Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5543/16.1T8STB.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
DOLO
AVALISTA
DOAÇÃO
DONATÁRIO
SUBTRACÇÃO
SUBTRAÇÃO
PATRIMÓNIO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PODERES DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 12/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / PRESUNÇÕES / NOÇÃO.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª Edição, 2008, Almedina, p. 860-864;
- Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Livraria Almedina, Coimbra, 2000, p. 103 e ss.;
- J. A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, p. 56;
- J. Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2.ª Edição, p. 190-218;
- L. Menezes Leitão, Garantia das Obrigações, 2.ª Edição, p. 77-79;
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, p. 460-461.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 349.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 20-12-2001, PROCESSO N.º 02B1480,IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-05-2002, PROCESSO N.º 02B934;
- DE 25-03-2004, PROCESSO N.º 03B4354 IN WWW.DGSI.PT;
- DE 11-11-2008, PROCESSO N.º 08A3322;
- DE 26-02-2009, PROCESSO N.º 09B0347;
- DE 12-03-2009, PROCESSO N.º 09B0264; IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-06-2009, PROCESSO N.º 152.09.4YFLSB, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 29-09-2009, PROFERIDO N.º 05-I/2001.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 03-11-2009, PROCESSO N.º 183/06.6 TBMIR.C1.S1;
- DE 06-05-2010, PROCESSO N.º 905-U/2001.C1.S1;
- DE 17-06-2010, PROCESSO N.º 187-B/2000.P1.S1;
- DE 25-11-2014, PROCESSO N.º 6629/04.0TBBRG.G1.S1, IN WWW.DGSI. PT;
- DE 14-04-2015, PROCESSO N.º 593/06.9TBCSC.L1.S1;
- DE 14-07-2016, PROCESSO N.º 377/09.2TBACB.L1.S1.
Sumário :
I - É dolosa a actuação dum avalista, que participando na renegociação de um empréstimo bancário, dois dias antes de conceder o aval a tal empréstimo e sem dar conhecimento do facto ao Banco (futuro credor) doa a familiares seus, o património imobiliário que possuía.

II – É também dolosa a actuação dos donatários na medida em que sabiam que tais doações visavam subtrair aquele património à garantia do empréstimo, sabendo ainda que assim podiam inviabilizar a cobrança integral do crédito por parte do Banco credor.

III - A prova por presunção – art. 349º o Código Civil – é um meio de prova comummente usado, quando a prova efectiva dos factos é difícil e, por contraposição, as inferências extraídas de factos provados conduzem com segurança à prova de outros factos que, em termos de regras da experiência comum, se podem deduzir com segurança por corresponderem à normalidade.

IV - O Tribunal da Relação pode lançar mão de presunções tirando conclusões da matéria de facto, desde que tais conclusões se limitem a desenvolvê-la.

V- As presunções retiradas dos factos provados constituem, também elas, matéria de facto.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


*

Relatório

O Banco AA, S.A., intentou contra os RR., BB, CC, DD e EE, a presente acção, por via da qual pretende fazer operar a impugnação pauliana, decretando-se a ineficácia, em relação a si, da doação efetuada pelos 1.º e 2.ª RR aos 3.ª e 4.º RR dos imóveis descritos na p.i., podendo o A executar os referidos bens no património dos 3.ª e 4.º R na medida em que tal seja necessário para obter o pagamento integral do seu crédito e praticar atos de conservação de garantia patrimonial.

Instruída a causa, procedeu-se à audiência de julgamento e de seguida foi proferida sentença onde se julgou improcedente a acção se se absolveram os RR., do pedido.

Inconformado, apelou o A., tendo o Tribunal da Relação de …, decidido pela « … total procedência do recurso, em consequência do que revoga a decisão recorrida, declarando a ineficácia em relação ao A da doação realizada entre os RR, reconhecendo-se o direito do A. executar os bens imóveis objeto de doação enunciados no n.º 10 dos factos provados no património dos 3.ª e 4.º RR  e dos bens imóveis enunciados no n.º 11 dos factos provados no património do 4.ª R na medida do que se mostrar necessário para integral satisfação do seu crédito ainda em dívida».

Irresignados com esta deliberação, vieram os RR. Interpor recurso de revista, tendo rematado as suas alegações com as seguintes

Conclusões:

« A.   O tribunal conhece dos factos através das provas produzidas no processo.

B.      As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos, conforme preceitua o artigo 341° do Código Civil.

C. Cada uma das partes, tem o encargo de provar os factos de que depende a aplicação das normas que lhe são favoráveis, conforme artigo 342°, n°s 1 e 2, do Código Civil.

D. Assim, impende sobre o autor o ónus da prova dos factos constitutivos do direito subjacente ao pedido,

E. Que no caso sub judice seria "ser o credito anterior ao ato", e,

F. Sem prejuízo de a Autora nada ter alegado quanto a esta matéria,

G. "Sendo o crédito posterior, ter sido o ato realizado dolosamente (...)".

H. A impugnação pauliana constitui, como se sabe, um meio de conservação da garantia geral do cumprimento de obrigações, com ela se tutelando o interesse dos credores contra o desvio do património pelo devedor que implique obstáculo absoluto à satisfação dos seus créditos ou o seu agravamento.

I. Os pressupostos da impugnação pauliana são: a existência de um crédito; a prática, pelo devedor, de um ato que não seja de natureza pessoal, que provoque, para o credor um prejuízo (a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade); a anterioridade do crédito relativamente ao ato ou, se o crédito for posterior, ter sido o ato dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; que o ato seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé (arts. 610.° a 612.° do CC).

J. No que concerne ao ónus de prova, cabe ao credor a prova do montante do crédito que tem contra o devedor, da anterioridade dele em relação ao ato impugnado (611° do Código Civil).

K. Como dá conta a matéria de facto, o direito de crédito da Recorrida advém de aval prestado em 10 de Agosto de 2012, sendo as doações de 08 de Agosto de 2012,

L. Ou seja, são anteriores à data de emissão / subscrição da livrança em causa, anterior ao direito de crédito da ora Recorrida.

M. No que diz respeito ao dolo das doações efetuadas, e sem prejuízo do Tribunal da 1.a Instancia, ter dado como provado que as mesmas foram realizadas com o intuito de diminuir as garantias patrimoniais da Recorrida,

N. Tal facto não importa de per si, que a doação foi realizada dolosamente, ou /i que é dolosa.

O. O dolo, como vício da vontade, consiste na noção de erro, em qualquer das suas modalidades, isto é, quer se refira à pessoa do declaratório, ao objecto do negócio (artigo 251°) ou aos motivos não referentes à pessoa do declaratário nem ao objeto do negócio (artigo 252°),

P. Desde que provocado, e traduz-se sempre numa representação inexata ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efetuar o negócio, em termos tais que, se o declarante tivesse sido esclarecido ou o tivesse conhecido, não teria realizado o negócio ou não o teria realizado nos mesmos termos.

Q. Segundo o n° 1 do artigo 253° do citado diploma, "Entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante".

R. "O declarante cuja vontade tenha sido determinada por dolo pode anular a declaração" - artigo 254°, n° 1, acima referido.

S. Temos, assim, que o primeiro dos elementos do conceito de dolo, como vício da vontade, consiste na noção de erro, em qualquer das suas modalidades, isto é, quer se refira à pessoa do declaratário, ao objeto do negócio (artigo 251°) ou aos motivos não referentes à pessoa do declaratário nem ao objeto do negócio (252°), desde que provocado, e traduz-se sempre numa representação inexata ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efetuar o negócio, em termos tais que, se o declarante tivesse sido esclarecido ou o tivesse conhecido, não teria realizado o negócio ou não o teria realizado nos mesmos termos - Mota Pinto, in "Teoria Geral do Direito Civil", 3a edição. Páginas 505 e 506.

T. No caso sub judice, reitera-se, nada foi alegado e/ou provado, pela Recorrente que denote uma atuação dolosa, dos RR., ora Recorrentes na realização desse intuito.

U. NADA foi trazido aos autos, em ordem a suportar o dolo da doação efetuada.

V. Os atos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:,

W. Ser o credito anterior ao ato ou, sendo posterior, ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor,

X, Resultar do ato a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu credito, ou o agravamento dessa impossibilidade.

Y. Ora, nos presentes autos, ficou apenas provado, que do ato impugnado resultou, a impossibilidade de o A. obter a satisfação ainda que parcial do seu crédito, e que o mesmo foi realizado com o intuito de diminuir as garantias patrimoniais do A..

Z. Não se encontrando provado que o ato impugnado foi realizado dolosamente, não se verificam os requisitos e as circunstancias exigidas para a impugnação pauliana, preceituadas no artigo 610.° do C.C.,

AA. Não podendo desta feita a doação ser impugnada conforme pretende a A., ora Recorrida.

NESTES TERMOS,

E nos melhores de Direito, e sempre com o douto suprimento dos Venerandos Juízes Conselheiros, deve o presente recurso, ser julgado procedente, mantendo-se a douta Sentença proferida pelo Tribunal de 1.a Instancia.


*

Respondeu o A., pedindo a improcedência da revista.

*

Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[1], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas nas conclusões das alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil)[2], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 608º do novo Cód. Proc. Civil ).

Das conclusões acabadas de transcrever decorre que a questão objecto do recurso se limita a saber se a actuação dos RR., traduzida na factualidade provada, se pode qualificar como dolosa para os efeitos do art.º 610º al a) do CC.


*

Dos Factos

Nas instâncias foram considerados provados os seguintes factos:

«1. A 17 de Dezembro de 2004 o Banco, ora A., celebrou com a sociedade “FF, S.A..” uma linha de crédito designada de “Contrato GG”, até ao limite máximo de €1.000.000,00 (Um milhão de euros).

2. No dia 14 de Novembro de 2011, o referido contrato sofreu um aditamento às condições gerais e particulares.

3. A 10 de Agosto de 2012, o Banco ora A., celebrou com a sociedade “FF, S.A.”, uma facilidade de crédito, sob a forma de empréstimo, destinado à regularização de responsabilidades anteriormente assumidas pela sociedade, no montante de €1.000.000,00 (Um milhão de Euros).

4. O referido empréstimo funcionaria através de uma conta aberta em nome da sociedade supra referida com o n.º 22…1, sendo o montante mutuado creditado na conta de depósito à ordem n.º 11…0.

5. No âmbito do já identificado contrato, a sociedade “FF, S.A..” subscreveu e entregou ao Banco, uma livrança preenchida e também avalizada pelo 1º Réu, BB, e também por HH e II, no valor de €1.192.260,60, emitida em 10.08.2012 e com vencimento em 28.04.2014.

6. A sociedade subscritora da dita livrança foi declarada insolvente nos autos que sob o n.º 1415/13.0TYLSB correram os seus termos no 4.º Juízo do Tribunal de Comércio de ….

7. O A. reclamou o seu crédito nos autos de insolvência acima aludidos.

8. O Banco A. instaurou ação executiva de pagamento de quantia certa contra os avalistas da referida livrança, processo que corre os seus termos sob o número 585/16.0T8ALM, na Comarca de Lisboa – … – Inst. Central – 2.ª Sec. Execução J….

9. Até à presente data, o Banco A. não logrou obter qualquer pagamento por conta da dívida mencionada nos artigos anteriores.

10. Por escritura pública de 8 de Agosto de 2012, lavrada no Cartório Notarial de …, os 1.º e 2.º RR doaram aos 3.º e 4º RR, os seguintes bens imóveis:

a - Prédio Urbano sito na Rua …., n.º …, da Freguesia e concelho da …, descrito na conservatória do registo predial da … sob o número 3…9 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 5…8.

b - Fração Autónoma designada pela letra B, correspondente a rés-do-chão esquerdo, com entrada pelo n.º 11, destina a comércio, no prédio urbano sito na Rua …, n.ºs 7,9,11 da freguesia de …, concelho da … descrito na conservatória do registo predial da … sob o número 1998 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 2591. c - Fração Autónoma designada pela letra A, correspondente a rés-do-chão, com entrada pelo n.º 15, destina a comércio, no prédio urbano sito na Rua …, n.ºs 13 e 15 da freguesia de …, concelho da … descrito na conservatória do registo predial da .. sob o número 2…2 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 2…0.

d - Prédio Urbano sito em …, Freguesia de …, concelho da …, composto por: a) edifício rés-do-chão e 1º andar para habitação, dependência e quintal; b) edifício de rés-do-chão para habitação e quintal. Descrito na conservatória do registo predial da … sob o número 2…2 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 800 e 844 respetivamente.

e - Fração Autónoma designada pela letra J, correspondente ao 1º andar, n.º 104, para habitação, um lugar de estacionamento e uma arrecadação na cave, sito na Rua …, .., Blocos … e …, Freguesia da …, concelho de …, descrito na conservatória do registo predial de … sob o número 5…7 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 12985.

11. Na mesma escritura pública, os 1.º e 2.º RR doaram ao 4º R., os seguintes bens imóveis:

f - Fração Autónoma designada pela letra A, correspondente a cave frente, do prédio urbano, sito na Rua …, n.º 2, freguesia de … (S. …), concelho da … descrito na conservatória do registo predial de … sob o número 2…0 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 9610.

g - Fração Autónoma designada pela letra A, correspondente à cave, no prédio urbano sito na Rua …, n.º 2, da freguesia de …, concelho da … descrito na conservatória do registo predial da … sob o número 1…9 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 4423. h - Fração Autónoma designada pela letra B, correspondente a rés-do-chão, com entrada pelo n.º 2-E, da Av. …, no prédio urbano sito na Av. …, n.ºs 2-C, 2-D e 2-E, da freguesia de …, concelho da … descrito na conservatória do registo predial da … sob o número 9 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 1…2.

I - Fração Autónoma designada pela letra AD, correspondente ao piso três e mezzanine, Bloco A, constituída pelo Aparamento tipo T1,no prédio Urbano denominado Edifício …, sito em …, lote 3.1, da freguesia do …, concelho de …, descrito na conservatória do registo predial de … sob o número 1…9 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 2617.

J - Fração Autónoma designada pela letra H, correspondente ao 1º andar frente, no prédio urbano sito em …, Gaveto da Rua … com a Av. …, Freguesia da …, concelho de …, descrito na conservatória do registo predial de … sob o número 2…2 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 5782.

12. Dessa doação resultou a impossibilidade de o A. obter a satisfação ainda que parcial do seu crédito.

13. A Ré CC sofreu de doença oncológica.

13 - a) As doações foram realizadas com o intuito de diminuir as garantias patrimoniais do A.

14. Aquando da escritura pública de 10 de Agosto de 2012, foram constituídas a favor da ora Autora hipotecas voluntárias sobre as frações A e B da descrição predial 714 da 2ª Conservatória do Registo Predial de …, correspondente ao Artigo Matricial 2…0, as quais foram constituídas para garantia de todas as responsabilidades da sociedade FF, SA.

15. A sociedade FF, SA, é proprietária, para além das frações A e B, que têm o valor patrimonial global de €: 668.170,00, das frações C e D, com o valor patrimonial global de €: 1.990.940,00».


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Do Direito

É regra consabida que o património do devedor é responsável pelo cumprimento das suas obrigações – art. 601º do Código Civil – daí, que ao credor seja dada a possibilidade de se precaver, com garantias reais ou pessoais, ou ambas, que exige do devedor, para assegurar a satisfação dos seus créditos. A lei prevê meios de conservação da garantia patrimonial, como a declaração de nulidade, a sub-rogação do credor ao devedor, o arresto e a impugnação pauliana.

A procedência da impugnação pauliana depende da verificação cumulativa dos requisitos enunciados nos artigos 610.º e 612.º do CC, os quais constituem, por assim dizer, os elementos integrantes da respetiva causa de pedir, e que a jurisprudência e a doutrina[3] têm catalogado nos seguintes termos:

a) – a existência de determinado crédito na titularidade do impugnante anterior ao ato impugnado, ou mesmo posterior, quando este ato for praticado como dolo específico - art.º 610.º , alínea a), do CC;

b) – a verificação do ato impugnado que envolva diminuição da garantia patrimonial do crédito em causa, seja por redução do ativo do devedor, seja por aumento do seu passivo;

c) – a impossibilidade ou agravamento para a situação integral do crédito;

d) – o nexo causalidade entre o ato impugnado e a sobredita impossibilidade ou agravamento;

e) – a má-fé do devedor e do terceiro adquirente, se o ato sendo posterior ao crédito, for oneroso, considerando-se má fé a consciência do prejuízo que o ato oneroso causa ao credor – Art.º 612º nº 1 e 2 do CC; todavia se o ato impugnado for anterior ao crédito, exige-se já o dolo específico.

No caso dos autos é inquestionado que o crédito invocado pelo A., foi, formalmente, constituído após a realização dos actos impugnandos e alegadamente lesivos da satisfação daquele crédito, pelo que nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 610º al. a) e 612º do CC se exige para a procedência da acção, dolo dos intervenientes nos referidos negócios que envolvem diminuição da garantia patrimonial do crédito em causa ou a impossibilidade ou agravamento da sua cobrança integral.  

Nos termos do art. 612º, nº1, sendo o acto de alienação de cariz oneroso está sujeito a impugnação se o devedor e o terceiro, ao concretizarem-no, tiverem actuado de má fé; sendo o acto gratuito, mesmo que os sujeitos do negócio tenham agido de boa-fé, a impugnação procede. Para o efeito do nº2 deste normativo, agir de má-fé é ter “consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”. Densificando este conceito a jurisprudência deste Tribunal, tem vindo a consolidar o entendimento de que  « É pacífico que na interpretação do n.º 2 do art. 612.º do CC. se abriga a forma de dolo, em qualquer das suas formas (directo, necessário ou indirecto e eventual), excluindo-se no entanto o “dolus bonus”[4]: No dolo directo, o agente, depois de representar a conduta que pretende tomar, age com a intenção de atingir o efeito ilícito (prejudicar os credores);

No dolo indirecto, ou necessário, o agente, embora represente previamente a conduta que pretende tomar, não tem propriamente a intenção de prejudicar o credor, mas sabe que com a prática do acto ilícito que pretende tomar virá a decorrer esse prejuízo (in casu, impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade) como consequência necessária de tal acto;

No dolo eventual, o agente prevê a possibilidade de o acto que pretende praticar ir prejudicar o credor (in casu, impossibilitando a satisfação integral do seu crédito ou agravando essa impossibilidade), mas não obstante age, indiferente ao resultado.

A consciência do prejuízo abrange indiscutivelmente, todos os casos de dolo.

Como se escreveu no recente Ac. do STJ de 2009.03.12 -09B0264 (Oliveira Vasconcelos, Serra Baptista e Álvaro Rodrigues), in www.dgsi.pt : “(…) A consciência do prejuízo é, pois, um acto psicológico, pertencente ao domínio da representação ou ideação, assumindo uma natureza intelectiva. O devedor e o terceiro adquirente devem não só ter a percepção da situação patrimonial do primeiro e dos efeitos do acto que vão praticar, mas também aperceberem-se que estes podem impossibilitar os credores de obter a satisfação integral dos seus créditos. ..

(…) Reconhecemos que é efectivamente muito ténue a separação entre dolo eventual e culpa consciente: No entanto, na culpa consciente, o agente embora continue num estado de dúvida e admita como possível que o acto afecte os interesses dos credores, acredita, apesar disso, sincera mas levianamente, que a consequência prevista não se irá verificar. Nesta situação, ao intervir no acto, assume ainda uma opção intelectual e axiológica, pelo que a consciência do prejuízo ainda se lhe prefigurou, adoptando por isso uma conduta anti-ética, sem dúvida reprovável. Finalmente, pode dar-se o caso do agente não ter sequer representado a possibilidade de lesar a garantia patrimonial dos credores. Nesta situação (culpa inconsciente), o agente actua sem sequer equacionar que com o seu acto pode prejudicar o credor. A censura ética é já muito mais esbatida, pelo que a maior parte da doutrina e toda a Jurisprudência que conhecemos tem entendido dever excluir essa vertente do conceito jurídico utilizado no art. 612.º, sob pena de se alargar de tal forma o leque das preposições e dos deveres de quem realiza um negócio, que, a exigi-lo, seria inviabilizá-lo na grande maioria dos casos. Na perspectiva desta tese, e salvo o devido respeito, poderia haver censura até a um limite que poderia esbarrar no absurdo, porque haveria sempre margem para questionar mais alguma coisa em todo e qualquer negócio, designadamente qual a real situação financeira da outra parte, que credores tem, por que razões faz ele o negócio, por que razão se estipula aquele preço, etc… etc…

A realização de qualquer negócio sem que um contraente tivesse o conhecimento real da situação económico-financeira do outro, poderia, em situação limite, demandar a necessidade de aceder a livros, relatórios, balanços, documentos, lista de fornecedores, clientes, produção, vendas, etc…etc, o que, não seria admissível nem exigível, nem muito menos compaginável com ele!

É esta, em linhas gerais, a posição do Supremo nos mais recentes Acórdãos, ou seja, a que sustenta que a má fé para efeitos do art. 612.º-2 do CC, enquanto consciência do prejuízo, se pode revelar sob a forma dolosa em qualquer das suas formas (directa, indirecta/necessária ou eventual), ou sob a forma de culpa consciente, mas pondo de parte a alegada consciência do prejuízo por “culpa inconsciente”[5] [6] .

No acórdão deste STJ, de 14/04/2015, proferido no processo n.º 593/06.9TBCSC.L1.S1, relatado por Helder Roque reafirma-se tal entendimento de que «(…) a má fé, enquanto requisito da impugnação pauliana, com ressalva da situação em que o acto a atacar for anterior à constituição do crédito, consiste na consciência do prejuízo que o negócio questionado causa ao credor, ou seja, na diminuição da garantia patrimonial do crédito, não sendo, por isso, necessário demonstrar a intenção de originar tal prejuízo.»

E, no mesmo aresto, se precisa que:

«(…) a concretização da má fé basta-se, de acordo com a definição do artigo 612.º, n.º 2, do CC, com a “consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”, o que requer, tão-só, a verificação do elemento intelectual, comum ao dolo eventual e à negligência consciente, ou seja, a mera representação da possibilidade da produção do resultado danoso, em consequência da conduta do agente, e não já do elemento volitivo, isto é, o sentido subjectivamente, atribuído pelo agente à sua conduta e, portanto, o facto de, ao realizá-lo, ele confiar ou não em que o resultado venha a produzir-se.»

Em suma, quando se trate de ato posterior ao crédito, basta a consciência ou a previsão efetiva do dano que para os credores deriva do ato impugnado. Tal conhecimento, na maioria dos casos, será provado com base em elementos indiciários que, segundo a experiência comum, permitam induzir esse conhecimento. Tratando-se porém de crédito constituído posteriormente à celebração dos negócios impugnandos, a lei já exige e existência de dolo (em qualquer das suas modalidades) dos intervenientes ou seja a prova da intenção de prejudicar o credor, seja pela diminuição da garantia patrimonial do crédito, seja pela impossibilidade ou agravamento da sua cobrança integral, o chamado consilium fraudis. Tal como na má fé, também esta prova é normalmente obtida com base em elementos indiciários que, segundo a experiência comum, permitam induzir esse conhecimento. Na verdade dificilmente se consegue obter uma prova directa desse conluio e dessa intencionalidade.

O Tribunal da Relação, ao contrário do que decidira a 1ª instância, considerou verificado o dolo na actuaçãos dos RR.. Esta conclusão é um juízo de facto, assente no funcionamento de presunções judiciais e como tal insindicável por este Tribunal. Na verdade e como bem se observa no acórdão deste STJ de 11/11/2008, proc. n.º 08A3322, relatado por Fonseca Ramos « A prova por presunção – art. 349º o Código Civil – é um meio de prova comummente usado, quando a prova efectiva dos factos é difícil e, por contraposição, as inferências extraídas de factos provados conduzem com segurança à prova de outros factos que, em termos de regras da experiência comum, se podem deduzir com segurança por corresponderem à normalidade “Presunção, já se escreveu (…), é “a prova por indução ou inferência (prova conjectural) a partir dum facto provado por outra forma”. Chama-se presunção a própria inferência; ou ainda (menos propriamente), o facto que lhe serve de base – facto que mais rigorosamente se designará por base da presunção (Vermutungsbasis)”. As presunções “resultam da experiência (das máximas de experiência), do curso ou andamento natural das coisas, da normalidade dos factos (regra da vida: “quod plerumque accidit”), sendo livremente apreciadas pelo juiz” – Ac. deste Supremo Tribunal de 25.3.2004 – Proc. 03B4354 in www.dgsi.pt.

“A base da presunção é constituída pelo facto ou factos conhecidos, ou seja, provados através de outros meios de prova; a actividade lógico-experiencial de indução que os tem por objecto; e o facto ou factos presumidos mediante estas operações intelectuais”. – Acórdão de 25.3.2004, infra citado.

Este Supremo Tribunal tem decidido, de modo constante, que as chamadas presunções naturais, judiciais ou de facto constituem meios de prova mediata, cuja força probatória é apreciada livremente pelas instâncias.

O Tribunal da Relação pode lançar mão de presunções tirando conclusões da matéria de facto, desde que tais conclusões se limitem a desenvolvê-la, não a contrariando, o que in casu não ocorreu.

As presunções retiradas dos factos provados constituem, também elas, matéria de facto, pelo que são insindicáveis pelo Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista».

É verdade que não está totalmente vedado a este Tribunal, enquanto Tribunal de revista controlar o uso que as instâncias fizeram das presunções hominis ou judiciais. Conforme se salienta no Ac. deste Tribunal de 14/7/2016, proc. nº 377/09.2TBACB.L1.S1, relatado por Tomé Gomes, «a sindicância sobre a decisão de facto das instâncias em matéria de presunções judiciais é muito circunscrita.

Com efeito, nos termos do artigo 682.º, n.º 1 e 2, do CPC, ao STJ incumbe aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixado pelas instâncias, não podendo alterar a decisão de facto, a não ser no caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º ou de ampliação dessa decisão de facto ao abrigo do n.º 3 do indicado artigo 682.º.

Por sua vez, no domínio do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, segundo o preceituado no n.º 3 do artigo 674.º, a revista só pode ter por fundamento “a ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe força de determinado meio de provas”. E, no que respeita, às presunções judiciais tem-se admitido, ainda que com alguma controvérsia, que o STJ “só pode sindicar o uso de tais presunções pela Relação se este uso ofende qualquer norma legal, se padece de evidente ilogicidade ou se parte de factos não provados”[7]».

Analisados os factos dados como provados e a análise que deles fez o colectivo da Relação não se vislumbra qualquer vício que possa inquinar a conclusão a que chegou no sentido de ter por verificada a existência de consilium fraudis, por parte dos RR..

Na verdade e como bem salienta o recorrido, «considerando o teor do contrato subjacente ao crédito do Autor, nomeadamente o facto de se tratar de uma reestruturação de créditos anteriores no valor de €1.000.000,00 (um milhão de euros), é óbvio que tal contratação pressupõe prévia negociação entre as partes, no caso o Banco Autor e a Administração da sociedade, representada pelo 1.° e 4.° Réus, e os respectivos garantes pessoais, onde também se inclui o1.°Réu». Considerando também que a constituição deste tipo de crédito, ou seja, um crédito de regularização de responsabilidades passadas, não é negociado e constituído no próprio dia, sobretudo um que envolva a constituição de garantias hipotecárias, como é o caso dos autos, e tendo em conta que vem provado que as doações tiveram lugar no dia 8 de Agosto de 2012, e que as mesmas foram realizadas com o único intuito de diminuir as garantias patrimoniais do Autor e delas resultou a impossibilidade, ainda que parcial, deste obter a satisfação do seu crédito, não pode deixar de se concluir pela existência de dolo, tanto mais que estamos perante negócios gratuitos entre familiares. 

A intervenção do 1.° Réu, como avalista, só faz sentido, se o mesmo tivesse património (como tinha, há data das negociações). Com efeito, se não tivesse feito crer o Autor que possuía um vasto património imobiliário não seria lógica a sua constituição como avalista, já que, caso o Autor soubesse que o 1.° Réu não tinha qualquer património, a exigência do seu aval seria esvaziada de qualquer interesse. Ora o facto de as doações terem ocorrido 48 horas antes da constituição do aval, além de terem o evidente propósito de diminuir as garantias patrimoniais do Autor, tiveram a intenção de colocar o Autor em erro, enganando-o quanto à extensão das garantias pessoais, não lhe dando tempo suficiente para se aperceber de que tinha ocorrido a dissipação de 10 imóveis do património pessoal do avalista. As regras da experiência não permitem duvidar de que toda esta actuação foi concertada no sentido de manter o Banco Autor na ignorância daquela dissipação de património, mantendo-o no erro acerca da extensão do seu património e com isso garantindo a concessão do empréstimo, que de outro modo, por certo, não seria concedido. É nisto que consiste o dolo relevante em matéria de impugnação pauliana. «O dolo, para efeitos de impugnação pauliana, supõe um erro que é induzido ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro com a intenção ou consciência de enganar, querendo fazer-se crer ao credor que os bens ainda existem no património do devedor à data em que foi constituído o crédito[8]». O prejuízo é uma consequência e traduz-se na impossibilidade de cobrança integral do crédito. Foi isso que sucedeu no caso sub judicio.

Resulta, assim, sem dúvida, com relevância para o atrás descrito, que os Réus agiram com o propósito ou intenção de causar prejuízo ao Autor, ou, pelo menos, bem sabendo que o acto impugnado teria como consequência necessária causar prejuízo ao Autor. Como se referiu supra existe actuação dolosa não é só quando o agente tem a intenção ou propósito de causar prejuízo ao credor (dolo directo) mas também quando aceita reflexamente esse efeito, sabendo que tal resultado constituirá uma consequência necessária e inevitável do efeito imediato da sua conduta (dolo necessário) ou mesmo quando o agente prevê a possibilidade de o acto que pretende praticar ir prejudicar o credor (in casu, impossibilitando a satisfação integral do seu crédito ou agravando essa impossibilidade), mas não obstante age, indiferente ao resultado.

A actuação dos Réus preenche assim, o conceito de dolo previsto na al. a) do art.610.° do C.C e uma vez que os negócios realizados impossibilitam o A. de ver satisfeito integralmente o seu crédito, determinam a procedência da acção de impugnação pauliana, tal como se decidiu no acórdão recorrido, que não merece censura.


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Concluindo

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Notifique.

Lisboa, em 6 de dezembro de 2018.

José Manuel Bernardo Domingos (Relator)

João Luís Marques Bernardo

Fernando Oliveira Vasconcelos

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[1] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil antigo e 635º nº 2 do NCPC) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, hoje 636º nº 1 e 2 do NCPC). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[2] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[3] Vide, por todos Prof. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11ª Edição, 2008, Almedina, pag. 860-864.
[4] Cfr. L. Menezes Leitão, «Garantia das Obrigações», 2ª ed., pág. 77-79; J. Cura Mariano, «Impugnação Pauliana», 2ª ed., pág. 190-218 e arestos citados a pág.201 e 202, para além destes recentemente proferidos: Acs. STJ de 9.5.02 (proc.02B934), de 29.9.2009 (proc.105-1/2001.C1.S1), de 3.11.1009 (proc.183/06.6 TBMIR.C1.S1), de 6.5.2010 (proc.905-U/2001.C1.S1) e de 17.6.2010 (proc.187-B/2000.P1.S1).
[5]Ac. de 29/9/09, proferido no P. 105-I/2001.C1.S1 relatado por Mário Cruz, disponível in www.dgsi.pt..
[6] Em idêntico sentido, os Acs. do STJ de 2009.02.26 na Revista 09B0347; de 2009.03.12 na Revista 09B0264; e de 2009.06.18, na Revista 152.09.4YFLSB, todos disponíveis in www.dgsi.pt..
[7] Neste sentido, vide, entre outros, o acórdão do STJ, de 25/11/2014, proferido no processo n.º 6629/04.0TBBRG.G1.S1, relatado por Pinto de Almeida, acessível na Internet – http://www.dgsi. pt/stj.
[8] Ac. do STJ de 20/12/2001, proc. nº 02B1480, relatado por Diogo Fernandes e disponível in www.dgsi.pt..