Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
34/20.9PBVCD-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: SÉNIO ALVES (DE TURNO)
Descritores: HABEAS CORPUS
CIDADÃO ESTRANGEIRO
PRISÃO PREVENTIVA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 01/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDENTE / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. Nos termos do nº 2 do artº 219º do CPP, não existe relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso previsto no nº 1 do mesmo dispositivo e a providência de habeas corpus, independentemente dos respectivos fundamentos.

II. Daí, porém, não resulta que os fundamentos próprios de um recurso a interpor nos termos do nº 1 do artº 219º do CPP possam, de igual modo, ser utilizados para fundamentar a providência de habeas corpus, cujos pressupostos são, apenas, os enunciados no nº 2 do artº 222º do CPP.

III. Saber se os requisitos gerais de aplicação das medidas de coacção se verificam, in casu, é algo que pode ser questionado, certamente. Não, porém, na providência de habeas corpus, antes em recurso ordinário a interpor do despacho que assim decidiu, o qual, aliás, há-de ser decidido no prazo máximo de 30 dias, contados a partir do momento em que os autos forem recebidos – artº 219º, nº 1 do CPP.

Decisão Texto Integral:



Acordam neste Supremo Tribunal de Justiça:



I. AA, melhor identificado nos autos, requereu a presente providência de habeas corpus, em documento subscrito pelo seu mandatário e onde afirma:

«No passado dia 16/12/2022, em sede de primeiro interrogatório judicial, o douto Tribunal de Instrução Criminal ..., indo mais além do promovido pelo Ministério Público, aplicou ao Requerente (que não tem antecedentes de criminais) a bomba atómica das medidas de coação.

Sucede, todavia, que o Arguido (que se encontra indiciado pelo crime de tráfico de estupefacientes) apenas se encontra preso pela circunstância de ser cidadão de outra nacionalidade.

Com efeito, o Tribunal de Instrução Criminal fundamentou a aplicação ao arguido da medida de coação mais gravosa, com o seguinte:

 "O arguido AA é de nacionalidade brasileira (sem acordo de extradição com Portugal, já que o Brasil já extradita os seus nacionais)(...) pelo que, em liberdade, poderá encetar a fuga, eventualmente para o Brasil onde nunca seria extraditado, assim se furtando à ação da justiça (...) ainda que não tenha antecedentes criminais". Pág. 68.

Salvo o devido respeito - que é de facto muito - mas nunca pode uma privação da liberdade assentar numa violação do princípio da igualdade, sobejando que o Arguido, apenas pela circunstância de ser nacional de um outro país, deve aguardar, com a sua liberdade totalmente suprimida, o desfecho de um julgamento no qual vigora o princípio basilar [1] do in dubeo pro reo. Atendendo ao exarado no despacho que determinou a prisão preventiva do ora Requerente, resulta que este nunca estaria recluído se não tivesse a nacionalidade brasileira. E é esta prisão abusiva que por insustentável e gritantemente inadmissível não se pode manter.

Sob a epígrafe princípio da igualdade, reza o n.° 1 do art. 13.° da Constituição da República Portuguesa que: "[t]odos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei“. Por sua vez, o n.° 2 prescreve: "[n]inguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual". Parafraseando GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIA, "[o] princípio da igualdade é um dos princípios estruturantes do sistema constitucional global, conjugando dialecticamente as dimensões liberais, democráticas e sociais inerentes ao conceito de Estado de Direito democrático e social (art. 2. º) Na sua dimensão liberal o princípio da igualdade consubstancia a ideia de igual posição de todas as pessoas, independentemente do seu nascimento e do seu status, perante a lei, geral e abstraía, considerada subjectivamente universal em virtude da sua impessoalidade e da indefinida repetitibilidade na aplicação"[2].

"O conceito jurídico-constitucional do princípio da igualdade tem vindo progressivamente a alargar-se, de acordo com a síntese dialética dos momentos liberais, democráticos e sociais. O seu âmbito de proteção abrange na ordem constitucional portuguesa (...) a proibição do arbítrio[3]. A este propósito, continuam os mesmos Autores: "[a]proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo: nem aquilo que ê fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual deve ser arbitrariamente tratado como igual."[4]

Por pertinente, traz-se à colação o preceituado no n.° 1 do art. 15.° da Lei Maior, o qual dita: "[o]s estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português"[5]. Segundo a citada doutrina, entendimento que não se pode deixar de, por correto, de acompanhar: “[o] preceito do n.° 1 inscreve-se na orientação mais avançada quanto ao reconhecimento de direitos fundamentais a estrangeiros e apátridas que se encontrem ou sejam residentes em Portugal. A Constituição, salvo as exceções do n.° 2[6], não faz depender da cidadania portuguesa o gozo dos direitos fundamentais bem como a sujeição aos deveres fundamentais. O princípio é a equiparação dos estrangeiros e apátridas com os cidadãos portugueses[7]. Assim, em jeito de reforço da plena igualdade entre cidadãos nacionais e não nacionais, a Constituição da República Portuguesa transforma, felizmente, o princípio da igualdade num verdadeiro direito fundamental. De facto, a densificação do princípio da igualdade dos cidadãos não nacionais face aos nacionais, tem merecido especial atenção do legislador internacional (como se denota do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, assinado em Porto Seguro em 22 de Abril de 2000[8]). No panorama jurisprudencial, destacamos o entendimento sufragado pelo nosso Tribunal Constitucional que, já em 1987, perfilhava o seguinte: “[a] extradição só pode aplicar-se a estrangeiros (e apátridas), não podendo nenhum cidadão português ser extraditado do território nacional (art. 15-1) e, embora a Constituição consinta que a lei reserve certos direitos exclusivamente aos cidadãos portugueses (art. 15.° n.° 2 in fine), não pode obviamente fazê-lo de forma arbitrária, desnecessária ou desproporcionada, sob pena de inutilização do próprio princípio da equiparação dos estrangeiros e apátridas aos cidadãos portugueses. Ora, não se vê como é que seria de alguma forma defensável a restrição dos direitos dos estrangeiros em matéria de garantias de defesa em processo criminal. Estando em causa a liberdade das pessoas, enquanto tais, seria seguramente ilegítima toda e qualquer discriminação de tratamento com base na cidadania"[9].

Nos últimos anos, os princípios da igualdade e da não discriminação têm merecido a atenção do legislador europeu, bem como do TEDH[10]. Nos termos do disposto no art. 14.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, [o] gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação." A propósito desta norma, refere DULCE LOPES, "[t]endo como pano de fundo o conceito plurisignificativo de igualdade, que, numa teorização genericamente aceite, tem vindo a ser desdobrado em três dimensões distintas — a proibição do arbítrio, a obrigação de diferenciação e a proibição de discriminação — situamo-nos no âmbito desta última, precisamente aquela que, em virtude da sua especial gravidade, mais tem estado na mira das instâncias internacionais e europeias"[11].

À luz do n.° 1 do art. 222.° do Código de Processo Penal, "[a] qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus". O n.° 2 da aludida norma fixa, de forma taxativa, os fundamentos desta providência, podendo eles, então, ser os que se seguem: a) ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial. In casu, aplica-se a alínea b).

Efetivamente, a prisão que o Requerente mantém foi inquestionavelmente motivada por uma discriminação não só altamente censurável, como absolutamente proibida pelo art. 13.° da nossa Constituição da República. Ao invés do que se verifica noutros ordenamentos jurídicos, em Portugal, não existe qualquer recurso de amparo que permita ao Requerente, de forma imediata e expedita, insurgir-se contra esta ostensiva preterição dos seus direitos fundamentais, pelo que o presente mecanismo de habeas copus é o único capaz de evitar este dano que, com o decorrer dos dias, vai sendo cada vez mais evidenciado. Aliás, saliente-se, nesta matéria, o preceituado no n.° 4 do art. 5.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, da qual Portugal é signatário: "[q]ualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal"; e, ainda, o previsto no art. 1º do Protocolo n.° 12 à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, subscrito em Roma a 04/11/2000, o qual consagra: “1. O gozo de todo e qualquer direito previsto na lei deve ser garantido sem discriminação alguma em razão, nomeadamente, do sexo, raça, cor, língua, religião, convicções políticas ou outras, origem nacional ou social, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento ou outra situação. 2. Ninguém pode ser objecto de discriminação por parte de qualquer autoridade pública com base nomeadamente nas razões enunciadas no número 1 do presente artigo".

Outrossim, o n.° 5 do art. 20.° da Constituição da República Portuguesa, ao preceituar, cristalinamente, que "[p]ara defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos" afloreia o princípio da tutela jurisdicional efetiva. Como consabido, "[o] princípio da efetividade está estreitamente relacionado com o direito à decisão da causa em prazo razoável (n.° 4). Noutras formulações, fala-se em direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, direito a uma decisão temporalmente adequada, direito à tempestividade da tutela jurisdicional"[12]. Neste caso em concreto, por estar em causa o desrespeito de um direito fundamental do Arguido (direito a um tratamento igual e não discriminatório), justifica-se o recurso à providência de habeas corpus para evitar, de forma célere, a irreparabilidade atinente à situação de reclusão que indevidamente o aqui Requerente vivência[13]. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA apregoam: "[s]endo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade[14]." [15]

Em comunhão com os ensinamentos de GERMANO MARQUES DA SILVA, importa mencionar que basta atentar no caráter extraordinário e urgente do habeas corpus relativamente aos prazos estabelecidos por lei para decisão dos recursos para se ter de considerar que esta providência é uma medida extraordinária e urgente que não pode estar condicionada pela possibilidade de interposição de recurso. Aliás, o art. 219.° do Código de Processo Penal expressamente estabelece que há recurso da decisão que aplicar ou mantiver medidas de coação, sem prejuízo da providência de habeas corpus. [16]

De facto, o motivo que justificou a prisão (a nacionalidade do Arguido) assentou num abuso de poder, claro, evidente e facilmente cognoscível. No caso vertente, a prisão objeto desta providência é, como de resto temos vindo a dizer, ilegal, inconstitucional e contrária ao princípios e normas do direito europeu.

E se por uma questão puramente arraigada à interpretação da al. b) do n.° 2 do art 222.° do Código de Processo Penal, se concluir que o fundamento nele inserto não se estende à tutela fundamental e constitucional que aqui se pretende ver reconhecida, sempre essa interpretação careceria de constitucionalidade (arts. 13.° n.° 2, 15.° n.° 1, 17.°, 18.° n.° 1, 20.° n.° 1. 20.° n.° 5, 32,° n.° 1 e 2, todos da Lei Maior) - devendo, por conseguinte, ser declarada a inconstitucionalidade dessa mesma interpretação por afrontar com o plasmado nas normas retro (o que expressamente se peticiona).

Estaria o Requerente atualmente preso se não fosse cidadão estrangeiro?!

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXAS., COMO SEMPRE, MUI SABIAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ SER DECLARADA PROCEDENTE A PRESENTE PROVIDÊNCIA DE HABEAS CORPUS, TUDO COMAS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS!

SUBSIDIARIAMENTE,

DEVERÁ SER DECLARADA A INCONSTITUCIONALIDADE DA AL. B) DO N.° 2 DO ART. 222.° DO CPP, QUANDO INTERPRETADA NO SENTIDO DE QUE ESTE FUNDAMENTO NÃO PREVÊ A POSSIBILIDADE DE TUTELA DA VIOLAÇÃO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL VERTIDA NUM DESPACHO JUDICIAL DE APLICAÇÃO DA MEDIDA COACTIVA DE PRISÃO PREVENTIVA» (itálicos e negritos do original).


II. O Mº juiz de turno prestou a informação a que alude o artº 223º, nº 1 do CPP, nos seguintes termos:

«Nos termos do art. 223.º, nº1, do C.P.P., consigna-se que o arguido AA foi sujeito a primeiro interrogatório de arguido detido, tendo sido objecto de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva por despacho de 16/12/2022, constante da certidão que antecede e que aqui se dá por reproduzido, nele se podendo ler, além do mais (e a transcrição que se segue serve sobretudo para sublinhar que sobre o arguido ora requerente de habeas corpus não se escreveu apenas o que o mesmo transcreveu na sua petição):

«O arguido AA é de nacionalidade brasileira (sem acordo de extradição com Portugal, que o Brasil extradita os seus nacionais), tem papel preponderante na actividade de tráfico do BB, oferecendo a sua casa como casa de apoio, de recuo (cfr. artºs 58, 134, ), conforme resulta das vigilâncias policiais e intercepções telefónicas), acompanha FREQUENTEMENTE BB, ESTABELECEU DIVERSOS CONTACTOS com BB (art 58, 140, 142 146, 147, 148, 149150, 151). Foi apreendida quantia elevada de dinheiro que não justificou a posse, balanças de precisão, liamba (artº 260), pelo que, em liberdade, poderá encetar a fuga, eventualmente para o Brasil onde nunca seria extraditado, assim se furtando à acção da justiça, o que se impõe acautelar, até porque, fazendo um juízo de prognose, afigura-se-nos que tal arguido, atenta a factualidade imputada, meios de prova consistentes que os fundamentam, o modo de execução dos factos, o prolongamento no tempo dos factos, justificarão a não suspensão da pena ainda que não tenha antecedentes criminais.”

(…)

Ora, tendo em conta a gravidade do crime, meios de prova que os sustentam, a previsibilidade de condenação em pena de prisão efectiva (ainda que os arguidos não tenham antecedentes criminais ou CC tenha mas apenas por crime de ameaça), é expectável que os arguidos BB, DD, CC, EE e AA, agora conhecedores dos meios de prova e da previsibilidade de condenação em pena de prisão efectiva, possam encetar a fuga, por forma a eximirem-se à acção da justiça.

Com efeito, vigorando na União Europeia a circulação de pessoas e bens os arguidos - agora conhecedores dos meios de prova que contra si existem e do correspondente ilícito penal - poderão encetar a fuga, por forma a eximirem-se à acção da justiça, caso não lhe seja aplicada medida privativa da liberdade.

BB terá conta na ..., com ligações a outros países, pelo que, se colocado em liberdade, atenta a previsibilidade de cumprimento de pena muito elevada de prisão, aliada à sua grande mobilidade e capacidade financeira (revelada nas apreensões realizada, o que torna legítimo pressupor que tenha mais dinheiro em local escondido) poderá, nos termos referidos, encetar a fuga.

Outrossim não se olvide que a experiência nos ensina que aquelas que estão dispostos a sofrer uma pena em nome dos princípios serão muito raros e que, existindo, se encontrarão esmagadoramente entre aqueles que não cometem crimes.

Assim, a realidade é que a aproximação da ameaça de condenação exerce na pressão psicológica do arguido que o incentiva a furtar-se a pena e, entrevendo ele uma possibilidade de fuga, é normal que fuja.

Ora, a gravidade dos factos imputados, os meios de prova seguros e consistentes que os fundamentam, o comportamento dos arguidos, com preocupação em não serem descobertos, com as referidas cautelas nos contactos telefónicos, demonstrativo de cautelas e organização com que desenvolviam a sua actividade criminosa, o facto de BB não ter actividade profissional estável e remunerada, o facto de AA poder fugir para o Brasil (que, nos termos referido, não extradita os seus nacionais) justificam, desde logo, o perigo de os arguidos BB, DD, CC, EE e AA se colocados em liberdade, fugirem por forma a eximirem-se às consequências penais altamente desvaliosas das suas condutas e das penas de prisão (efectiva) que lhes serão aplicadas.

Quanto ao perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova – alínea b) do artigo 204.º, do Código de Processo Penal.

Trata-se de uma exigência cautelar para salvaguarda do desenrolar da investigação, com particular acuidade no potencial probatório, incluindo a sua genuinidade.

Este perigo de perturbação diz respeito às fontes probatórias que se encontram nos autos ou que possam vir a ser obtidas e consiste no risco, sério e actual, de ocultação ou alteração das mesmas por parte do arguido.

Para o efeito torna-se necessário identificar não a situação, mas também a prova relativamente à qual se possa sustentar que o arguido poderá comprometer o decurso normal da investigação, perturbando, assim, o processo formativo da prova.

Significa isto, e revertendo para o caso dos autos, que os arguidos tendo tomado conhecimento hoje da totalidade da prova que fundamentou a sua sujeição a primeiro interrogatório judicial, certamente diligenciarão, se puderem (ou deixassem), no sentido de evitar novos contributos para a descoberta da verdade e para a confirmação dos indícios recolhidos ou até no sentido de que sejam alterados os elementos recolhidos.

Dito de outra forma, a conduta dos arguidos, e supra descrita, com todos os cuidados nas conversações que detinham com terceiros com vista à venda de estupefaciente, deixa antever, que se lhes fosse possível, diligenciariam no sentido de junto dos seus consumidores os poder intimidar por forma a não colaborarem com a justiça.

Existe, pois, sério perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação e veracidade da prova, designadamente, da prova testemunhal, na medida que, ainda falta proceder às inquirições dos indivíduos, consumidores/clientes de estupefacientes, que adquiriram estupefacientes a tais arguidos. Esses clientes que, por regra, são alvo de pressões e ameaças por parte dos traficantes de modo a que não deponham contra eles.

Entendemos, pois, que no caso em apreço se verifica, em concreto, este perigo de perturbação do decurso do inquérito, uma vez que todos os arguidos poderão contactar os seus consumidores de estupefaciente já identificados e outros por identificar e dessa fora perturbar a consolidação e ou aquisição da prova, bem como não comparecerem a actos processuais que reclamem as respectivas comparência.

Por outro lado, a existência de todas as cautelas dos arguidos é demostrativa do perigo para a aquisição (prova que falta realizar), consolidação (prova já realizada mas que pode ser pressionada no sentido de reverter os depoimentos prestados) da prova.

Considero, pois, que existe perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente para aquisição e manutenção da prova, poderão encetar diligências no sentido de, por um lado dificultar a recolha de outros meios de prova que impõem obter (nomeadamente a identificação cabal de outros consumidores do estupefacientes) e o apuramento dos concretos contornos do crime, nomeadamente identificação do(s) fornecedor (es) dos arguidos do estupefaciente, bem como tentarem silenciar os consumidores identificados quer por meios de intercepções quer os que prestaram declarações.

Importa ainda proceder à identificação e posterior inquirição dos diversos “clientes”/consumidores, que foram, ao longo de todo aquele período, bem se sabendo que, neste tipo de criminalidade tais indivíduos são fortemente pressionados pelos autores do tráfico, no sentido de apresentarem “versões” que não os apontem como fornecedores de produtos estupefacientes, sendo também premente o perigo de perturbação do decurso do inquérito e perigo para aquisição, conservação ou veracidade da prova, e que nos faz concluir que a dispersão da actividade criminosa destes arguidos é ainda bastante superior à que consta da supra indiciada e que importa ainda esclarecer.


*


Quanto ao perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas alínea c) do artigo 204.º, do Código de Processo Penal.

Esta condição, que deve igualmente ser concretizada, tem em vista a salvaguarda futura da paz social, que foi afectada com a conduta criminosa revelada pelo arguido e que tem potencialidades, objectivas (natureza e circunstâncias) ou subjectivas (personalidade), para continuar a alarmar ou mesmo para manter essa actividade delituosa.

Para o efeito torna-se necessário efectuar um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, atendendo às circunstâncias anteriores ou contemporâneas à sua indiciada actividade delituosa.

Diga-se que tal juízo de perigosidade social deverá estar sempre conexionado com a existência dessa conduta ilícita e não com quaisquer preocupações genéricas de defesa social, que sejam jurídico-penalmente neutras.

Nem tão pouco, deverá ter que ver com meras situações de «alarme social», despidas de qualquer ilicitude.

Por outro lado, e conforme se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01/07/2009, proferido no âmbito do processo 451/09...., este pressuposto da perturbação grave da ordem e tranquilidades públicas, ainda que despido do «cunho estritamente objectivo» que decorria da anterior redacção deste segmento normativo, deve ser insuflado ou estar relacionado com o direito à liberdade e à segurança, instituído pelo artigo 5.º da C.E.DH. E isto não apenas na perspectiva do arguido, mas também dos cidadãos que possam ser potenciais vítimas da conduta criminosa praticada por aquele e que se encontra indiciada.

Daí que este pressuposto se revele na função preventiva do processo penal face à perigosidade social revelada pelo arguido, seja mediante um controlo cautelar e pré-punitivo (medidas de coacção), seja de contenção do conflito social provocado pela correspondente conduta delituosa.

Resulta consistentemente dos autos que os arguidos se dedicam à venda lucrativa a terceiros consumidores de produtos estupefacientes, bem sabendo que a aquisição, venda e detenção de tais substâncias são proibidas e punidas por lei.

Os precisos contornos dos factos em que se molda a conduta destes arguidos, bem como o seu presumido modo de vida espelhado nas intercepções telefónicas fazem, sem qualquer dúvida, antecipar que a mera sujeição a TIR não satisfaz as exigências cautelares que, quanto a estes, o caso demanda, pois que tudo aponta, desde logo e entre o mais, que os mesmos irão manter-se na senda do crime.

É assim premente o perigo de continuação da actividade criminosa por parte de todos os arguidos.

Com efeito, todos os arguidos vinham auferindo, por via da actividade de tráfico, vantagem pecuniária que se presume estimável e que foram utilizando em seu benefício (como serve de amostra as quantias que foram apreendidas aos arguidos BB (incluindo no ...), CC, EE, AA) e que foram, com toda a certeza, animando e mantendo a intenção de se dedicarem à venda de substâncias estupefacientes, não lhe sendo conhecida relativamente a BB qualquer actividade laboral regular (ainda que tenha referido estar desde Abrir a fazer descontos para a segurança social e trabalhe como animador em empresa de eventos musicais).

O crime em causa, conforme decorre dos autos e da experiência comum, gera avultados lucros, que os arguidos não se querem ver privados (sendo que o CC detinha bicarbonato de sódio para exponenciar o seu lucro).

No caso, e em consideração à energia criminosa pelos arguidos BB, EE, DD, CC, AA demonstrada, cremos que os perigos de continuação da actividade de tráfico e de perturbação da ordem e tranquilidade da comunidade onde se inserem não poderão ser reprimidos com a aplicação de medida de coacção de natureza não detentiva.

E em atenção ao perfil destes arguidos, não sendo conhecida a BB qualquer actividade laboral regular, e ao recorte da actividade que vêm desenvolvendo (com uma actuação prolongada no tempo, com várias intercepções telefónicas demostrativas que todos arguidos não olham a meios para atingir os fins (lucro fácil), com comportamentos de contra vigilância e que dificultam a investigação deste tipo de crime (qualificado de criminalidade altamente organizada) a actuação criminosa poderia, pacificamente, continuar pelos mesmos a ser desenvolvida no interior das respectivas habitações (o que afasta , desde logo a OPH com VE).

Existe, pois, um real e muito concreto perigo de prolongamento, por todos os arguidos, da actividade criminosa, bem como um concreto e sério perigo, este intimamente associado ao próprio tráfico de estupefacientes, de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

Os factos em que se consubstancia o crime de tráfico de estupefacientes, em cuja autoria os arguidos se encontram indiciariamente investidos, são objectivamente graves, têm forte impacto na comunidade local e geram um clima de acentuadíssima perturbação da ordem e da tranquilidade públicas.

Basta que atentemos, numa primeira linha, nos comportamentos, alguns de natureza também criminosa, que estão tipicamente associados ao referido ilícito.

Com efeito, aos crimes de tráfico de estupefacientes encontram-se umbilicalmente ligados crimes de furto e de roubo. Os toxicodependentes (os principais clientes directos e/ou indirectos dos arguidos), desprovidos, em regra, de capacidade financeira, não têm qualquer pejo em furtar ou roubar para, por essa via, directa ou indirectamente, adquirirem meios monetários para satisfação do seu vício.

Cremos, pois, que se não forem, de imediato, assumidas as necessárias e adequadas medidas de natureza cautelar, todos os arguidos irão continuar a sua senda criminosa e promover a venda, a, entre outros, um número considerável de toxicodependentes, de substâncias estupefacientes, o que se impõe salvaguardar.

Ademais, conforme referido, importa ainda proceder à identificação e posterior inquirição dos diversos “clientes”/consumidores, que foram, ao longo de todo aquele período, bem se sabendo que, neste tipo de criminalidade tais indivíduos são fortemente pressionados pelos autores do tráfico, no sentido de apresentarem “versões” que não os apontem como fornecedores de produtos estupefacientes, sendo também premente o perigo de perturbação do decurso do inquérito e perigo para aquisição, conservação ou veracidade da prova.

É assim premente o perigo de continuação da actividade criminosa por parte de todos os arguidos.

Com efeito, todos os arguidos vinham auferindo, por via da actividade de tráfico, vantagem pecuniária que se presume estimável (nalgum casos, evidente em função das apreensões realizadas) e que foram utilizando em seu benefício (como serve de amostra as quantias que foram apreendidas a alguns arguidos- os principais na execução dos factos) e que foi, com toda a certeza, animando e mantendo a intenção de se dedicarem à venda de substâncias estupefacientes.

Para além do exposto, resulta dos autos que a actividade desenvolvida pelos arguidos se desenrolou com um grau de organização e rentabilidade, o que se depreende, quer da quantidade de estupefaciente apreendidos, quer do elevado número de pessoas que os procuravam para adquirir produto estupefaciente, quer da apreensão de materiais ligados ao tráfico, como sendo balanças de precisão e recortes de plástico, ainda nas cautelas de que estes se rodeavam.

Tendo em conta o período temporal em que os arguidos vêm desenvolvendo a sua actividade, o comportamento destes arguidos, com os cuidados acrescidos nas conversações é por demais, demonstrativo de um efectivo perigo de continuação da actividade criminosa, pelo que a simples sujeição dos mesmos a termo de identidade e residência se mostra manifestamente insuficiente para acautelar as exigências cautelares que, de forma premente e em concreto, se fazem sentir.

Resulta, então, que a actividade de tráfico de estupefacientes a que os arguidos se dedicam, para além de lhe permitir fazer face a todas as despesas regulares e permanentes, tem como último desígnio a obtenção de elevados lucros, conforme resulta aliás das apreensões monetárias realizadas a alguns arguidos nos termos expostos.

Tendo em conta a quantidade de produtos estupefacientes que lhes foi apreendido, materiais usados na pratica de actividade de tráfico, o período temporal em que estes vêm desenvolvendo a sua actividade torna evidente o perigo de continuação da actividade criminosa, demonstrando todos os arguidos uma personalidade absolutamente contrária ao dever-ser jurídico.

Considerando a motivação dos factos imputados - a experiência comum impõe referir que os arguidos praticaram os factos imputados pela ânsia do dinheiro fácil (conforme decorre das apreensões monetárias), sempre se dirá que se encontram fortemente motivados para a prática de ilícitos criminais, existindo, assim, em função da sua situação pessoal e da sua personalidade dos arguidos o perigo de continuarem actividade criminosa idêntica á dos presentes autos,

O molde como o crime de tráfico de estupefacientes é desenvolvido, visa a obtenção de lucro fácil, rápido e significativo, facto que potencia a continuação de actividade criminosa, que importa reprimir e pôr cobro, até pelos efeitos nefastos que o consumo de estupefaciente acarreta em toda a sociedade, um autêntico “cancro” social, sendo que os traficantes são, como disse João Paulo II, autênticos “mercadores da morte” (note-se que no decurso da presente investigação morreu uma pessoa por overdose).

No crime de tráfico de estupefacientes como crime de perigo abstracto, as exigências cautelares de perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas são determinantes na fixação medida de coacção a aplicar, para aquietação da comunidade e afirmação de valores essenciais afectados por comportamentos que, antes e para além de causarem efectivos danos, são aptos a colocar em perigo bens jurídicos essenciais, como sejam a segurança da comunidade a saúde e vida dos dependentes de estupefacientes e até a vida, de indiscutível valor supremo.

Note-se, conforme referido, que no decurso desta investigação ocorreu a morte de um ser humano por questões relacionadas com o consumo excessivo de estupefacientes -overdose.

«As necessidades de aplicação de medidas de coação adequadas e proporcionais á gravidade dos factos são prementes, visto que a situação que se vive em Portugal em termos de tráfico e de toxicodependência é grave, traduzida num significativo aumento da criminalidade e na degradação social de parte importante do sector mais jovem da comunidade» - Acórdão do STJ de 25-02-2009.

Também o Acórdão do STJ de 20/1/2010, é expressivo nesta matéria: «O crime de tráfico de estupefacientes tutela a saúde pública em conjugação com a liberdade da pessoa, aqui se manifestando uma alusão implícita à dependência e aos malefícios que a droga gera. As necessidades de prevenção geral são prementes, visto que a situação que se vive em Portugal em termos de tráfico e de toxicodependência é grave, traduzida num significativo aumento da criminalidade e na crescente degradação social de parte importante do sector mais jovem da comunidade. Os últimos dados conhecidos sobre as consequências nefastas do consumo de estupefacientes apresentam-nos um quadro muito negativo, traduzido num aumento significativo do número de mortes ocorridas, em especial por overdose. Segundo o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, as mortes provocadas pelo consumo de estupefacientes subiram 45% entre 2006 e 2007, situando-se no preocupante patamar de 314 óbitos, o valor mais elevado desde 2001. Certo é, por outro lado, que em 2007, no âmbito da Lei da Droga, foram condenadas 1420 pessoas, a maioria esmagadora por tráfico, com associação ao consumo em 2% dos casos. Em 31 de Dezembro de 2007 encontravam-se detidas 2524 pessoas condenadas por tráfico, representando 27% da população reclusa, o que significa ter sido interrompida a tendência decrescente de reclusos por tráfico que se vinha verificando desde o ano 2000. Esta situação mostra-se consonante, aliás, com a que se verifica na generalidade dos demais países, bem retratada no comunicado emitido em Novembro de 2009 pelo Conselho de Segurança da ONU, no qual se refere que o tráfico de drogas está a transformar-se numa séria ameaça que afecta todas as regiões do mundo». Com efeito, os factos em que se consubstancia o crime de tráfico de estupefacientes, em cuja autoria os arguidos se encontra indiciariamente investidos, são objectivamente graves, têm forte impacto na comunidade local e geram um clima de acentuadíssima perturbação da ordem e da tranquilidade públicas.

Basta que atentemos, numa primeira linha, nos comportamentos, alguns de natureza também criminosa, que estão tipicamente associados ao referido ilícito.

Com efeito, aos crimes de tráfico de estupefacientes encontram-se umbilicalmente ligados crimes de furto e de roubo.


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A colocação dos arguidos BB, DD, CC, EE e AA em liberdade atenta a quantidade de estupefacientes apreendido (aqui se excluindo BB e seu colaborador EE, pelo conhecimento destes da pendência de mandados de busca, a justificar, nos termos referidos, que em relação a estes não foi apreendido estupefaciente!!!!), o modo de execução dos factos, o prolongamento da sua execução no tempo, as cautelas e cuidados que revelaram perturbaria gravemente a ordem e tranquilidade públicas e seria sentido pela comunidade como sinal de não funcionamento das instâncias formais de controlo e frustraria as legitimas expectativa comunitárias na também prevenção deste tipo de crime.

No que concerne ao arguido EE não ocorreram apreensões, tal como expectável, porquanto estava avisado da pendência de mandados de busca. É colaborador próximo de BB, com contactos quase diários, e ciente da pendência de mandados o people está todo sob investigação”- cfr. sessão 64191 e fls. 3442 e informação de fls. 3576 e 3526, naturalmente muniu-se de cuidados acrescidos, alterando o modo de actuar. No entanto a sua actividade de tráfico, pela extensão (artºs 93 a 121 e apreensões realizadas (artºs 256) são elucidativa do modo de actuar deste arguido, que utiliza o espaço de diversão nocturna que gere para a sua actividade de tráfico de estupefacientes.


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Atentos os efeitos criminosos associados ao tráfico de estupefacientes, é manifesto, em razão da natureza do crime, o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas-art.º 204º, al. c) do CPP.

Considerando os efeitos criminosos associados ao tráfico de estupefacientes, é manifesto que se verifica perigo, em razão da natureza do crime (trata-se de um crime que provoca repulsa em toda a sociedade, por se tratar de um autêntico cancro da sociedade moderna, e que provoca a destruição de milhares de vidas) e das circunstâncias em que o mesmo foi praticado, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas.

De tudo o quanto acabamos de deixar dito, dúvidas não existem quanto à necessidade de aplicar aos arguidos uma medida de coacção mais gravosa que o simples termo de identidade e residência.

A manutenção dos arguidos BB, DD, CC, EE e AA em liberdade em liberdade não se nos afigura como suficiente para assegurar as exigências cautelares do caso em apreço, desde logo por permitir diligenciar no sentido de dificultar a investigação ou até, no limite, continuar a actividade criminosa, ou a fuga, não sendo despiciendo reforçar que o crime, atentas as concretas circunstâncias do mesmo e referenciado nos autos, poderá também ser cometido no interior da habitação.

Por outro lado, enviaria para a sociedade um sinal errado, até de alguma impunidade, ainda que não se olvide que o arguido beneficia de uma presunção de inocência até ao trânsito em julgado da decisão condenatória.


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Nestes termos, têm-se por preenchidos os pressupostos (alternativos) previstos nas alíneas a) b) e c) do art.º 204.º do C. P. Penal, que justificam, para além da existência do TIR, a aplicação de outras medidas de coacção.

Deve, pois, ser imposta uma medida de coacção que responda de forma adequada às exigências cautelares que o caso requer e proporcional à gravidade do crime fortemente indiciado - que se prevê seja de pena de prisão efectiva aos arguidos BB, DD, CC, EE e AA (note-se que o modo de execução do crime, a sua execução temporal, a dispersão geográfica relativamente a BB e seus colaboradores/fornecedores, como CC, EE ou AA, apreensões realizadas e demais circunstâncias do caso (como sendo muitas das vezes junto a estabelecimentos de ensino) permite-nos, desde já, fundamentar que tais arguidos serão condenados em pena de prisão efectiva - sendo que a medida de prisão preventiva é proporcional à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada, sendo certo que é de aplicar a prisão preventiva se todas as outras medidas se mostrarem insuficientes (art.º 193º C. P. Penal).

A posição do Supremo Tribunal de Justiça, nos casos de tráfico de estupefacientes, acentua as necessidades de prevenção geral.

Na realidade, entende o nosso mais Alto Tribunal que, nos crime de tráfico de estupefacientes, a suspensão da execução da pena apenas pode ter lugar em casos ou situações especiais, em que a ilicitude do facto se mostre diminuída e o sentimento de reprovação social se mostre esbatido, o que, manifestamente não se verifica, desde logo, atento, por um lado, o período temporal em que vêm desenvolvendo a sua actividade criminosa, o modo de execução dos factos, os cuidados dos arguidos, a quantidade e natureza do estupefaciente apreendida a CC e o grau de sofisticação dos arguidos na execução de actos de tráfico de estupefacientes.

Nos crimes de tráfico de estupefacientes as razões de prevenção geral excepcionalmente se satisfazem com uma pena de substituição. Os efeitos nocivos para a saúde resultantes do tráfico, especialmente quando se trata de drogas duras (como é o caso, com a apreensões de cocaína e MDDA), e as situações em que os actos de venda se prolongam no tempo e/ou atingem um elevado número de pessoas , como é o caso, despertam «um sentimento de reprovação social do crime», para usar as palavras do Prof. Beleza dos Santos, que impedem a aplicação da suspensão da execução da pena, sob pena de «ser posta em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais» (Figueiredo Dias, op. cit., pág. 243). Por isso, razões de prevenção geral afastam a aplicabilidade deste instituto, por mais favorável que pudesse ser o juízo de prognose a formular acerca do arguido".

Os tráficos de estupefacientes são comunitariamente sentidos como actividades de largo espectro de afectação de valores sociais fundamentais, e de intensos riscos para bens jurídicos estruturantes, e cuja desconsideração perturba o própria coesão social, desde o enorme perigo e dano para a saúde dos consumidores de produtos estupefacientes, como por todo o cortejo de fracturas sociais que andas associadas, quer nas famílias, quer por infracções concomitantes, ou pela corrosão das economias legais com os ganhos ilícitos resultantes das actividades de tráfico. A dimensão dos riscos e das consequências faz surgir, neste domínio, uma particular saliência das finalidades de prevenção geral - prevenção de integração para recomposição dos valores afectados e para a afirmação comunitária da validade das normas que, punindo as actividades de tráfico, protegem tais valores. Mas também, por isso mesmo, a dimensão da ilicitude que impõe o primado das finalidades de prevenção geral tem de estar conformada pela situação concreta e pelas variadas formulações, objectivas e subjectivas, da actividade que esteja em causa.

Aliás, o crime matriz de tráfico foi balizado em matéria de punibilidade pelo legislador de 1993 de modo a impedir a aplicação de pena de suspensão da execução da prisão, o que foi alcançado mediante a fixação do limite mínimo da pena aplicável em 4 anos de prisão, sendo certo que as circunstâncias que conduziram o legislador penal àquela solução, decorrentes das necessidades de prevenção geral, se mantêm integralmente, quando não acentuado.

Temos, por isso, como bom o entendimento de que, nos crimes de tráfico de estupefacientes, comuns ou agravados, perante um quadro circunstancial particularmente favorável ao agente, fundamentando uma prognose especialmente consistente, se justificará a suspensão da pena (o que, reitera-se, não se verifica relativamente aos supra referidos arguidos no caso sub judice), pois então é exigível impor uma compressão proporcional à salvaguarda de outras finalidades das penas, como a prevenção especial, na vertente ressocializadora.

Quanto a esta matéria veja-se ainda este Acórdão - AC. STJ de 8.10.2008.

Assim sendo, mostra-se, quanto a nós, desde já, afastada uma eventual suspensão da pena, antevendo-se a aplicação, nos termos referidos, aos referidos arguidos (BB, DD, CC, EE e AA) de pena de prisão efectiva.

Serve o exposto para concluir que a única medida que se revela adequada, proporcional e suficiente, sendo, também, necessária, relativamente aos arguidos BB, DD, CC, EE e AA é a medida de coacção de prisão preventiva, consignando-se apenas e por último que conforme entendimento preconizado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-10-2010, in www.dgsi.pt/jtrp: "I - Na aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial, o princípio da adequação (art. 193.°, 1, I parte, do CPP) comporta uma formulação positiva, relacionada com a eficácia que se obtém através da medida; e uma vertente garantística, que se reconduz ao princípio da subsidiariedade, nos termos do qual a aplicação de cada uma das medidas se justifica quando todos os outros meios se revelam ineficazes para tutelar os interesses subjacentes. II- O princípio da proporcionalidade (art. 193.°, n. ° 1, 1/ parte) assenta em dois vectores: um ligado à gravidade do crime e outro à previsibilidade da sanção. III - No caso particular da prisão preventiva, o princípio da proporcionalidade tem a função negativa de limitar a aplicação da medida aos casos em que a pena final previsível seja de prisão efectiva, aspecto cuja avaliação por vezes passa em claro" (sublinhado meu), que consignar a este propósito, por último, dizíamos, que o Tribunal teve o cuidado de analisar medida de coacção por medida de coacção até concluir pela mais absoluta necessidade da medida mais grave, de prisão preventiva, assim se tendo tido em consideração, o seu carácter subsidiário, sendo mais do que previsível a aplicação aos arguidos supra referidos de pena de prisão efectiva (ainda que não tenham antecedentes criminais ou antecedentes criminais relevantes- o arguido CC- condenação por crime de ameaça- cfr. fls. 4559).


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Deve, pois, ser imposta uma medida de coacção que responda de forma adequada às exigências cautelares que o caso requer e proporcional à gravidade do crime fortemente indiciado (sendo que relativamente a CC ainda é imputado o crime de detenção de arma proibida pp pelo artº 86º, 1 al d) do RJAM (apreensão de soqueira) é à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada (que passará por pena de prisão efectiva nos termos referidos), sendo certo que é de aplicar a prisão preventiva se todas as outras medidas se mostrarem insuficientes (art.º 193.º C. P. Penal).

Atenta a sua gravidade, a lei processual consagra ainda o princípio da subsidariedade da aplicação da prisão preventiva, ou seja, determina a lei, nos arts. 193.º, n.º 2, e 202.º, n.º 1, do Código Processo Penal, que o Juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando se revelarem inadequadas ou insuficientes todas as outras medidas de coacção.

De acordo com o art.º 28.º, n.º 2 da C. Rep. "A prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei".

Este dispositivo constitucional e todos os preceitos legais respeitantes às medidas de coacção, devem, segundo o preceituado no art. 16.º, n.º 2 da mesma Constituição, "ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem". Ora segundo o art. 5.º da DEDH, o qual precisou o art. 9.º da DUDH, "Toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal: Se for preso e detido ..., ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se por em fuga depois de a ter cometido" [al. c)]

Por sua vez, no Pacto Internacional de Direitos Cívicos e Políticos de 1966/Dez./16, mais concretamente do seu art. 9.º, n.º 3, alude-se precisamente que "Não deve ser em regra obrigatória a detenção de pessoas que aguardam julgamento...".

Dando seguimento a estes princípios o art. 191.º, n.º 1, do Código Processo Penal, estabelece que "A liberdade das pessoas pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei".

Por sua vez, preceitua-se no art. 193.º, n.º 1 que "As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas", acrescentando-se no seu n.º 2 que "A prisão preventiva .... podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção".

Face ao exposto, e analisadas todas as medida de coacção existentes entendemos, que, no caso concreto, tendo em conta a gravidade dos factos, as referidas exigências cautelares, a moldura penal cominada para o crime (sendo para CC ainda o de detenção de arma proibida) entendemos, que a prisão preventiva a aplicar aos arguidos BB, DD, CC, EE e AA) é susceptível de responder às exigências de natureza cautelar que no caso se fazem sentir, sendo a mesma a única adequada á salvaguarda das referidas exigências cautelares e proporcional á sanção que previsivelmente será aplicada a final aos arguidos e que passará inelutavelmente por pena de prisão efectiva nos termos defendidos.

Face ao exposto, atendendo aos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, e considerando as exigências cautelares que se fazem sentir, não obstante o caracter excepcional da prisão preventiva, entendemos que esta medida e relativamente a tais arguidos se revela adequada à salvaguarda das referidas exigências cautelares. aplicação de qualquer medida de coacção (art.º 204.º do C. P. Penal) e os pressupostos específicos da prisão preventiva (art.º 202.º, n.º 1, alíneas a) e c), do C. P. Penal (por referência ao art.º 1, alínea m) do C. P. Penal - criminalidade altamente organizada) e art.º 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e ainda relativamente a CC o disposto no artº 202º, 1, al. e) do CPP (detenção de arma proibida), ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 191.º, 193.º, 196.º, 202.º, n.º 1 alíneas a) e c) e e) ( esta restrita ao arguido CC) determino que os arguidos:

- BB, - DD, - CC,

- EE,

- AA

aguardem os ulteriores termos processuais sujeito às seguintes medidas de coacção:

a) TIR, que prestaram;

b) Prisão preventiva, única medida adequada às exigências cautelares e proporcional à gravidade do crime e da sanção que previsivelmente lhe venha a ser aplicada, que passará, nos termos supra referidos, necessariamente, por ser de prisão efectiva.


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A substituição da prisão preventiva por medida de coacção de permanência na habitação acompanhada de vigilância electrónica (prevista no artigo 201º e Lei 33/2010, de 2/09), não acautela de forma adequada o perigo de fuga e de continuação da actividade criminosa e de perturbação do decurso do inquérito, mormente perigo para a consolidação da prova nos termos decididos.

De facto, a permanência na habitação, mesmo com vigilância electrónica, não é travão suficiente para afastar o perigo de os arguidos continuarem, ainda que por interposta pessoa, ou mediante contactos telefónicos (como vinham fazendo), a distribuir ou auxiliar a distribuição de estupefaciente, bem como manter contactos com indivíduos do meio e prejudicar as diligências de prova ainda em curso, designadamente pressionando as testemunhas inquiridas e as demais a inquirir.

Note-se que a vigilância electrónica apenas permite aferir da localização dos arguidos (não é impeditiva da fuga) e não dos contactos que estes mantêm, nomeadamente através de telefones, SMS, Internet ou mesmo recebendo pessoas em casa, o que, face aos elementos constantes dos autos, modo de cometimento do crime e sobretudo à apreensão das quantidades de estupefacientes em casa dos arguidos (ressalvando-se, naturalmente, pelos motivos expostos, a não detenção em flagrante delito de BB e do seu colaborador EE) é de toda a evitar, até porque se impõe o apuramento e identificação de consumidores, o que a colocação dos arguidos em obrigação de permanência na habitação, ainda que com vigilância electrónica, colocaria em risco.

O processo está em fase de investigação onde importa proceder a diligências de investigação e recolha de mais elementos probatórios (inquirições de consumidores), pelo que, se os referidos arguidos fossem colocados em liberdade ou na habitação mediante vigilância electrónica, poderia, além de fugir, ocultar e destruir prova e desta forma perturbar a aquisição da prova.


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No caso de crime de tráfico de estupefacientes a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, mesmo que com controlo electrónico, não atenua seriamente o perigo de continuação da actividade criminosa (cfr. Ac. Relação do Porto, Processo 0644871).

O crime pode perfeitamente ser levado a cabo na residência sem conhecimento da entidade vigilante, que não é possível efectuar qualquer fiscalização através de meio técnico de controlo e mesmo não sendo praticado na residência os actos materiais, sempre o “negócio” pode ser dirigido da residência, através de meios electrónicos, nomeadamente telefones e computadores.

Até na situação de prisão preventiva ou de cumprimento de pena se tem conhecimento de casos de continuação da gestão do “negócio” que prossegue no exterior.

Concluindo, a obrigação de permanência em habitação mediante vigilância electrónica não atenua as exigências cautelares que se fazem sentir, até porque nos próprios estabelecimentos prisionais são conhecidos casos em que os detidos (preventivamente ou em cumprimento de pena) continuam “o negócio” intramuros.

(…)»


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São estas, pois, as condições em que a medida de coacção de prisão preventiva foi aplicada, mantendo-se a mesma actualmente».


III. Convocada a Secção Criminal deste Supremo Tribunal e efectuadas as devidas notificações, realizou-se a audiência pública, nos termos legais.

A Secção Criminal reuniu seguidamente para deliberação, a qual imediatamente se torna pública.

O factualismo relevante para a decisão desta providência é o seguinte:

1. Por despacho proferido em 16/12/2022, no termo do primeiro interrogatório judicial de arguidos detidos, foi determinado que o cidadão AA, entre outros, aguardasse os ulteriores termos do processo em prisão preventiva.

2. As razões que fundamentaram a sujeição do ora requerente a tal medida de coacção constam do despacho então proferido pelo Mº Juiz do ..., J..., e mostram-se reproduzidas na informação prestada pelo Mº Juiz de turno, ao abrigo do disposto no artº 223º, nº 1 do CPP, em termos que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

3. O requerente permanece, desde então, preso preventivamente à ordem do Inquérito 34/20.9PBVCD.


IV. “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente”, assim se dispõe no artº 31º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

E, nos termos do estatuído no artº 222º, nº 1 do CPP, “a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus”.

A petição, como se prescreve no nº 2 do mesmo dispositivo, deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

“a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

Como já se sublinhou no Acórdão deste Supremo Tribunal, proferido no Proc. 48/08.7P6PRT-J.S1, da 3ª secção, o habeas corpus é uma providência “destinada a responder a situações de gravidade extrema visando reagir, de modo imediato, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como violação directa, imediata, patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação”.

Mas “não constitui um recurso sobre actos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais (artigos 399.º e segs., do CPP). A providência não se destina a apreciar erros de direito nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade” – Ac. deste STJ, proferido no Proc. 1084/19.3PWLSB-A.S1, da 5ª secção (subl. nosso).

Ou, dito de outro modo: “A providência excepcional de habeas corpus não se substitui nem pode substituir‑se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere — mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art. 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal — aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite». Não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e a correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele expediente só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários: justamente, os casos indiscutíveis ou de flagrante ilegalidade, que, por serem‑no, permitem e impõem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal, e, por isso, sem remédio” - Ac. STJ de 1/2/2007, Proc. 07P353, rel. Pereira Madeira) (subl. nosso) [17].

Posto isto:

Entende o requerente que se encontra em prisão preventiva, única e exclusivamente pelo facto de ser cidadão estrangeiro, mais propriamente, cidadão brasileiro. Logo, estaríamos face a uma prisão ilegal, posto que “motivada por facto pelo qual a lei a não permite” – artº 222º, nº 2, al. b) do CPP.

E isto porque, segundo afirma, é essa a fundamentação que consta do despacho que determinou a sua sujeição a tal medida e que transcreveu: “O arguido AA é de nacionalidade brasileira (sem acordo de extradição com Portugal, já que o Brasil já extradita os seus nacionais)(...) pelo que, em liberdade, poderá encetar a fuga, eventualmente para o Brasil onde nunca seria extraditado, assim se furtando à ação da justiça (...) ainda que não tenha antecedentes criminais”.

Convenhamos:

Resumir uma fundamentação que se estende por 78 (setenta e oito) páginas a um simples parágrafo com 4 linhas é, no mínimo, algo redutor.

O requerente não se encontra em situação de prisão preventiva pelo facto de ser cidadão estrangeiro. Encontra-se em situação de prisão preventiva porque, em despacho proferido por um juiz de instrução criminal, findo o 1º interrogatório judicial de arguido detido, se considerou existirem indícios da prática, por si, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto no artº 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/1 e aí punido com prisão de 4 a 12 anos e, bem assim, por se ter considerado, em tal despacho, estarem verificados, in casu, não um, mas todos os requisitos gerais de aplicação de medidas de coacção, enunciados nas três alíneas do artº 204º do CPP [18].

Dito de outra forma: para além de ter considerado verificado o requisito específico da aplicação da medida de prisão preventiva (no caso, a existência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos e de crime doloso a que corresponde a criminalidade altamente organizada, punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos – artº 202º, nº 1, als. a) e c) do Cod. Penal, esta última por referência à al. m) do artº 1º do mesmo diploma legal), o Mº juiz de instrução criminal considerou existir, no que ao ora requerente diz respeito, perigo de fuga, de perturbação do inquérito (máxime, para a aquisição, conservação ou veracidade da prova), de continuação da actividade criminosa e de perturbação grave da tranquilidade pública.

Tudo isto, não porque o requerente é cidadão brasileiro, antes em função de factos objectivos que identificou no despacho em questão.

No caso, dizer-se que o requerente se encontra em situação de prisão preventiva apenas pelo facto de ser cidadão estrangeiro é tão desprovido de razoabilidade, como afirmar que o co-arguido BB se encontra na mesma situação apenas pelo facto de ter conta na ....

Mesmo o perigo de fuga – um dos três requisitos gerais de aplicação das medidas de coacção – não foi, no caso, justificado com o simples facto de o requerente ser cidadão brasileiro.

Como expressamente se refere no despacho então proferido pelo Mº juiz de instrução, “foi apreendida quantia elevada de dinheiro que não justificou a posse, balanças de precisão, liamba (artº 260), pelo que, em liberdade, poderá encetar a fuga, eventualmente para o Brasil onde nunca seria extraditado, assim se furtando à acção da justiça, o que se impõe acautelar, até porque, fazendo um juízo de prognose, afigura-se-nos que tal arguido, atenta a factualidade imputada, meios de prova consistentes que os fundamentam, o modo de execução dos factos, o prolongamento no tempo dos factos, justificarão a não suspensão da pena ainda que não tenha antecedentes criminais” [19].

           

Posto isto:

O requerente assentou o seu pedido de habeas corpus na al. b) do nº 2 do artº 222º do CPP: ilegalidade da prisão porque motivada por facto pelo qual a lei a não permite.

Ora, como decidiu este Supremo Tribunal, em acórdão proferido em 31/1/2022, no Proc. 2184/21.5JAPRT-C.S1, relatado pelo também aqui relator [20], e em que a providência em causa foi requerida com semelhante fundamento,

«aquela argumentação não consente a dedução de uma providência de carácter extraordinário, como é o habeas corpus, pensada e admitida para colocar cobro a situações de manifesta ilegalidade de uma prisão. O habeas corpus não é (mais) um recurso, não é um substitutivo de um recurso nem, tão-pouco, o “recurso dos recursos”.

(…)

Ou, nas palavras de Maia Costa [21], “No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade. Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal. (…) O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, (…) O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna, aliás, com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei” (subl. nosso).

É que, como observa Germano Marques da Silva [22], “nem todos os casos de injusta prisão são situações de prisão ilegal”.

E só os casos de prisão manifestamente ilegal – na apreciação formal a que obriga o artº 222º, nº 2 do CPP – é que podem ser objecto desta providência excepcional em que se traduz o habeas corpus.

Como se afirma no Ac. deste STJ de 23/7/2021, Proc. 52/19.0SVLSB-A.S1 [23], o habeas corpus “não é um recurso, - ordinário ou extraordinário. É uma providência que visa colocar perante o Supremo Tribunal de Justiça a questão da ilegalidade da prisão em que o requerente se encontra nesse momento ou do grave abuso com que foi imposta. Visa apreciar se a prisão foi determinada pela entidade competente, se o foi por facto pelo qual a lei a admite, se se mantém pelo tempo decretado e nas condições legalmente previstas. Para o que pode ser necessário equacionar da legalidade formal ou intrínseca do ato decisório que determinou a privação de liberdade, mas não mais que isto. Não é uma via procedimental para submeter ao STJ a reapreciação da decisão da instância que determinou a prisão ou à ordem da qual o requerente está privado da liberdade. Não se destina a questionar o mérito do despacho judicial ou da sentença condenatória que impôs a prisão nem a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades de que possam enfermar (subl. nosso).

E, portanto, não cabe aqui discutir a suficiência ou insuficiência dos indícios, em ordem a imputar ao requerente a prática de um crime (…). Como não cabe, aliás, no âmbito desta providência excepcional de habeas corpus, apreciar os requisitos de necessidade, adequação e proporcionalidade de que depende a aplicação da prisão preventiva [24].

É verdade (como, aliás, o salienta o requerente) que, nos termos do nº 2 do artº 219º do CPP, não existe relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso previsto no nº 1 do mesmo dispositivo e a providência de habeas corpus, independentemente dos respectivos fundamentos.

Daí, porém, não resulta que os fundamentos próprios de um recurso a interpor nos termos do nº 1 do artº 219º do CPP possam, de igual modo, ser utilizados para fundamentar a providência de habeas corpus, cujos pressupostos são, apenas, os enunciados no nº 2 do artº 222º do CPP.

Como se refere no Ac. STJ de 10/3/2022, Proc. 1091/22.9T8FNC.S1, “não cabe dentro do âmbito da providência de habeas corpus conhecer da existência ou não de indícios da prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, nem conhecer se a medida de coacção de prisão preventiva aplicada se revela adequada e proporcional, nem apreciar se deveria ter sido aplicada uma outra medida de coacção menos gravosa ao requerente que pudesse assegurar a satisfação das necessidades cautelares que concretamente se fazem sentir, designadamente a medida de obrigação de permanência na habitação com recurso a mecanismos de vigilância electrónica. A apreciação da legalidade do despacho proferido pela Sra. Juíza de Instrução Criminal que aplicou a medida de coacção de prisão preventiva ao requerente, por entender que só esta se revelava suficiente, necessária, adequada e proporcional ao caso concreto, atentas as circunstâncias que descreveu e os elementos de prova que os autos dispõem, só pode ser feito em sede de recurso ordinário, de acordo com o princípio geral de recorribilidade das decisões judiciais (art. 399.º, do CPP)” [25].

Naturalmente, se o único fundamento para a aplicação da medida de prisão preventiva aplicada ao requerente fosse, como afirma, o facto de ser cidadão estrangeiro, a ilegalidade de tal prisão resultaria evidente, porque manifesta e grosseira. E, por isso, poderia constituir fundamento da providência de habeas corpus.

Porém, como pensamos ter deixado claro e evidente, a aplicação da prisão preventiva ao arguido, no caso em apreço, assentou em muito mais do que isso.

Saber se os requisitos gerais de aplicação das medidas de coacção se verificam, in casu, é algo que pode ser questionado, certamente. Não, porém, nesta providência de habeas corpus, antes em recurso ordinário a interpor do despacho que assim decidiu, o qual, aliás, há-de ser decidido no prazo máximo de 30 dias, contados a partir do momento em que os autos forem recebidos – artº 219º, nº 1 do CPP.

Aqui chegados:

Não se mostra questionada – nem vemos que, no caso, o pudesse ter sido – a competência da entidade que determinou a prisão do requerente [um juiz de instrução, na sequência de um primeiro interrogatório judicial de arguido detido – artº 222º, nº 2, al. a) do CPP].

Como, de igual modo, encontrando-se o requerente preso preventivamente desde 16/12/2022, presentes os prazos de duração máxima da prisão preventiva enunciados no artº 215º do CPP, se mostra inquestionável que a prisão em causa se contém nos prazos fixados na lei.

Afastada está, no caso, a ilegalidade da prisão motivada por facto pelo qual a lei o não permite – artº 222º, nº 2, al. b) do CPP: o requerente foi preso preventivamente por se verificarem indícios da prática, por ele, de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artº 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/1, sendo certo que, no caso, se considerou existir perigo de fuga, de perturbação do inquérito, de continuação da actividade criminosa e de perturbação da tranquilidade pública.

Inexiste, pois, fundamento bastante para a peticionada providência, que assim deve ser indeferida – artº 223º, nº 4, al. a) do CPP.

De outro lado, em parte alguma desta decisão se afirma que o fundamento de habeas corpus constante da al. b) do nº 2 do artº 222º do CPP “não se estende à tutela fundamental e constitucional que aqui se pretende ver reconhecida”, razão pela qual prejudicado está o pedido de declaração de inconstitucionalidade dessa pretensa interpretação.


V. Atento o exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus apresentado pelo requerente AA, por falta de fundamento bastante (artº 223º, nº 4, alínea a) do CPP).


Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s, nos termos da tabela anexa ao Regulamento das Custas Processuais.


Lisboa, 3 de Janeiro de 2023 (processado e revisto pelo relator)


Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator, de turno)

Conceição Gomes (Juíza Conselheira 1ª adjunta, de turno)

Ernesto Pereira (Juiz Conselheiro 2º adjunto)           

Maria Olinda Garcia (Juíza Conselheira Presidente da Secção, de turno)

           

______

[1] E também constitucional - art. 32.° n.° 2 da CRP.

[2] Cfr. CANOTILHO, Games; MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 337.

[3] Cfr. Idem, ibidem, p. 339.

[4] Cfr. Idem, ibidem.

[5] Cfr. Idem, ibidem, p. 357.

[6] "Exceptuam-se do disposto no número anterior os direitos políticos, o exercício das funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico e os direitos e deveres reservados pela Constituição e pela lei exclusivamente aos cidadãos portugueses".

[7] Cfr. CANOTILHO, Gomes; MOREIRA, Vital, ul. Ob. Cit. p. 357.

[8]

[9] Cfr. Ac. TC, datado de 10-02-1987, relator VITAL MOREIRA, processo n.° 118/86, ín www.tribunalconstitucional.pt.

[10] TribunaI Europeu dos Direitos do Homem.

[11] Cfr. LOPES, Dulce, A JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM VISTA ÀLUZ DO PRINCÍPIO DA NÃO DISCRIMINAÇÃO, Julgar, 2011, in

[12] Cfr. CANOTILHO, Gomes; MOREIRA, Vital, ul Ob. Cit. p. 417.

[13] Neste sentido, cfr idem, ibidem.
[14] Realce nosso.

[15] Cfr. CANOTILHO, Gomes; MOREIRA, Vital, ul. Ob. Cit. p. 508.

[16]   SILVA, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Verbo, 2a edição, vol. II, 1999, p. 302.
[17] Ambos os arestos estão acessíveis em www.dgsi.pt.
[18] E, como bem refere o Cons. Maia Costa, “Código de Processo Penal comentado”, 3ª ed. revista, de António Henriques Gaspar, Eduardo Maia Costa e outros, 821, “os requisitos gerais não são, porém, cumulativos, antes alternativos. Para aplicação de uma determinada medida de coação basta, pois, que além dos requisitos específicos, se verifique alguma das situações previstas nas alíneas deste artigo” (itálicos do original).
[19] Como refere Maia Costa, “Código de Processo Penal comentado”, 3º ed. revista, 821, “O juízo sobre o perigo de fuga deve fundar-se numa análise rigorosa e precisa da situação concreta. São elementos a ponderar: a gravidade da pena cominada para o crime imputado, a personalidade revelada pelo arguido, a sua situação financeira, a sua situação familiar, profissional e social, as suas ligações em países estrangeiros, enfim, todas as circunstâncias que possam revelar a sua vontade e a sua capacidade ou facilidade para se pôr em fuga. É com base num juízo global de todas as circunstâncias do caso que se pode fundamentar um juízo deste tipo”.
[20] Acessível em www.dgsi.pt.
[21] HABEAS CORPUS: PASSADO, PRESENTE, FUTURO, Revista Julgar, N.º 29 – 2016.
[22] Curso de Processo Penal, vol. II, 324.
[23] Acessível em www.dgsi.pt.
[24] Neste sentido e entre outros, cfr. Acs. STJ de 22/9/2021, Proc. 3825/21.0T9CSC-A.S1 e de 14/4/2021, Proc. 292/21.1PASNT-A.S1, acessíveis em www.dgsi.pt.
[25] Este aresto está acessível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido – que é o da jurisprudência (que temos por uniforme) deste Supremo – cfr. Ac. STJ de 18/5/2022, Proc. 37/20.3PJLRS-A.S1, acessível no mesmo sítio.