Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1084/19.3T8GDM.P1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
USURA
INCAPACIDADE ACIDENTAL
COAÇÃO MORAL
CAUSA DE PEDIR
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - O regime jurídico da usura (artigo 282.º do Código Civil) é aplicável ao testamento, por funcionar como uma “válvula do sistema”, que permite ampliar as possibilidades de promover a equidade das soluções jurídicas.

II - O pressuposto da usura relativamente à vítima exprime-se através de um elenco bastante aberto - “o estado de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza e caráter” – que tem a virtualidade de alargar a proteção das pessoas idosas afetadas por doenças físicas ou psíquicas, para além das situações de coação moral ou de incapacidade de entender e querer. 

III – Todavia, só em situações limite se poderá anular um testamento com base em usura, tendo que estar demonstrado na matéria de facto o requisito da exploração imputado à conduta do beneficiário da disposição testamentária.

IV – A exploração não se presume, nem pode ser deduzida do requisito da situação de dependência, sem apoio de uma factualidade global relevante que demonstre intenção da beneficiária do testamento de controlar o património da testadora.

V – Dada a natureza gratuita do testamento, a prova do requisito da “lesão”, i.e. a concessão de benefícios injustificados ou excessivos não deve ser muito exigente, tendo a fragilidade da prova deste requisito que ser compensada por uma maior intensidade da prova dos restantes, de acordo com uma conceção de sistema móvel.

Decisão Texto Integral:
Processo n.° 1084/19.3 T8GDM.P1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, formulando os seguintes pedidos:

a) ser decretada a anulação do testamento outorgado em .../.../2018 pela falecida CC, por incapacidade acidental e coação;

b) ser ordenado o cancelamento da inscrição da Propriedade a favor da Ré no prédio urbano descrito sob o nº ...18 da freguesia ..., concelho ...;

c) ser ordenado a anulação da participação de imposto de selo efetuado pela Ré junto da Autoridade Tributária.

2. Como fundamento das referidas pretensões, o Autor alegou, em síntese que, é sobrinho por afinidade de CC, constando como legatário no testamento por aquela outorgado no dia .../.../2018, o qual deve ser anulado por incapacidade da testadora, bem como por ter sido vítima de coação moral por parte da beneficiária aqui Ré, que no ano de 2016 se insinuou junto da sua tia, tendo ficado na posse de cerca de €20.000,00, afastando a empregada da de todas as decisões e acompanhamento, passou a controlar as suas contas bancárias, dinheiro, refeições, prestando a assistência na toma de medicamentos ou acompanhamento a consultas médicas, tendo a sua tia deixado de ser seguida pelos seus médicos do Hospital ..., no ..., por influência da Ré, passando a ser acompanhada por médico indicado pela Ré com consultório em ..., ascendência que se foi agravando no decorrer do ano de 2018, passando a sua tia a estar limitada nos contactos com terceiros (familiares e amigos) por imposição da Ré, mormente quando foi internada a 17/8/2018, tendo-se apercebido o Autor, quando a foi visitar, que a sua tia tinha perdido o controlo da sua situação financeira, já não se recordando quanto recebia de pensão de reforma, não sabendo onde se encontrava a caderneta da CGD, estando tudo a ser controlado pela aqui Ré, apresentando a sua tia evidentes sinais de fragilidade, sendo facilmente manipulável atendendo ao seu estado de saúde muito frágil, o qual se agravou tendo perdido faculdades cognitivas e ficado confinada a uma cama de hospital, até à data da sua morte.

3. Mais alegou o Autor que no dia 1.10.2018 a sua tia afirmou que se sentia coagida pela Ré, que tinha medo e receio desta, que tinha medo de perder os €20.000,00 que estavam na posse dela, a qual tinha a sua chave de casa, estando a ser pressionada pela Ré para vender essa casa, pelo valor que o engenheiro amigo desta indicasse. Alega ainda que a partir de meados de outubro, a Ré não deixou o Autor sozinho com a tia, impedindo-a de o informar sobre assuntos pessoais.

O teor do último testamento, que veio a conhecer depois da morte da tia, contraria tudo o que a falecida disse ao longo da sua permanência no hospital, nomeadamente quanto à distribuição equitativa do seu bem imóvel pelas pessoas indicadas em anteriores testamentos, não tendo sido elaborado pela falecida, mas de harmonia com as instruções dadas pela aqui Ré, nunca tendo sido intenção da falecida beneficiar a aqui Ré, estando aquela de tal maneira fragilizada aquando da outorga do testamento que não tinha qualquer controlo sobre a sua vontade, ou seja, nada decidia nem opinava sobre o que fazer, já não caminhava, não tinha um discurso coerente, esquecendo-se da sua situação económica, de onde estava, de nomes de familiares e amigos, apresentando uma surdez eminente, tendo a visão afetada, tendo sido levada ao notário pela Ré, já em cadeira de rodas, concluindo o Autor que não é crível que a testadora naquela data tivesse discernimento para identificar pelo nome completo os legatários, que estava a constituir a Ré como sua universal herdeira, que tivesse a livre vontade de alterar o testamento anterior, estando redigido o testamento no sentido de induzir em erro a perceção da testamentária em relação à distribuição dos seus bens e à anulação do seu último testamento.


4. A Ré/Apelante deduziu contestação, impugnando os factos alegados pelo  Autor, designadamente referindo que os €20.000,00 foram gastos pela falecida nas  suas despesas pessoais e hospitalares, que nada teve a ver com a alteração do testamento em 2017, que nunca exerceu qualquer tipo de domínio ou ascendente sobre a falecida, não lhe controlava as contas até porque a titularidade das mesmas pertencia à própria com autorização para movimentação atribuída a uma tia da Ré, tendo a falecida mantido discernimento para querer e entender até à hora da sua morte, encontrando-se no pleno exercício das suas capacidades intelectuais, físicas e motoras aquando da outorga do testamento, concluindo por pedir a sua absolvição de todos os pedidos.


5. Dispensada a realização de audiência prévia, veio a ser elaborado despacho  saneador, no âmbito do qual foi fixado o objeto do litígio, bem como os temas de prova, que não foi objeto de reclamação.  


6. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, que julgou parcialmente procedente a presente ação e, em consequência, decretou a anulação do testamento outorgado em .../.../2018 pela falecida CC, por usura e, ordenou o cancelamento da inscrição da aquisição do prédio urbano descrito sob o nº ...18 da freguesia ..., concelho ..., a favor da Ré, absolvendo-a do demais peticionado.


7. Inconformada, a Ré/Apelante interpôs recurso de apelação da sentença, tendo o Tribunal da Relação decidido o seguinte:

«Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente o recurso interposto pela Apelante/Ré, revogando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo do Apelado/Autor, que ficou vencido».


8. Inconformado o Autor interpôs recurso de revista, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

                                                            «I

Vem, o presente recurso de revista, interposto do douto Acórdão proferido pela Relação do Porto, no qual foi decidido revogar a douta sentença de primeira instância, absolvendo a Ré do pedido, sendo, pois, legitimo a apresentação deste recurso, nos termos do art. 671º do C.P.C.


II

Entende o Recorrente que não assiste qualquer razão ao Tribunal Recorrido ao revogar a douta sentença em causa.

III

Sustentada na matéria dada como provada, a Meritíssima Juiz de Primeira Instância decidiu dar provimento à acção, da seguinte forma:

Assim, forçoso é concluir que o testamento em causa é anulável (e a anulabilidade, assim como a nulidade ou mesmo a inexistência são espécies do género da invalidade, sendo a invalidade uma espécie do género da ineficácia em sentido amplo -cfr., Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª edição actualizada, 1983, p 591 e seguintes).

Atento o que se disse, deve a acção ser julgada procedente, declarando-se a anulabilidade do testamento lavrado por CC em .../.../2018 e em que foi instituída legatária a ré.


IV

Antes de se demonstrar o itner cognitivo da Meritíssima Juiz de Primeira Instância, para dar como procedente a acção de anulação do testamento em causa, importa referir que não merece qualquer censura - ao contrário do que se pretende no douto Acórdão sob recurso - o facto de o testamento ter sido anulado com base em usura.

IV

Na douta decisão da Primeira Instância, revogada pelo Tribunal da Relação, foi referido pela Meritíssima Juiz que: “Tendo, porém, em consideração que o autor alegou que a ré, era conhecedora da situação de fragilidade e vulnerabilidade em que aludida CC se encontrava, e que da mesma se aproveitou para obter o testamento nas condições que a mesma definiu, afigura-se-nos que a situação dos autos se pode antes enquadrar nas normas previstas nos art. ºs 280º e 282º, do CC”

V

Decidiu, pois, lançar mão do conceito jurídico da usura, para integrar os factos dados como provados, relembrando que: “Veja-se que, o tribunal não está obrigado a aceitar o enquadramento jurídico que as partes oferecem para os factos alegados e provados, sendo livre na aplicação do direito (cfr. art. º 664º do NCPC). ”

VI

Dispõe actualmente o nº 3 do art. 5º do C.P.C. que “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.”

VII

Quer isto dizer que, tendo Autor alegado factos - e os mesmos tendo sido dados como provados - que fossem possíveis de integrar o conceito de usura, poderia a Meritíssima Juiz de Primeira Instância, interpretar tais factos para esse efeito, não ficando adstrita à valoração jurídica dada pelo Autor, considerando que, na causa de pedir, estavam identificados factos que levavam à anulação do testamento por usura.

VIII

Ademais, “o julgador não estando sujeito às alegações das partes na sua tarefa de indagação, interpretação e aplicação de regras jurídicas, aquela abordagem se insere na oficiosidade quanto à matéria de direito, abrangida no comando amplo que o art. 5.º, n.º 3, do CPC confere à actuação do julgador.” Cfr. Ac. do S.T.J., de 02/03/2021, Proc. nº 765/16.8T8AVR.P1.S1, in www.dgsi.pt

IX

Mesmo que a decisão de Primeira Instância padecesse de uma nulidade - o que não se concede - a verdade é que a Ré não a tendo alegado em sede de recurso, a sentença (nesta parte) ficou cristalizada no ordenamento jurídico,

X

como ficou demonstrando no Acórdão agora posto em crise quando refere que: “…apesar de se poder configurar como nulidade de sentença, não a tendo arguido a Apelante em sede deste recurso, apenas tendo impugnado a existência dos pressupostos da usura, prosseguir-se-á para a reapreciação da verificação dos pressupostos de facto relativos ao vicio da usura, em sede de eventual erro de julgamento”.

XI

Conforme ficou referido na douta sentença de Primeira Instância (bem como no douto Acórdão agora posto em crise), são requisitos da usura:

“É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados” - art. 282º do C.C.


XII

A Meritíssima Juiz de Primeira Instância concluiu que, perante os factos dados como provados, estava demonstrado um vicio de usura, visto que “é por demais evidente que a ré, conhecedora da situação de fragilidade da testadora, aproveitou e incentivou o afastamento da mesma dos restantes amigos e familiares, conseguindo que a mesma a beneficiasse quase em exclusivo no último testamento, sem qualquer justificação aparente, resultando preenchidos todos os pressupostos da figura da usura.”

XIII

Ao contrário, no douto aresto sob sufrágio de Vs. Exs., Venerando Conselheiros, entendeu-se que a factualidade dada como provada não era susceptível, pelo menos na sua plenitude, de enquadrar um negócio usurário (dando como certo que o testamento, apesar de ser um acto unilateral, pode ser afectado pelo vício de usura),

XIV

alegando-se que, da sentença, não resultava de forma clara qual o enquadramento fáctico que foi levado em consideração, para se ter concluído pelo vício da usura.

XV

Entende o agora recorrente que a Meritíssima Juiz de Primeira Instância demonstrou, de forma cristalina, que os requisitos para a verificação do vício de usura estavam preenchidos na matéria fáctica (e dada como assente por ambas as instâncias que se pronunciaram sobre o presente processo).

XVI

De facto, refere-se naquela sentença que: “é por demais evidente que a ré, conhecedora da situação de fragilidade da testadora, aproveitou e incentivou o afastamento da mesma dos restantes amigos e familiares, conseguindo que a mesma a beneficiasse quase em exclusivo no último testamento, sem qualquer justificação aparente, resultando preenchidos todos os pressupostos da figura da usura”.

XVII

Esta fundamentação da sentença de Primeira   Instância  tem   respaldo,   para o preenchimento dos requisitos do vício da usura, nos seguintes factos dados como provados: (i) existência de uma situação de inferioridade do declarante - pontos 14, 15, 17, 19 e 21; (ii)   exploração da situação de inferioridade pelo usurário - pontos 10, 11, 12, 13, 14, 17, 18, 22, 23, 24, 25 e 26; (iii) lesão, isto é, promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro - pontos 12, 27 e 28.

XVIII

O facto paradigmático para a resolução do presente processo de anulação, é o que resulta do ponto 24 dos factos dados como provados, já que foi a Ré, agora recorrida, quem providenciou pela elaboração do testamento, sem intervenção da testadora já numa fase da vida em que se encontrava afastada (por iniciativa da Ré) dos seus amigos e familiares e com uma saúde muito fragilizada.

XIX

Ao contrário do que no Acórdão recorrido se refere, os anteriores testamentos demonstram que o último testamento, o que beneficiou de forma injustificada a recorrida, foi elaborado precisamente de forma aparentemente igual na grande parte dos legados e obrigações ou desejos,

XX

mas remetendo para o remanescente (sem identificação de qualquer bem) o bem mais importante da herança da testadora, o que não acontecia nos anteriores.

XXI

Resulta, pois, que o douto Acórdão posto em crise, somente fez a sua apreciação dos factos dados como provados e não provados, de acordo com o que entendeu serem os requisitos para a verificação do vício da usura, restringindo ao máximo a livre apreciação da prova efectuada pela Meritíssima Juiz de Primeira Instância.

XXII

Aliás, no mesmo Tribunal da Relação do Porto, num caso muito semelhante de vicio de usura, foi decidido que:

I - O regime jurídico dos negócios usurários previsto no art. 282º/1 CC é aplicável a qualquer tipo de negócio jurídico, designadamente aos negócios jurídicos unilaterais, como é o caso das disposições testamentárias.

II- Configura um negócio jurídico usurário, nos termos do art. 282º/1 CC, a consciência e o aproveitamento pelo cuidador, que prestou assistência durante cerca de dois anos, da situação de inferioridade em mulher, viúva, com 75 para 77 anos, doente e dependente dos cuidados de terceira pessoa para a satisfação das necessidades básicas da vida (sofreu amputação do membro inferior direito, hemiparésia esquerda, mastectomia por carcinoma da mama direita), com algumas limitações cognitivas, sem ascendentes vivos e sem descendentes, a quem o cuidador impediu as visitas de familiares e amigos e que neste quadro vem a falecer, depois de dispor de todo o seu património a favor desse cuidador, sem causa justificativa.

Ac. Relação do Porto, de 08/07/2015, Relatora Juiz Desembargador Ana Paula Amorim, Proc. nº 1579/14.5TBVNG.P1, in www.dgsi.pt (sublinhado nosso)


XXIII

Resulta dos factos dados como provados que os requisitos indicados no art. 282º do CC estão devidamente preenchidos,

XXIV

como resulta dos pontos 10, 11, 12, 13, 14, 15, 17, 18, 21, 22, 23, 24, 25, 26 e 27 dos factos dados como provados, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos.

XXV

Perante os factos dados como provados, é de aplicar, como bem fez a Meritíssima Juiz de Primeira Instância, o regime do instituto da usura ao presente caso, nos termos do art. 282º do CC, levando à anulação do testamento em apreço.

XXVI

A forma como, na sentença proferida em Primeira Instância, o direito foi aplicado aos factos dados como provados, não merece qualquer reparo ou censura, estando, aliás profusamente explicado todo o itner da decisão que, a final, foi proferida, não existindo qualquer incorrecção na aplicação do direito na douta sentença revogada pelo Acórdão sob sufrágio.

XXVII

Outrossim, foi precisamente neste Acórdão que existiu uma incorrecta aplicação dos factos ao direito, levando à violação da norma substantiva do art. 282º do CC, o que é fundamento suficiente para a apresentação do presente recurso de revista, nos termos do art. 674º nº1 alínea a) do C.P.C.,

XXVIII

levando à sua revogação e, em consequência, ser mantida na ordem jurídica, a douta sentença proferida em Primeira Instância, como é de inteira justiça.

Termos em que, deve ser admitido o presente recurso de revista, sendo a final julgado provado e procedente e, por via disso, ser revogado o douto Acórdão recorrido mantendo-se no ordenamento jurídico a decisão proferida em Primeira Instância, fazendo, assim, Vs. Exs. Venerandos Conselheiros, a já costumada

JUSTIÇA»


9. A recorrida apresentou contra-alegações, nas quais pugnou pela improcedência de todas as conclusões do recorrente e pela manutenção do decidido, defendendo que não se encontram preenchidos os requisitos do negócio usurário, com os seguintes fundamentos:

«(…) - No caso vertente não se encontrava a decessa em qualquer situação de necessidade ou de dependência relativamente à ré, não tendo esta explorado, conforme melhor resulta dos autos, qualquer situação de inferioridade daquela;

 - Socorreu a decessa pela forma e contexto devidamente acautelado e ajuizado pelas instâncias anteriores;

- Conforme resulta da matéria de facto acautelada e ajuizada nas instâncias anteriores a ré não era prestadora, em exclusivo, de cuidados à testadora CC e nunca a socorreu por contar poder ser beneficiada por isso;

- No Acórdão fundamento, a que se alude na Douta Sentença, em que a Meritíssima Juíza à quo se baseou, a testadora encontrava-se doente na sua residência;

- No caso a que nos reportamos a testadora, conforme resulta desde logo dos relatórios clínicos juntos aos autos, por ter consciência da gravidade da sua situação e de que em qualquer altura poderia ser iminente a necessidade de se socorrer nomeadamente, de suporte respiratório para viver, optou por ficar no Hospital pois, sabia que nada lhe faltaria;

- No acórdão fundamento havia uma empresa que cuidava, em casa, da testadora;

- No acórdão fundamento a beneficiária do testamento era funcionária dessa empresa, que passou a frequentar a casa da testadora;

- No vertente caso nunca tal aconteceu;

- No acórdão fundamento a beneficiária do testamento levou a testadora para sua casa e ficou a cuidar desta e doutras idosas que aí se encontram também a receber cuidados;

- Ao contrário do Acórdão fundamento a testadora manteve as suas capacidades até ao fim;

- Ao contrário do Acórdão fundamento, atenta a motivação aduzida para infirmar tal facto e consequente alteração de fundamentação da sentença proferida, neste particular, não foi a ré que proibiu a entrada de quem quer que fosse nos aposentos da decessa, mas sim esta, que no seguimento do episódio da avaliação ao seu imóvel protagonizada pelas testemunhas, DD e EE, assim o determinou mas, note-se, o (A) Recorrente nunca foi impedido de a visitar.



- Resulta ainda e desde logo do depoimento das Médicas: internista, psiquiatra e da psicóloga que prestaram, os seus depoimentos em sede de audiência e discussão de julgamento conforme consta dos autos e nomeadamente, da sustentação fática aduzida pela Recorrida aquando da interposição do seu recurso para o Tribunal da Relação do Porto que aqui se dão e têm por reproduzidos (págs. 3, 14, 15, 16, 18 e 19);

- A Testadora era:

- Pessoa de personalidade forte, donde resulta, desde logo, o afastamento do requisito da ligeireza;

- Nunca teve necessidade de qualquer tipo de abordagem psicológica por dela não necessitar;

-Tendo desde logo resultado das próprias declarações de parte do (A) Recorrente que a sua tia foi professora primária, das antigas, durante mais de 40 anos (prova gravada, declarações de parte do autor - 00:44:30-) donde resulta também e desde logo o afastamento do requisito da inexperiência;

- Sendo, por fim, de salientar que face às características e circunstâncias a que supra nos reportamos, nada havia a explorar por parte da ré relativamente a situação de que nos ocupamos;

- A ré nada fez para que a testadora tenha manifestado à sua médica assistente a sua intenção de permanecer no hospital até ao fim dos seus dias e disso ter dado nota, nomeadamente à sua empregada doméstica, FF, conforme depoimento, por esta prestado em sede de audiência de julgamento.

- Constatamos por último que, a consciência do benefício excessivo que da deixa testamentária poderia teoricamente ocorrer para a ré – requisito objetivo - terá que ser desde logo afastada pois a testadora mantendo juridicamente o poder de dispor, livremente, antes da sua morte do seu património, e uma vez que optou livre e incondicionalmente, conforme verificamos, por ficar internada numa unidade de saúde privada cujos custos, mensais, conforme é do conhecimento comum, são altíssimos;

- Poderia ter necessidade premente de alienar o referido imóvel para fazer face a todos os custos inerentes ao seu estado, modo e condição de vida pelo que e também por esta via entendemos que o preenchimento de tal requisito também se deve mostrar afastado (…)»


10. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, a questão a decidir é a de saber se o testamento dos autos deve ser anulado por constituir um negócio usurário, nos termos do artigo 282.º do Código Civil.


Cumpre apreciar e decidir.



II – Fundamentação

A) Os factos

A matéria de facto dada como provada pelo tribunal de 1.ª instância, e que não foi alterada pelo Tribunal da Relação, foi a seguinte:

           

1. No dia .../.../2018, faleceu CC, no estado de viúva de GG, não deixando descendentes, nem ascendentes vivos, com a última residência habitual na Rua ..., no ..., conforme certidão de habilitação de herdeiros constante de fls. 16v a 17v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

2. No dia .../.../2018, a aludida CC outorgou testamento público no Cartório Notarial a cargo da Lic. HH, com sede na ..., em ... (II), no qual consta que aquela declarou o seguinte:

“Que não tem descendentes, nem ascendentes vivos, pelo que podendo dispor livremente de todos os seus bens, faz o seu testamento, pela forma seguinte:

Dos valores monetários existentes à data da sua morte lega:

a) Sessenta por cento a BB, casada, natural da freguesia ..., concelho ..., onde reside na Rua ...;

b) Vinte por cento a JJ, casada, residente no Largo ..., na ...;

c) Dez por cento a KK LL, casada, residente na Rua ..., no ...; 

d) Dez por cento a AA, casado, residente na Rua ..., no ....

Que institui herdeira do remanescente da sua herança e sua testamenteira a referida BB que fica com a obrigação de cumprir os legados supra referidos, bem como:

1) Garantir que a testadora não terá velório, devendo o seu corpo permanecer na capela mortuária até à hora das exéquias fúnebres, sem haver acesso ao público;

2) Organizar e zelar pela realização das exéquias fúnebres em cerimónia religiosa, devendo o serviço ser executado pela Funerária ...;

3) Garantir que a testadora é sepultada e não cremada, no Cemitério ..., na sepultura perpétua quinze, Seção quarenta e sete, junto às ossadas do seu marido, GG, devendo o seu caixão ser dos mais baratos, e que as chaves deste sejam lançadas para dentro da sepultura, pois o caixão nunca mais deve ser aberto;

4) Informar as pessoas de que em vez de flores devem dar o dinheiro correspondente aos mais necessitados;

5) Tratar e cuidar do seu animal de estimação, uma cadela de nome “MM”, facultando-lhe assistência e cuidados médicos adequados, bem como o fornecimento de alimentação até à data da sua morte.

Que, pelo presente, revoga qualquer outro testamento que tenha feito, nomeadamente o celebrado no dia sete de novembro de dois mil e catorze no cartório da Notária ..., no ..., exarado a folhas oitenta e três do livro de testamentos nove-U.”, conforme documento de fls. 18 a 19 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3. No mesmo dia e cartório, a aludida CC outorgou uma procuração, na qual declarou que: “Que nomeia seus procuradores de cuidados de saúde, para quando já não se encontrar capaz de expressar de forma pessoal e autónoma a sua vontade, BB, casada, natural da freguesia ..., concelho ..., onde reside na Rua ..., e NN, que também usa profissionalmente o nome de NN, natural da freguesia ... (OO), concelho ..., onde tem o seu domicílio profissional na Rua ..., ..., a quem concede poderes para, individual ou conjuntamente, junto de qualquer estabelecimento de prestação de serviços médicos (centros de saúde, clínicas ou hospitais) públicos ou privados, poder tratar de todos os assuntos relativos ao bem-estar físico ou psíquico e à saúde da mandante, podendo, inclusive, autorizar ou não autorizar a realização de quaisquer exames complementares de diagnóstico, análises, internamentos e intervenções médico-cirúrgicas, assinando e praticando tudo quanto venha a ser necessário.”, conforme documento de fls. 73 a 73v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. No testamento outorgado pela referida falecida CC no dia .../.../2014, no Cartório Notarial sito na Rua ..., lado esquerdo, a cargo da Lic. PP, consta que aquela declarou, para além do mais, o seguinte:

“Que revoga em todos os seus termos o testamento outorgado no meu Cartório, celebrado em vinte e três de Setembro de dois mil e onze, exarado de folhas setenta e oito a folhas setenta e nove verso, do Livro de Notas Para Testamentos Públicos e Escrituras de Revogação de Testamentos número Sete-U.

(…) Que é viúva e que não tem descendentes nem são vivos os seus ascendentes.

Que faz novo testamento da seguinte forma:

Um – Que a sua sobrinha KK – casada, residente na freguesia e concelho ..., à Rua ... – lega todos os objectos que se encontrarem na sua casa de habitação à data da sua morte e que tiverem aposta uma etiqueta com o número seis;

Dois – Que a FF – casada, residente na freguesia ..., do concelho ..., à Rua ... – lega todos os objectos que tiverem aposta uma etiqueta com o número cinco e que se encontrarem na sua casa de habitação à data da sua morte;

Três – Que a JJ – casada, residente na freguesia e concelho ..., ao Largo ..., rés-do-chão – lega todos os objectos que tiverem aposta uma etiqueta com o número quatro e que se encontrarem na sua casa de habitação à data da sua morte;

Quatro – Que a seu sobrinho AA – filho da sua cunhada QQ, casado, residente na cidade ..., à Rua ... – lega o piano, o anel de ouro com brilhantes, e, ainda, todos os objectos que tiverem aposta uma etiqueta com o número dois e que se encontrarem na sua casa de habitação à data da sua morte;

Cinco – Que a sua amiga DD – divorciada, residente na cidade ..., à Rua ... – lega o direito de uso e ocupação da sepultura perpétua do Cemitério ..., nesta cidade ..., com o número quinze, localizada na quadragésima sétima secção, bem como lega, ainda, todos os objectos que tiverem aposta uma etiqueta com o número um que se encontrarem na sua casa de habitação à data da sua morte;

Seis – Que a seu sobrinho AA, a JJ, a FF e a KK – lega em comum e partes iguais, a sua casa de habitação, localizada na freguesia ..., da cidade e concelho ..., à Rua ..., e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...76, bem como o recheio que nela se encontrar sem qualquer etiqueta.”, conforme documento de fls. 19v a 21v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

5. A falecida CC outorgou ainda, no dia .../.../2017, no Cartório Notarial sito na Rua ..., lado esquerdo, a cargo da Lic. PP, novo testamento público, do qual consta que aquela declarou, para além do mais, o seguinte:

“Que revoga em todos os seus termos o testamento outorgado no meu Cartório, celebrado em sete de Novembro de dois mil e catorze e exarado de folhas oitenta e três a folhas oitenta e quatro verso, do Livro de Notas Para Testamentos Públicos e Escrituras de Revogação de Testamentos número Nove- U. (…)

Que é viúva e que não tem descendentes nem são vivos os seus ascendentes.

Que faz novo testamento da seguinte forma:

Um – Lega, em comum e partes iguais, a sua casa de habitação, localizada na freguesia ..., da cidade e concelho ..., à Rua ..., a: seu sobrinho AA, – filho da sua cunhada QQ, casado, residente na cidade ..., à Rua ...; sua sobrinha por afinidade KK – casada, residente na freguesia e concelho ..., à Rua ...; sua amiga JJ – casada, residente na freguesia e concelho ..., ao Largo ..., rés-do-chão.

Dois – A sua amiga DD – divorciada, residente na cidade ..., à Rua ... – lega o direito de uso e ocupação da sepultura perpétua do Cemitério ..., nesta cidade ..., com o número quinze, localizada na quadragésima sétima secção;

Três – Quanto ao recheio da sua casa de habitação, estabelece que cada um dos seus referidos instituídos AA, KK e JJ, pode retirar os objectos que cada um deu à testadora ao longo dos anos, a título de prendas de Natal de aniversário e de outros, sendo que o restante recheio será entregue aos seus herdeiros legítimos, de acordo com o estabelecido na Lei.”, conforme documento de fls. 22 a 23v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

6. Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial ..., pela Ap. ...34 de 2018/12/04 a favor da ré, a aquisição por sucessão testamentária do prédio urbano, sito na Rua ..., composto por casa de cave, rés-do-chão, primeiro andar e águas furtadas, com quintal, poço e mais pertenças, conforme documento de fls. 69 a 69v e cujo teor se dá por reproduzido.

7. O autor é sobrinho por afinidade da falecida CC, tendo vivido com esta e o seu falecido tio durante os anos da sua formação universitária e começo de vida laboral.

8. Tendo ainda acompanhado a sua falecida tia CC ao longo dos anos em que esta viveu sozinha, visitando-a com regularidade.

9. A aludida CC foi também acompanhada, nos últimos anos, por uma empregada doméstica, de nome FF, que era uma pessoa de sua inteira confiança, constando, por este facto, como legatária no testamento outorgado no dia 7.11.2014.

10. No ano de 2016, a falecida CC passou a conviver com mais frequência com a ré.

11. A ré almoçava com a falecida CC todos os dias e passou a acompanhá-la às consultas médicas.

12. A dada altura, a ré passou a deter a quantia de cerca de € 20.000,00 que a falecida tinha guardado em casa e a gerir as despesas necessárias ao quotidiano da mesma.

13. A FF, por sua vez, começou a ser afastada de todas as decisões e do acompanhamento da falecida CC, acabando por deixar de ser legatária no testamento outorgado por esta em 2017.

14. No decorrer dos anos de 2016 e 2017, por indicação da ré, a falecida tia do autor, que era seguida no Hospital ..., no ..., passou a ser acompanhada no Hospital ..., na zona de ....

15. A falecida CC era autónoma, mas apresentava problemas de audição, de visão, doença pulmonar com componente asmatiforme, insuficiência cardíaca de etilogia valvular com estonese aórtica e mitral, fibrilação auricular, permanentemente hipocoagulada, patologia osteoarticular degenerativa e alergias múltiplas.

16. Apesar de apresentar um défice cognitivo ligeiro e sofrer de esquecimentos frequentes, mantinha um discurso coerente e adequado e noção do seu património.

17. Em .../.../2018, em consequência de um episódio de dispneia, a falecida CC foi conduzida pela ré para as urgências do Hospital ..., tendo aí ficado internada.

18. O autor não teve conhecimento que a sua tia se encontrava doente, tendo a mesma sido internada de urgência sem ter sido avisado pela ré.

19. A falecida CC manteve-se internada no Hospital ... até 30.08.2018, tendo transitado para a Unidade de Convalescença Manutenção e Reabilitação da mesma instituição, onde permaneceu até ao dia do seu falecimento.

20. Durante a sua permanência na referida Unidade, a falecida apresentou estabilidade inicial do seu quadro clínico.

21. Com a evolução do internamento apresentou deterioração clínica, com limitação progressiva da sua capacidade funcional, dispneia e intolerância a esforços, mesmo em repouso, tendo-se ainda assim mantido consciente, lúcida e com discurso coerente e adequado até pouco antes da sua morte.

22. Durante o internamento naquela instituição, a ré foi limitando de forma paulatina a falecida CC de manter contactos com familiares e amigos, nomeadamente, o contacto com a amiga DD e a filha desta, por estas se terem insurgido contra o facto da ré manter o controlo do dinheiro da falecida.

23. O autor nunca foi impedido de ver a sua tia no Hospital, mas nas últimas semanas da vida desta deixou de estar sozinho com a mesma, tendo a ré estado sempre presente.

24. Foi a ré quem tratou dos procedimentos necessários à celebração do testamento outorgado em 2018, tendo contactado um profissional do foro que diligenciou todo o processo e foi quem conduziu a falecida ao cartório notarial.

25. A ré mudou ainda a fechadura da casa de habitação da falecida e manteve as chaves em seu poder, não permitindo a entrada e o acesso à casa por parte de familiares e amigos da aludida CC, sem que estivesse presente.

26. Foi a ré quem tratou de todos os procedimentos com o funeral da tia do autor, nada transmitindo a este.

27. O grosso da herança aberta por óbito da falecida tia do autor corresponde ao imóvel referido em 6., cujo valor patrimonial tributário, apurado em 2015, ascende a € 74.760,00 e ao respetivo recheio.

28. Por carta datada de 11.12.2018, remetida pelo mandatário da ré ao autor, foi enviado a este um cheque no valor de € 445,72, para cumprimento do legado estabelecido no testamento outorgado pela falecida CC em 2018, conforme documentos de fls. 31 e 31v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


O Tribunal de 1ª instância julgou não provados os seguintes factos:

a) aquando da outorga do testamento ora posto em crise, a falecida CC padecia de doença que a impedia de entender e decidir; não tinha qualquer controlo sobre a sua vontade, nada decidia nem opinava sobre o que fazer, não caminhava e não tinha um discurso coerente;

b) era a ré quem tratava das refeições e da medicação da falecida CC;

c) a ré controlava as contas bancárias da falecida CC;

d) a falecida CC, no último ano de vida, mostrou-se receosa da atuação da ré, demonstrando pavor com o que esta lhe poderia fazer, porque tinha na sua posse todo o seu dinheiro, que ascendia a cerca de € 20.000,00.


II – Fundamentação de direito

1. Está em causa, no presente recurso de revista, a questão de saber se o testamento dos autos é anulável por usura nos termos do artigo 282.º do Código Civil.

O Autor pediu a anulação do testamento outorgado pela sua falecida tia, em .../.../2018, com base em incapacidade acidental ou coação moral, figuras cujos requisitos ambas as instâncias consideraram não encontrar suporte na matéria de facto provada.  

Desde logo considerou-se não provado que: «a) aquando da outorga do testamento ora posto em crise, a falecida CC padecia de doença que a impedia de entender e decidir; não tinha qualquer controlo sobre a sua vontade, nada decidia nem opinava sobre o que fazer, não caminhava e não tinha um discurso coerente».

Na sentença final, o tribunal decretou a anulação do referido testamento por usura, considerando que “(…) é por demais evidente que a ré, conhecedora da situação de fragilidade da testadora, aproveitou e incentivou o afastamento da mesma dos restantes amigos e familiares, conseguindo que a mesma a beneficiasse quase em exclusivo no último testamento, sem qualquer justificação aparente, resultando preenchidos todos os pressupostos da figura da usura.”

Tomou o tribunal de 1.ª instância como paradigma o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-06-2016 (processo n.º 1579/14....), que anulou um testamento feito por uma idosa a uma cuidadora (funcionária de uma instituição de prestação de cuidados a idosos), em cuja residência se encontrava juntamente com outros idosos, e para a qual foi levada pela própria cuidadora contemplada no testamento.

O acórdão recorrido entendeu que o tribunal de 1.ª instância, decretando a anulação do testamento por usura, quando aquilo que o autor peticionara tinha sido a anulação por incapacidade acidental ou por coação moral, não respeitou a causa de pedir, violando o princípio dispositivo:

«Por conseguinte, nesta acção de anulação de testamento, constituindo a  incapacidade acidental, a coação ou a usura, causas de pedir distintas, não havendo  total coincidência nos fundamentos de facto geradores desses distintos e específicos  vícios, não se tratará apenas de uma mera qualificação jurídica que o tribunal possa  livremente efectuar ( art. 5º nº 3 do CPC) , mas de uma nova causa de pedir que o tribunal não pode apreciar oficiosamente sob pena de violar o princípio do dispositivo, e a proibição estabelecida no art. 608º nº 2, 2ª parte do CPC».

Assim, o Tribunal da Relação entendeu que o tribunal de 1.ª instância ao apreciar o pedido não pode basear a sentença de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (artigo 608.º, n.º 2, do CPC), sob pena de nulidade da sentença (artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC). Todavia, explicita o tribunal recorrido que não tendo a Apelante arguido a nulidade da sentença, prosseguirá para reapreciação da verificação dos pressupostos de facto relativos ao vício da usura, tendo concluído pela falta de verificação dos mesmos, com o seguinte fundamento:

«Em síntese, no caso concreto não há evidências, na factualidade dada como provada, de que a testadora, aquando da outorga do testamento em apreço estivesse numa situação de inferioridade perante a aqui Ré, mormente de dependência ou necessidade, nem de comportamentos da ré demonstrativos de exploração de qualquer situação de inferioridade da testadora, não sendo a limitação de visitas de alguns familiares e amigos bastante para o efeito (note-se que o Autor nunca foi impedido de visitar a tia), nem a idade e o quadro clínico que apresentava a testadora eram de molde a afirmar que, aquando da outorga do testamento de 2018, estivesse com o discernimento e a liberdade de decisão diminuídos, pelo contrário, apurou-se que se mantinha autónoma, com um discurso coerente e adequado e tendo noção do seu património e da forma como dele queria dispor após a sua morte».


2. Ultrapassada a questão da causa de pedir, que não constituiu a ratio decidendi do acórdão recorrido, que efetivamente conheceu do mérito e analisou os pressupostos do negócio usurário, o objeto do recurso de revista consiste numa operação de qualificação jurídica dos factos a fim de averiguar da verificação ou não dos pressupostos cumulativos da figura do negócio usurário.

Em primeiro lugar, tem-se entendido, tese que foi também adotada nas instâncias, que a figura da usura seja aplicável ao testamento, apesar de estar em causa um negócio jurídico unilateral.

Neste sentido se tem orientado a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, conforme resulta dos seguintes Acórdãos:

- Acórdão de 23-06-2016 (Revista n.º 1579/14....), onde se sumariou o seguinte:

«I - O problema da aplicabilidade do regime dos negócios usuários ao testamento não se encontra tratado de forma aprofundada no direito português.

II - A doutrina, em tese geral, defende a possibilidade da aplicação do regime dos negócios usurários à generalidade dos negócios jurídicos, tanto bilaterais como unilaterais, sem, contudo, se referir directamente ao testamento.

III - A jurisprudência do STJ vem admitindo a aplicação da usura aos negócios unilaterais enunciando, em abstracto, a possibilidade de sujeição dos testamentos à usura, sem chegar a concretizar a transposição do instituto e dos seus requisitos.

IV - A circunstância de nos arts. 2199.º a 2203.º do CC, respeitantes à falta e vícios da vontade do testador, não existir uma norma remissiva quanto à usura não permite concluir que o legislador pretendeu o seu afastamento, na medida em que o regime da usura se inclui na regulamentação do objecto do negócio jurídico».

- Acórdão de 12-09-2006 (Revista n.º 06A1988), onde se deixou exarado o seguinte:

«A doutrina do art. 282.º é aplicável a todos os negócios jurídicos - quer se trate de contratos plurilaterais, bilaterais ou unilaterais ou ainda de negócios unilaterais».

- Acórdão de 13-05-2004 (Revista n.º 1452/04), onde se sumariou o seguinte:

«1. A referência do artigo 2194.º do Código Civil ao enfermeiro reporta-se ao que tem a qualidade legal de enfermeiro, não abrangendo quaisquer outras pessoas que, movidas por razões de amizade ou de solidariedade, hajam prestado ao testador serviços e cuidados de enfermagem.

2. A estas pessoas, na medida em que possam ter conduzido e determinado o testador a beneficiá-las no testamento, são aplicáveis as disposições relativas à anulabilidade resultante de vícios de vontade ou de negócio usurário».

- Acórdão de 22/05/2003 (proc. nº 03...), onde se admitiu, em tese geral, que o regime da usura possa aplicar-se ao testamento, afirmando-se, a propósito da norma ínsita no artigo 282.º do Código Civil, que «É um normativo aplicável a qualquer tipo de negócio jurídico, designadamente aos negócios jurídicos unilaterais, como é o caso das disposições testamentárias, nesta hipótese com as necessárias adaptações, face à sua especificidade.”

Na jurisprudência das Relações, veja-se no mesmo sentido os seguintes acórdãos: Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30-04-2019, processo n.º 3409/18....; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28-02-2019, processo n.º 3607/17....; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 26-01-2017, processo n.º 33/10....; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08-07-2015, processo n.º 1579/14.....

A doutrina (Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 260; Pedro Eiró, Negócio usurário, Almedina, Coimbra, 1990, p.70; H. E. Hörster/Eva Sónia Moreira da Silva, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, Coimbra, 2019, p. 620, n.º 952) tem defendido a possibilidade de aplicação do regime do negócio jurídico usurário à generalidade dos negócios jurídicos, tanto bilaterais como unilaterais, sem, contudo, referir diretamente o testamento. Mafalda Miranda Barbosa (in Lições de Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª edição, Gestlegal, 2022, pp. 832-833), aplaude a orientação jurisprudencial que propugna a aplicação do regime jurídico do negócio usurário ao testamento. Embora a autora reconheça a dificuldade de transposição do requisito da lesão (atribuição de benefícios excessivos ou injustificados), admite que por força da atitude de exploração do sujeito contemplado no testamento, o testador seja levado a criar um beneficio a seu favor que, de outro, modo jamais seria gerado.

Entre os cultores do direito sucessório, alguns autores defendem expressamente a sujeição do testamento ao regime da usura (cfr. Guilherme Oliveira, O Testamento, p. 40, disponível para consulta in https://www.guilhermedeoliveira.pt/resources/O-Testamento-Apontamentos.pdf; Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, I, 2000, p. 185 e Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, 2013, p. 135).

Aceitamos como boa a tese da aplicabilidade da usura ao testamento, por funcionar como uma “válvula do sistema”, permitindo ampliar as possibilidades de promover a equidade das soluções jurídicas nos casos em que os tribunais têm de aferir da validade substancial do testamento, por falta de liberdade na formação da vontade, sem que se verifiquem os pressupostos da incapacidade acidental ou da coação moral. O pressuposto da usura relativamente à vítima exprime-se através de um elenco bastante aberto  - “o estado de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza e caráter” – que tem a virtualidade de alargar a proteção das pessoas idosas afetadas por doenças físicas ou psíquicas, para além das situações de coação moral ou de incapacidade de entender e querer. 

3. Importa, todavia, fazer uma ressalva a este propósito.

A aplicabilidade do regime do negócio usurário ao testamento só pode ocorrer em casos muito excecionais em que da valoração dos factos do caso decorra um elevado juízo de censura sobre a conduta da pessoa beneficiária do testamento, pois que a figura do negócio usurário pressupõe um desequilíbrio de prestações mais adaptado a surgir em negócios jurídicos bilaterais, sendo uma situação dificilmente equacionável no testamento em que as deixas testamentárias não têm de obedecer a qualquer contraprestação ou contrapartida das pessoas beneficiárias, ou de ter ainda qualquer finalidade retributiva da conduta destas.

Neste sentido, a propósito da aplicação desta norma ao testamento, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-06-2016 (proc. n.º ...4), apesar de ter decidido anular o testamento com base no artigo 282.º do Código Civil, considerando verificados os requisitos do preceito, adverte que só em situações limite se poderá anular um testamento com base em usura, alertando para a circunstância de fazer parte da natureza do testamento a possibilidade de beneficiar uma única pessoa, sem outra justificação que não a vontade do testador. Prossegue o citado Acórdão, com relevo para estes autos, afirmando que a prova do requisito da “lesão”, i.e. a concessão de benefícios injustificados ou excessivos, não deve ser muito exigente, tendo a fragilidade da prova deste requisito que ser compensada por uma maior intensidade da prova dos restantes, de acordo com uma conceção de sistema móvel, tal como defendido por RR (in Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, Almedina, ..., 2009, p. 651), que entende que «[a]s proposições do artigo 282.º devem ser interpretadas e aplicadas em conjunto, dentro da mecânica de um sistema móvel».

4. Feita esta advertência, que nos servirá de critério de ponderação da factualidade do presente caso, cumpre agora proceder à qualificação jurídica dos factos, tarefa que tem uma dimensão necessariamente casuística.

4.1. O artigo 282.º, n.º 1, do Código Civil estipula o seguinte:

«É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados».

O regime fixado no artigo 282º, n.º1, do Código Civil (negócios usurários) é, assim, aplicável a qualquer tipo de negócio jurídico, designadamente aos negócios jurídicos unilaterais, como é o caso das disposições testamentárias, nesta hipótese com as necessárias adaptações, e exige a verificação dos seguintes requisitos: (i) existência de uma situação de inferioridade ou dependência do declarante; (ii) exploração da situação de inferioridade ou de dependência pelo usurário; (iii) lesão, isto é, promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro.

Os negócio usurários, regulados nos artigos 282.º e seguintes, como afirmam Hörster/Eva Sónia Moreira (in Parte Geral do Código Civil português, 2.ª edição, 2019, Almedina, Coimbra, p. 619) «(…) pertencem aos negócio jurídicos com conteúdo desaprovado pela ordem jurídica – e isto em virtude do desequilíbrio de prestações neles acordadas devido à inferioridade de uma das partes com a consequente falta de justiça comutativa entre elas.», sucedendo com frequência, como esclarecem os autores, que um negócio com as características aparentes de um negócio usurário possa ser qualificado como sendo ofensivo dos bons costumes, e, portanto, nulo, nos termos do artigo 280.º, n.º 2, do Código Civil.

Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Coimbra, reimpressão, 1998, pp. 282 a 284 e Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2005, p. 535) referem que, se o negócio realizado em estado de necessidade for feito a favor de um sujeito que tem o dever moral ou jurídico de socorrer o disponente, a disposição não é meramente anulável, mas nula por ofensa aos bons costumes.

A usura, na designação de Pedro Pais de Vasconcelos/Pedro Leitão Pais de Vasconcelos (in Teoria Geral do Direito Civil, 9ª edição, Almedina, Coimbra, pp. 675-676), tem uma dupla dimensão de vício de vontade e vício de conteúdo: «É vício da vontade enquanto o discernimento e a liberdade de decisão vítima da usura estão diminuídos. Mas isso não é suficiente: é necessário que haja um aproveitamento consciente e reprovável da situação de inferioridade da vítima e ainda que o negócio assim celebrado esteja desequilibrado injustificadamente. O negócio usurário, além de sofrer de um defeito de formação, sofre de um defeito de conteúdo e colide ainda com os bons costumes».

É consensual na doutrina que a aplicação da usura esteja reservada para situações em que dos factos provados se possa extrair um elevado juízo de censurabilidade da conduta da contraparte, neste caso, da conduta do beneficiário do testamento.

4.2. Regressemos aos factos do caso.

Os factos do caso mostram-nos uma senhora idosa, CC, viúva, falecida em .../.../2018, com 85 anos de idade,  sem descendentes e sem ascendentes, que outorgou testamento em .../.../2018, cerca de um mês antes da sua morte, contemplando dois sobrinhos por afinidade, a ré e uma amiga com quantias em dinheiro calculadas sob percentagem dos valores monetários existentes à data da sua morte e deixando o remanescente da herança à ré (prima da empregada da testadora) com quem mantinha uma relação de amizade,  remanescente que consistia num imóvel que tinha sido a residência da testadora antes de ser hospitalizada e depois institucionalizada em agosto de 2018 (factos provados 17 e 19), inegavelmente o bem mais valioso que a testadora possuía (factos provados n.º 6 e n.º 27).

A testadora padecia de vários problemas de saúde conforme descrição nos factos provados 15 e 16:

«15. A falecida CC era autónoma, mas apresentava problemas de audição, de visão, doença pulmonar com componente asmatiforme, insuficiência cardíaca de etilogia valvular com estonese aórtica e mitral, fibrilação auricular, permanentemente hipocoagulada, patologia osteoarticular degenerativa e alergias múltiplas.

16. Apesar de apresentar um défice cognitivo ligeiro e sofrer de esquecimentos frequentes, mantinha um discurso coerente e adequado e noção do seu património».

Durante o internamento a que esteve sujeita, entre agosto e novembro de 2018, mês em que viria a falecer, teve no início uma situação estável, mas depois as suas capacidades funcionais diminuíram, tendo-se mantido lúcida e com discurso coerente e adequado até pouco antes da sua morte, conforme decorre dos factos 20 e 21:

«20. Durante a sua permanência na referida Unidade, a falecida apresentou estabilidade inicial do seu quadro clínico.

21. Com a evolução do internamento apresentou deterioração clínica, com limitação progressiva da sua capacidade funcional, dispneia e intolerância a esforços, mesmo em repouso, tendo-se ainda assim mantido consciente, lúcida e com discurso coerente e adequado até pouco antes da sua morte».

Apesar dos múltiplos problemas de saúde de que padecia, a autora manteve-se lúcida e com discurso coerente e adequado até pouco antes da sua morte, sempre demonstrou ter a noção do seu património, tinha exercido a profissão de professora, era uma pessoa autónoma e que já tinha feito pelo menos três testamentos (2011, 2014 e 2017), segundo os factos provados n.ºs 4 e 5, antes do último que deu lugar ao presente litígio (facto provado n.º 2), ou seja, demonstrava a sua autonomia privada escolhendo as pessoas a quem deixava os bens e mudando de opinião ao longo da vida sobre o assunto, como fez em relação à empregada que foi contemplada no testamento de 2014, mas não já no de 2017.

Pela circunstância de padecer de várias doenças e de estar física e psicologicamente fragilizada, como em regra estará qualquer pessoa idosa na parte final da sua vida, é equacionável que possa ter sido explorada pela Ré, que nos últimos dois anos de vida e até à sua morte a acompanhou. Com efeito, foi a ré que levou a testadora ao cartório notarial para outorgar o testamento um mês antes da sua morte (facto provado n.º 24) e que, durante o internamento da testadora impediu visitas a alguns familiares e amigos (facto provado n.º 22), factos considerados decisivos pelo tribunal de 1.ª instância para a anulação do testamento por usura.

Todavia, o facto de estarmos perante uma testadora consciente do seu património, lúcida até ao momento da morte e habituada a outorgar testamentos, portanto, a refletir sobre o destino dos seus bens depois da sua morte e a mudar as pessoas que pretendia beneficiar, torna mais provável que o testamento tenha sido o resultado de uma manifestação livre da vontade da testadora.

Como se afirmou no acórdão recorrido, «Pode bem ter sido a testadora, de mote próprio, a querer alterar o testamento, tal como já o havia feito anteriormente, repetimos, por mais do que uma vez, e a ré ter-se limitado a prestar ajuda nas diligências a providenciar para o efeito, pois que a testadora se encontrava internada e era ela quem, na maior parte do tempo, a acompanhava, sendo certo que, também nada consta dos factos provados que nos diga que a ré sabia qual ia ser o conteúdo desse testamento e muito menos que tivesse condicionado a vontade da testadora por forma a dela receber benefícios excessivos ou injustificados».

A própria sentença de 1.ª instância, que anulou o testamento por usura, refere na fundamentação da matéria de facto, que a notária que elaborou o testamento, através de um testemunho claro, firme e resistente ao contraditório, esclareceu o tribunal que a sua prática nestas situações é ter uma conversa demorada a sós, sobre diversos assuntos, com a pessoa que pretende celebrar a escritura, de forma a determinar se ela tem conhecimento e consciência  do ato que vai praticar e se ele corresponde mesmo à sua vontade, comportamento que, segundo relata a sentença, adotou igualmente aqui, nada tendo sido detetado que pusesse em dúvida a capacidade e a vontade de testar de CC.

A existência de fragilidade e de dependência da parte da testadora, decorrente da idade e de problemas de saúde, não são, por si só, suficientes para que fique demonstrada a exploração, nem esta se pode deduzir, sem mais, da prova do estado de dependência. Como afirma a doutrina (cfr. Pedro Eiró, “Anotação ao artigo 282.º do Código Civil”, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa Editora, Lisboa, 2014, pp. 698-701), «(…)o elemento subjectivo do vício da usura não se reduz à situação de inferioridade em que se encontra o declarante. Tem outra componente agora respeitante ao usurário- exige-se que este tenha tido um certo comportamento: a exploração daquela situação de inferioridade». Prossegue o autor, afirmando que «(….) a exploração não se presume antes tem de ser provada», daqui resultando como evidente, como também conclui o autor, que a circunstância de o declarante se encontrar numa situação de inferioridade não demonstra a existência da exploração, que pode não ter acontecido.

 Analisando a conduta da ré, tal como resulta da factualidade provada e não provada, não é possível dela deduzir com segurança qualquer atitude de exploração da fragilidade da testadora, tanto mais que, conforme defendido pela doutrina e pela jurisprudência, a exploração não se presume e a prova dos requisitos da usura, quando aplicada a um testamento, tem de ser particularmente rigorosa e exigente.

A conduta da ré de limitar as visitas de familiares e amigos da testadora foi motivada por conflitos entre a ré e uma amiga da testadora e a sua filha acerca do uso de 20.000 euros de que era titular a testadora (facto provado n.º 22). Sendo de destacar, a este propósito, que veio a provar-se que o autor, sobrinho por afinidade da testadora nunca foi impedido de a visitar (facto provado n.º 23) e que não se provou, nem que a ré controlasse as contas bancárias da falecida CC, nem que esta, no último ano de vida, se mostrasse receosa da atuação da ré, ou demonstrasse pavor com o que esta lhe poderia fazer, porque tinha na sua posse todo o seu dinheiro, que ascendia a cerca de € 20.000,00 (alíneas c) e d) dos factos não provados). Segundo o facto provado n.º 12 a ré detinha a quantia de 20.000 euros pertença da testadora, para gerir despesas necessárias ao quotidiano desta.

Mesmo considerando que a ré não informou o autor da doença e do internamento da ré (facto provado n.º18), nem dos procedimentos do funeral (facto provado n.º 26) e mudou a fechadura da casa da testadora ainda em vida desta (facto provado n.º 25), trata-se de comportamentos, que, não sendo eticamente corretos, não se revestem do grau de censurabilidade exigível para se poder concluir que a ré explorou a fragilidade e a dependência da testadora para obter benefícios injustificados ou excessivos no testamento.  


5. Importa, ainda, comparar os factos do presente caso com os factos do caso decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 23-06-2016, que o tribunal de 1.ª instância adotou como paradigma para a sua decisão de decretar a anulação do testamento por usura, para averiguar se pode estar em causa uma contradição de julgados.

No caso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-06-2016, a pessoa contemplada no testamento era estranha à família – uma funcionária de uma instituição de prestação de cuidados a idosos – que levou a testadora para sua casa e que passou a partir desse momento a controlar todo o seu património, tendo a testadora em situação de dependência, outorgado, para além de dois testamentos a favor da cuidadora, uma cessão gratuita de bens e procurações, em que conferiu poderes à cuidadora para dispor de todos os seus bens e contas bancárias.

Como se afirmou no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:

 «Deparamo-nos assim, ao longo de cerca de ano e meio, com uma “escalada” no processo de controlo jurídico do património da CC por parte da R., tanto por actos inter vivos (procuração, cessão gratuita) como por actos mortis causa (testamentos). Pelo primeiro testamento a R. é instituída herdeira de ¾ daquele património. Dois meses depois são-lhe atribuídos poderes que lhe permitem movimentar livremente as contas bancárias da CC e, sobretudo, que lhe permitem alienar – a terceiro ou a si mesma – os bens móveis e imóveis a quem entender e nas condições que entender. Sete meses depois é outorgado novo testamento, instituindo a R. herdeira praticamente da totalidade do património. Pouco mais de meio ano volvido, quando as condições de saúde da CC se deterioravam acentuadamente, esta cede gratuitamente à R. a meação e quinhão hereditário da herança do marido. Por esta altura, todo o património da CC passou a estar sob o controlo jurídico da R. logo em vida, através da procuração e da cessão. E aquilo de que a R. não se quisesse apropriar em vida seria seu à morte da CC.

Verifica-se uma situação limite, que, precisamente por o ser, nos permite concluir pela verificação do pressuposto objectivo da usura – obtenção de benefícios injustificados por parte da R. - considerados os actos jurídicos no seu conjunto e não em separado».

Frisa ainda o citado Acórdão que o juízo de ponderação e avaliação dos factos   deve inserir-se num contexto mais alargado, em que se tem em conta a globalidade dos factos, concluindo que, «Não é que cada um dos testamentos e a cessão gratuita possa ser considerado, em si mesmo e autonomamente, um negócio usurário. Mas o conjunto dos três negócios – integrado no circunstancialismo provado que inclui os poderes concedidos pela procuração – permite concluir pela verificação do pressuposto objectivo da usura».

Claramente no caso decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça os factos são de uma intensidade e gravidade muito superior aos factos provados no presente processo, em que não houve a outorga de qualquer procuração que conferisse à ré poderes para gerir ou dispor do património da testadora (mas apenas uma procuração para cuidados de saúde – facto provado n.º 3), nem se provou qualquer controlo do património desta pela aqui ré.

Por último, o recurso a presunções de experiência sobre a factualidade provada no presente caso, como meio de inferir atitudes de exploração e de extorsão de património da testadora pela ré, para além de não fazer parte das competências deste Supremo que só conhece de matéria de direito, seria destituído de qualquer fundamento fáctico e padeceria de ilogicidade por contrariar factos não provados.

Neste quadro também não se pode considerar que os benefícios constantes do testamento em relação à ré tenham sido excessivos ou injustificados, pois faz parte da própria natureza do testamento a sua gratuidade e a intenção de beneficiar as pessoas contempladas, sendo indiferente à ordem jurídica (desde que não afete a legítima dos herdeiros legitimários, aqui inexistentes) que o testador disponha dos seus bens, distribuindo-os de forma equitativa por várias pessoas ou que atribua os mais valiosos a uma só pessoa.

Em consequência, na falta de prova do requisito da exploração, é válido o testamento, elaborado um mês antes da morte da testadora, em que o bem mais valioso, um imóvel, foi deixado a uma pessoa com quem a testadora passou a conviver com mais frequência desde 2016 (facto provado n.º 10), estabelecendo com ela uma relação de amizade, e que acompanhou a testadora nos dois últimos anos da sua vida, almoçando com ela todos os dias e levando-a a consultas médicas (facto provado n.º 11).


6. Perante a insuficiência da matéria de facto provada, não podemos considerar, no caso sub judice, preenchidos os requisitos cumulativos da usura, desde logo que tenha havido qualquer exploração da testadora por parte da ré e que tenha sido atribuído um benefício injustificado ou excessivo à ré.

Assim sendo, improcedem todas as conclusões do recurso de revista do recorrente e confirma-se o acórdão recorrido, que bem andou na forma como avaliou a matéria de facto provada e não provada.


7. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I - O regime jurídico da usura (artigo 282.º do Código Civil) é aplicável ao testamento, por funcionar como uma “válvula do sistema”, que permite ampliar as possibilidades de promover a equidade das soluções jurídicas.

II - O pressuposto da usura relativamente à vítima exprime-se através de um elenco bastante aberto - “o estado de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza e caráter” – que tem a virtualidade de alargar a proteção das pessoas idosas afetadas por doenças físicas ou psíquicas, para além das situações de coação moral ou de incapacidade de entender e querer. 

III – Todavia, só em situações limite se poderá anular um testamento com base em usura, tendo que estar demonstrado na matéria de facto o requisito da exploração imputado à conduta do beneficiário da disposição testamentária.

IV – A exploração não se presume, nem pode ser deduzida do requisito da situação de dependência, sem apoio de uma factualidade global relevante que demonstre intenção da beneficiária do testamento de controlar o património da testadora.

V – Dada a natureza gratuita do testamento, a prova do requisito da “lesão”, i.e. a concessão de benefícios injustificados ou excessivos não deve ser muito exigente, tendo a fragilidade da prova deste requisito que ser compensada por uma maior intensidade da prova dos restantes, de acordo com uma conceção de sistema móvel.

 

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 9 de maio de 2023


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Tomé (2.º Adjunta), anexa declaração de voto de vencida

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Declaração de voto de vencida

Votei vencida porque me parece que deveria ter sido repristinada a decisão do Tribunal de 1.ª Instância que considerou ser “(…) por demais evidente que a ré, conhecedora da situação de fragilidade da testadora, aproveitou e incentivou o afastamento da mesma dos restantes amigos e familiares, conseguindo que a mesma a beneficiasse quase em exclusivo no último testamento, sem qualquer justificação aparente, resultando preenchidos todos os pressupostos da figura da usura.”

Com efeito, o testamento foi outorgado – 17 de outubro de 2018 - por CC aproximadamente um mês antes da sua morte – 20 de novembro de 2018 (factos provados sob os n.os 1 e 2); CC, no seu último testamento, contempla a Ré com sessenta por cento dos valores monetários à data da sua morte e institui-a herdeira do remanescente da sua herança (facto provado sob o n.º 2); o Autor, sobrinho por afinidade de CC, viveu com esta e o seu falecido tio durante os anos da sua formação universitária e começo de vida laboral, tendo acompanhado a sua tia ao longo dos anos em que esta viveu sozinha, visitando-a com regularidade (factos provados sob os n.os 7 e 8); CC apenas conviveu mais com a Ré a partir de 2016 (facto provado sob o n,º 10); a Ré passou a controlar a quantia de cerca de € 20.000,00 que a falecida tinha guardado em casa (facto provado sob o n.º 12); a empregada doméstica de CC começou a ser afastada da sua companhia e de todas as decisões (facto provado sob o n.º 13); por indicação da Ré, CC deixou de seguida no Hospital ..., no ..., para a ser acompanhada no Hospital ..., na zona de ... (facto provado sob o n.º 14); CC apresentava problemas de audição, de visão, doença pulmonar com componente asmatiforme, insuficiência cardíaca de etilogia valvular com estonese aórtica e mitral, fibrilação auricular, permanentemente hipocoagulada, patologia osteoarticular degenerativa e alergias múltiplas (facto provado sob o n.º 15); apresentava um défice cognitivo ligeiro e sofria de esquecimentos frequentes (facto provado sob o n.º 16); a 16 de agosto de 2018, em consequência de um episódio de dispneia, CC foi conduzida pela Ré para as urgências do Hospital ..., tendo aí ficado internada (facto provado sob o n.º 17); o Autor não teve conhecimento que a sua tia se encontrava doente, tendo a mesma sido internada de urgência sem disso ter sido avisado pela Ré (facto provado sob o n.º 18); aí permaneceu até à morte (facto provado sob o n.º 19); com a evolução do internamento apresentou deterioração clínica, com limitação progressiva da sua capacidade funcional, dispneia e intolerância a esforços, mesmo em repouso (facto provado sob o n.º 21); durante o internamento, a Ré foi limitando de forma paulatina os contactos de CC com familiares e amigos, nomeadamente, com a amiga DD e a filha desta, por estas se terem insurgido contra o facto da Ré manter o controlo do dinheiro da falecida (facto provado sob o n.º 22); nas últimas semanas de vida de CC, a Ré esteve sempre presente nas visitas do Autor, não o deixando sozinho com a tia (facto provado sob o n.º 23); foi a Ré que tratou dos procedimentos necessários à celebração do testamento outorgado em 2018, tendo contactado um profissional do foro que diligenciou todo o processo e foi quem conduziu a falecida ao cartório notarial (facto provado sob o n.º 24); a Ré mudou ainda a fechadura da casa de habitação da falecida e manteve as chaves em seu poder, não permitindo a entrada e o acesso à casa por parte de familiares e amigos da de cujus, sem que estivesse presente (facto provado sob o n.º 25).

Pode dizer-se que da factualidade considerada como provada resulta a situação de fragilidade e de dependência de CC perante a Ré (que não mantém com aquela qualquer relação familiar ou sequer de amizade de longa duração), assim como a existência de comportamentos da Ré demonstrativos de exploração dessa situação de fragilidade e de dependência. Da valoração desses factos deriva ainda um grave juízo de censura sobre a conduta da Ré, que é a beneficiária do testamento: o comportamento da Ré é, sem dúvida, CC gravemente reprovável. De resto, a prova do requisito da concessão de benefícios injustificados e/ou excessivos não deve ser demasiado exigente, sob pena de nunca se alcançar.

Maria João Vaz Tomé