Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
250/08.1GILRS.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: AGENTE DA AUTORIDADE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DIREITO À VIDA
EQUIDADE
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
INDEMNIZAÇÃO
QUANTUM INDEMNIZATÓRIO
RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE CRIME
Data do Acordão: 12/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABIÇLIDADE POR FACTOS ILÍCITOS.
Doutrina:
- Antunes Varela, RLJ, Ano 123, p. 191, 192 e 585;
- Código de Processo Penal, Comentário ao Código de Processo Penal, Edição Universidade Católica, 2008, p. 1033;
- Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, p. 288;
- Leite de Campos, BMJ, 365, p. 5 e ss.;
- Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, Legislação Complementar, 17.ª Edição, Almedina, p. 932;
- P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 1987, p. 500;
- Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, p. 1311;
- Vaz Serra, RLJ, Ano 113, p. 104.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 496.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 11-09-1994, IN C.J. STJ, ANO II, TOMO III, 1994, P. 92;
- DE 02-03-2006, IN C.J. STJ, ANO XIV, TOMO I;
- DE 24-05-2006, IN C.J. STJ, ANO XIV, TOMO II.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 20-02-1990, IN CJ, ANO XV, TOMO I, P. 189.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 07-11-1991, IN CJ, XVI, TOMO 5, P. 183.
Sumário :

I - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes, na falta destes, aos pais ou outros descendentes e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem ─ art. 496.º, n.º 2, do CC.
II -São ainda indemnizáveis, por direito próprio, os danos não patrimoniais sofridos pelas pessoas referidas neste preceito, familiares da vítima, decorrentes do sofrimento e do desgosto que essa morte lhes causou.
III - A gravidade do dano deve medir-se por um padrão objectivo e não de acordo com factores subjectivos, ligados a uma sensibilidade particularmente aguçada ou especialmente fria e embotada do lesado, como deve ser apreciada em função da tutela do direito: o dano deve ter gravidade bastante para justificar a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária.
IV - Quanto ao dano morte, à míngua de outro critério legal, na determinação do quantum compensatório, importa ter em linha de conta, por um lado, a própria vida em si, como bem supremo, e, por outro lado, a vontade e a alegria de viver da vítima, a sua idade, a saúde, o estado civil, os projectos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia-a-dia, designadamente a sua situação profissional e sócio-económica.
V - No caso, o pai da vítima mortal, menor de idade, contribuiu para o resultado morte ao expor o seu filho a uma situação perigosa (o furto de bens), na sequência da prática por este de um ilícito violador do direito de propriedade alheia e de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, cometido pelo progenitor com intenção de se eximir à acção das autoridades, em circunstâncias potenciadoras de um risco para o menor.
VI - Deste modo, atribui-se ao demandante, pai do menor, o grau de culpa de 80% na produção do evento letal, enquanto se fixa em 20% o grau de culpa do arguido, militar da GNR condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, que atingiu o menor com um projéctil disparado por uma arma de fogo, causando-lhe a morte, quando ele seguia como passageiro no interior de uma viatura conduzida pelo seu pai.
VII - De acordo com as proporções fixadas, é de atribuir ao demandante, pai do menor, a quantia global indemnizatória de € 11 000 e à demandante, mãe da vítima mortal, a quantia indemnizatória global de € 44 000 relativamente ao dano resultante da perda da vida (dano morte) e aos danos não patrimoniais por aquela sofridos antes da morte.


Decisão Texto Integral:

                       

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


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Nos autos de processo comum com o nº 250/08.1GILRS da 2ª Vara de Competência Mista de Loures, foi proferido acórdão em 24 de Outubro de 2013, que decidiu julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada a pronúncia e parcialmente procedente, por parcialmente provado o pedido de indemnização civil, e consequentemente, condenou o arguido AA, com os demais sinais dos autos, pela autoria material, de um crime de homicídio, na forma consumada, previsto e punido pelo art. 131 ° do Código Penal, na pena de 9 (nove) anos de prisão, e, ainda, na qualidade de demandado a pagar ao demandante BB, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros) e à demandante CC, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos a quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), acrescidas de juros desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização civil, à taxa legal de 4% ou à taxa legal que vier a vigorar até integral pagamento, absolvendo o arguido/demandado do remanescente do pedido.


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O arguido AA, inconformado com essa decisão, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual pela sua 9ª secção. veio por acórdão de 26 de Junho de 2014, decidir:

“VII - Termos em que, concedendo parcial provimento ao recurso do arguido, se decide alterar a matéria de facto nos termos descritos em VI-6. supra, e em consequência:

1. Condenam o arguido AA pela prática em autoria material de um crime de homicídio por negligência, sob a forma de negligência grosseira, previsto e punido pelo art. 137.º n.º 2 do Código Penal na pena de 4 (quatro) anos de prisão;

2. Suspendem a execução da mencionada pena pelo período de 4 (quatro) anos (art.° 50.º n.º 5 do C.Penal);

3. Condenam o arguido a pagar a título de indemnização por danos não patrimoniais ao demandante BB o montante de 10.000,00 (dez mil euros), e à demandante CC o montante de 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), respeitante ao "dano-morte" e aos danos morais sofridos pela vítima (seu filho) antes da morte, acrescidos dos juros legais desde a notificação para contestar o pedido cível.

4. Confirmam no mais a decisão recorrida.

5. Sem custas (Parte Crime). Custas cíveis na proporção do vencimento entre demandantes e demandado.”

Com referência à aludida alteração em matéria de facto, em VI-6 consta:

“Assim considerando ter ocorrido erro de julgamento, entendemos alterar a matéria de facto provada, apenas no que diz respeito ao elemento subjectivo, pelo que:

Consideramos não provado (parcialmente) o facto descrito em

53 - Não obstante, levou por diante esta sua determinação de fazer imobilizar tal viatura com recurso ao uso de arma de fogo, apesar de ter plena consciência dos riscos que esta sua decisão acarretava, e que eram passíveis de pôr em risco a vida e integridade fisica pelo menos do condutor e de um dos ocupantes da viatura, conformando-se com a possibilidade de, da sua conduta, resultarem como sucedeu, consequências de natureza trágica, concretamente a morte de DD.

Ficando em sua substituição:

«Não obstante, levou por diante esta sua determinação de fazer imobilizar tal viatura com recurso a arma de fogo, apesar de ter plena consciência dos riscos que esta sua decisão acarretava, e que eram passíveis de pôr em risco a vida e integridade física do condutor e demais ocupantes da viatura perseguida, com consequências de natureza trágica, concretamente a morte de DD, resultado com o qual, todavia, não se conformou».


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Inconformados com o acórdão da Relação, vieram os demandantes BB e CC, interpor recurso para este Supremo, apresentando as seguintes conclusões na respectiva motivação:

1. Na 1ª Instância foi o arguido AA condenado pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 131°, do Código Penal, na pena de 9 (nove) anos de prisão e, ainda, a pagar ao demandante BB, a titulo de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros) e à demandante CC, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos a quantia de € 60,000,00 (sessenta mil euros).

2. Não se conformando com o douto Acórdão, o arguido AA interpôs Recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual proferiu Acórdão datado de 26 de Junho de 2014 e julgou parcialmente procedente o recurso apresentado, condenando o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, sob a forma de negligência grosseira, previsto e punido pelo artigo 131°, n.°2, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão e, ainda, condenou o arguido a pagar a título de indemnização por danos não patrimoniais ao demandante BB o montante de € 10.000,00 (dez mil euros), e à de mandante CC o montante de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), respeitante ao “dano morte" e aos danos morais sofridos pela vítima (seu filho) antes da morte.

3. É precisamente respeitante ao quantum da indemnização atribuído pelo Colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa que os demandantes recorrem.

4. Antes de mais diga-se que do Acórdão proferido pela 1ª Instância não houve qualquer impugnação na parte respeitante à indemnização civil, nem da parte dos demandantes nem da parte do arguido AA.

5. Os demandantes optaram por não interpor recurso da decisão da 1ª Instância, pese embora o valor peticionado tenha sido bastante superior, visto que o seu principal objectivo era ver feita, dentro do possível, Justiça, nomeadamente com a condenação do arguido AA pelo crime de Homicídio, o que veio acontecer.

6. Pese embora os recorrentes não tivessem interposto recurso o arguido AA interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, sendo que, em momento algum, quer na sua Motivação quer nas Conclusões, impugnou o valor da indemnização civil atribuído pelo Tribunal Judicial da Comarca de Loures, cingindo-se tal recurso à matéria penal.

7. Ora, nos termos do artigo 403°, n.º2, do Código de Processo Penal, a parte respeitante â matéria civil é autónoma, pelo que a decisão quanto à indemnização civil se encontra fora do âmbito do recurso apresentado pelo arguido AA, e sendo assim já estamos perante caso julgado.

8. Aliás, a alteração produzida pelo Tribunal a quo referente à condenação não carece de qualquer adaptação na indemnização anteriormente decretada, ao contrário do que vem referido no Acórdão que ora se recorre, pois o facto de o arguido ser condenado por homicídio negligente, sob a forma negligência grosseira, ao invés de homicídio com dolo eventual, atenta a proximidade entre as duas questões, não interfere nem altera as condições respeitantes à matéria civil.

9. Nestes termos, deve manter-se o valor da indemnização civil decretada pelo Tribunal de 1ª Instância, pois não tendo nenhuma das partes recorrido quanto à matéria civil e sendo esta autónoma da restante, nos termos do artigo 403°, n.°2, alínea b), do Código de Processo Penal, a mesma deve manter-se inalterada visto que da modificação da decisão proferida pelo Tribunal a quo não existem consequências legais que importem uma alteração da restante parte que não foi objecto do recurso interposto, nos termos do artigo 403°, n.º 3, a contrário, do Código de Processo Penal.

10. Por mera cautela e sem prescindir do acima peticionado, visto que no entendimento dos recorrentes não existe fundamento legal para o Tribunal a quo, oficiosamente, proceder à alteração do valor da indemnização civil anteriormente decretado, visto não ter sido objecto do recurso apresentado pelo arguido AA nem dos demais sujeitos processuais, conforme exposto anteriormente, importa referir o seguinte:

11. Os demandantes peticionaram a quantia global de € 302.000,00 (trezentos e dois mil euros), a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, peticionando o montante de € 100.000,00 (cem mil euros) pelos danos próprios correspondentes ao sofrimento pela perda do filho e € 200.000 (duzentos mil euros) pelo dano morte e sofrimento da vítima nos momentos que antecederam a sua morte.

12. O Tribunal de 1ª Instância considerou adequada a atribuição da quantia de € 2 000,00 (dois mil euros) pelo sofrimento da vítima nos momentos que antecederam a sua morte e a quantia de € 78.000,00 (setenta e oito mil euros) a título de indemnização pela perda do direito à vida/dano morte, no montante global de € 80.000,00 (oitenta mil euros).

13. Em consequência da alteração efectuada (condenação por crime de homicídio por negligência, sob a forma de negligência grosseira, ao invés do que vinha sido condenado, por crime de homicídio simples, sob a forma de dolo eventual), o Tribunal a quo decidiu diminuir o valor global da indemnização civil para € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), considerando que tal aconteceu de forma a adaptar a condenação na indemnização devida com uma diminuição da culpa e da ilicitude.

14. Com o devido respeito, será que o valor atribuído de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros) pelo direito à vida de uma criança com 13 (treze) anos de idade é razoável e justo?!

15. Ora, no respeitante ao dano morte, por a vida ser impossível de ser restituída, deve ser fixada uma indemnização em dinheiro, pois foi a única forma que o Direito vislumbrou de modo a compensar os lesados, uma vez que é impossível atribuir um valor à vida humana e apesar de não haver dinheiro no mundo que apague a dor e angustia pela perda do seu filho, os demandantes entendem que deve ser fixado um valor que minimize o mais possível tamanha dor.

16. Aliás, o próprio Tribunal a quo, depois de verificar que o Tribunal de 1ª Instância não atribuiu qualquer montante a titulo de danos próprios correspondentes ao sofrimento pela perda do filho aos demandantes. tendo apenas atribuído pelo dano morte e sofrimento da vítima nos momentos que antecederam a morte, vem referir que não está de acordo e que deveriam ter sido, também, indemnizados tais danos .

17. Mais, mesmo por uma questão de equidade, e visto que no entendimento do Tribunal a quo no montante da indemnização não estão englobados todos os danos, o que caso estivessem o valor seria bastante superior, e não podendo agora contabilizá-los, deveria manter o valor decretado anteriormente pelo Tribunal de 1ª Instância.

18. Pois, o facto de o arguido AA ter sido condenado por homicídio por negligência, sob a forma de negligência grosseira, ao invés de dolo eventual, a diminuição da culpa, no caso concreto, é muito ténue e mesmo admitindo que o Tribunal a quo poderia, oficiosamente, diminuir o valor da indemnização, o que não é nosso entendimento, tal não se justificaria, pois verdadeiramente a diminuição da culpa e da ilicitude, no caso concreto, só interessam à moldura penal a aplicar.

t 9. Não nos esqueçamos que o direito violado e que se pretende ver ressarcido é O direito à vida, o mais valioso dos direitos consagrados na Constituição da República Portuguesa, e atendendo ao caso concreto, à data dos factos a vitima tinha 13 (treze) anos de idade, era uma pessoa alegre e tolerante, gozava de boa saúde, solidário, muito devotado à família, praticava desporto com assiduidade e desfrutava de um estilo de vida saudável, tudo isto contribuía para uma elevada esperança média de vida.

20. A discordância dos recorrentes relativamente ao Acórdão impugnado limita-se, justamente, ao quantum da indemnização do dano morte, pois no ver dos recorrentes, a indemnização daquele dano no valor de € 40.000,00 (quarenta mil euros) é desproporcional ao dano causado e de uma enorme injustiça, mesmo tendo em conta os critérios regulativos do valor da indemnização dispostos nas Portarias nºs 377/2008, de 26 de Maio e 679/2009, de 25 de Junho, rapidamente verificamos que o valor atribuído é muito abaixo do valor fixado.

21. Mais, depois de uma análise, ainda que breve, pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (com o qual se procura dar expressão à preocupação da normalização ou padronização quantitativa da compensação devida pelo dano morte, e, por essa via, ao princípios da igualdade e da unidade do direito e ao valor eminente da previsibilidade da decisão judicial), mostra que o equivalente monetário do dano morte é, actualmente, fixado, nos seus limites inferiores e superiores em € 50.000,00 e € 80.000,00, respectivamente, vide a este respeito os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31-01-2012, processo n,º 875/05.7 TBILH.Cl.Sl e processo n.º 14143/07.6 TBVNG.P1.S1 de 31-05-2012.

Termos em que, mas sempre com o douto e superior critério de V. Exa., deve o presente Recurso merecer provimento e, em consequência, deve manter-se o valor da indemnização civil decretado pelo Tribunal de 1ª Instância, pois não tendo nenhuma das partes recorrido quanto à matéria civil e sendo esta autónoma da restante, a mesma já fez caso julgado; Subsidiariamente, e sem prescindir do atrás requerido e caso V. Exas. assim não entendam, o valor da indemnização civil atribuído pelo Tribunal de 1ª instância deve manter-se inalterado por uma questão de equidade.

Assim farão V. Exas.

a tão costumada Justiça.

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O arguido respondeu à motivação de recurso, cujas conclusões repristinam questões suscitadas no recurso interposto para a Relação, sobre matéria de facto e matéria de direito incidindo, porém, sobre a decisão em matéria criminal., transcrevendo-se as conclusões:

A) O presente recurso visa questionar a douta decisão recorrida, nos seguintes aspectos:

            - Interpretação do Tribunal do artigo 358° e 359° do C.P.P. (não comunicação ao arguido da alteração substancial dos factos/violação do princípio do contraditório e do direito de defesa) que importa a nulidade da sentença, por força do artigo 379°, alínea b) do C.P.P. e inconstitucionalidade do artigo 32°, n.° 1 e 5 da C.R.P.; 2)

            - Da ausência do elemento subjectivo do tipo de crime de homicídio negligente

            - Da  regulamentação   de   armas   de   fogo   pelo   agente   de   autoridade:   da  necessidade, proporcionalidade e adequação;

            - Da verificação do Estado de necessidade desculpante

            - Violação do princípio da livre apreciação da prova;

            - Da medida da pena aplicável - Pena excessiva;

            - Da existência de fundamento para a suspensão da execução da pena relativamente ao arguido.

B) Impugnação da matéria de facto: O douto acórdão recorrido perfilha o entendimento de que as provas produzidas em audiência permitem fazer um juízo de segurança quanto ao facto de o arguido ter praticado o crime de que foi acusado.

            1) Ora, esta fundamentação é inaceitável dado que a situação de facto, tal como ela se desenrolou. Na verdade, conforme se demonstrará adiante a decisão é inaceitável dos aspectos impugnados por se entender que:a) Existem provas claras, que foram produzidas e examinadas em audiência, que impunham decisão diferente quanto ao arguido; b) que inexistem provas que possam condenar o arguido pela prática, em autoria material, num crime de homicídio por negligência; c) Não existe qualquer fundamento para a decisão de condenação.

B) Impugnação da matéria de direito

            1. O arguido estava ao serviço da G.N.R. devidamente uniformizado, deslocava com os camaradas no carro patrulha caracterizado da Guarda Nacional Republicana.

            - Deu ordem de paragem ao condutor da carrinha no seguimento de uma solicitação de ocorrência de assalto em curso na Quinta do ...,

            - o condutor da carrinha não acatou a ordem de paragem e iniciou a marcha no sentido descendente, na direcção do militar AA;

            - Que só não o atropelou porque este recuou e projectou-se para cima do capot do carro patrulha

            - Que logo após o início do seguimento o arguido ligou os sinais lurninosos (rotativos ou "pirilampos") e sonoros (sirene) na intensidade máxima por forma a advertir terceiros do perigo de veículo em marcha urgente e o condutor da viatura em fuga que estava perante elementos de autoridade e que teria que parar;

            - Que em momento algum o condutor da carrinha parou, tendo conduzido durante cerca de 2 minutos, numa distância de 900 metros, entre ruas estreitas, em velocidade excessiva para o local, circulando no meio da estrada, ocupando as duas faixas de rodagem e "cortando" as curvas a direito, desrespeitando todas as regras de segurança rodoviária causando em perigo a sua própria vida e a integridade física e dos ocupantes da viatura, dos ocupantes do carro patrulha e terceiros que cruzassem no caminho;

            - Em momento algum - nem depois do arguido comunicar, através do megafone, que iria fazer uso da arma de fogo e ter efectuado dois tiros de advertência para o ar - o condutor da carrinha em fuga parou ou, sequer, se poderia concluir que o iria fazer pois sempre assumiu uma condução ofensiva e evasiva;

            - Nem com o disparo para o pneu traseiro esquerdo demoveu o condutor em fuga de parar -como lhe competia - o veículo;

            - O condutor estava evadido da prisão há cerca de 8 anos, sendo, perfeitamente lícito concluir que em momento algum o mesmo iria parar,

            - Que metros mais à frente, nas imediações da casa do Gaiato e do Largo da Igreja encontravam-se vários jovens e crianças tal como era usual acontecer,

            - Que o arguido e os demais camaradas tinham conhecimento de tal facto

            - Que quando decidiu usar da arma de fogo efectuou, primeiro, dois tiros para o ar em claro sinal de advertência

            - Que o condutor da carrinha em fuga não parou o veículo

            - Que a meio da recta da Rua Padre Américo, com boa visibilidade para o final da recta e vendo que não vinham pessoas ou veículos a circular o arguido decidiu efectuar um disparo para o pneu traseiro do lado esquerdo

            - Que o fez empunhando a arma com as duas mãos, em sentido descendente tendo para o efeito efectuado um disparo a uma distância em que não cabia um outro carro entre o carro perseguido e o carro perseguidor

            - Que o arguido tinha bons resultados em tiro, sendo um bom atirador ou, pelo menos, a acima da média,

            - Que tinha confiança no resultado do seu tiro (ou seja que acertaria no pneu traseiro)

            - Que o conseguiu não tendo, contudo, o condutor da carrinha em fuga parado o veículo em fuga colocando em perigo os agentes e terceiros

            - Que em virtude de tal comportamento reiterado e previsível por parte do condutor da carrinha em fuga o arguido decidiu disparar um tiro para o pneu traseiro do lado direito da carrinha

            - Que fê-lo empunhando a arma no sentido descendente em direcção ao pneu

            - Que fê-lo quando tinha boa visibilidade à sua frente não existindo pessoas ou veículos à sua frente

            - Que tinha confiança - ainda reforçada pelo sucesso do anterior disparo - que iria acertar no pneu

            - Que no momento em que estava a efectuar o disparo o veículo policial bateu com a roda dianteira do lado direito num desnível existente na estrada com a berma da estrada

            - Que tal desnível causou a mudança de trajectória do tiro.

            - Que em momento algum se conformou com a possibilidade de causar sérios danos ou a morte para alguém

            - Que a probabilidade de terceiros e os agentes da GNR serem feridos com gravidade ou mesmo mortos pelo embate com a carrinha em fuga e/ou pelos disparos de armas de fogo na posse dos ocupantes da carrinha em fuga era iminente caso não se impedisse a condução perigosa e ofensiva do condutor da carrinha em fuga

            - Que foram esgotados todos os meios possíveis para travar o resultado previsível

            - Que o uso da arma de fogo foi o último recurso possível, adequado, necessário e proporcional a evitar a concretização de tais danos.

2. Atenta a impugnação da matéria de facto e direito atrás mencionada o arguido nunca poderia e deveria ter sido condenado.

***

D) Norma jurídicas violadas:

            1) O douto acórdão recorrido, na parte impugnada, violou o disposto no artigo 374°, n.° 2 e 127° do C.P.P; dado que não valorou a favor do arguido as provas produzidas em audiência de discussão e julgamento

             2) O A interpretação dada pelo Tribunal (dia 24 de Outubro de 2013, aquando da leitura da acórdão) violou o disposto no artigo 358° e 359° ambos do C.P.P. violando o princípio do contraditório e do direito de defesa, constituindo uma nulidade, nos termos do disposto no n.° 379°, alínea b) do C.P.P. e inconstitucionalidade, por força de aplicação do artigo 32°, n.° 1 e 5 da C.R.P.

            3) Do artigo 374°, n.° 2 e 127° do C.P.P; do regime geral das armas de fogo em vigor à data dos factos (artigos 2°, n.° 1 e 4, 155°, n.° 1 a 4 e 156° Regulamento Geral do Serviço da Guarda Nacional Republicana).

            4) O douto acórdão violou o no artigo 286° da C.R.P.

E) Cumprimento do disposto no art. 412°, n.° 3 e 4 do C.P.P.

            1) Pontos que se consideram incorrectamente julgados: Pontos dados como provados na matéria de prova: 3, 15, 22, 27, 31, 39, 52, 53, 55, 56, 58, 59, 60, 64 que deverão ser substituídos por outros que comprovem a existência de:

            - Que a comunicação efectuada para o carro patrulha foi de assalto e não de furto como referido no artigo 3º da matéria dada como provada;

            - Que o arguido agiu da forma descrita no ponto 15º da matéria dada como provada com o intuito de parar a viatura em fuga e de alertar terceiros para o perigo de viatura em marcha acelerada.

            - Que o pavimento da estrada não era irregular em toda a Rua Padre Américo mas apenas no local onde foram disparados os 4 e 5º tiros (lado direito, a meio da recta , sentido Loures -casa do Gaiato) devido ao desnível existente entre a estrada e a berma (empredamento aí existente) - artigo 22° da matéria de facto dada como provada

            - Que o arguido agiu do modo descrito na primeira parte do ponto 27° da matéria de facto dada como provada (até: (...) condutor da viatura em fuga ignorou tal facto) tendo, de imediato, o arguido decidido efectuar um outro disparo para o pneu traseiro direito da carrinha em fuga para obstar à continuação da fuga e concretização do perigo que representava a carrinha para os agentes e terceiros que se encontravam no local e não como está descrito: "(...) o arguido decidiu efectuar vários disparos em direcção da viatura perseguida, para obstar à continuação da fuga"

            - Que o arguido efectuou um disparo para o pneu traseiro do lado direito o qual subiu a trajectória devido a um solavanco causado pela irregularidade do pavimento tendo, de imediato e inadvertidamente sido disparado um outro disparo (...) - artigo 31° da matéria dada como provada;

            - Que as patrulhas solicitadas pelo arguido AA no momento em que iniciaram a perseguição só chegaram ao local após a imobilização da carrinha e algemagem dos ocupantes, cerca de 5 minutos após, tendo todas elas percorrido o mesmo trajecto que o carro patrulha tinha efectuado, ou seja, Rua Padre Américo, sentido (Loures - Casa do Gaiato e não o inverso)- artigo 39° da matéria dada como provada;

            - Que o arguido AA sabia que dentro da viatura em fuga seguiam dois cidadãos suspeitos da prática de ilícitos criminais, que não acataram qualquer ordem de paragem do agente de autoridade e nem deram indicações que o iriam fazer e que da sua conduta traduzida na efectivação de disparos com a citada arma de fogo, para os pneus traseiros do veículo em fuga, não poria em perigo terceiros nem os agentes nem daí poderia resultar danos físicos graves ou mesmo a morte de peio menos um desses suspeitos de crimes atenta as características do local (recta ladeada com muros com quase 2 metros de altura dos dois lados)- artigo 52° da matéria de facto;

            - Que em momento algum o arguido se conformou com a possibilidade de causar a morte de um dos ocupantes da viatura em fuga (artigo 53° da matéria facto provada);

            - Que o arguido sabia que a sua formação em tiro garantia-lhe o êxito desta sua decisão até porque o primeiro disparo efectuado atingiu o alvo pretendido: o pneu traseiro do lado esquerdo, factor esse que reforçou, ainda mais, a confiança do arguido em efectuar o disparo para o outro pneu traseiro por forma a parar e impedir o perigo para os agentes e terceiros (artigo 55° da matéria de facto dada como provada)

            - Que o arguido sabia que tais circunstâncias garantiam-lhe o uso seguro e adequado que é exigido para a utilização de armas de fogo constituindo o último recurso possível para parar o perigo e ameaça para os agentes e terceiros (artigo 56°)

            - Que pese embora o arguido não recebera qualquer formação de treino de disparo de armas de fogo em movimento sobre veículo, também eles em movimento, nem sequer existir tal treino nas forças policiais (G.N.R, P.S.P. ou P.J) isso não o impossibilitava de agir do modo descrito para salvaguarda e protecção da integridade física e da vida dos agentes e de terceiros que estiveram em perigo em virtude do comportamento descrito supra por parte dos ocupantes da viatura em fuga (artigo 580 matéria dada como provada);

            - Que durante todo o percurso, desde a abordagem na Quinta do Maçapez até ao momento dos disparas a meio da recta da Rua Padre Américo, o arguido AA, os seus camaradas que circulavam no carro patrulha bem assim terceiros que se encontravam no local estiveram em perigo, devido ao modo de condução perigosa e ofensiva denotando que não iria parar em momento algum só não tendo sido consumado em maior tragédia para os agentes e terceiros em virtude da actuação do arguido (artigo 590 da matéria dada como provada);

            - Que perante tais ameaças para a vida e integridade física dos agentes (possível embate do carro patrulha na carrinha em fuga; disparas vindos do interior da carrinha em fuga) e de terceiros (atropelamento, colisão frontal entre veículos; disparos vindos do interior da viatura em fuga) o arguido AA socorreu-se do último patamar do uso da força e das anuas de fogo por agente de autoridade, pois estavam esgotados todos os outros meios coercivos menos perigosos, não sendo possível, atenta as circunstâncias do local e a distância a que estavam as patrulhas (Bucelas, Bairro do Zambujal e Vialonga), que aliás chegaram ao local cerca de 5 minutos após a imobilização da carrinha e da detenção dos ocupantes, dado que o trajecto assumido pelo condutor da carrinha seria a trajectória de fuga para a zona rural das lezírias, escapando-se à possibilidade de bloqueio de estradas independentemente da existência ou não de mais meios materiais e humanos envolvidos, comprovável, inclusivamente, pela direcção dos carros patrulhas que se deslocaram ao local, todos eles colocados mesmo sentido do trajecto efectuado pelo carro patrulha em que ia o arguido e após efectuarem todos o mesmo trajecto (sentido Loures - casa do Gaiato) uma vez que não podiam "dar a volta" e interceptar a carrinha em fuga em qualquer ponto possível de intercepção (artigo 60ª da matéria dada como provada)

- Que o arguido não agiu de modo voluntário e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas por lei. Ao invés agiu em estrito cumprimento da regulamentação do uso das armas de fogo, quando estavam esgotados todos os outros patamares do uso da força e quando estava em perigo a vida e a  integridade física dos agentes e de terceiros em virtude do comportamento reiterado e perigoso do condutor da carrinha em fuga com objecto apto a causar a morte ou sérias lesões (artigo 64° da matéria dada como provada).

Pelo exposto deverá:

1)         Ser alterada a decisão da matéria de facto, no que respeita ao arguido AA ser decretados como não provados os pontos 3, 15,22,27,31,39,52,53,55,56,58,59,60,64 do douto acórdão.

2)         Em consequência da alteração à decisão quanto à matéria de facto, ser este arguido absolvido pela prática do crime de que foi condenado por demonstrado e provado que o mesmo agiu de acordo com a legislação aplicável e que o uso da arma de fogo foi legitimado e justificado, adequado, necessário e proporcional para por termo à actuação do condutor da carrinha em fuga e demais ocupantes que, reiteradamente, desobedeceram à ordem de paragem, tendo colocado em perigo os agentes e terceiros sendo o uso da arma de fogo o último recurso possível para parar a agressão apta a causar danos irreversíveis ou mesmo a morte para terceiros.

2)         Ser decretada a violação:

4.1)      Dos artigos 379°, alínea b) do C.P.P e artigo 32°, n.° 1 e 5 em virtude da interpretação dada pelo Tribunal ao artigo 358° e 359° ambos do C.P.P e consequente não comunicação ao arguido para efectivo exercício do contraditório e do direito de defesa;

4.2)      Do artigo 374°, n.° 2 e 127° do C.P.P; do regime geral das armas de fogo em vigor à data dos factos (artigos 2°, n.° 1 e 4, 155°, n.° 1 a 4 e 156° Regulamento Geral do Serviço da Guarda Nacional Republicana).

4.3)      Do artigo 266°, n.° 1 e n.° 2 da Constituição da República Portuguesa em conjugação com o regime supra mencionado.

            - 1) Interpretação do Tribunal do artigo 358° e 359° do C.P.P. (não comunicação ao arguido da alteração substancial dos factos/violação do princípio do contraditório e do direito de defesa) que importa a nulidade da sentença, por força do artigo 379°, alínea b) do C.P.P. e inconstitucionalidade do artigo 32°, n.° 1 e 5 da C.R.P.; com os efeitos legais subsequentes.

            - Da ausência do elemento subjectivo do tipo de crime homicídio negligente;

            - Interpretação do Tribunal do artigo 266° da CRP em conjugação com a regulamentação de armas de fogo pelo agente de autoridade (Decreto - Lei 455/97) da necessidade, proporcionalidade e adequação verificada no caso;

- Da verificação do Estado de necessidade desculpante verificado no caso

V. E.xa, no entanto, melhor decidirão e farão, com sempre, a habitual Justiça.

      Mateus, 5:1: "Jesus, o Cristo, disse um dia: "                                      Bem-aventurados sejam aqueles que têm  sede e fome de justiça porque um dia  serão saciados ".


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Neste Supremo, a Digma Procuradora-Geral Adjunta, emitiu o seguinte Parecer:

“Os demandantes civis BB e CC vêm recorrer do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/6/2014 que concedendo parcial provimento ao recurso do arguido AA o condenou por autoria do crime de homicídio por negligência, sob a forma grosseira e consequentemente a título de indemnização o montante a pagar de 10.000,00 € ao BB e de 35.000 € à demandante CC.

O arguido AA havia sido condenado na 1ª instância (2ª Vara Competência Mista de Loures) em 24/10/2013, por autoria do crime de homicídio do artº 131º do CP, na pena de 9 anos de prisão e a título de indemnização aos demandantes BB 20.000 € e CC 60.000 €.    

Estes dois demandantes civis não recorreram do acórdão condenatório da 1ª instância.

            Embora nos pareça ser irrecorrível pelo menos parcialmente, se vier a ser admitido o recurso interposto por ser relativo a matéria civil falta legitimidade ao M.P. (artº 401º nº 1, a) do CPP a contrário).


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Cumpridos os vistos e não tendo sido requerida audiência, seguiu o processo para conferência,

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Vem assente pelas instâncias a seguinte factualidade:

“II - FUNDAMENTAÇÃO FACTOS PROVADOS:

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos com relevância para a presente decisão:

Da acusação, para os quais remete a pronúncia:

1 - No dia 11 de Agosto de 2008, pelas 17h25m, o arguido AA, guarda da GNR, pertencente ao efectivo do Posto Territorial de São Julião do Tojal, encontrava-se de serviço de patrulha às ocorrências juntamente com o guarda EE, fazendo-se transportar num veículo ligeiro de passageiros da GNR, caracterizado, no qual se encontrava também o guarda FF Juncal que estava em patrulha apeada e a quem iriam transportar para o Posto da GNR.

2 - O arguido AA ocupava o lugar ao lado do condutor e assumia as funções de comando de patrulha, o guarda EE ocupava o lugar do condutor, e o guarda FF ocupava o lugar no banco traseiro, do lado direito, atrás do lugar ocupado pelo arguido.

3 - Pelas 17h25m desse mesmo dia, foi solicitada, via rádio, a comparência daquela patrulha na Quinta do ..., sita no Bairro de Lóios, em Santo Antão do Tojal, face a uma denúncia de ali se encontrar uma carrinha transportando indivíduos suspeitos de estarem a praticar um furto, pelo que os mencionados guardas se dirigiram, de imediato, para o local, onde chegaram cerca de dois a três minutos depois daquela comunicação.

4 - Ao chegarem junto das edificações situadas no interior da Quinta, mais precisamente junto da porta da sala de ordenha da vacaria, os guardas da GNR foram abordados por GG, que lhes disse "Vai ali uma carrinha", enquanto apontava para uma estrada de terra batida que distava cerca de 250 metros do local, situada junto a uns contentores utilizados como local de armazenamento de diverso material de construção civil, pertença da sociedade comercial ..., Lda.

5 - Junto aos apontados contentores, os guardas da GNR avistaram uma carrinha branca a deslocar-se no caminho de terra batida, no sentido descendente do mesmo.

6 - Tratava-se, na verdade, do veículo ligeiro de mercadorias, marca Ford, modelo Transit, de cor branca, com a matrícula ...-DA, conduzido pelo arguido BB, onde se faziam também transportar, ocupando o único banco existente na viatura, no lugar do meio, HH, e no lado direito, o menor DD.

7 - De imediato, o guarda EE inverteu o sentido da marcha do veículo da GNR que conduzia e, com o intuito de interceptar o veículo suspeito, direccionou o mesmo no sentido dos mencionados contentores.

8 - O veículo da GNR foi imobilizado pelo guarda EE no início da estrada de terra batida que dá acesso aos referidos contentores, a qual entronca com a estrada de terra batida de acesso à Quinta, surgindo, nesse mesmo instante, em sentido contrário ao do carro patrulha, o veículo de cor branca, matrícula ...-DA, a abandonar o local.

9 - Em tais circunstâncias, o arguido AA saiu do interior do veículo da GNR, colocou-se à frente daquele veículo, virado para a carrinha que descia o descrito caminho, levantou o braço esquerdo dando ordem de paragem ao condutor do veículo de cor branca e colocou a mão direita em cima do coldre, onde estava guardada a sua arma de serviço.

10 - O condutor da carrinha, o arguido BB, não acatou a ordem de paragem que lhe foi dada pelo guarda AA, não imobilizou o veículo que conduzia, e continuou a marcha da viatura na direcção da pessoa daquele.

11 ~ O arguido BB apercebeu-se das indicações e, apesar disso, prosseguiu a marcha e dirigiu a viatura na direcção do arguido AA, guarda da GNR que, na iminência de ser atropelado e para evitar que tal acontecesse, recuou e lançou-se para cima do capot do veículo da GNR, rebolando por cima deste.

12 - Em consequência de tal embate com o veículo, o militar AA sofreu lesões no hemitorax esquerdo, no ombro esquerdo e membro superior esquerdo, susceptíveis de provocar cinco dias de doença, sem incapacidade profissional.

13 - Dessa forma, os ocupantes da carrinha conseguiram fugir do local no interior do veículo ...-DA, prosseguindo pela estrada de terra batida que dá acesso à Quinta do ..., na direcção de Santo Antão do Tojal.

14 - O arguido AA entrou no veículo da GNR, ocupando o anterior lugar ao lado do condutor, e os guardas da GNR iniciaram, então, uma perseguição ao veículo em fuga.

15 - Nesse momento, o arguido accionou os sinais de emergência existentes no veículo, nomeadamente os pirilampos e sirene, esta no volume mais elevado, com o intuito de mandar parar a viatura em fuga e solicitou, via rádio, o apoio de outras viaturas policiais.

16 - A perseguição ao veículo ...-DA prolongou-se por cerca de 1000 metros, circulando as duas viaturas em artérias estreitas do Bairro Residencial dos Lóios, em Santo Antão do Tojal, - vg Rua Eça de Queirós, Rua dos Lóios, Praceta dos Lóios, Rua Martinho Ferreira, Rua Padre Américo.

17 - Durante esse percurso ambos os condutores circularam em velocidade não apurada, mas manifestamente desadequada, face às características daquelas artérias e à condução praticada pelos dois citados condutores.

18 - A viatura em fuga circulava aos ziguezagues, ocupando parcialmente as duas hemi-faixas de rodagem, particularmente nas curvas.

19 - O veículo da GNR só conseguiu alcançar a viatura em fuga, posicionando-se a cerca de 5 a 10 metros desta, junto à curva que liga a Praceta dos Lóios à Rua Martinho Ferreira, um pouco antes dos tanques municipais ali existentes.

20 - Após passarem a zona dos tanques municipais, quando o condutor da carrinha fez a curva, o arguido AA viu um indivíduo no lado direito da janela da carrinha, com a cabeça e o braço de fora, empunhando um objecto pequeno, de cor preta, de características não concretamente apuradas, que o arguido AA interpretou como se de uma arma de fogo se tratasse.

21 - Naquele momento, o arguido AA não informou os guardas EE e FF do referido em 20.

22 - O veículo ...-DA, seguido pelo carro patrulha, continuou o percurso através da Rua Martinho Ferreira até entrarem ambos na Rua Padre Américo, artéria onde entronca aquela rua, a qual configura uma recta que desemboca no Largo da Igreja, com cerca de 140 metros de comprimento e 6,80 metros de largura, com trânsito em ambos os sentidos, ladeada, à direita, por um muro e, à esquerda, por quatro habitações, sensivelmente nos primeiros 30 metros, seguindo-se-lhe um muro até ao final da mesma, sendo o pavimento da estrada irregular, provocando solavancos no veículo policial, dada a velocidade a que circulava.

23 - Na Rua Padre Américo, ambos os condutores das viaturas aceleraram a marcha dos respectivos veículos, continuando, ambos, a circular em velocidade desadequada, tendo em conta as características do local, apesar de, naquele momento, não circularem pela Rua Padre Américo quaisquer peões ou veículos, para além dos mencionados.

24 - O arguido AA e os guardas FF e EE já haviam passado antes naquele local, por várias vezes, em patrulha, o que faziam sempre circulando a velocidades baixas.

25 - Na Rua Padre Américo, na zona livre de edificações daquela artéria, o arguido AA tomou a decisão de fazer parar a viatura em fuga, recorrendo para tal à arma de fogo que lhe estava distribuída, a pistola semi-automática de marca Walther, modelo P38, de calibre 9 mm, com o número de série 414253.

26 - Em execução desta sua decisão, após passar a zona das habitações, o arguido AA, ocupando o lugar frontal direito da viatura onde seguia, avisou para o interior da viatura que ia usar a arma de fogo, colocou meio tronco e o braço direito fora da janela do veículo da GNR, empunhou com a mão direita a arma de serviço mencionada, apoiando essa mão sobre a mão esquerda, apontou a arma ao ar e disparou, de seguida, dois tiros de advertência.

27 ~ Porque estes disparos não surtiram o efeito desejado, uma vez que o condutor da viatura em fuga ignorou tal acto, de imediato, o arguido decidiu efectuar vários disparos em direcção da viatura perseguida, para obstar à continuação da fuga.

28 - Assim, o arguido munido da citada arma, empunhando-a com a mão direita e apoiando essa mão sobre a mão esquerda, colocou meio tronco e o braço direito fora da janela do veículo da GNR, e apontando a arma em sentido oblíquo, descendente, quando a viatura em fuga se encontrava a uma distância aproximada de menos de 2,50 metros da viatura policial, efectuou um disparo direccionado ao pneu traseiro esquerdo da carrinha, no qual acertou, tendo ficado incrustados fragmentos de blindagem no pneumático e na pala do guarda-lamas.

29 - Concomitante ao primeiro desses disparos efectuados pelo arguido AA, foi audível um estrondo que foi interpretado pelos guardas da GNR como podendo ser proveniente do rebentamento de um pneu da viatura perseguida ou do barulho de disparo.

30 - No entanto a viatura perseguida não se imobilizou, pelo que o arguido apontou de novo a arma à parte traseira da mesma, pretendendo acertar no pneu do lado direito, pelo que posicionou o braço em sentido descendente, na direcção do referido pneu.

31 - Nesse momento, quando o arguido já tinha o dedo no gatilho, a viatura da GNR sofreu um solavanco causado pela irregularidade do pavimento, tendo o arguido AA efectuado dois disparos seguidos, que atingiram a porta traseira da carrinha, respectivamente a 1,07 metros e 0,70 metros de cota do pavimento da via, ambos com continuidade para o interior do veículo.

32 - A viatura perseguida, na sequência desta acção do arguido AA, imobilizou a sua marcha, no fim da Rua Padre Américo, sensivelmente do lado direito, tendo como referência o eixo da via e o sentido de marcha dos veículos, mais precisamente no Largo da Igreja.

33 - Do interior da viatura, aquando da abordagem dos militares da GNR, saiu um cão, que se encontrava no habitáculo da mesma, juntamente com os ocupantes.

34 - Todas as cápsulas respeitantes aos disparas referidos foram deflagradas pela citada arma que o arguido AA empunhou e que se encontrava em boas condições de funcionamento.

35 - Como consequência necessária e directa dos disparos realizados pelo arguido AA, o menor DD, nascido a 02/01/1995, que seguia sentado no banco frontal, do lado direito da viatura perseguida, veio a ser atingido por um projéctil disparado pela arma do arguido, que penetrou no tronco pela região dorso-lombar esquerda, seguiu um trajecto orientado da esquerda para a direita, de baixo para cima e paralelo ao plano frontal, e saiu pela região escapular direita.

36 - A entrada de tal projéctil no corpo da vítima provocou-lhe uma ferida perfuro-contundente orificial, de contorno circular com 0,8 cm de diâmetro, rodeado de orla de contusão excêntrica nos quadrantes inferior - 03 cm de largura, que dista 11 cm da linha média - ferida de entrada de projéctil de arma de fogo e uma ferida perfuro-contundente orificial, na região do ângulo externo da omoplata direita, de contorno oval, com 1xO,5 cm, de maior eixo oblíquo para baixo e para a direita - ferida de saída de projéctil de arma de fogo, bem como, ao nível interno, quatro feridas perfuro- contundentes transfixivas.

37 - As graves lesões traumáticas torácicas descritas foram causa directa e necessária da morte do ofendido DD.

38 - Efectivamente um dos projécteis saídos da arma disparada pelo arguido AA entrou na viatura pela porta traseira, evoluiu através do compartimento de carga, entrou na face posterior do banco sensivelmente entre o lugar central e o lugar direito, saiu pela face anterior, atingiu o menor DD entrando na zona dorso-lombar esquerda, e saindo na região do ângulo externo da omoplata direita, depois entrou no tablier, por cima do porta-luvas, não tendo sido detectada qualquer saída, tudo isto com uma ligeira direcção da esquerda para a direita, face ao eixo central, e praticamente paralela ao pavimento da viatura atingida, sendo por fim, visível por debaixo do tapete do chão da viatura, na zona do lugar direito.

39 - Após a imobilização da carrinha no Largo da Igreja e de ter sido efectuada a abordagem aos ocupantes da viatura, chegaram entretanto ao local as patrulhas solicitadas pelo arguido AA no momento em que iniciaram a perseguição.

40 - No interior do compartimento de carga da viatura perseguida foram encontradas pela GNR diversas peças metálicas, prumos de cofragens de construção civil, pertencentes à sociedade comercial ..., Lda.

41 - Tais objectos foram retirados, nas circunstâncias que acima se descreveram, pelo menos pelo arguido BB, do interior dos contentores localizados na Quinta do ... contra a vontade do respectivo dono.

42 - No interior daquela viatura, foram localizados e apreendidos pela GNR 54 extensores, no valor unitário de 30 euros, com o valor global de 1620 euros.

43 - Mais foi localizada e apreendida pela Polícia Judiciária, no interior daquela viatura, no chão, entre as costas do banco do condutor e a divisória do habitáculo para a caixa de carga, uma pistola semi-automática de calibre 6,35mm Browning, de marca "Manufrance", modelo "Le Français", com o número de série oculto, de origem francesa, munida de carregador, com o comprimento aproximado de 115 mm, em boas condições de funcionamento.

44 - E foram ainda encontrados e apreendidos no interior do porta-luvas da viatura, cinco cartuchos de caça, calibre 12, todos em boas condições de utilização.

45 - O veículo ligeiro de mercadorias, marca Ford, modelo Transit, em que o arguido BB, HH e a vítima se transportavam, havia sido apreendido ao arguido BB no dia 05 de Julho de 2008, a hora não apurada, no Posto da GNR de Pinhal Novo.

46 - O arguido BB recebeu a viatura para dela ser depositário, tendo então sido advertido da obrigação, entre outras, de a não utilizar enquanto a mesma permanecesse à sua guarda e de que, fazendo-o, incorreria na prática de um crime de desobediência.

47 - Apesar de estar ciente de tais obrigações, o arguido BB conduziu nas circunstâncias que acima se descreveram.

48 - O arguido BB foi constituído arguido e detido pela GNR, a fim de ser presente a primeiro interrogatório judicial.

49 - No dia 12 de Agosto de 2008, pelas 12 horas, nas instalações deste Tribunal Judicial de Loures, no âmbito do primeiro interrogatório judicial a que o arguido foi submetido na sequência dos factos acima descritos, o arguido BB, devidamente advertido de que poderia incorrer em responsabilidade criminal, afirmou quanto à sua identificação:

- "Chamar-se ..., filho de ... e de ..., natural de ... (...), solteiro, nascido: diz não saber, mas ter 34 ou 35 anos".

50 - Sucede que o nome do arguido é BB, filho de ... e de ..., nascido a 23/0 1/1976.

51 - Efectivamente à data dos factos acima mencionados, o arguido BB encontrava-se evadido do Estabelecimento Prisional de Alcoentre e tinha pendentes contra si inúmeros processos judiciais.

52 - O arguido AA sabia que dentro da viatura em fuga seguiam pelo menos dois cidadãos, bem sabendo também que da sua conduta, traduzida na efectivação de vários disparos com a citada arma de fogo em direcção à viatura perseguida, poderiam resultar danos físicos graves, ou mesmo a morte de pelo menos um desses indivíduos.

53 - Não obstante, levou por diante esta sua determinação de fazer imobilizar tal viatura com recurso a arma de fogo, apesar de ter plena consciência dos riscos que esta sua decisão acarretava, e que eram passíveis de pôr em risco a vida e integridade física do condutor e demais ocupantes da viatura perseguida, com consequências de natureza trágica, concretamente a morte de DD, resultado com o qual, todavia, não se conformou

54 - Efectivamente, o arguido sabia que ambas as viaturas - aquela em que seguia e a viatura perseguida - circulavam em linha recta, sensivelmente junto ao eixo da via, em velocidade desadequada, tendo em conta a distância de intervalo entre as mesmas - menos de 2,50 metros - e as características da via.

55 - Sabia, de resto, o arguido AA que dentro da viatura em fuga se transportavam pelo menos dois indivíduos, e que a sua formação em tiro não lhe garantia o êxito desta sua decisão.

56 - Sabia, igualmente, o arguido AA que estas circunstâncias não lhe garantiam o uso seguro e adequado que é exigido para a utilização de armas de fogo.

57 - Ora, o arguido AA tinha pleno conhecimento do quadro legal do recurso ao uso de armas de fogo, bem conhecendo, igualmente, as características técnicas da citada arma, de marca Walther, que disparou nas circunstâncias anteriormente descritas.

58 - O arguido AA conhecia, também, as possíveis consequências que poderiam advir da utilização de tal arma de fogo, nas reais circunstâncias verificadas, já que nunca recebera qualquer tipo de treino de disparo de armas de fogo em movimento sobre veículos, também eles, em movimento.

59 - Nem tão pouco foi ameaçado na sua integridade física por tais indivíduos em momento imediatamente prévio à utilização da citada arma de fogo.

60 - Apesar da inexistência dessas ameaças, o arguido AA absteve-se de recorrer à utilização de qualquer meio coercivo menos perigoso, não atribuindo suficiente relevância ao facto de ter solicitado apoio a outras patrulhas da GNR, que aliás chegaram ao local de imobilização da viatura perseguida logo de seguida, circunstância essa que, certamente, proporcionaria uma abordagem e intercepção mais seguras, tendo em conta o maior número de meios materiais e humanos envolvidos.

61 - Por sua vez, o arguido BB, depois de se ter introduzido no local supra referido em 41, sem que estivesse autorizado pelo seu dono, contra cuja vontade agiu, e de ter feito seus os objectos descritos em 40, 41 e 42, sabendo que não lhe pertenciam, actuou utilizando o veículo que conduzia pelo modo supra mencionado em 10, 11 e 13, a fim de impedir que o guarda AA, militar da GNR que o interpelou, praticasse actos relativos ao exercício das suas funções, apesar de saber que se tratava de agente de autoridade, no exercício das suas funções.

62 - O arguido BB quis também conduzir o identificado veículo, bem sabendo que o mesmo se encontrava apreendido, pelo que não o podia utilizar, o que veio a fazer, sabendo que desobedecia a uma ordem.

63 - Quis ainda o arguido BB actuar com o propósito de mentir acerca da sua verdadeira identidade, o que conseguiu, bem sabendo que estava obrigado a responder com verdade sobre o seu nome completo e restantes dados de identificação.

64 - Cada um dos arguidos agiu de modo voluntário e consciente, bem sabendo serem as suas respectivas condutas proibidas por lei.


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Do pedido de indemnização civil:

65 - BB era filho dos demandantes civis BB e CC.


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Mais se provou:

66 - O arguido AA é o terceiro de uma fratria de cinco elementos, tendo nascido no seio de uma família sem dificuldades económicas, sendo a dinâmica familiar entre os progenitores conflituosa, podendo as vivências dos conflitos entre os progenitores, com emergência de comportamentos violentos, ter contribuído para sentimentos de revolta do arguido e dificuldades no entendimento sobre o justo e adequado, bem como ao nível da impulsividade e do seu controlo.

67 - O arguido entrou para a escola em idade própria, tendo completado o 9° ano de escolaridade com 16 anos de idade, contando com uma retenção no 5° ano de escolaridade, a qual ocorreu devido a problemas de saúde.

68 - Durante a adolescência e em contexto escolar o arguido teve alguns problemas de comportamento, contando inclusivamente com uma sanção disciplinar a qual decorreu de agressões a um colega, com necessidade de tratamento hospitalar, decorrendo a maioria dos problemas de comportamento em contexto escolar do facto de reagir de forma impulsiva a situações que considerava de abuso e injustiça, tentando interpor-se em defesa de quem considerava estar a ser vítima.

69 - O arguido após ter abandonado a frequência escolar aos 16 anos de idade, começou a trabalhar com o progenitor numa empresa de construção civil da qual este era proprietário, trabalho que não era remunerado e que durou cerca de um ano.

70 - Aos 17 anos de idade o arguido concorreu ao Exército Português como voluntário, onde se manteve até ter cumprido o serviço militar obrigatório aos 18 anos de idade, tendo abandonado este trabalho por não se identificar com o mesmo, pretendendo um nível de acção mais dirigido para situações reais, possibilitando-lhe o trabalho no Exército Português apenas situações de simulação.

71 - Após ter saído do Exército Português o arguido concorreu à Guarda Nacional Republicana, tendo sido incorporado na GNR aos 19 anos de idade.

72 - No período que mediou a saída do Exército e a incorporação na GNR o arguido exerceu funções como vigilante durante seis meses.

73 - Desde que se encontra na GNR o arguido passou por diversos postos de trabalho, tendo realizado o curso de ingresso em Porta1egre, com a duração de 9 meses, ao que se sucedeu o estágio em Alenquer durante 3 meses.

74 - Posteriormente incorporou o Regimento de Infantaria de Lisboa, onde esteve 3 meses, tendo passado para o Posto Territorial da Póvoa de Santo Adrião, o qual passou depois a ser o Posto Territorial de Caneças, onde esteve no total cerca de 5 anos, tendo ainda integrado grupos de forças de intervenção especiais, nomeadamente Investigação Criminal e Pelotão de Intervenção Rápida.

75 - O arguido no âmbito do seu desempenho profissional teve uma sanção disciplinar, por factos ocorridos em 2003, tendo sido desqualificado na classe de comportamento, regredindo da 1ª para a 2ª classe, e foi suspenso por um período de 5 dias, com consequente perda de dias de vencimento, tendo ainda noutro momento, uma outra sanção disciplinar de repreensão por conflitos com um colega.

76 - Em termos familiares e afectivos o arguido mantém uma relação distante mas cordial com a sua família de origem, atribuindo esse distanciamento ao facto de ter sido responsável pela detenção de uma das suas irmãs, a qual acabou por ser condenada a uma pena de prisão em 2001, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes.

77 - O arguido casou-se pela primeira vez em 2005, tendo o casamento decorrido do facto da namorada se encontrar grávida e pretender assegurar-lhe ao nível da saúde a protecção médica de que era beneficiário através da GNR.

78 - A relação do arguido com o ex-cônjuge, de quem se divorciou em 2009, mantém-se conflituosa, perdurando apenas em função dos interesses da filha que têm em comum, ao tempo, com 7 anos de idade, para a qual o arguido contribui com a quantia mensal de € 150,00 a título de alimentos, para além do contributo para outras despesas da menor no montante mensal de cerca de € 150,00.

79 - À data dos factos o arguido residia com o primeiro cônjuge num imóvel adquirido através de empréstimo bancário, pagando actualmente a quantia mensal de € 400,00 pela amortização do empréstimo destinado à aquisição da habitação, após renegociação do empréstimo com a entidade credora.

80 - O arguido voltou a casar em 2010, residindo com o cônjuge e o filho de ambos, com cerca de 2 anos de idade, possuindo o agregado familiar rendimentos que permitem assegurar as necessidades de manutenção e subsistência.

81 - À data dos factos o arguido exercia funções no Posto Territorial de São Julião do Tojal, tendo após os factos que deram origem ao presente processo sido transferido de Posto, para salvaguarda da sua integridade física, atendendo a alegadas ameaças de que foi alvo, integrando actualmente uma força especial da GNR, Grupo de Intervenção e Ordem Pública.

82 - Na sequência dos factos que deram origem ao presente processo foi instaurado processo disciplinar ao arguido, encontrando-se o mesmo pendente da decisão do presente processo judicial.

83 - De acordo com o relatório social o arguido « ... como características pessoais, com implicações no âmbito da esfera profissional, apresenta um perfil de militar empenhado reconhecido pelas hierarquias, sendo considerado um excelente profissional se enquadrado por chefia disciplinadora e que imponha limites à sua actuação. Apresenta, ainda, características de inflexibilidade perante o desrespeito aos normativos legais, o que expõe quer em contexto de relação com colegas, quer em contexto de intervenção na comunidade. Esta inflexibilidade conjuga-se por vezes com características de impulsividade, tendo já sido alvo de processo e sanção disciplinar, (...).

 ( ...) com a sua constituição como arguido perdeu a possibilidade de concorrer à categoria de Cabo e Sargento, considerando-se lesado na sua carreira profissional, bem como em termos remuneratórios. AA manifesta-se, ainda, desalentado com as limitações impostas à sua actividade profissional, as quais decorrem essencialmente do que considera serem burocracias e imperativos legais, e que em seu entender, colocam entraves ao que presume ser o objectivo da sua actividade que é fazer cumprir a lei e evitar a comissão de crimes, aparentando não possuir adequada capacidade para ponderar as consequências desta sua postura profissional.

AA reconhece os bens jurídicos em causa, bem como a necessidade da sua protecção, relativizando-a, contudo, em função daquilo que considera ser as suas atribuições profissionais, o que poderá revelar dificuldades em ponderar os diferentes bens jurídicos.».

84 - O arguido AA averba no certificado de registo criminal uma condenação pela prática em 29-06-2003 de dois crimes de ofensa à integridade física simples, previstos e punidos pelo art. 143°, n.º 1 do Código Penal; um crime de coacção grave, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 155°, n.º 1, aI. a), 154°, n.º 1,22°,23° e 73°, todos do Código Penal; e, um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelos arts. 256°, nºs 1, al. a), 3 e 5 e 255°, al. a), ambos do Código Penal, na pena única de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na execução por igual período, declarada extinta nos termos do art. 57° do Código Penal, por decisão proferida em 09-09~2011. - (acórdão proferido em 14-07¬2006 nos autos de Processo Comum n.º 187/03.0GHLRS da 1ª Vara de Competência Mista de Loures, transitado em julgado em 13-07-2009).


*

85 - O processo de socialização do arguido BB decorreu num contexto socioeconómico desfavorável, tendo o arguido com cerca de 2 anos de idade ficado privado do contacto com a mãe e irmãos, na sequência da separação dos progenitores, ficando a cargo do pai e madrasta.

86 - O ambiente familiar era marcado pelo autoritarismo e conflitualidade protagonizadas pelo progenitor, vivendo o agregado familiar, a par da precariedade económica, sem condições mínimas de habitabilidade, em situação de itinerância frequente, decorrente da actividade laboral do pai como vendedor ambulante e das características da cultura cigana.

87 - O arguido não frequentou a escola por imposição parental, tendo iniciado precocemente actividade laboral como vendedor ambulante, em conjunto com o progenitor e a madrasta.

88 - O arguido casou-se com 16 anos de idade segundo as tradições da cultura cigana, e integrou o agregado de origem da companheira, fixando-se na zona de Setúbal, tendo o seu trajecto laboral, circunscrito à venda ambulante, permitido a subsistência do agregado, do qual faziam parte dois filhos, já falecidos, e a satisfação das necessidades básicas do agregado.

89 - A relação conjugal cessou no decurso da actual reclusão do arguido, aparentemente por mútuo acordo do casal.

90 - No período que antecedeu a sua reclusão em 1997 o arguido vivia com a companheira e filho, integrado no agregado de origem daquela, na zona de Setúbal, residindo em habitação construída pelo próprio, com reduzidas condições de habitabilidade.

91 - O arguido mantinha a actividade profissional de vendedor ambulante, em feiras e mercados da zona de residência, tendo uma situação económica que lhe permitia suprir as necessidades básicas do agregado familiar.

92 - Detinha uma rede de sociabilidade circunscrita a pares da sua cultura e residentes na mesma zona, privilegiando contactos relacionais superficiais nos contextos de lazer e de actividade laboral, mantendo proximidade relacional e afectiva com os elementos do agregado familiar de origem da companheira.

93 - Durante os 8 anos que permaneceu evadido, o arguido BB manteve um estilo de vida centrado no convívio com o agregado constituído, retomando a actividade de venda ambulante, desenvolvida essencialmente na zona de Setúbal onde a família vivia.

94 - No Estabelecimento Prisional de Vale dos Judeus onde se encontra desde 31-08-2009, o arguido BB regista um trajecto indiciador de resistência e dificuldades para se sujeitar a normas, constando a sinalização de algumas infracções, designadamente relacionadas com a posse e utilização de telemóveis, demonstrando uma atitude de intermitente rentabilização formativa ou laboral da medida penal, optando essencialmente pela frequência da escola, apontando nesse sentido o objectivo de completar o 2° ciclo do ensino básico.

95 - Em termos de enquadramento e suporte familiar, persiste algum afastamento em relação aos elementos da família de origem, existindo ligação próxima à progenitora da ex-companheira e respectivo agregado.

96 - De acordo com o relatório social «( ... ) Do ponto de vista pessoal, o seu trajecto indicia a prevalência de dificuldades relevantes na capacidade de responsabilização, de pensamento consequencial e elevada permeabilidade a factores externos. Tende a orientar as tomadas de decisão focalizado na prossecução de interesses pessoais, com comprometimento da capacidade de descentração.

( ... ) perante a actual situação prisional e os ilícitos que lhe estão inerentes, BB adopta um discurso desresponsabilizante, focalizando-se em factores causais externos e na sua permeabilidade perante as respectivas pressões, para argumentar a condenação imposta e o envolvimento em determinados factos criminais. Evidencia sérias limitações em ponderar a perspectiva da vitima ou os impactos resultantes dos desajustes protagonizados.».

97 - O arguido BB averba no certificado de registo criminal as seguintes condenações transitadas em julgado:

a) - pela prática em 1996 de um crime de roubo, a pena de 7 (sete) anos de prisão, tendo sido declarados perdoados 14 (catorze) meses de prisão, sob condição resolutiva. - (acórdão proferido em 21-06-1999, nos autos de Processo Comum n.o 584/97.9JATAR, do Tribunal Judicial de Tavira, transitado em julgado em 06-07¬1999).

b) - pela prática em 09-08-2000 de um crime de evasão, previsto e punido pelo art. 352° do Código Penal, a pena de 11 (onze) meses de prisão. - (sentença proferida em 28-04-2009, nos autos de Processo Comum n. ° 251100.0T ACTX do 2° Juízo do Tribunal Judicial do Cartaxo, transitada em julgado em 28-05-2009).

c) - pela prática em 13-04-1997 de dois crimes de roubo agravados, previstos e punidos pelo art. 210°, nºs. 1 e 2, al. b) do Código Penal, a pena única de 12 (doze) anos de prisão, tendo sido declarados perdoados 18 (dezoito) meses de prisão. - (acórdão proferido em 15~07-2009 nos autos de Processo Comum n.o 341/06.3TBSLV do 1° Juízo do Tribunal Judicial de Silves, transitado em julgado em 28-09-2009).

d) - em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas nos Processos mencionados em a) e c) e no Processo Comum n.o 29/97.4GCLL do 1° Juízo Criminal de Loulé, a pena única de 18 (dezoito) anos de prisão, tendo sido declarados perdoados 27 (vinte e sete) meses de prisão, sob condição resolutiva. - (acórdão cumulatório proferido em 18-10-2010 nos autos de Processo Comum n.º 341/06.3TBSLV do 1 ° Juízo do Tribunal Judicial de Silves, transitado em julgado em 17-11-2010).

e) - pela prática em 23-06-2008 de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo art. 256°, nºs. 1, a!. b) e 3 do Código Penal, a pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na execução por igual período. - (sentença proferida em 31-01-2011 nos autos de Processo Comum n. ° 318/08.4GGSTB do 1 ° Juízo Criminal de Setúbal, transitada em julgado em 14-03-2011).


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FACTOS NÃO PROVADOS:

Com relevância para a presente decisão, não se provou:

Da acusação para a qual remete a pronúncia:

1 ~ Que aquando do referido em 15 dos factos provados o arguido AA tenha solicitado o corte de estradas.

2 - Que à data dos factos o asfalto da Rua Padre Américo estivesse em boas condições.

3 - Que os ocupantes da viatura em fuga não tenham manifestado qualquer conduta ofensiva dirigida aos militares da GNR que os perseguiram.

4 - Que o arguido AA soubesse o número concreto de ocupantes que se transportavam no interior da viatura em fuga.

S - Que durante a perseguição o arguido AA nunca tivesse sido confrontado com qualquer arma de fogo que tivesse sido empunhada pelos ocupantes da viatura perseguida em direcção à viatura em que seguia.


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Do pedido de indemnização civil:

6 - Que DD era uma pessoa alegre e tolerante, gozava de boa saúde, solidário, muito devoto à família, praticava desporto com assiduidade e desfrutava de um estilo de vida saudável.

7 - Que desde o falecimento de DD os seus pais vivem angustiados e tristes, transformaram-se em pessoas deprimidas e substancialmente diferentes do que eram.

8 - Que os demandantes tenham despendido relativamente ao funeral do seu filho, quantia não inferior a € 2.000,00 (dois mil euros).


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Cumpre apreciar e decidir.

Inexistem vícios ou nulidades de que cumpra conhecer, nos termos dos artigos 410º nºs 2 e 3, 434º do CPP.

Os demandantes BB e CC tinham deduzido pedido de indemnização civil contra o arguido/demandado AA, nos exactos termos constantes de fls. 1360 a 1369 (fax) e 1408 a 1417 (original), peticionando a condenação do arguido/demandado a pagar-lhes a quantia global de € 302.000,00 a título de ressarcimento pelos danos não patrimoniais e patrimoniais sofridos, respectivamente no montante de € 300.000,00 e € 2.000,00.

A 1ª instância, tinha condenado o arguido demandado, com referência ao pedido cível deduzido, pelos ora recorrentes, a pagar ao demandante BB, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros) e à demandante CC, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos a quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), acrescidas de juros desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização civil, à taxa legal de 4% ou à taxa legal que vier a vigorar até integral pagamento, absolvendo o arguido/demandado do remanescente do pedido.

Por sua vez, o Tribunal da Relação condenou o arguido a pagar a título de indemnização por danos não patrimoniais ao demandante BB o montante de 10.000,00 (dez mil euros), e à demandante CC o montante de 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), respeitante ao "dano-morte" e aos danos morais sofridos pela vítima (seu filho) antes da morte, acrescidos dos juros legais desde a notificação para contestar o pedido cível.

Das conclusões da motivação dos recorrentes que resumem os fundamentos e delimitam o objecto do recurso, os recorrentes pedem a manutenção do valor da indemnização civil decretado pelo Tribunal de 1ª Instância, pois que não tendo nenhuma das partes recorrido quanto à matéria civil e sendo esta autónoma da restante, a mesma já fez caso julgado; Subsidiariamente, e sem prescindir do atrás requerido e caso assim não se entenda, o valor da indemnização civil atribuído pelo Tribunal de 1ª instância deve manter-se inalterado por uma questão de equidade.

Mas nos termos da conclusão 20. “A discordância dos recorrentes relativamente ao Acórdão impugnado limita-se, justamente, ao quantum da indemnização do dano morte, pois no ver dos recorrentes, a indemnização daquele dano no valor de € 40.000,00 (quarenta mil euros) é desproporcional ao dano causado e de uma enorme injustiça, mesmo tendo em conta os critérios regulativos do valor da indemnização dispostos nas Portarias nºs 377/2008, de 26 de Maio e 679/2009, de 25 de Junho, rapidamente verificamos que o valor atribuído é muito abaixo do valor fixado.”

O recurso é admissível, nos termos do artº 400º nºs 2 e 3, do CPP, atento o valor global da sucumbência, e a alçada do tribunal recorrido.

Sobre o pretendido caso julgado, há que ter em atenção o disposto no art. 403.° do C.P.Penal, que versa sobre a limitação do recurso.

         Assim, embora disponha:

            1 - É admissível a limitação do recurso a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas.

             2 - Para efeito do disposto no número anterior, é autónoma, nomeadamente, a parte da decisão que se referir:

            (. . .)

            b) A matéria civil:

            (. . .)

            Logo acrescenta o nº 3, da seguinte forma:

            3- A limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida

         O nº3, como referia Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado – Legislação Complementar, 17ª edição, Almedina, p, 932, nota 5, “significa que deve começar-se pela apreciação do recurso, e seguidamente retirar-se da decisão do mesmo todas as consequências quanto à decisão do tribunal inferior, alterando-a na medida estritamente necessária para que não hja contradição coma decisão do tribunal superior, respeitando porém sempre as limitações decorrentes da proibição de reformatio in pejus.”

         Como doutamente observa Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, p. 1311, nota 2: - “Note-se que na hipótese de recurso cindido, o tribunal a quem aquele é dirigido tem de cingir-se à apreciação desse inciso da decisão recorrida, sem prejuízo, porém, como se disse, da sua liberdade de conhecimento amplo da matéria de direito, desde que conforme ao princípio da proibição de reformatio in pejus.”

            Na verdade, na mesma obra, - p. 1304, nota 1 -, em comentário ao artº 402º, que define o âmbito do recurso, o mesmo insigne Conselheiro já tinha elucidado: - “O recurso, em princípio, e nada sendo dito em contrário, abrange toda as decisão, ainda que visando a sua interposição, apenas, uma parte específica daquela. Por isso, seja aquele trecho específico o objecto da disputa do recorrente, o tribunal de recurso pode estender o seu conhecimento aos demais aspectos da causa que, dentro da respectiva esfera de competência, julgue merecerem ser apreciados.”

         Sendo certo, por outro lado, que em termos cíveis, não pode haver condenação ultra petitum,- v. artº 661º nº 1 do CPC

        

         O artº 84º do CPP, ao versar sobre o caso julgado dispõe que a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças cíveis.”

Isto significa que, como refere Henriques Gaspar, no citado Código de Processo Penal Comentado, p, 288, nota 2: - “ A decisão penal que conhecer do pedido cível constitui caso julgado com a mesma eficácia do caso julgado das sentenças civis, na parte em que a sentença penal conheça do pedido cível, o regime do caso julgado é o do processo civil”

         O, “que se verifica quando uma causa se repete, depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário; ou significar autoridade de caso julgado, que constitui a força e a eficácia da sentença proferida em processo civil nos precisos limites e termos e que julga – artigos 619º, nº 1, e 621º do CPC, e a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória no processo e fora dele (sem prejuízo do recurso de revisão – artigos 696º a 702º do CPC).

         O caso julgado material em processo penal apenas existe quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação dos mesmos factos ilícitos.

         Somente deste desiderato decorre o efeito negativo do caso julgado em processo penal, que consiste assim em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão.

Em processo penal, o denominado caso julgado formal objectiva-se essencialmente em decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental – um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão. (v. v.g. e remotamente já os acórdãos deste Supremo, de 2 de Março de 2006, e de 24 de Maio de 2006, in Col.Jur.Acs do STJ, XIV, tomo I, e e tomo 2)

        

         Por isso, poderá convocar-se a anotação no citado Código de Processo Penal Comentado, p. 1671, nota 3, de que “um juízo condenatório não pode ter eficácia imediata á sua prolação, por em recurso admissível, normalmente interposto, poder eventualmente vir a ser anulada, alterada ou revogada a condenação, tornando a exequibilidade desta insubsistente, e que se tivesse sido executada, poderia acarretar prejuízos irreversíveis e irremediáveis, pelo que a decisão condenatória só pode tornar-se firme, ou definitiva, sem dúvidas, quando tiver transitado em julgado,”

         Não procede pois, pelas razões supra expostas, a existência de caso julgado formal, pelo facto de os sujeitos processuais interessados não terem recorrido da decisão sobre o pedido de indemnização civil, pois materialmente a decisão seria sempre parcial ou  condicional, por depender de eventual condição resolutiva, enquanto, havendo recurso, inexistisse decisão de mérito transitada em julgado.

         E, porque a decisão da Relação afectou os recorrentes, têm legitimidade para a questionar, conferida pela alínea c) do nº 1 do CPP.


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         Sobre o montante indemnizatório:

         A 1ª instância tinha considerado:

         “A respeito dos danos não patrimoniais, dispõe o art. 496° do Código Civil, nos seus nºs. 1 e 2:

         «1 - Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

         2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.».

         Prevê o n. ° 2 citado a existência de dois danos não patrimoniais, o sofrido pela própria vítima e o sofrido pelos parentes com direito a indemnização.

         A respeito da questão de saber se os direitos não patrimoniais derivados da perda do direito à vida, nascem na esfera jurídica da vítima e depois se transmitem, por via sucessória para os seus herdeiros, de acordo com as regras da sucessão, ou se, ao invés, nascem por direito originário na esfera patrimonial dos parentes enumerados no n.º 2 do art. 496° do Código Civil, salienta o Acórdão do Venerando Tribunal de Coimbra de 13-01-2010, http://www.dgsi.pt/. citando o Professor Antunes Varela (RLJ, Ano 123, págs. 191 e 192):

         «"Quem acompanhar atentamente os trabalhos preparatórios do Código Civil sem nenhuma ideia preconcebida afivelada à cabeça, não poderá deixar de reconhecer que entre a tese da indemnização nascida no património da vítima e transmitida por via sucessória a alguns dos seus herdeiros e a concepção da indemnização como direito próprio, originário, directamente atribuído ao cônjuge e aos parentes mais próximos, à margem do fenómeno sucessório da herança da vítima, a lei adoptou deliberadamente a segunda posição.

          ( ... ) na 2a revisão ministerial, ... a posição da lei perante a indemnização da morte da vítima sofreu uma alteração radical.

         No artigo 498º saído dessa revisão (correspondente ao art. 496º da versão definitiva do Código) deixa de falar-se na transmissão do direito à indemnização (pelo dano da morte), não se alude mais à hipótese da morte instantânea e não se chamam sequer os herdeiros a recolher a indemnização colada à herança da vítima.

         Tal como na versão final do n.º 2 do artigo 496° do Código, passou antes a dizer-se que, por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes, e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

Com esta eliminação da referência à transmissão do direito à indemnização, com a substituição dos herdeiros, na titularidade da indemnização, pelo cônjuge e familiares mais próximos da vítima, à margem da sucessão legítima, em termos diferentes da ordem normal da vocação sucessória, o legislador quis manifestamente chamar estas pessoas por direito próprio, a receberem, como titulares originários do direito, a indemnização dos danos não patrimoniais causados à vítima da lesão mortal - e que a esta competiria, se viva fosse.( ... )».

No caso em apreço, considerando que à data da morte DD, menor de 13 anos de idade, nascido em 02/01/1995, era solteiro, os danos não patrimoniais a atender para efeitos de atribuição da indemnização, são os danos sofridos pela vítima e os danos sofridos pelos demandantes civis, progenitores da vítima, designados na 2a parte do n.º 2 do art. 496º do Código Civil.

         De acordo com o disposto nos arts. 496°, n.º 3 e 494º do Código Civil, haverá que atender como critério de determinação equitativa para o equivalente económico dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima e pelos demandantes civis, titulares do direito a indemnização nos termos do n.º 2 do mencionado art. 496°, à natureza e intensidade do dano, ao grau de culpa, à situação económica do lesado, e ás demais circunstâncias do caso que o justifiquem, atendendo-se ainda aos critérios jurisprudenciais neste domínio.

         Salienta a este respeito o referido Acórdão, citando o Professor Vaz Serra (RLJ, Ano 113, pág. 104):

         «"A satisfação ou compensação dos danos não patrimoniais não é uma verdadeira indemnização, visto não ser um equivalente do dano, um valor que reponha as coisas no estado anterior à lesão, tratando-se, antes de atribuir ao lesado uma satisfação ou compensação do dano, que não é susceptível de equivalente.

         É assim, razoável que, no seu cálculo, se tenham em atenção, além da natureza e intensidade do dano causado, as outras circunstâncias do caso concreto que a equidade aconselhe sej am tomadas em consideração e, em especial, a situação patrimonial das partes e o grau de culpa do lesante".».

         E, citando o Professor Leite de Campos (Estudo publicado no BMJ 365, pág. 5 e ss) a respeito da indemnização pela perda do direito à vida, o mais elevado dos direitos de personalidade:

         «( ... ) "Atentar contra o direito ao respeito da vida produz um dano ~ a morte ¬ superior a qualquer outro no plano dos interesses da ordem jurídica.

         O dano da morte é o prejuízo supremo, é a lesão de um bem superior a todos os outros" ... "A morte é um dano único que absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais. O montante da sua indemnização deve ser, pois, superior à soma dos montantes de todos os outros danos inimagináveis.".

         ( ... ) Como se escreveu no Ac STJ 86.05.13 BMJ 357, 399, na indemnização devida pela perda do direito à vida, há que atender não só ao valor do bem da vida, em si mesmo considerado, que é o mais valioso dos bens que integram os chamados direitos de personalidade, como ainda ao apego da vítima à vida, que pode ser aferido, à falta de outros elementos para o efeito relevantes, pela sua idade, o seu estado civil, a sua situação profissional e familiar, e a sua condição sócio-económica.».

         Transpondo tais considerações para o caso em apreço, tendo em conta a matéria de facto provada no que respeita às lesões sofridas pela vítima, causadoras necessariamente de dores e sofrimento, e o facto da vítima ter 13 anos de idade, considera-se adequada a atribuição da quantia de € 2.000,00 pelo sofrimento da vítima nos momentos que antecederam a sua morte e a quantia de € 78.000,00 a título de indemnização pela perda do direito à vida/dano morte, no montante global de € 80.000,00.

Todavia, havendo contitularidade dos demandantes civis, progenitores da vítima, no direito indemnizatório fixado, importa determinar se no caso em apreço serão quantitativamente iguais as quotas de cada um dos demandantes (cf. art. 1403°, n.º 2, 2ª parte do Código Civil).

         Ora, atendendo às circunstâncias em que ocorreu a morte da vítima, de acordo com o que resultou provado, na companhia do progenitor/demandante civil, na sequência da prática por este de um ilícito violador do direito de propriedade alheia e de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, cometido pelo progenitor com intenção de eximir-se à acção das autoridades, em circunstâncias potenciadoras de um risco de lesão para o menor, dado o modo de execução do referido ilícito criminal, a atribuição de modo quantitativamente igual do direito indemnizatório ao demandante, consubstanciaria uma situação de abuso de direito, na acepção do art. 334° do Código Civil, impondo-se assim a redução quantitativa da quota do demandante civil.

         E assim, considera-se adequada a atribuição à demandante CC da quantia global de € 60.000,00 a título indemnizatório e ao demandante BB, da quantia global de € 20.000,00.

         Quanto ao montante peticionado a título de danos patrimoniais, considerando que não resultaram provados quaisquer dos factos alegados relacionados com o montante despendido pelos demandantes com o funeral da vítima, improcede o pedido de condenação do arguido/demandado no pagamento da quantia de € 2.000,00 a título de indemnização pelos referidos danos.

         Aos montantes indemnizatórios supra mencionados, acresce ainda a indemnização pelos prejuízos causados pelo incumprimento da prestação, que nas obrigações pecuniárias corresponde aos juros a contar da data em que se considera efectuada a notificação do arguido/demandado para contestar o pedido de indemnização civil, à taxa legal de 4 %, resultante da Portaria n.º 291/2003, de 08-04, ou à taxa legal que vier a vigorar até integral pagamento (cf. arts. 804°, 805°, nºs. 2, al. b) e 3 e 806°, nºs. 1 e 2 do Código Civil).”

        

         Por sua vez, refere o acórdão recorrido:

“Nos termos do art. 496°, 3, in fine, do Cód. Civil, são indemnizáveis, em caso de morte, os danos não patrimoniais sofridos pelas pessoas indicadas no nº 2 do mesmo artigo, designadamente os pais.

         Os pais do menor falecido peticionaram a quantia global de € 302.000,00 (trezentos e dois mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais nos seguintes termos:

         - danos próprios correspondentes ao sofrimento pela perda do filho, no montante de € 100.000,00 (cem mil euros) .

- dano morte e sofrimento da vitima nos momentos que antecederam a morte, € 200.000,00 (duzentos mil euros) .

- € 2.000,00 (dois mil euros) por danos patrimoniais (respeitante ao gasto pelas despesas do funeral).

O tribunal a quo não atribuiu indemnização pelos danos não patrimoniais próprios sofridos pelos pais e demandantes civis tendo condenado o demandado/arguido no pagamento global de €80.000,00 (oitenta mil euros) respeitante ao "dano-morte" (€ 78.000,00) e ao sofrimento da vítima nos momentos que antecederam a morte (€2.000,00), com "a atribuição à demandante CC da quantia global de € 60.000,00 a título indemnizatório e ao demandante BB, da quantia global de € 20.000,00" sendo que atribuiu estas últimas indemnizações por direito próprio e não por direito que nasceu na esfera do falecido DD.

         A perda da vida constitui um dano autónomo e susceptível de reparação pecuniária (ver A. Varela, obra e voI. cit., p. 585). A indemnização correspondente a dano desta natureza cabe às pessoas designadas no art. 496º, 2 do Cód. Civil, segundo a ordem e nos termos em que nesta disposição legal estão indicadas (ver A. Varela, obra e voI. cit., p. 585; P. de Lima e A. Varela, «cód. Civil Anotado», voI. I, 1987, p. 500; Ac. do STJ., de 23/5/1985, BMJ na 347, p. 398).

         De acordo com o estatuído pelo art. 496º, 3, do Cód. Civil, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo Tribunal, recorrendo para o efeito às circunstâncias referidas no art. 494º do mesmo diploma. No respeitante à indemnização pela perda do direito à vida, «tem de ponderar-se que se trata do mais elevado dos direitos da personalidade» - Ac. da RP, de 7/11/91, CJ, XVI, 5, p. 183. Importa ainda considerar a função da vítima na sociedade e na família, atento o facto de o ser humano ser, por natureza, social (vd. Ac. da RL, de 20/2/90, CJ, XV, 1, p. 189).

         […]

         Embora entendamos que quer o dano-morte quer os danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes da morte sendo um direito próprio dos demandantes nasce na esfera jurídica da vítima, quanto a esta questão, por não ter sido interposto recurso quer pelo arguido quer pelos demandantes civis, a decisão do pedido cível da l.ª instância tornou-se caso julgado formal, só podendo ser alterada a decisão por força do art.º 403.° n.º 3 do C.P.Penal.

         Neste sentido vide a anotação ao art.º 402.° do C.P.Penal in Comentário ao Código de Processo Penal, Ed Univ Católica, 2008, pag1033, aqui aplicável mutatis mutandis:

         17. Não havendo nulidades insanáveis, nem nulidades sanáveis ou irregularidades tempestivamente arguidas de que caiba conhecer, nem outras questões prévias que obstem ao conhecimento do recurso, o tribunal deve conhecer das partes autónomas impugnadas da decisão (de acordo com as conclusões do recurso) e, subsequentemente, da parte não impugnada da decisão. Com efeito, a delimitação do âmbito do recurso pelo recorrente não prejudica o dever do tribunal de recurso retirar oficiosamente da procedência das conclusões do recurso as “consequências" relativamente às partes autónomas da decisão não impugnadas pelo recorrente (artigo 403.°, n.º 3). O disposto no artigo 403º, n.º 3, é limitado pela proibição da reformatio in pejus, pelo que no caso de recurso interposto pelo arguido ou pelo MP em exclusivo interesse do arguido as "consequências" relativamente à parte não impugnada da decisão são apenas as "consequências" que aproveitam ao arguido. Destarte, no recurso interposto pelo arguido ou pelo MP em exclusivo interesse do arguido, o caso julgado parcial fica dependente de uma condição resolutiva (, 1988: 388), que só pode operar pro reo e nunca pro societate. Assim:

         a. Da decisão sobre o recurso referente a matéria penal devem ser retiradas as consequências que aproveitam ao recorrente relativamente à matéria civil (não impugnada) que dependa da matéria penal. Por exemplo, o arguido é condenado pelo crime de dano e no pedido de indemnização civil correspondente ao prejuízo do ofendido. O arguido interpõe recurso apenas contra a condenação penal, alegando que era proprietário da coisa. O recurso é julgado procedente com o fundamento invocado. O tribunal de recurso deve absolver o arguido também do pedido de indemnização. O mesmo sucede se o arguido é condenado pelo crime de burla e no pedido de indemnização civil correspondente ao valor do prejuízo do ofendido. O arguido interpõe recurso apenas contra a condenação penal, alegando que houve mero incumprimento de um contrato. Procedendo o recurso com o fundamento invocado, o tribunal de recurso deve absolver também do pedido de indemnização."

         Assim, tendo o arguido sido condenado por crime de homicídio por negligência, sob a forma de negligência grosseira, há que adaptar a condenação na indemnização devida tendo em consideração todos os aspectos acima descritos com uma diminuição da culpa e da ilicitude (vd. art.º 403.° do CPP citado).

   Ponderando que o pai contribuiu para o mencionado resultado (morte) ao expôr o seu filho a uma situação perigosa (o furto dos bens do estaleiro), "na sequência da prática por este de um ilícito violador do direito de propriedade alheia e de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, cometido pelo progenitor com intenção de eximir-se à acção das autoridades, em circunstâncias potenciadoras de um risco de lesão para o menor", sendo a indemnização atribuída por direito próprio, será a mesma reduzida proporcionalmente, segundo critérios de equidade e todos os elementos ponderados com base nos arts. 496°, n.º 3 e 494º do Código Civil, havendo que atender como critério de determinação equitativa para o equivalente económico dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima e pelos demandantes civis, titulares do direito a indemnização nos termos do n.o 2 do mencionado art. 496°, à natureza e intensidade do dano, ao grau de culpa, à situação económica do lesado, e ás "demais circunstâncias do caso" que o justifiquem.

         Considerando a idade da vítima e o tempo provável de vida desta, até aos 75 anos segundo as regras da experiência comum e esperança média de vida, e ainda, é razoável presumi-lo, presciência da morte, fixamos em € 40.000,00 (quarenta mil euros) a indemnização pela perda do direito à vida/dano-morte, e em € 5.000,00 (cinco mil euros) a compensação pelo sofrimento suportado antes da morte - vd. artigo 661 ° nº 1 do Código de Processo Civil.

         E ponderando a proporcionalidade do direito de indemnização dos pais do menor falecido respeitante ao "dano-morte" e aos danos morais sofridos pela vítima (seu filho) antes da morte, que terá de ter lugar nos termos acima expostos, considera-se adequado em condenar o arguido/demandado a pagar a título de indemnização por danos não patrimoniais ao BB o montante de 10.000,00 (dez mil euros), e a CC o montante de 35.000,00 (trinta e cinco mil euros).

         São devidos juros legais sobre as quantias indemnizatórias desde a notificação para contestar o pedido cível, tal como decidido na 1.ª instância (vd. art°s 78° nº 1, do Cód. de Proc. Penal e 805° nºs 2 aI. b) do Cód. Civil. - sendo o montante de juros de 4%, face ao disposto no art° 559º do Cód. Civil, em conjugação com a Portaria 291/03 de 08.04)”


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A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil. – artº 129º do C.Penal.

Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. - artº 483º nº 1 do C.Civil.

            Como se sabe, a indemnização deve ter carácter geral e actual, abarcar todos os danos, patrimoniais, e não patrimoniais, mas quanto a estes apenas os que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito e, quanto àqueles, incluem-se os presentes e futuros, mas quanto aos futuros só os previsíveis (arºs 562º, a 564º e 569º do Código Civil)

A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja essencialmente onerosa para o devedor e, (sem prejuízo do preceituado noutras disposições) tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos- artº 566º nºs 1 e 2 do CC.

            Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.

Diz o artigo 496º nº 1 do Código Civil que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito e, segundo o nº 3 do preceito, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artº 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior.

E, o artº 494º alude ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso justificativas.

            A expressão “em qualquer caso”, tanto abrange o dolo como a mera culpa (v. C.J. 1986, 2º, 233 e, Vaz Serra in Rev. Leg. Jur., 113º-96).

            Demais circunstâncias do caso é uma expressão genérica que se pretende referir a todos os elementos concretos caracterizadores da gravidade do dano, incluindo a desvalorização da moeda.

            Equidade não é sinónimo de arbitrariedade, mas sim, um critério para a correcção do direito, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto.

            A lei não dá qualquer conceito de equidade, mas, tem-se aceite a mesma como a consideração prudente e acomodatícia do caso, e, em particular, a ponderação das prestações, vantagens e inconvenientes que concorram naquele (v. Ac. do S.T.J. de 19-4-91 in A.J. 18º, 6)

            A indemnização por danos não patrimoniais tem por finalidade compensar desgostos e sofrimentos suportados pelo lesado,

            Por morte da vítima, o direito á indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos seus filhos ou outros descendentes;(…) –nº 2 do artº 496º.

            Como se escreveu no Acórdão do S.T.J. de 11 de Setembro de 1994 (in Col. Jur. Acs do S.T.J. ano II tomo III -1994 p. 92), “a indemnização por danos não patrimoniais, para responder, actualizadamente, ao comando do artº 496º do Cód. Civil e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa.

Por outro lado, o dano resultante da perda da vida, tem carácter autónomo e, a respectiva indemnização é transmissível.- v. Pereira Coelho, Sucessões, 1968, p. 143 e segs,- sendo este o entendimento comum da jurisprudência.

           

A indemnização devida pelo dano morte é transmissível, bem como, por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe em conjunto, cabe em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros descendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem – artº 496º nº 2 do Código Civil, sendo ainda indemnizáveis, por direito próprio, os danos não patrimoniais sofridos pelas pessoas referidas no preceito familiares da vítima, decorrentes, do sofrimento e desgosto que essa S.T.J. de 11 de Setembro de 1994 (in Col. Jur. Acs do S.T.J. ano II tomo III -1994 p. 92),

            Como se disse no Acórdão deste Supremo de 18 de Dezembro de 2007, in www.dgsi.pt,  a gravidade do dano deve medir-se por um padrão objectivo, e não de acordo com factores subjectivos, ligados a uma sensibilidade particularmente aguçada ou especialmente fria e embotada do lesado, e deve ser apreciada em função da tutela do direito: o dano deve ter gravidade bastante para justificar a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.

A indemnização, porque visa oferecer ao lesado uma compensação que contrabalance o mal sofrido, deve ser significativa, e não meramente simbólica, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de “compensação”.

O dano da morte é o prejuízo supremo, é a lesão de um bem superior a todos os outros.

Quanto ao dano morte, como referia o Acórdão deste Supremo de 27-09-2007, in www.dgsi.pt, sabe-se que a vida é o bem mais precioso da pessoa que ele não tem preço, porque é a medida de todos os preços, e que a sua perda arrasta consigo a eliminação de todos os outros bens de personalidade.

            À míngua de outro critério legal, na determinação do concernente quantum compensatório importa ter em linha de conta, por um lado, a própria vida em si, como bem supremo e base de todos os demais.

            E, por outro, conforme os casos, a vontade e a alegria de viver da vítima, a sua idade, a saúde, o estado civil, os projectos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia a dia, designadamente a sua situação profissional e sócio-económica.        

           

            Relativamente à invocada Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio, não pode esquecer-se, como consta do seu preâmbulo, que se trata de “critérios para os procedimentos de proposta razoável, em particular quanto à valorização do dano corporal.

            Parte significativa das soluções adoptadas nesta portaria baseia -se em estudos sobre a sinistralidade automóvel do mercado segurador e do Fundo de Garantia Automóvel e na experiência partilhada por este e pelas seguradoras representadas pela Associação Portuguesa de Seguradores, no domínio da regularização de processos de sinistros.”

Finalidade esta repetida pelo preâmbulo da  Portaria n.º 679/2009 de 25 de Junho que veio alterar aquela, referindo também que “Com a publicação da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, o Governo fixou, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 39.º do Decreto -Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, os critérios e valores orientadores, para efeitos de apresentação aos lesados por sinistro automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal.”

            Na verdade, o artigo 1º da Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio descreve o seu objecto:

1 — Pela presente portaria fixam -se os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, nos termos do disposto no capítulo III do título II do Decreto -Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

E, o nº 2 do preceito expressamente consagra que: As disposições constantes da presente portaria não afastam o direito à indemnização de outros danos, nos termos da lei, nem a fixação de valores superiores aos propostos

            Como resulta da mesma Portaria, “o regime relativo aos prazos e as regras de proposta razoável, agora também aplicáveis ao dano corporal, exige o apoio de normativos específicos que evidenciem, com objectividade, a transparência e justiça do modelo no seu conjunto e sejam aptos a facilitar a tarefa de quem está obrigado a reparar o dano e sujeito a penalizações, aliás significativas, pelo incumprimento de prazos ou quando for declarada judicialmente a falta de razoabilidade na proposta indemnizatória.”

A Portaria, tem pois um âmbito institucional específico de aplicação, extrajudicial, sendo que, por outro lado, e, pela natureza do diploma que é, não revoga nem derroga lei ou decreto-lei, situando-se em hierarquia inferior, pelo que o critério legal necessário e fundamental, em termos judiciais, é o definido pelo Código Civil.


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Ora tendo em conta a idade da vítima, nascida em 9 de Abril de 1979, e que DD nascido em 2 de Janeiro de 1995, era filho dos demandantes civis BB e CC, a jurisprudência actual deste Supremo, que os factos ocorreram em Agosto de 2008,  e que, como vem provado:

Como consequência necessária e directa dos disparos realizados pelo arguido AA, o menor DD, nascido a 02/01/1995, que seguia sentado no banco frontal, do lado direito da viatura perseguida, veio a ser atingido por um projéctil disparado pela arma do arguido, que penetrou no tronco pela região dorso-lombar esquerda, seguiu um trajecto orientado da esquerda para a direita, de baixo para cima e paralelo ao plano frontal, e saiu pela região escapular direita.

A entrada de tal projéctil no corpo da vítima provocou-lhe uma ferida perfuro-contundente orificial, de contorno circular com 0,8 cm de diâmetro, rodeado de orla de contusão excêntrica nos quadrantes inferior - 03 cm de largura, que dista 11 cm da linha média - ferida de entrada de projéctil de arma de fogo e uma ferida perfuro-contundente orificial, na região do ângulo externo da omoplata direita, de contorno oval, com 1xO,5 cm, de maior eixo oblíquo para baixo e para a direita - ferida de saída de projéctil de arma de fogo, bem como, ao nível interno, quatro feridas perfuro- contundentes transfixivas.

As graves lesões traumáticas torácicas descritas foram causa directa e necessária da morte do ofendido DD. Efectivamente um dos projécteis saídos da arma disparada pelo arguido AA entrou na viatura pela porta traseira, evoluiu através do compartimento de carga, entrou na face posterior do banco sensivelmente entre o lugar central e o lugar direito, saiu pela face anterior, atingiu o menor DD entrando na zona dorso-lombar esquerda, e saindo na região do ângulo externo da omoplata direita,

        

         Tendo ainda em conta que

O arguido AA sabia que dentro da viatura em fuga seguiam pelo menos dois cidadãos, bem sabendo também que da sua conduta, traduzida na efectivação de vários disparos com a citada arma de fogo em direcção à viatura perseguida, poderiam resultar danos físicos graves, ou mesmo a morte de pelo menos um desses indivíduos. Não obstante, levou por diante esta sua determinação de fazer imobilizar tal viatura com recurso a arma de fogo, apesar de ter plena consciência dos riscos que esta sua decisão acarretava, e que eram passíveis de pôr em risco a vida e integridade física do condutor e demais ocupantes da viatura perseguida, com consequências de natureza trágica, concretamente a morte de DD, resultado com o qual, todavia, não se conformou Efectivamente, o arguido sabia que ambas as viaturas - aquela em que seguia e a viatura perseguida - circulavam em linha recta, sensivelmente junto ao eixo da via, em velocidade desadequada, tendo em conta a distância de intervalo entre as mesmas - menos de 2,50 metros - e as características da via.

Sabia, de resto, o arguido AA que dentro da viatura em fuga se transportavam pelo menos dois indivíduos, e que a sua formação em tiro não lhe garantia o êxito desta sua decisão, e que estas circunstâncias não lhe garantiam o uso seguro e adequado que é exigido para a utilização de armas de fogo.

O arguido AA tinha pleno conhecimento do quadro legal do recurso ao uso de armas de fogo, bem conhecendo, igualmente, as características técnicas da citada arma, de marca Walther, que disparou nas circunstâncias anteriormente descritas, e conhecia, também, as possíveis consequências que poderiam advir da utilização de tal arma de fogo, nas reais circunstâncias verificadas, já que nunca recebera qualquer tipo de treino de disparo de armas de fogo em movimento sobre veículos, também eles, em movimento.

Nem tão pouco foi ameaçado na sua integridade física por tais indivíduos em momento imediatamente prévio à utilização da citada arma de fogo.

 Apesar da inexistência dessas ameaças, o arguido AA absteve-se de recorrer à utilização de qualquer meio coercivo menos perigoso, não atribuindo suficiente relevância ao facto de ter solicitado apoio a outras patrulhas da GNR, que aliás chegaram ao local de imobilização da viatura perseguida logo de seguida, circunstância essa que, certamente, proporcionaria uma abordagem e intercepção mais seguras, tendo em conta o maior número de meios materiais e humanos envolvidos.

Tendo também em conta que,

o arguido AA deu ordem de paragem ao condutor do veículo de cor branca e colocou a mão direita em cima do coldre, onde estava guardada a sua arma de serviço.

O condutor da carrinha, o arguido BB, não acatou a ordem de paragem que lhe foi dada pelo guarda AA, não imobilizou o veículo que conduzia, e continuou a marcha da viatura na direcção da pessoa daquele.

O arguido BB apercebeu-se das indicações e, apesar disso, prosseguiu a marcha e dirigiu a viatura na direcção do arguido AA, guarda da GNR que, na iminência de ser atropelado e para evitar que tal acontecesse, recuou e lançou-se para cima do capot do veículo da GNR, rebolando por cima deste.

Em consequência de tal embate com o veículo, o militar AA sofreu lesões no hemitorax esquerdo, no ombro esquerdo e membro superior esquerdo, susceptíveis de provocar cinco dias de doença, sem incapacidade profissional.

Dessa forma, os ocupantes da carrinha conseguiram fugir do local no interior do veículo ...-DA, prosseguindo pela estrada de terra batida que dá acesso à Quinta do ..., na direcção de Santo Antão do Tojal.

O arguido AA entrou no veículo da GNR, ocupando o anterior lugar ao lado do condutor, e os guardas da GNR iniciaram, então, uma perseguição ao veículo em fuga.

Nesse momento, o arguido accionou os sinais de emergência existentes no veículo, nomeadamente os pirilampos e sirene, esta no volume mais elevado, com o intuito de mandar parar a viatura em fuga e solicitou, via rádio, o apoio de outras viaturas policiais.

A perseguição ao veículo ...-DA prolongou-se por cerca de 1000 metros, circulando as duas viaturas em artérias estreitas do Bairro Residencial dos Lóios, em Santo Antão do Tojal, - vg Rua Eça de Queirós, Rua dos Lóios, Praceta dos Lóios, Rua Martinho Ferreira, Rua Padre Américo.

Durante esse percurso ambos os condutores circularam em velocidade não apurada, mas manifestamente desadequada, face às características daquelas artérias e à condução praticada pelos dois citados condutores.

A viatura em fuga circulava aos ziguezagues, ocupando parcialmente as duas hemi-faixas de rodagem, particularmente nas curvas.

O veículo da GNR só conseguiu alcançar a viatura em fuga, posicionando-se a cerca de 5 a 10 metros desta, junto à curva que liga a Praceta dos Lóios à Rua Martinho Ferreira, um pouco antes dos tanques municipais ali existentes.

O arguido BB actuou utilizando o veículo que conduzia pelo modo supra mencionado, a fim de impedir que o guarda AA, militar da GNR que o interpelou, praticasse actos relativos ao exercício das suas funções, apesar de saber que se tratava de agente de autoridade, no exercício das suas funções.

O arguido BB quis também conduzir o identificado veículo, bem sabendo que o mesmo se encontrava apreendido, pelo que não o podia utilizar, o que veio a fazer, sabendo que desobedecia a uma ordem.

Sendo que cada um dos arguidos agiu de modo voluntário e consciente, bem sabendo serem as suas respectivas condutas proibidas por lei.

 

Tendo também ainda em conta a fundamentação constante da decisão recorrida, nomeadamente que “tendo o arguido sido condenado por crime de homicídio por negligência, sob a forma de negligência grosseira, há que adaptar a condenação na indemnização devida tendo em consideração todos os aspectos acima descritos com uma diminuição da culpa e da ilicitude (vd. art.º 403.° do CPP citado), ponderando que o pai contribuiu para o mencionado resultado (morte) ao expor o seu filho a uma situação perigosa (o furto dos bens do estaleiro), "na sequência da prática por este de um ilícito violador do direito de propriedade alheia e de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, cometido pelo progenitor com intenção de eximir-se à acção das autoridades, em circunstâncias potenciadoras de um risco de lesão para o menor"

Conclui-se, por todo o exposto, que, face à discordância dos recorrentes perante ao quantum indemnizatório decidido na Relação perante o limite condenatório, estabelecido na 1ª instância, importa antes de mais, estabelecer o grau de culpabilidade, no desenrolar das contas para efeitos indemnizatórios, e, assim, pela factualidade provada, atribui-se ao demandante Sandro, o grau de culpa de oitenta por cento, fixando-se em vinte por cento, a proporção da culpa do arguido, na concorrência de ambos para a produção do evento letal.

Fixada que se encontra a indemnização de cinco mil euros por danos não patrimoniais sofridos pela vítima menor antes da morte, que não vem questionada, entende-se por justo, fixar em cinquenta mil euros a indemnização devida pela perda do direito à vida, o dano morte.

         Ponderando a quantia global, e a proporcionalidade da fracção indemnizatória a atribuir a cada um dos progenitores demandantes, atentas as razões assinaladas na decisão recorrida, com apoio na matéria de facto provada, e as proporções fixadas, é de atribuir ao  demandante BB a quantia global indemnizatória de onze mil euros, e de atribuir à demandante CC, a quantia indemnizatória global de quarenta e quatro mil euros.


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         Termos em que decidindo

         Acordam os juízes deste Supremo – 3º Secção – em dar parcial provimento ao recurso, e consequentemente, fixam o valor de indemnização pelo dano morte da vítima, em cinquenta mil euros.

Em consequência, de harmonia com a proporcionalidade supra fixada, condenam o arguido a pagar ao demandante BB a indemnização global de onze mil euros, e à demandante CC, a indemnização global de quarenta e quatro mil euros, relativamente ao dano resultante da perda de vida, (dano morte), e aos danos não patrimoniais sofridos pela vitima, antes da morte, a que acrescem os juros legais desde a notificação para contestar o pedido cível.

         Custas pelos recorrentes na proporção do decaimento.

        

         Supremo Tribunal de Justiça, 3 de Dezembro de 2014

                                               Elaborado e revisto pelo relator

                                               Pires da Graça (Relator)

                                               Raul Borges