Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4630/17.3T8FNC-A.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LEGALIDADE
CASA DE MORADA DA FAMÍLIA
CAUSA DO DIVÓRCIO SEM O CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO / ARRENDAMENTO DE PRÉDIOS URBANOS / DISPOSIÇÕES ESPECIAIS DO ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO / TRANSMISSÃO – DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / DIVÓRCIO E SEPARAÇÃO JUDICIAL DE PESSOAS E BENS / DIVÓRCIO / EFEITOS DOS DIVÓRCIO / ALIMENTOS / DISPOSIÇÕES ESPECIAIS.
Doutrina:
- Nuno de Salter Cid, Código Civil Anotado, Livro IV – Direito da Família, no prelo, Coimbra, Almedina.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 9.º, N.º 1, 1105.º, N.º 2, 1793.º, N.º 1 E 2016.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 27-05-2008, PROCESSO N.º 08B1203;
- DE 20-01-2010, PROCESSO N.º 701/06.0TBETR.P1.S1;
- DE 16-03-2017, PROCESSOS N.º 1203/12.0TMPRT-B.P1.S1;
- DE 25-05-2017, PROCESSO N.º 945/13.8T2AMD-A.L1.S1;
- DE 16-11-2017, PROCESSO N.º 212/15.2T8BRG-A.G1.S2, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Nos processos de jurisdição voluntária, como é o caso do de atribuição de casa de morada da família, cabe no âmbito dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça a apreciação da aplicação e interpretação dos critérios normativos pertinentes para a decisão.

II – A redação da norma do art. 1105.º, n.º 2, do CC (“Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes”), encontra-se, atualmente, muito próxima daquela do art. 1793.º, n.º 1, do mesmo corpo de normas (“Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer essa seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”).

III - O art. 1105.º, n.º 2, procura, mediante uma enumeração meramente exemplificativa, indicar os critérios a ter em conta na transmissão ou concentração a favor de um dos cônjuges do direito ao arrendamento da casa de morada de família.

IV - No caso de paridade da necessidade de cada um dos cônjuges – circunstâncias patrimoniais e económicas semelhantes - e na ausência de filhos cujo interesse haja assim que proteger, deve atender-se a “outros fatores relevantes”.

V - São, inter alia, atendíveis, a idade, a possibilidade de trabalho e a (im)possibilidade de um dos cônjuges dispor de outra casa em que possa residir sem beneficiar da mera tolerância de terceiros.

VI - Deve também levar-se em consideração o comportamento pretérito de cada um dos cônjuges em relação ao outro, designadamente a conduta que se consubstancie na causa da rutura definitiva do casamento, que constitua fundamento do divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges. A ponderação do elemento sistemático da interpretação da lei (contexto da lei: art. 2016.º, n.º 3), nos termos do art. 9.º, n.º 1, conduz a este resultado.

Decisão Texto Integral:

Processo n.° 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1

1.ª Secção

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,

I – Relatório
1. AA, por apenso a ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge identificado supra e nos termos do art. 990.°, do C.P.C, e do art. 1105.°, do C.C., intentou, no Tribunal de Família e Menores do Funchal, a presente ação para atribuição da casa de morada de família contra BB, peticionando que lhe seja atribuída a casa de morada de família onde o requerido hoje reside no "Conjunto Habitacional de …", …, bloco "…", apartamento 1D, 0000 - 000 …l.
2. Para o efeito, alegou que a fração habitada pelo casal é propriedade do "Instituto da Habitação da …", sendo o arrendamento atribuído à Requerente, que é quem suporta todas as despesas relativas a consumos domésticos, mesmo após haver saído dessa casa, em virtude da conduta do Requerido, e ter passado a residir com a sua irmã, em habitação que não reúne as condições necessárias.
3. Realizada a conferência prevista no art. 990.º, n.º 2, do C.P.C., não foi possível a obtenção de acordo, tendo o Requerido sido notificado para deduzir oposição.
4. O Requerido pugnou pela improcedência do pedido e requereu lhe seja atribuída a si a casa de morada da família, alegando não dispor de meios económicos para comprar ou tomar de arrendamento outra casa. Invocou que muito diferentemente de si, que não tem nem apoio familiar e nem outro qualquer na Região Autónoma …, a Requerente dispõe de mais possibilidades habitacionais, inclusivamente daquela de residir com a sua irmã. Sustentou ainda não existir qualquer obstáculo ao regresso da Requerente à casa de morada de família.
5. Foram juntos documentos pela Requerente e pelo Requerido e solicitadas informações pelo Tribunal a respeito da situação socioeconómica de cada um deles. Cumpriu-se o contraditório devido.
6. Finda a instrução do processo, foi proferida sentença que julgou o incidente e a oposição improcedentes por não provados:
“Perante estes factos apurados forçoso é de concluir que a necessidade ou premência da necessidade da casa de morada da família pela Requerente não é superior à do Requerido, nem a deste superior à daquela.
Efectivamente, e pese embora a circunstância de a Requerida custear as despesas da casa poderá deixar de fazê-lo, as partes não têm residência alternativa, e as condições económicas de ambos são frágeis não sendo a diferença remuneratória entre ambos suficientemente assinalável em moldes que permitam concluir que um deles esteja em melhores condições de providenciar por uma nova habitação com os inerentes custos.
Pelo exposto, impõe-se concluir pela improcedência do peticionado por ambos”.

7. A Requerente interpôs recurso de apelação dessas sentença e o Requerido interpôs recurso subordinado.
8. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu o seguinte acórdão:
“Pelo exposto, acorda-se em julgar nos seguintes termos:
a) Improcede a apelação principal da Recorrente no sentido de ser proferida sentença que atribua a casa de morada de família à Requerente;
b) Procede o recurso subordinado do Recorrido no sentido de ser proferida sentença que julgue procedente o pedido de atribuição da casa de morada de família ao Requerido;
c) Em conformidade, revogamos a sentença recorrida e substituímos a mesma pela decisão de manter apenas a absolvição do Requerido do pedido formulado na petição inicial e julgando procedente do pedido formulado na oposição, decide-se assim atribuir a casa de morada de família ao Requerido, no qual se concentrará o direito ao arrendamento, nos termos do Art. 1105.° n.° 2 do C.C.,devendo oportunamente ser cumprido o disposto no n.° 3 do mesmo preceito.
- Custas pela Apelante (Art. 527° n.° 1 do C.P.C), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe tenha sido concedido.”

9. Irresignada, a Requerente interpôs recurso de revista, apresentando as seguintes Conclusões:
A) “No douto acórdão a quo os fundamentos invocados para atribuição da casa de morada de família ao recorrido são, no mínimo, inconsistentes e sem qualquer base factual.
B) Com efeito, não é verdade que "«Requerente ganha uma vez e meia mais do que o seu marido", pois na verdade aquela apenas ganha mais £ 218,16 por mês que este.
C) Sendo certo que, como se verá adiante, não é esse diferencial que in
casu
justifica uma maior premência da necessidade da casa de morada de
família para o requerido e ora recorrido. Antes pelo contrário.

D) E, nesta parte, nem poderá valer o argumento de que o rendimento da
requerente é
"certo e seguro, ao contrário do que parece suceder com o
Apelado",
pois o que releva é a situação actual dos litigantes e não
hipotéticas situações futuras, de cariz claramente especulativo e
inconsistente.

E) Aliás, a entender-se o contrário, também se poderia concluir que o recorrido, tendo 61 anos e estando no activo, sempre poderá ver a sua situação financeira melhorada, quer arranjado outro trabalho mais bem remunerado, quer cumulando outro trabalho com o seu actual, quer até evoluindo cm termos remuneratórios dentro do seu actual trabalho e sem esquecer o rendimento extra que sempre poderá retirar por prestação de trabalho suplementar.
F) O que no caso da recorrente, com 67 anos de idade e estando reformada, muito dificilmente ocorrerá.
G) Por outro lado e relativamente ao argumento de que "o Requerido não tem qualquer possibilidade de recorrer a auxílio familiar na Região Autónoma …”' para satisfazer as suas necessidades habitacionais, a sua inconsistência ainda é maior, pois, conforme referido no próprio acórdão a quo e provado nos autos, a. recorrente, em Junho último, passou a residir na casa de sua irmã, temporariamente, uma vez que o imóvel consubstancia-se num apartamento tipologia T2, onde, além da requerente e sua irmã, reside um neto destas. Tendo a requerente que partilhar o quarto e até a cama com a sua irmã sem quaisquer condições de privacidade (vide pontos 5a a 8o dos factos provados)
H) Mais, conforme também provado nos autos o citado apartamento é propriedade dos …, … e o agregado familiar ocupante autorizado é constituído apenas pela irmã da requerente e pelo seu neto (vide ponto I Io dos factos provados).
I) Assim, não é só o recorrido que não dispõe de apoio familiar para fazer face às suas necessidades habitacionais, pois o único apoio familiar de que a recorrente dispõe e acima referido é precário e temporário. Estando, pois e nessa parte, os litigantes em situação idêntica.
J) Por sua vez, o argumento da proximidade ao local de trabalho apenas será atendível quando a perda da casa de morada de família possa implicar um agravamento da situação de um dos litigantes, quer seja através de acréscimos de despesas de transporte, quer seja através de dificuldades de deslocação.
K) Ora, no caso sub judice e conforme provado nos autos, a casa de morada de família não se localiza próximo do local de trabalho do recorrido e o recorrido, apesar de dispor de veículo próprio, desloca-se diariamente para o seu local de trabalho utilizando transportes públicos.
L) Pelo que, quanto muito, a ser-lhe retirada a casa de morada de família, a sua situação manter-se-ia idêntica, pois teria de utilizar transportes públicos para se deslocar para o seu trabalho. Aliás, até poderia melhorar, caso conseguisse residência próxima do seu local de trabalho.
M) De resto, estando em causa um imóvel situado na cidade do … e atenta a pouca dimensão geográfica desta, sempre esse critério seria irrelevante.
N) É, pois, por demais evidente que o argumento da proximidade ao local de trabalho é in casa inócuo e completamente irrelevante.
O) Resta, pois, a diferença dos rendimentos entre os litigantes, designadamente € 218, 16 mensais, como argumento invocado para atribuição da casa de morada de família ao recorrido.
P) Aqui, importa atender que nos tempos que correm, uma pessoa normal, para fazer face às suas despesas do dia a dia, seja com alimentação, vestuário, transporte, despesas médicas e medicamentosas, bem como despesas inerentes à fruição de uma moradia (electricidade, água, luz, ele), nunca gastará menos de € 400 por mês, e, por outro lado» atento o mercado de arrendamento actual, na cidade do Funchal, ou até arredores, ainda que se trate de um imóvel tipologia TO, a respectiva renda muito dificilmente será inferior a £ 400 mensais.
Q) Perante estes factos, que são notórios e públicos, é fácil de concluir que qualquer um dos ora litigantes, atentos os respectivos rendimentos, muito conseguirão arranjar outra residência com condições mínimas de habitabilidade e dignidade.
R) Ora, para efeitos do disposto no artigo 1.105°, n.° 2 do Código Civil, relativamente à transmissão do arrendamento da casa de morada de família, o que releva, em primeiro lugar, é a premência da necessidade da casa de morada de família de cada um e os interesses dos seus filhos.
S) Assim e ao contrário do que se retira do acórdão a quo, a diferença da premência da necessidade da casa de morada de família não se mede apenas pela diferencial, qualquer que seja o valor, dos rendimentos das partes, antes pela verificação de que a satisfação da necessidade de habitação poderá ser mais facilmente conseguida por uma das partes.
T) O que manifestamente não acontece in casu, pois atentos os rendimentos dos litigantes e os preços do mercado de arrendamento actualmente a serem praticados, é da mais elementar justiça concluir que quer a recorrente, quer o recorrido, muito dificilmente conseguirão, pelos seus próprios meios, satisfazer essa necessidade habitação.
U) Aliás, por muito estranho que pareça, a verdade é que à ora recorrente será mais difícil satisfazer essa necessidade, pois, sendo quase certo que a cada um dos litigantes restará, em caso de perda da casa de morada família sub judice, solicitar nova habitação junto do …, …, o recorrido mais facilmente verá satisfeito o seu pedido face ao seu rendimento inferior.
V) Assim, conforme doutrina e a jurisprudência dominantes, é patente que, in casu, atenta a ausência de critérios inerentes às necessidades de habitação de ambos os litigantes, ter-se-á de relevar outros factores, tidos por secundários, para atribuição da casa de morada de família, incluindo a culpa no divórcio.
W) Pelo exposto, face à similitude in casu das necessidades de ambos os litigantes numa habitação e relevando-se os tais factores secundários, designadamente a culpa do recorrido na ruptura na comunhão conjugal, deverá, atento o princípio da equidade, ser atribuída a casa de morada de família sub judice à ora recorrente.
X) Revogando-se, em consequência, o douto acórdão recorrido, porquanto violador do disposto no artigo 2o, n,° l, ex vi artigo 990º, ambos do CPC c artigo 1105° do Código Civil.”

II – Questões a decidir
Nos termos dos arts. 635.°, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC, as conclusões delimitam o objeto do recurso. O Tribunal não pode conhecer de questões novas, que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões já proferidas.

III - Fundamentação
A) De Facto

Foram considerados como provados os seguintes factos:
“1.º Na Conservatória do Registo Civil …, sob o assento n.° 002 de 1978, terem Requerente e Requerido contraído casamento entre si, no regime imperativo de separação de bens, no dia 8 de Julho de 1978, tendo a cônjuge mulher adotado os apelidos "…";
2.° Por sentença de 23 de Janeiro de 2018, não transitada em julgado, foi decretado o divórcio entre Requerente e Requerido;
3.° Algum tempo após o casamento, ambos os litigantes passaram a residir numa fração autónoma sita no "Conjunto Habitacional de …", …, bloco "…", apartamento ID, 0000 - 000 …, a qual passou a constituir a casa de morada de família até a presente data.
4.° A referida fração autónoma é propriedade do "Instituto da Habitação …" e encontra-se atribuída a Requerente e Requerido, pagando a primeira mensalmente uma renda de € 33,63.
5.° No início de Julho último, a Requerente teve de sair da casa de morada de família passando a residir na casa de uma sua irmã, CC, sita no …, Rua …, 0000 - 000 ….
6.° Fazendo-o temporariamente, uma vez que o imóvel consubstancia-se num apartamento tipologia T2.
7.° No mesmo, além da requerente e da sua irmã, reside ainda um neto desta última.
8.° Tendo a requerente que partilhar o quarto e até a cama com a sua irmã sem quaisquer condições de privacidade.
9.° Apesar de se encontrar a residir provisoriamente na casa da sua irmã, continua a ser a requerente a pagar, na íntegra e em exclusivo, todas as despesas inerentes à casa de morada de família, nomeadamente renda, luz, água, etc.
10.° O Requerido não tem aqui na R.A.M qualquer familiar que lhe possa dar guarida, nunca o poderia fazer, visto que é Continental, nascido no concelho de …, …, na região ….
11.° A fração descrita em 5.° é propriedade dos …, … e o agregado familiar ocupante autorizado é constituído apenas pela irmã da Requerente e pelo seu neto.
12.° A Requerente é beneficiária de pensão de reforma no montante mensal €639,47;
13.° O Requerido aufere o montante mensal de €421,31.”


B) De Direito
1. De acordo com o art. 990.º, do CPC, o processo de atribuição da casa de morada da família é um processo de jurisdição voluntária (arts. 986.º e ss, do CPC).
2. Tratando-se de um processo de jurisdição voluntária, os critérios de conveniência e de oportunidade prevalecem sobre os de legalidade estrita.  Segundo o art. 987.º, do CPC, “nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna”.
3. Importa, pois, levar em linha de conta as normas dos arts. 986.º-988.º e 990.º, do CPC. Tratando‑se de um processo de jurisdição voluntária, o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, sendo apenas admitidas as provas que o juiz considere necessárias (art. 986.º, n.º 2, do CPC); o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita (art. 987.º, do CPC); as resoluções estão sujeitas à cláusula rebus sic stantibus  (art. 988.º, n.º 1, do CPC); e não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade (art. 988.º, n.º 2, do CPC).
4. O sentido e alcance da proibição legal de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça têm vindo a ser esclarecidos em termos uniformes pela respetiva jurisprudência[1]. Segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de maio de 2017 (Tomé Gomes), proc. n.º 945/13.8T2AMD-A.L1.S1:
“Significa isto que, sendo as providências de jurisdição voluntária tomadas com a predominância de critérios de conveniência ou oportunidade sobre os critérios de estrita legalidade, delas não caberá também, em princípio, recurso de revista.
Com efeito, na esfera da tutela de jurisdição voluntária, em que se protegem interesses de raiz privada mas, além disso, com relevo social e alcance de interesse público, são, por isso, conferidos ao tribunal poderes amplos de investigação de factos e de provas (art.º 986.º, n.º 2, do CPC), bem como maior latitude na determinação da medida adequada ao caso (art.º 987.º do CPC), em derrogação das barreiras limitativas do ónus alegatório e da vinculação temática ao efeito jurídico especificamente formulado, estabelecidas no âmbito dos processos de natureza contenciosa nos termos dos artigos 5.º, n.º 1, 260.º (quanto ao pedido e causa de pedir) e 609.º, n.º 1, do CPC. 
É, pois, tal predomínio de oficiosidade do juiz sobre a atividade dispositiva das partes, norteado por critérios de conveniência e oportunidade em função das especificidades de cada caso, sobrepondo-se aos critérios de legalidade estrita, que justifica a supressão de recurso para o tribunal de revista, vocacionado como é, essencialmente, para a sindicância da violação da lei substantiva ou processual, nos termos do artigo 674.º e 682.º, n.º 3, do CPC.          
Foi nesse sentido que, no acórdão do STJ, de 20/01/2010, proferido no processo n.º 701/06.0TBETR.P1.S1[1], se observou o seguinte:
«Explica-se desta forma que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal especialmente encarregado de controlar a aplicação da lei, substantiva (…) ou adjectiva (…), não possa, nos recursos interpostos em processos de jurisdição voluntária, apreciar medidas tomadas segundo critérios de conveniência e oportunidade, ao abrigo do disposto no artigo 1410.º [atual 987.º] do CPC. Com efeito, a escolha das soluções mais convenientes está intimamente ligada à apreciação da situação de facto em que os interessados se encontram; não tendo o Supremo Tribunal de Justiça o poder de controlar a decisão sobre tal situação (…), a lei restringe a admissibilidade de recurso até à Relação.»                                                                                                                                                                                                                                                                                                       
No entanto, na interpretação daquela restrição de recorribilidade, importa ter em linha de conta que, em muitos casos, a impugnação por via recursória não se circunscreve aos juízos de oportunidade ou de conveniência adotados pelas instâncias, mas questiona a própria interpretação e aplicação dos critérios normativos em que se baliza tal decisão.
Assim, quando, no âmbito das próprias decisões proferidas em processos de jurisdição voluntária, estejam em causa a interpretação e aplicação de critérios de legalidade estrita, já a sua impugnação terá cabimento em sede de revista, circunscrita ao invocado erro de direito. 
Como se ressalva no aresto do STJ de 20/01/2010 acima citado, a propósito da inadmissibilidade de revista nos referidos processos: 
«A verdade, todavia, é que esta limitação não implica a total exclusão da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça nestes recursos; apenas a confina à apreciação das decisões recorridas enquanto aplicam a lei estrita. É nomeadamente, o que se verifica, quer quanto à verificação dos pressupostos, processuais ou substantivos, do poder de escolher a medida a adoptar, quer quanto ao respeito do fim com que esse poder foi atribuído.
[…]
Tratando-se de pressupostos legais imperativamente fixados para que o juiz possa ponderar da conveniência e da oportunidade de decretar a medida que lhe foi requerida, cabe no âmbito dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça (…) a apreciação da respectiva verificação.»   
Em conformidade com tal entendimento, quanto ao essencial, na linha da jurisprudência seguida por este Supremo Tribunal [2] haverá que ajuizar sobre o cabimento e âmbito do recurso de revista das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária de forma casuística, em função dos respetivos fundamentos de impugnação, e não com base na mera qualificação abstrata de resolução tomada segundo critérios de conveniência ou de oportunidade.”

5. Afigura-se que a questão em apreço no presente recurso se reporta à interpretação e aplicação de critérios normativos e não tanto a juízos de conveniência e de oportunidade. Por isso, deve ser conhecida pelo Supremo Tribunal de Justiça, que não está assim impedido de sindicar a decisão adotada no acórdão do Tribunal da Relação Lisboa.
6. Com efeito, trata-se da questão de se saber se o Tribunal da Relação de Lisboa interpretou e aplicou (in)corretamente a norma do art. 1105.º, n.º 2, do Cód. Civil (“Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes”), cuja redação se encontra atualmente muito próxima daquela do art. 1793.º, n.º 1, do mesmo corpo de normas (“Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer essa seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”).
7. O art. 1105.º, n.º 2, do Cód. Civil, procura, mediante uma enumeração meramente exemplificativa – e não taxativa -, indicar os critérios a ter em conta na transmissão ou na concentração a favor de um dos cônjuges do direito ao arrendamento da casa de morada de família.
8. O preceito refere, pois, a título meramente exemplificativo, a necessidade de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos.
9. Na apreciação da necessidade de cada um dos cônjuges, considera-se a situação patrimonial de cada um deles.  In casu, a situação patrimonial do cônjuge marido e a situação patrimonial do cônjuge mulher revelam-se muito semelhantes. Pode, com efeito, dizer-se, no que respeita à necessidade, que a Recorrente e o Recorrido se encontram em circunstâncias semelhantes. A diferença de valor entre o rendimento mensal auferido por cada um dos cônjuges não é relevante para o efeito da atribuição da casa de morada da família, não permitindo, só por si, decidir sobre a respetiva atribuição a um ou a outro. De facto, ambos se deparam com grandes dificuldades para fazer face às suas necessidades de vida – designadamente as de natureza habitacional, mediante o arrendamento de imóvel para habitação segundo as rendas correntes - apenas com o rendimento que auferem. Note-se, nesta sede, que a circunstância de auferir um rendimento mensal um pouco inferior ao do cônjuge mulher seria suscetível de consentir ao cônjuge marido obter habitação social com mais facilidade do que àquele.
10. Por outro lado, a nenhum dos cônjuges foram confiados filhos cujo interesse se deva, por este modo, acautelar.
11. Assim, no caso de paridade da necessidade de cada um dos cônjuges – circunstâncias patrimoniais e económicas semelhantes - e na ausência de filhos cujo interesse haja assim que proteger, deve atender-se a “outros fatores relevantes”, conforme o art. 1105.º, n.º 2, do Cód. Civil.
12. São, inter alia, atendíveis, a idade, a possibilidade de trabalho – estes fatores relevam ainda no âmbito da determinação da necessidade - e a (im)possibilidade de um dos cônjuges dispor de outra casa em que possa residir sem beneficiar da mera tolerância de terceiros. No caso sub judice, o Recorrido é seis anos mais novo do que a Recorrente e tem aptidão/possibilidade de trabalhar. A Recorrente, por seu turno, é pensionista de reforma. Acresce que a casa da irmã da Requerente, onde esta se tem abrigado, não reúne as condições nem “regulamentares” e nem materiais para que o cônjuge mulher lá se mantenha. Nem tão pouco a sua irmã se encontra obrigada a mantê-la em sua casa e companhia, pelo menos nas circunstâncias atuais. A Requerente tem apenas beneficiado da mera tolerância de sua irmã.
13. No âmbito do art. 1105.º, n.º 2 (“outros factores relevantes”), deve também levar-se em consideração o comportamento pretérito de cada um dos cônjuges em relação ao outro, designadamente a conduta que se consubstancie na causa da rutura definitiva do casamento, que constitua fundamento do divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges[2]. A ponderação do elemento sistemático da interpretação da lei (contexto da lei: art. 2016.º, n.º 3, do Cód. Civil), nos termos do art. 9.º, n.º 1, do Cód. Civil, conduz a este resultado.
14. De acordo com a sentença proferida no processo de divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges, identificado supra:
“Nos presentes autos ressalta à saciedade que a vida do R. durante pelo menos os últimos quinze anos do período de coabitação conjugal, se reconduzia ao consumo de bebidas alcoólicas com excesso, à errância (não exercia qualquer actividade laboral) e ao desmando, agredindo a Autora física (desferiu um murro no braço da Autora) e verbalmente (desmandando-a de “puta do caralho” e atribuindo-lhe relações extramatrimoniais.
Tal circunstancialismo é subsumível à violação do dever de respeito, sendo que é comprometedor da possibilidade da vida em comum e revelador de uma ruptura definitiva do casamento, tal como este deverá ser assumido por ambos os cônjuges durante toda a sua vigência”.


15. O Tribunal a quo não respeitou, pois, os critérios normativos plasmados no art. 1105.º, n.º 2, do Cód. Civil, adotando medidas concretas sindicáveis pelo Supremo Tribunal de Justiça.
16. Assiste razão à Recorrente.

IV- Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o acórdão recorrido e atribuindo-se à Recorrente a casa de morada da família.

Custas pelo Recorrido, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.

Lisboa, 17 de dezembro de 2019

Maria João Vaz Tomé - Relatora


António Magalhães


Jorge Dias

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[1] Cfr. acórdão de 27 de maio de 2008 (Maria dos Prazeres Beleza), proc. n.º 08B1203; acórdão de 20 de janeiro de 2010 (Lopes do Rego), proc. n.º 701/06.0TBETR.P1.S1; acórdão de 16 de março de 2017 (Maria dos Prazeres Beleza), proc. n.º 1203/12.0TMPRT-B.P1.S1; acórdão de 25 de maio de 2017 (Tomé Gomes), proc. n.º 945/13.8T2AMD-A.L1.S1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de novembro de 2017 (Maria da Graça Trigo), proc. n.º 212/15.2T8BRG-A.G1.S2 - todos disponíveis para consulta in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Nuno de Salter Cid, “Anotação ao art. 1793.º”, in Código Civil Anotado, Livro IV – Direito da Família, no prelo, Coimbra, Almedina.