Cardoso de Albuquerque

Salazar Casanova


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(1) “…Verifica-se que o acervo conclusivo das alegações de revista mais não é do que a reprodução integral, e “pari passu”, das conclusões da apelação.
O Acórdão recorrido não é remissivo, antes abordando todas as questões que a recorrente suscitara perante a Relação.
Ora, sendo a revista destinada a impugnar o julgado pela Relação, a argumentação recursiva deve ser dirigida a este aresto, que não ao decidido na 1ª instância.
Isto é, deve atacar os pontos concretos da decisão recorrida sendo que, e como julgou o Acórdão do STJ de 21 de Dezembro de 2005 – 05B2188 – não o fazendo, “o recorrente não atendeu verdadeiramente ao conteúdo do Acórdão recorrido, antes na realidade reiterou a sua discordância relativamente à decisão apelada, sem verdadeira originalidade ou aditamento que tivesse em conta a fundamentação do Acórdão sob recurso.”
Nesta perspectiva – que se acolhe – ou se entende que a prática de reprodução alegatória equivale à deserção do recurso, por falta de alegações, porque, embora se possa dizer que, formalmente foi cumprido o ónus de formar conclusões, já em termos substanciais é legitimo inferir que terá faltado uma verdadeira e própria oposição conclusiva à decisão recorrida nomeadamente porque a repetição não atingiu apenas as conclusões, afectando também o corpo das alegações” (Acórdão do STJ de 11 de Maio de 1999 – Pº 257/99 – 1ª); ou, e numa óptica menos rígida, se aceita o recurso mas se considera plenamente justificado o uso da faculdade remissiva do nº5 do artigo 713º do Código de Processo Civil (cf. Acórdão citado de 21 de Dezembro de 2005).
Como julgou o Acórdão de 3 de Outubro de 2006 (Pº 2993/06) do mesmo Relator, “adere-se a este entendimento jurisprudencial, sempre enfatizando que a decisão recorrida é “o Acórdão da Relação e não a sentença da 1ª instância – cf., v.g. os Acórdãos do STJ de 12 de Julho de 2005 – Pº 1860/05 – 2ª; de 17 de Março de 2005 – Pº 1304/04-2ª; de 22 de Setembro de 2005 – Pº 3727/03-2ª e Pº 2088/05-2ª – e na linha dos Acórdãos de 27 de Abril de 2006 – 06 A945 – e de 18 de Maio de 2006 – 06 A1134 – deste mesmo Relator, considera-se que nestes casos, se legitima plenamente o uso da faculdade remissiva ou, quando muito, uma fundamentação mais sucinta. (cf. ainda, o Acórdão de 22 de Setembro acima citado – 03B727).”
(2) “O enriquecimento terá de ser avaliável em dinheiro ou poderá ainda consistir tão-só em vantagens não patrimoniais, destituídas de valor económico? Parece fora de dúvida a solução afirmativa, sempre que a vantagem obtida, embora de ordem não patrimonial, produza consequências apreciáveis em dinheiro, quer dizer, quando se converta numa vantagem patrimonial indirecta. E este último aspecto é o que no fundo releva. Já não se pode sustentar o mesmo, tratando-se de urna pura e simples vantagem moral ou ideal conseguida à custa alheia”. – Almeida Costa, in “Direito das obrigações”, 11ª edição, págs.493/494. O mesmo autor, obra citada, pág.500, sobre o conceito de ausência de justa causa, ensina - “Reputa-se que o enriquecimento carece de causa, quando o direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial; sempre que aproveita, em suma, a pessoa diversa daquela a quem, segundo a lei, deveria beneficiar. Mas ele é apenas ajurídico, no sentido de substancialmente ilegítimo ou injusto, e não formalmente antijurídico”.
(3) “Relativamente ao conceito de enriquecimento referido no art. 473º, n.°l, do Código Civil, este deve ser entendido no sentido de vantagem de carácter patrimonial, excluindo-se assim do âmbito deste instituto as vantagens obtidas à custa de outrem, que não sejam susceptíveis de avaliação pecuniária, como sucede com os benefícios de cariz espiritual ou moral” – Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, volume I, 8ª edição, pág. 459.