Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P341
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RODRIGUES DA COSTA
Descritores: REJEIÇÃO
MEDIDA DA PENA
ABUSO SEXUAL DE MENOR
Nº do Documento: SJ20070503003415
Data do Acordão: 05/03/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
1 - Não é admissível recurso para o STJ do acórdão confirmativo da Relação (dupla conforme) relativamente a vários crimes de abuso sexual na forma tentada, por força do disposto no art 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, já que releva tão só a pena correspondente a cada crime, indiferente se apresentando o concurso de crimes, como expressamente resulta da inserção na norma da expressão «mesmo em caso de concurso de infracções»;
2 - Também não é admissível recurso para o STJ de acórdão da Relação (confirmativo ou não confirmativo da decisão de 1.ª instância) relativamente a crime de abuso sexual através de conversa obscena, por aplicação do disposto no mesmo normativo, alínea e).
3 - Cabe, no entanto, nos poderes de cognição do STJ, a pena conjunta aplicada em relação a esses crimes, desde que a pena aplicável, nos termos do art. 77.º, n.º 2 do CPP, ultrapasse, no seu máximo, o limite de 8 anos de prisão
4 - No crime previsto e punido pelo art. 172.º, n.º 2 do CP, é de considerar, em sede de determinação concreta da pena, o grau de desenvolvimento do menor, não sendo certamente a mesma coisa praticar algum dos actos inscritos no âmbito de protecção da norma com uma criança de 5, 6 ou 7 anos, ou com um jovem de 13 anos, que despertou já para a puberdade e que é capaz de erecção e de actos ligados à sexualidade que dependem da sua vontade, ainda que se possa dizer que essa vontade é irrelevante para efeitos de caracterização do tipo. *

* Sumário elaborado pelo relator
Decisão Texto Integral:
1. Em processo comum e perante tribunal colectivo, no Tribunal da Comarca de Celorico de Basto, foi julgado o arguido AA, com a alcunha de “…”, casado, sapateiro, nascido a 25 de Dezembro de 1964, natural de …, Celorico de Basto, onde tinha a sua residência, actualmente preso preventivamente à ordem deste processo no Estabelecimento Prisional Regional de Vila Real, acusado de quatro crimes de abuso sexual de crianças, na forma tentada, previstos e punidos nos termos do art. 172º n.º 2 e 23º n.º1 do Código Penal (CP), dois deles na pessoa do menor BB, um na pessoa do menor CC e o último na pessoa do menor DD; um crime de abuso sexual de criança através de conversa obscena na forma consumada, p. e p. nos termos do art. 172º n.º 3 b) do C P, na pessoa do menor EE; um crime de abuso sexual de criança consumado, na forma continuada, p. e p. nos termos do art. 172º n.º 2 e 30º do Código Penal, na pessoa do menor FF.
No final, o arguido foi condenado:
- Por três crimes de abuso sexual de criança, na forma tentada, nas penas, respectivamente, de 8 (oito), 9 (nove) e 10 (dez) meses de prisão;
- Pelo crime de abuso sexual de criança através de conversa obscena, na pena de 1 (um) ano de prisão;
- Pelo crime de abuso sexual de criança na forma continuada, na pena 6 (seis) anos e 5 (cinco) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 7 (sete) anos e 5 (cinco) meses de prisão.
2. Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães, que manteve integralmente o decidido.
3. Ainda inconformado, o arguido recorreu para este Supremo Tribunal, concluindo:
1 - A proibição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça constante do disposto na al. f) do art° 400.º do Código do Processo Penal é inconstitucional, por violação do direito ao recurso conjugado com o princípio da igualdade (artigos 329, n.º l, e 13°, n° l, da Constituição), na interpretação segundo a qual não é admissível o recurso interposto apenas pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, quando a pena de prisão prevista no tipo legal de crime for superior a oito anos, mas a pena concretamente aplicada ao arguido – insusceptível de agravação por força da proibição da reformation in pejus - tenha sido inferior a oito anos - cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 628/2005 de 15 de Novembro de 2005—Processo n.º 707/2005 – 2. Secção (Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma)
2 - A mãe do menor FF e GG quando foi inquirida em sede de Audiência de Julgamento afirmou que nunca apresentou queixa e que nunca declarou que o pretendia fazer
3 - Assim, pensamos que não foi exercido o direito de queixa que teria que ser formalmente expresso em requerimento autónomo e dentro dos prazos legais e não o constante de simples declaração, aliás não confirmada pelo declarante.
4 - Em relação ao menor DD também não foi apresentada qualquer queixa-crime
5 – Assim, tratando-se como se trata de crimes de natureza semi-pública previstos e punidos pelo art. 172° do CP que dependem de queixa - cfr.art. 178.º n.º 1 do CP, ⌠a queixa é imprescindível⌡, sob pena de este direito se extinguir pelo decurso do tempo como foi o caso.
6 - A falta de legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal constitui nulidade insanável invocável a todo o tempo, equivalendo à falta de promoção pelo ministério público, cfr. art.° 119° al. b) do CPP
7 - Por outro lado, e sem prescindir, e quanto à determinação da medida da pena aplicada ao arguido, sempre se dirá que esta é excessiva. Assim,
8 - Teremos que atender aos antecedentes criminais constantes do certificado de registo criminal de fls., no qual nada consta, bem como ao facto do presente processo ter sido despoletado por factos a que o arguido era completamente alheio, tendo este sido julgado por factos que este confessou em inquérito e só por este motivo. Por outro lado, devemos ter em conta a Relatório Social (IRS).
9 - Face a estes factos, pensamos que a pena ajustada a aplicar, caso improcedam as nulidades supra invocadas, seria a do limite mínimo das penas de cada crime, efectuando o cúmulo jurídico das mesmas.
3. Respondeu o Ministério Público junto do tribunal “a quo”, pugnando pela manifesta improcedência do recurso.

4. Neste Supremo, o Ministério Público manifestou a mesma opinião, em parecer emitido ao abrigo do disposto no art. 416.º do CPP, no qual sustentou tal conclusão no facto de o recorrente se ter limitado a repetir “a argumentação já ponderada pelo Tribunal da Relação, sem aduzir nada de novo que pudesse contrariar ou pôr em crise a posição assumida por aquela Relação”.
Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido nada veio acrescentar.
5. No despacho preliminar, o relator entendeu ser de prosseguir com o processo para audiência.
6. Colhidos os vistos, realizou-se a audiência de julgamento.
O Ministério Público, quanto à questão da legitimidade do Ministério Público para a promoção da acção penal, remeteu para a fundamentação do acórdão recorrido, que, nessa parte, segundo o seu ponto de vista, responde totalmente à questão.
Quanto à medida da pena, sustentou a sua correcção, mas admitindo a justeza da pena de 6 anos e 5 meses, para a hipótese de se entender esta como mais correcta.
A defesa remeteu para a motivação de recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO
7. Matéria de facto apurada
7.1. Factos dados como provados:

1. Em data não concretamente apurada, mas que se situa no ano de 2000, o arguido, AA, começou a sentir uma forte atracção sexual por rapazes com idades compreendidas entre os onze e os treze anos, razão pela qual começou a procurar crianças, do sexo masculino, com idades compreendidas no referido escalão etário, para com elas manter relações sexuais;
2. Em data não concretamente apurada, mas localizada no ano de 2000, quando a criança BB contava apenas 10 anos, o arguido abordou-o à saída da Escola Primária que frequentava e convidou-o a dar um passeio de moto consigo e que lhe mostraria umas revistas pornográficas, o que este, receoso da fama que aquele tinha de abusar sexualmente de crianças, recusou;
3. Novamente o abordou, num Domingo, quando seguia acompanhado de um irmão, esse com 13 anos, oferecendo-lhe boleia; pela aludida razão, este mais uma vez recusou;
4. No ano de 2003, quando o BB já contava 13 anos, o arguido abordou-o e, de dentro do veículo automóvel, de cor vermelha, em que se fazia transportar, disse-lhe:”Vem andar de moto comigo que eu mostro-te revistas pornográficas”;
5. No ano de 2002, o arguido deu uma boleia à criança EE e, como em tempos havia transportado frequentemente este menor e o seu irmão mais velho sem que houvesse mantido qualquer conversa relacionada com sexo, este aceitou-a;
6. Durante o percurso o arguido perguntou ao menor a sua idade e este respondeu ter 12 anos, ao que o arguido retorquiu “Quando tiveres 13 anos vou-te por a piça a gemer”;
7. Em data não concretamente determinada, mas que situa em fins do ano de 2004 e o início de 2005, a criança CC, com 14 anos, foi à sapataria onde o arguido trabalha e uns dias mais tarde encontraram-se na rua tendo o arguido resolvido acompanhar aquela criança, com ele entabulando conversa;
8. Assim, começou por lhe perguntar se tinha namorada e se com ela mantinha relações sexuais; como o CC lhe respondeu afirmativamente, ele pediu-lhe que lhe contasse como tal havia decorrido;
9. Num terceiro contacto, tendo o CC voltado à sapataria onde o arguido trabalhava, este perguntou-lhe se queria ir dar uma volta com ele para o monte, o que concretizou nos seguintes termos “quero mostrar-te a piroca e mostras-me a tua. Vou mostrar-te uma coisa de que vais gostar”;
10. Como percebeu que o arguido pretendia manter consigo relações sexuais, o CC recusou tal convite;
11. O arguido ainda o contactou mais uma vez quando seguia num veículo automóvel de cor vermelha, com uma criança pequena, do sexo masculino. Chamou o CC e perguntou-lhe se queria ir com ele dar uma volta pelo monte; porém, como este respondeu negativamente, o arguido agarrou-o pelas mãos puxando-o para dentro do carro; todavia o menor fugiu para junto dos amigos;
12. No ano de 2004, também em data não concretamente apurada, no fim de um jogo de futebol, que havia ocorrido no Campo da Cruz, nesta comarca de Celorico de Basto, o arguido, falando baixinho, convidou o DD, ao tempo com 12 anos e que estava acompanhado pelo pai, para, no dia, seguinte ir jogar bilhar;
13. Como o DD não apareceu, o arguido, conhecedor dos trajectos que este utilizava, começou a esperá-lo, às quintas-feiras, quando saia das aulas. Para tanto, imobilizava o seu veículo automóvel junto da Estação de Comboios desactivada e esperava que este aparecesse;
14. Costumava oferecer boleia ao DD e, como este recusava, dava a volta com o carro e esperava-o, mais à frente, por onde sabia que ele teria de passar. Uma vez ofereceu-lhe uma bola de futebol, mas como o menor fugiu ele correu no seu encalço, não o conseguindo porém apanhar;
15. O último contacto deu-se em fins de Novembro de 2004 e, como decorria a Festa da Vila de Celorico de Basto, o arguido ofereceu ao DD uma ficha para os carrinhos de choque, o que este aceitou;
16. Pouco tempo depois o arguido voltou a chamar o DD e disse-lhe “dou-te vinte fichas se me chupares a pila”;
17. No Verão de 2004, mas ainda durante ao ano lectivo, o arguido, que usava um veículo automóvel de cor cinzenta, começou a ir com frequência à casa da sua mãe, que se situa em Vale de Maria, Britelo, Celorico de Basto, a qual é próxima da casa dos pais do menor FF, tendo este começado a vê-lo com frequência;
18. Quando o FF, então com 13 anos, regressava da escola, tanto à hora de almoço como ao fim da tarde, era abordado pelo arguido, o qual lhe perguntava se queria acompanhá-lo até uma garagem, a qual era próxima de casa, pois deslocando-se a pé levaria cerca de 6 minutos para chegar da casa dos pais do menor até lá;
19. Num desses dias, em data não concretamente determinada, o menor acompanhou o arguido até à referida garagem, foram a pé, de modo a que o FF aprendesse a como lá chegar;
20. Uma vez no interior daquela garagem o arguido despiu as suas calças e cuecas, de seguida despiu as calças e cuecas do FF e começou a mexer-lhe no pénis, friccionando-o até este ficar erecto, acto continuo meteu o pénis do menor na boca, começando a chupá-lo;
21. Como entretanto o arguido também tinha o pénis erecto ordenou ao menor que o chupasse, o que este, apesar de não o querer fazer porque tal lhe suscitava nojo, fez ainda assim por tal lhe ter sido ordenado;
22. Depois deste dia, o arguido passava a estacionar o seu carro próximo daquela garagem, esperando pelo FF no seu interior, sendo que previamente lhe ordenava que lá fosse ter com ele, o que veio a suceder sete vezes, sendo certo que, em todas elas, sucedia o mesmo, depois de se despirem o arguido estimulava o pénis do menor, com as mãos, depois deste ficar erecto, metia-o na boca chupando-o, de seguida; como ele próprio tivesse já o seu pénis erecto, ordenava ao menor que lhe fizesse o mesmo;
23. De todas essas vezes o FF não queria fazê-lo uma vez que era uma coisa que lhe metia nojo, por outro lado era grande e fazia-o sentir-se sufocado;
24. Em dois destes encontros, para além do descrito, o arguido ordenou ao FF que se virasse de costas e esfregou-lhe o pénis erecto no ânus do menor, nele o friccionando com movimentos constantes sem contudo chegar a ejacular. Simultaneamente, com as mãos, friccionava o pénis do menor, “para cima e para baixo” até este deixar de estar erecto;
25. O arguido também disse ao FF que fosse ter com ele ao “monte”, por trás da casa dos seus pais, o que veio a suceder por mais três vezes, sendo certo que o ritual era exactamente o mesmo, isto é, depois de despirem calças e cuecas, o arguido estimulava o pénis do menor, com as mãos, depois deste ficar erecto, metia-o na boca chupando-o, de seguida, como ele próprio tivesse já o seu pénis erecto, ordenava ao menor que lhe fizesse o mesmo;
26. De seguida o arguido ordenou ao FF que se virasse de costas e, mais uma vez esfregou o seu pénis no ânus do menor, friccionando-o com movimentos constantes. Simultaneamente, com as mãos, friccionava o pénis do menor, “para cima e para baixo” até este deixar de estar erecto;
27. Também por duas vezes o arguido ordenou ao FF que fizesse penetrar o pénis erecto no seu ânus, tendo para esse efeito dito que “lhe metesse a pila no cu”, o que o menor fez efectuando, a seu mando, movimentos “para a frente e para trás”; também desta feita o menor actuou contra a sua vontade fazendo-o apenas por lhe ter sido ordenado que fizesse;
28. Depois de cada um dos referidos encontros, em que se deram os factos descritos, o arguido ordenava ao FF que não os contasse a ninguém ao que este obedeceu, não só pelo receio que aquele lhe incutia mas também por ter vergonha.;
29. O arguido foi mantendo o seu comportamento sobre este menor, o que foi sendo propiciado pelo facto do menor não contar a ninguém o que se ia passando, bem como pelo facto de não ser descoberto, sendo certo que tal apenas cessou porque o menor, não suportando mais os actos que lhe iam sendo impostos, começou a fugir sempre que o via;
30. O arguido agiu perante os menores EE, CC e DD, no intuito de os levar a manterem consigo relações sexuais, apesar de bem saber que não era da vontade destes e que, além disso, por força das suas idades, até 14 anos, as quais ele bem conhecia, estes nunca teriam capacidade para avaliar e querer pelo que tal nunca caberia nas acções livremente tomadas por eles;
31. Quanto a estes só não conseguiu concretizar os seus intentos porque os menores se recusaram a acompanhá-lo e o arguido tinha consciência de que não poderia obrigá-los sob pena de vir a ser descoberto e, por isso, ter de fazer cessar a sua actividade;
32. Relativamente ao menor EE, o arguido utilizou um tipo de expressão cuja forma e conteúdo bem sabia terem uma conotação obscena e chocante, que poderia ter, como teve, um efeito que este não teria de tolerar;
33. Já no que respeita ao menor FF, o arguido agiu com o intuito firme e determinado, que concretizou, de lhe esfregar o pénis no ânus e de lhe impor a prática coito oral, bem sabendo que tal não era da sua vontade e que por força da sua idade, 13 anos, o FF nem sequer tinha ainda a capacidade de avaliar e querer;
34. Agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo da natureza reprovável e proibida da sua conduta;
35. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido;
36. O arguido é oriundo de uma família monoparental, sendo o mais novo de seis irmãos, nascido de um relacionamento ocasional mantido pela sua progenitora;
37. O seu percurso de desenvolvimento processou-se num ambiente familiar desfavorecido e pouco organizado, inexistindo qualquer ligação afectiva entre o arguido e o progenitor, apresentando-se este como uma figura ausente quer quanto ao elemento transmissor de regras e modelos comportamentais quer como responsável pela manutenção do filho;
38. A progenitora teve, assim, de assegurar sozinha a condução do processo educativo dos filhos e simultaneamente a manutenção da família, sentindo a mesma dificuldades em proporcionar aos descendentes um clima familiar estável e funcional, bem como adequadas condições de vida, negligenciando as suas funções maternais;
39. A manutenção de várias relações afectivas por parte da progenitora do arguido implicou que a mesma tivesse filhos de diferentes companheiros, facto que foi condicionando negativamente a estabilidade familiar e a imagem social da família;
40. A situação de vida do agregado familiar do arguido implicava que este e os seus irmãos vivessem um pouco entregues a si próprios, sendo frequente os irmãos mais velhos substituírem a progenitora na organização da vida familiar e, particularmente, na responsabilização pelas tarefas relativas aos cuidados dos elementos mais novos da fratria, tendo, por isso, o crescimento do arguido decorrido sem uma estruturada supervisão parental;
41. O arguido iniciou a sua escolarização em idade normal, numa escola de Celorico de Basto, e completou a 4ª classe aos 13 anos de idade, tendo manifestado dificuldades de aprendizagem que implicaram algumas retenções;
42. Integrou-se profissionalmente logo após a conclusão dos estudos, como sapateiro, trabalhando de forma regular no conserto de calçado numa sapataria de Celorico de Basto;
43. Integrou o meio familiar de origem até à altura em que constituiu família própria, há 12 anos, mantendo uma relação afectiva estável e equilibrada com a cônjuge e com os dois filhos do casal. A vida familiar foi sendo estruturada de forma adequada, beneficiando o agregado de uma situação estável ao nível económico, o que permitiu assegurar a satisfação das necessidades dos seus vários elementos;
44. O arguido continuava a trabalhar como sapateiro, actividade que exerceu durante 22 anos, sempre com regularidade, e a cônjuge exercia a actividade de empregada de balcão numa peixaria e, ainda, de empregada de limpeza, a horas, contribuindo desta forma os dois elementos do casal para o orçamento familiar;
45. À data da reclusão, o arguido partilhava o seu quotidiano com a cônjuge, os filhos do casal e com uma cunhada;
46. Após a reclusão do arguido, a sua esposa tem assumido a organização e a manutenção do agregado familiar, conseguindo garantir alguma estabilidade económica, o que lhe permite satisfazer as necessidades mais prementes dos vários elementos da família;
47. Os filhos do arguido encontram-se com idade escolar e a cunhada apresneta um ligeiro atraso mental, pelo que não exerce qualquer actividade profissional, dedicando-se em exclusivo às lides domésticas;
48. A família possui ainda alguns terrenos agrícolas, que a cônjuge do arguido cultiva, sobretudo para consumo doméstico;
49. A família dispõe de uma habitação de características marcadamente rurais, propriedade da cônjuge e da cunhada do arguido, a qual proporciona razoáveis condições de habitabilidade;
50. A dinâmica familiar é normativa e compensadora sob o ponto de vista afectivo, existindo assim uma forte ligação afectiva entre o arguido e os restantes elementos do seu agregado familiar, assim como um clima positivo entre o casal;
51. A cônjuge do arguido bem como os restantes elementos da família têm vindo a apoiar o arguido, visitando-o com regularidade no E.P.R. de Vila Real;
52. No seu quotidiano, o arguido privilegiava os momentos passados em contexto familiar e no exercício da sua actividade profissional, mantendo por isso escassas e pouco aprofundadas relações de amizade e convivência no contexto social. Contudo, beneficiava de uma positiva integração ao nível comunitário, sendo a sua imagem social relativamente favorável;
53. O arguido mostra-se ansioso e preocupado com as repercussões que o desfecho do julgamento possa ter na organização da sua vida futura e da sua família. Os seus familiares mostram-se solidários consigo, estando dispostos a recebê-lo na altura da sua restituição à liberdade e a manter-lhe o necessário apoio à reorganização do seu percurso de vida;
54. A situação de vida da sua família foi prejudicada pela sua ausência, uma vez que ele contribuía de forma significativa para a sua organização interna e para a sua manutenção;
55. A imagem social do arguido foi prejudicada na sequência do actual processo, dado o forte impacto que os crimes pelos quais está acusado tiveram na comunidade, dando assim alguma consistência aos os rumores que há vários anos circulavam na comunidade relativamente à sua apetência por crianças para fins sexuais.

7.2. Factos dados como não provados:
- Que o seu último contacto com o menor DD tenha ocorrido no início do mês de Dezembro e que este tivesse 14 anos de idade aquando da abordagem que lhe foi feita pelo arguido;
- Que o arguido tenha penetrado com o seu pénis erecto no ânus do menor FF, provocando-lhe dores.

8. Questões a decidir:
- Questão prévia da admissibilidade do recurso
- A falta de legitimidade do Ministério Público
- A medida da pena.

8.1. O recorrente, como decorre do já exposto no ponto 1. do relatório, foi condenado por três crimes de abuso sexual de criança, na forma tentada, previstos e punidos pelo art. 172.º, n.º 2 e 23.º, n.º 1 do CP e por um crime de abuso sexual de criança através de conversa obscena, na forma consumada, previsto e punido pelo art. 172.º, n.º 3, alínea b) do mesmo diploma legal.
Estes crimes são puníveis em abstracto – os primeiros, com a pena de 7 meses e 6 dias a 6 anos e 8 meses de prisão, e o segundo com a pena de prisão até 3 anos.
Ora, a Relação de Guimarães confirmou, em recurso, a decisão da 1.ª instância. Como tal, não é admissível recurso para o STJ em relação a esses crimes. Quanto aos três crimes de abuso sexual na forma tentada, por força do disposto no art 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP; quanto ao crime de abuso sexual através de conversa obscena, por aplicação do disposto no mesmo normativo, alínea e). E tal solução nada tem a ver com a teoria que o recorrente ataca de inconstitucional, pois aqui o que se considera não são as penas aplicadas em concreto, mas as penas aplicáveis em abstracto, tal como previstas no respectivo tipo legal de crime.
É que, e pelo que diz respeito ao crime do art. 172.º, n.º 3 b) do CP, de acordo com o disposto na alínea e) do art. 400.º do CPP, não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3.
Como é jurisprudência pelo menos maioritária deste Supremo, se a moldura abstracta de cada um dos crimes singulares não ultrapassar os cinco anos de prisão, acha-se inequivocamente preenchida a causa de inadmissibilidade do recurso prevista naquela al. e) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, já que releva tão somente a correspondente pena, indiferente se apresentando o concurso de crimes, como expressamente resulta da inserção na norma da expressão «mesmo em caso de concurso de infracções» (Cf., entre muitos outros, os acórdãos de 18-06-03, Proc. n.º 1218/03 - 3.ª; de 16-10-03, Proc. n.º 3220/03 - 5.ª; de 29-10-03, Proc. n.º 2605/03 - 3.ª; de 11-12-03, Proc. n.º 3211/03 - 5.ª; de 14-01-04, Proc. n.º 3870/03 - 3.ª , de 03/06/04, Proc. 1591/04 – 5ª, e de 30/11/06, Proc. n.º 3943/06- 5.ª, este último tendo o aqui relator como adjunto).
A mesma jurisprudência – e agora considerando especificamente os crimes de abuso sexual de criança cometidos na forma tentada - conclui no mesmo sentido quando estejam em causa crimes puníveis singularmente com pena não superior a 8 anos de prisão e a Relação tenha confirmado a condenação (a chamada dupla conforme), e isto também mesmo em caso de concurso de infracções (Cf., entre muitos outros, os acórdãos de 14-01-04, Proc. n.º 3870/03 - 3.ª Secção , de 03/06/04, Proc. 1591/04 e de 13/1/05, Proc. n.º 3570/04, ambos da 5ª Secção). A única diferença em relação ao caso anterior consiste na exigência de confirmação da condenação, pressuposto que ali (no caso da alínea e) do art. 400.º) não é exigido, pois a gravidade de tais crimes não justifica mais do que um grau de recurso, seja qual for o sentido da decisão da Relação.
O certo é que a decisão é irrecorrível, tomando em linha de conta simplesmente as penas aplicáveis aos crimes singulares. É como se cada um dos referidos crimes fosse objecto de um processo, sendo a competência do tribunal determinada por conexão, nos termos do art. 25.º do CPP. Se cada um dos crimes tivesse sido julgado separadamente no processo atinente a esse crime, não haveria lugar a recurso para o STJ, por força da dupla conforme (no caso anterior, por força de ao crime não ser aplicável pena de prisão superior a cinco anos). Ora, não é pelo facto de todos os crimes terem sido julgados conjuntamente no mesmo processo que é admissível recurso para este Tribunal, sendo certo que a Relação confirmou a decisão condenatória relativamente a cada um dos crimes em causa. É isso mesmo que a expressão legal mesmo em caso de concurso de crimes pretende significar.
Doutrinariamente, esta posição é sufragada por GERMANO MARQUES DA SILVA: «Parece-nos que a expressão mesmo em caso de concurso de infracções significa aqui que não importa a pena aplicada no concurso, tomando-se em conta a pena abstractamente aplicável a cada um dos crimes, salvo se o Ministério Público usar da faculdade prevista no art. 16.º, n.º 3». (Curso de Processo Penal III, 2.ª Edição, Editorial Verbo 2000, p. 325).
Deste modo, não sendo admissível, não se conhecerá do recurso interposto na parte relativa aos crimes referidos, quer no que toca às penas singulares aplicadas (excepto na medida em que entram na formação da pena relativa ao concurso de crimes, cujo máximo aplicável, nos termos do art. 77.º, n.º 2 do CPP, ultrapassa 8 anos de prisão), quer na questão da legitimidade.

8.2. Passaremos, assim, directamente às questões levantadas a propósito do crime continuado de abuso sexual de criança, na pessoa do menor FF.
Neste âmbito, o recorrente levanta igualmente o problema da legitimidade do Ministério Público, alegando que, em relação a tal menor não foi exercido o direito de queixa, “que teria que ser formalmente expresso em requerimento autónomo e dentro dos prazos legais e não o constante de simples declaração, aliás não confirmada pela declarante, a ela erradamente atribuída e que se explica por manifesto lapso na transcrição do seu depoimento, por não ter sido apagada aquela expressão do suporte informático que em regra se usa como forma para anotar as declarações das testemunhas e até dos arguidos.”
Deste modo, tratando-se de crime de natureza semi-pública (artigos 172º e 178.º, n.º 1 do CP), a queixa teria de ser apresentada no prazo de seis meses a contar da data em que o representante legal do menor teve conhecimento do crime, sob pena de este direito se extinguir pelo decurso do tempo, como diz o recorrente que foi o caso, pelo que o Ministério Público careceria de legitimidade para o exercício da acção penal, incorrendo-se em nulidade insanável, equivalente a falta de promoção do processo, nos termos do art. 119.º, alínea b) do CPP.
Ora, esta questão foi colocada exactamente nos termos referidos no recurso interposto para a Relação. E a Relação encarou-a deste modo:
Os crimes de abuso sexual imputados ao arguido previstos e puníveis pelo artigo 172º do Código Penal, pelos quais o mesmo veio a ser julgado e condenado revestem inequivocamente a natureza de crimes semi-públicos porquanto, nos termos do n.º1 do artigo 178º do Código Penal, o respectivo procedimento criminal depende de queixa.
Consequentemente, a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal está dependente da apresentação de queixa (artigo 49º, n.º 1 do Código de processo Penal) por parte de quem representa os menores, ­os progenitores (artigos 113º, n.º3 do Código penal e artigos 1877º, 1881º, 1901º e 1902º, todos do Código Civil).
Mas, ao contrário do que refere o recorrente, o Ministério Público tinha plena legitimidade para exercer a acção penal relativamente aos factos de que foram vítimas os menores FF.
Com efeito, conforme decorre de fls. 28 dos autos, a mãe do menor FF, HH, prestou declarações perante a Polícia Judiciária, no dia 2de Maio de 2005, tendo na ocasião referido:
"Pelo que referiu não sabe se o AA logrou abusar sexualmente de qualquer dos seus filhos, mas caso tal se tenha verificado, deseja procedimento criminal contra o mesmo."
De seguida assinou o depoimento.
Assim dúvidas não restam de que a mãe do menor FF exerceu o direito de queixa, o qual foi manifestamente tempestivo, desde logo porque conforme preceitua o artigo 115° n.º 1 do Código Penal " O direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto ... ".
Como decorre das declarações da queixosa ela manifestou a sua vontade de proceder criminalmente sem ter a certeza se o filho foi ou não abusado, mas se as suspeitas se confirmassem desejava esse procedimento. Daí que esteja manifestamente em tempo, o que de resto não é sequer invocado pelo arguido.
É certo que, em audiência de julgamento, conforme resulta do registo da transcrição aquela HH se mostrou confusa, tanto tendo declarado ter apresentado queixa, como não o tendo feito [MP: “Olhe, a senhora chegou a fazer queixa deste senhor?”; II: “Cheguei”; MP: “Aonde?”; II: “Não eu não fiz queixa. Não cheguei a fazer queixa. Aquilo começou com uma vizinha minha. Uma senhora que o filho foi para o hospital de Guimarães…depois é que começámos a fazer queixa” (fls. 693). Advogado: “Minha senhora, a senhora nunca fez queixa deste senhor, pois não?”; II: “Não”. Advogado: “Por alguma razão em especial para não ter feito?” II: “Pronto, é como lhe digo, eu como nunca vi com os meus olhos eu não ia estar a dizer uma coisa…pronto, sei que andava atrás, não é… eu via-o com os meus próprios olhos, só que como nunca vi nada …”(fls. 697)
Simplesmente, como bem assinala o Ministério Público junto do tribunal recorrido na sua esclarecida resposta, esta circunstância de a mãe do menor FF não se recordar de ter apresentado aquela queixa não tem qualquer relevo, designadamente não significa, como pretendeu o arguido, que ela não o tivesse feito, como de facto fez, sendo certo que a lei não exige que aquela queixa seja renovada, nomeadamente em audiência de julgamento.
Por outro lado aquele auto encontra-se devidamente assinado e não foi arguido de falso, pelo que é meramente fantasista o argumento de que a declaração em causa foi erradamente atribuída àquela HH, “o que se explica por manifesto lapso na transcrição do seu depoimento, por não ter sido apagada aquela expressão do suporte informático que em regra se usa como forma para anotar as declarações das testemunhas e até dos arguidos”. .
Ora, a esta argumentação da Relação o recorrente nada opôs, como assinalou o Ministério Público junto deste Tribunal. Desta feita, o recorrente não impugnou a decisão recorrida, limitando-se a devolver ao STJ a questão que havia colocado à Relação, mas sem contrariar os argumentos e os fundamentos em que se apoiou o tribunal “a quo” para considerar improcedente o recurso para ele interposto. O recorrente continua a impugnar a decisão de 1.ª instância, que aqui não está em causa.
Assim, o recurso para este tribunal carece de motivação, o que constituiria, em bom rigor, motivo de rejeição, como advogou o mesmo Ministério Público (arts. 412.º, n.º 1 e 414.º, n.º 2 do CPP), pois a motivação exigida pressupõe a impugnação da decisão de que se recorre.
Mas ainda que assim não fosse, a questão enunciada envolve a produção de matéria de facto, assim como a interpretação e valoração desta, como se alcança limpidamente quer dos termos da motivação, quer da análise da decisão recorrida, e o recurso para o STJ, como tribunal de revista que é, apenas pode versar matéria de direito (arts. 432.º alínea d) e 434.º do CPP).
Assim, não se toma conhecimento do recurso nesta parte.
8.3. Resta, assim, como única questão atendível e revestindo natureza jurídica, a questão da medida da pena, quer a pena singular aplicada pelo crime de abuso sexual de criança cometido na pessoa do menor FF, quer a medida da pena única, afinal a questão que foi determinante para a decisão de fazer prosseguir o processo para julgamento.
O recorrente impugna a medida da pena, não adiantando, porém, motivos muito relevantes. Invoca a ausência de antecedentes criminais e o facto de “o presente processo ter sido despoletado por factos a que o arguido era completamente alheio, tendo este sido julgado por factos que este confessou em inquérito e só por este motivo”. Diz ainda o recorrente que é preciso ter em conta o relatório do IRS.
O crime – do art. 172.º, n.º 2 do Código Penal – é punido com a pena de 2 a 10 anos de prisão, devendo ainda ter-se em conta a continuação criminosa, nos termos do art. 30.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, tal como foi equacionado na decisão recorrida.
A determinação da medida concreta da pena há-de recortar-se no âmbito da referida moldura penal abstracta, tendo em atenção os parâmetros da culpa e da prevenção fixados no n.º 1 do art. 71.º, e os factores relevantes para tal efeito constantes de forma exemplificativa do n.º 2 – grau de ilicitude, modo de execução, gravidade das consequências, intensidade do dolo, fins ou motivos, condições pessoais do agente, conduta anterior e posterior ao facto, etc.
Numa outra perspectiva: a determinação da medida concreta da pena há-de efectuar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, quer a prevenção geral positiva ou de integração (protecção de bens jurídicos), quer a prevenção especial (reintegração do agente na sociedade) – art. 40.º n.º 1 do CP - funcionando a culpa como limite máximo que aquela pena não pode ultrapassar (n.º 2 do mesmo normativo).

A medida da tutela dos bens jurídicos, correspondente à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a prevalência dos bens jurídicos violados com a prática do crime, entre esses limites se devendo satisfazer, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, p. 227).

As circunstâncias referidas no n.º 2 do art. 71.º do CP, actuando no âmbito da moldura penal abstracta sem quaisquer pontos ou limites predefinidos, constituem os itens a que deve atender-se para a fixação concreta da pena, que há-de situar-se dentro da submoldura definida pelas exigências de prevenção geral do caso, cujo limite máximo não pode ultrapassar a medida da culpa e cujo limite mínimo constitui a exigência irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico.
Ora, no tipo legal de crime em referência visa-se “a protecção da autodeterminação sexual face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, presumindo a lei que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o seu desenvolvimento”, como, na linha do Comentário Conimbricense, se diz na decisão da 1.ª instância, confirmada pela Relação. Todavia, como também se escreveu na mesma decisão, em sede de fixação da pena, há que levar em conta as circunstâncias concretas que modelaram a actuação do arguido. E, dentro dessas circunstâncias, a idade da vítima não é indiferente, muito embora a sua idade – 13 anos – esteja situada dentro dos limites de protecção do bem jurídico especifico aqui em causa, considerando-se a agressão a esse bem jurídico pelas formas indicadas na lei como abuso sexual de criança, desde que o menor tenha menos de 14 anos.
Por outro lado, não sendo necessária a coacção para a relevância da agressão ao referido bem jurídico, nos termos sobreditos, a verdade é que é diferente, em termos de ilicitude, ter ou não existido coacção, assim como é de considerar, em sede de determinação concreta da pena, o grau de desenvolvimento do menor, não sendo certamente a mesma coisa praticar algum dos actos inscritos no âmbito de protecção da norma com uma criança de 5, 6 ou 7 anos, ou com um jovem de 13 anos, que despertou já para a puberdade, como é o caso dos autos, em que a vítima era capaz de erecção e de actos ligados à sexualidade que dependiam da sua vontade, ainda que se possa dizer que essa vontade é irrelevante para efeitos de caracterização do tipo.
Por último, será necessário atentar em todo o condicionalismo que levou o tribunal de 1.ª instância, com o aval da Relação, a qualificar os diversos actos praticados pelo arguido como um crime continuado – condicionalismo em que avulta o facto de o menor ir comparecendo aos encontros marcados pelo arguido, o que veio a suceder sete vezes. Por sua vez, o arguido foi mantendo o seu comportamento sobre este menor, o que foi sendo propiciado pelo facto de o menor não contar a ninguém o que se ia passando, bem como pelo facto de não ser descoberto. Isto, muito embora, o ofendido FF, como se anota na mesma decisão, aliás de acordo com a matéria de facto, não contasse a ninguém, por vergonha e por receio do arguido, que se limitou a “ordenar” ao ofendido que não contasse o que se passava entre eles.
Neste condicionalismo, considerando que o dolo, sendo directo, não apresenta especificidades em relação ao dolo requerido pelo tipo, e que a ilicitude é mediana, para usar a expressão usada na decisão da 1.ª instância, corroborada pelo acórdão da Relação, considerando ainda as circunstâncias relativas à personalidade do arguido e que foram destacadas na decisão recorrida a partir do relatório social, reproduzido na sua essência na factualidade provada, a sua primariedade, a sua integração familiar e, de acordo com a própria decisão condenatória, a sua estigmatização no meio em face deste processo, apesar de anteriormente se poder considerar que o arguido estava plenamente integrado socialmente , a pena aplicada mostra-se claramente excessiva e desproporcionada, justificando, assim, a intervenção correctiva deste Supremo Tribunal.
Na verdade, o STJ tem poderes para rever a medida da pena, não relativamente ao quantum exacto, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado (...), mas já quando tiverem sido violadas as regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada ( FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 197).

No caso, como dissemos, o quantum fixado é de todo desproporcionado, atendendo não só às regras da experiência, como a todo o condicionalismo acima exposto com relevância legal para a determinação concreta da pena.

O tribunal da 1.ª instância, com o aval da Relação, sobrevalorizou a componente da prevenção geral positiva, filtrada através da sua relevância mediática, com as distorções que uma tal abordagem do problema ocasiona, sabido que a culpa se impõe como limite intransponível das exigências de prevenção geral. Essa sobrevalorização está bem patente em certos passos da decisão da 1.ª instância, que a Relação acolheu, ao menos confirmando essa decisão. A título de exemplo, mencione-se esta passagem: “Por outro lado, no que concerne às necessidades de prevenção geral positiva, há que ponderar o facto de que a natureza deste tipo de crime é susceptível de causar alarme social, sobretudo numa época em que os processos de pedofilia têm relevância mediática e a sociedade está mais desperta para esse flagelo. Por conseguinte, as necessidades de prevenção geral positiva são relevantes, pois que (…) a reposição da confiança dos cidadãos nas normas violadas e a efectiva tutela dos bens jurídicos cuja protecção se visa assegurar pela incriminação deste tipo de condutas assim o impõe”.

Ora, concedendo embora em que as necessidades de prevenção geral positiva são relevantes, não se pode concordar, todavia, com a relevância que acabaram por adquirir.

Deste modo, estando a pena abstractamente aplicável balizada pelo mínimo de 3 anos de prisão e pelo máximo de 10 anos, entende-se que a pena mais adequada ao caso, conciliando as referidas exigências de prevenção geral com a culpa e tendo em atenção o estigma social já provocado no arguido, é de 4 anos de prisão.

8.4. Há, pois, que refazer o cúmulo jurídico à luz da pena agora aplicada, por sinal constituindo a parcela mais alta.

E, nesta sede, considerando o critério específico estatuído pelo art. 77.º, n.º 1 do CP, ou seja encarando os factos em globo em conjugação com a personalidade unitária do recorrente, somos levados a concluir que o recorrente revela tendência para a prática deste tipo de crimes, o que, de resto, ressalta da própria factualidade provada. Todavia, há que ver que os crimes considerados, exceptuado o relativo ao menor FF aqui analisado, não passaram de tentativa ou, então, como no caso do crime de abuso cometido através de conversa obscena, não têm uma relevância muito significativa. Assim, a actuação mais marcante no conjunto dos factos é mesmo a que se refere ao menor FF.

Nesta perspectiva, entre o mínimo aplicável de 4 anos de prisão e o máximo de 7 anos e 3 meses (art. 77.º, n.º 2 do CP), não se justifica uma pena conjunta superior a 5 anos de prisão.

Procede, pois, nesta parte, o recurso.

III. DECISÃO

9. Nestes termos, acordam em audiência de julgamento no Supremo Tribunal de Justiça em:

- Não se tomar conhecimento do recurso interposto pelo arguido AA na parte relativa aos crimes dos arts. 172.º, n,º 2 , 22.º, 23.º, 72.º e 73.º, n.º 1, alínea a), e ao crime do art. 172.º, n.º 3, alínea b) do Código Penal, por inadmissibilidade do recurso nessa parte, nos termos dos arts. 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), 414.º, n.ºs 2 e 3 e 420.º, n.º 1 do Código de Processo Penal;

- Conceder provimento ao recurso na parte relativa à medida da pena do crime continuado de abuso sexual cometido na pessoa do menor FF, previsto e punido pelo art. 172.º, n.º 2 do Código Penal, e à medida da pena única, condenando o recorrente na pena de 4 (quatro) anos de prisão por aquele crime e em cúmulo jurídico dessa pena com as aplicadas pelos restantes crimes, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão.

No mais, confirmam a decisão recorrida.

10. Custas pelo arguido com 4 UCs. de taxa de justiça, na medida em que as suas pretensões não obtiveram, em parte, provimento.

Lisboa, 3 de Maio de 2007

Rodrigues da Costa (Relator)

Arménio Sottomayor

Reino Pires

Carmona da Mota