Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
375/12.9TTLRA.C1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: ANA LUÍSA GERALDES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE IN ITINERE
Data do Acordão: 02/18/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO - ACIDENTES DE TRABALHO.
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO.
Doutrina:
- Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª Edição, Almedina, p. 50.
- Júlio Manuel Vieira Gomes, O Acidente de Trabalho, Coimbra Editora, p. 179 e seguintes.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL: - ARTIGO 9.º, N.º3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 13.º, 26.º, N.º1.
DECRETO-LEI N.º 143/99, DE 30 DE ABRIL: - ARTIGO 6.º, N.º 2, ALÍNEA A).
LEI N.º 100/97, DE 13 DE SETEMBRO: - ARTIGO 6.º.
REGIME JURÍDICO DE REPARAÇÃO DE ACIDENTES DE TRABALHO E DE DOENÇAS PROFISSIONAIS (LEI Nº 98/2009, DE 4-9): - ARTIGOS 8.º, 9.º, N.º 1, ALÍNEA A), E N.º 2, ALÍNEAS A) E B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 25/03/2010, PROCESSO N.º 43/09.9T2AND.C1.S1, 1.ª SECÇÃO, E DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 30/3/2011, PROCESSO N.º 4581/07, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 26/10/2011, PROCESSO N.º 154/06.2TTCTB.C1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I – Nos termos conjugados do artigo 6.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e do artigo 6.º, n.º 2, a), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, era considerado como acidente in itinere o ocorrido entre a residência habitual ou ocasional do sinistrado, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho.

II – No entanto, a Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, actualmente em vigor, veio alargar o conceito de acidente de trabalho, ao estipular nos termos dos arts. 8º e 9.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea b), que se considera acidente de trabalho o ocorrido entre a residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o local de trabalho do sinistrado.

III – Atentas as referidas alterações deve interpretar-se os actuais normativos como integrando no seu âmbito de aplicação o acidente ocorrido nos espaços exteriores à habitação do sinistrado, ainda antes de se entrar na via pública, independentemente de se tratar de espaço próprio deste ou de espaço comum a outros condóminos ou comproprietários, bastando que para tal já tenha sido transposta a porta de saída da residência, desde que a vítima se desloque para o local de trabalho, segundo o trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I – 1. AA

Instaurou a presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra:

BB, S.A.,

Pedindo a condenação desta a pagar-lhe:

1. Uma pensão anual vitalícia no valor de € 2.272,88, calculada com base no salário anual de € 6.790,00, reportada a 13/02/2012, e calculada com base na desvalorização de 47,82%;

2. € 1.900,80, a título de indemnizações por incapacidade temporária;

3. € 52,00, a título de despesas de transportes com deslocações obrigatórias ao Tribunal e ao Gabinete de Medicina Legal;

4. € 540,00, relativos a consultas médicas de ortopedia;

5. € 55,00, relativos a consulta de oftalmologia;

6. € 400,00, em lentes para os óculos;

7. € 112,80, em consultas de urgência no Hospital de A...;

8. € 23,63, em exames médicos complementares – raio x;

9. € 130,26, em medicamentos;

10. € 28,00, em consultas no Centro de Saúde de A...;

11. € 608,00, despendidos na retribuição de uma empregada doméstica que, de 15 em 15 dias, procede à limpeza da casa de habitação;

12. € 1.081,11, referente a salários que teve de pagar a funcionária para manter o estabelecimento comercial de que é proprietária;

13. Quantia não inferior a € 25.000,00, por danos não patrimoniais sofridos em consequência do acidente de que foi vítima;

14. Todos e quaisquer tratamentos, encargos hospitalares, e/ou intervenções cirúrgicas que venham a revelar-se necessários, a liquidar em execução de sentença.

Alegou, para o efeito e em síntese, que exercia a sua actividade de comerciante em nome individual, por conta própria, e sofreu um acidente de trabalho quando se dirigia para o seu local de trabalho.

O acidente ocorreu quando se preparava para entrar no seu carro e este descaiu; ao tentar “empurrá-lo”, caiu e ficou debaixo do mesmo, onde permaneceu imobilizada.

Em resultado desse acidente, esteve com Incapacidade Temporária Absoluta e, após a alta, ficou afectada de uma Incapacidade Permanente Parcial, para além de ter suportado despesas por causa do tratamento dessas lesões e do presente processo, encontrando-se transferida para a Seguradora Ré a responsabilidade pela sua reparação.

2. O Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Leiria, requereu a sua intervenção, peticionando a condenação da Ré no pagamento das quantias por si entregues à Autora a título de subsídio de doença.

3. A Ré Seguradora contestou alegando, em síntese, que o acidente descrito pela Autora não pode ser considerado como de trabalho, na medida em que o mesmo não ocorreu na via pública.

Conclui pedindo a improcedência da acção e a sua absolvição de todos os pedidos.

4. Proferida sentença, a acção foi julgada parcialmente procedente e a Ré Seguradora condenada a pagar à Autora:

 

«-Uma pensão anual e vitalícia no montante de € 2.272,88, reportada a 13.02.2012, e calculada com base no salário anual transferido de € 6.790,00, e na desvalorização de 47,82%, a pagar no seu domicílio em duodécimos, no valor de 1/14 da pensão, sendo os subsídios de férias e de Natal, também no valor de 1/14 da pensão, a pagar nos meses de Junho e Novembro, respectivamente;

- A quantia de € 1.875,16, a título de indemnizações por incapacidades temporárias;

- A quantia de € 3.697,69, a título de despesas com medicamentos, consultas, exames e fisioterapia;

- A quantia de € 52,00, a título de despesas efectuadas com deslocações obrigatórias a Tribunal e ao GMLL (=Gabinete de Medicina Legal de Lisboa);

- Os montantes que a Autora tiver de suportar por todos e quaisquer tratamentos, encargos hospitalares e/ou intervenções cirúrgicas que venham a revelar-se necessários, tendo em conta as lesões e sequelas de que padeceu e padece;

- Juros de mora à taxa legal».

Condenou, ainda, a Ré Seguradora a pagar ao ISS, IP (Instituto da Segurança Social, IP) «o montante de € 1.965,54, correspondente ao período de 21 de Setembro de 2011 a 09 de Fevereiro de 2012, pago a título de subsídio de doença, acrescido dos juros de mora à taxa legal, desde a data da notificação do requerimento do interveniente até efectivo e integral pagamento».

5. Inconformada a Ré Seguradora apelou para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por Acórdão de 10 de Setembro de 2015, julgou improcedente o recurso interposto, confirmando integralmente a sentença recorrida, embora com um voto de vencido.

6. Irresignada a Ré interpôs recurso de revista apresentando, em síntese, as seguintes conclusões:

I. Vem o recurso interposto do douto Acórdão nos presentes autos, que julgou improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida, em virtude de, crê-se, os fundamentos de facto estarem em contradição com a decisão que veio a ser proferida.

II. Mais concretamente, a Recorrente recorre da parte da decisão que concluiu que o acidente ocorreu entre a residência habitual e o local de trabalho da A.

III. O Juiz “a quo” deu como provado, entre outros, que:

A. A Autora exercia a sua actividade de comerciante em nome individual, por conta própria.

B. Tal acidente ocorreu quando se dirigia para o local do trabalho, sito no Centro Comercial ..., em A..., após ter tirado o carro da garagem, ainda quando ia com o comando na mão para abrir o portão que dá acesso à via pública, dentro da sua propriedade.

C. O carro descaiu e bateu na Autora que se encontrava na frente do veículo, ficando esta debaixo do mesmo, totalmente imobilizada.

IV. A al. b), do nº 2, do art. 9°, da LAT/2009, prevê que será considerado como acidente aquele que ocorra no "trajecto normalmente utilizado" entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho.

V. Entendeu o Juiz “a quo” e em resposta à pergunta que elaborou – Será aqui de incluir o "logradouro" enquanto espaço privado de acesso entre a rua e a residência do sinistrado? - que a resposta seria positiva.

VI. A resposta àquela questão foi sustentada na decisão do Acórdão do Porto, concluindo que na Lei n° 98/2009, de 4 de Setembro (LAT/2009), o conceito de acidente de trabalho "in itinere'' passou a incluir também o acidente de trajecto ocorrido no logradouro das habitações unifamiliares, por comparação das redacções da LAT/97 e da LAT/2009.

VII. Salvo o devido respeito por opinião contrária, a conclusão não pode ser essa.

VIII. Desde sempre, nem todos os acontecimentos infortunísticos imputáveis ao trabalho são juridicamente qualificados como acidentes de trabalho.

IX. O legislador ao longo dos vários diplomas que versaram sobre a matéria foi dando a sua visão expressa do conceito de acidente de trabalho, nomeadamente quanto aos chamados acidentes de trajecto ou de percurso, também designados (não pela lei) de acidentes “in itinere”, os quais têm dado origem a abundante jurisprudência e construção doutrinal.

X. Hoje em dia os acidentes de trajecto são considerados como normais acidentes de trabalho.

XI. A questão que se coloca é na interpretação que é feita sobre o novo texto da LAT/ /2009 e o texto da LAT/97, definida em posterior regulamentação, sendo que esta foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 143/99, de 30-04.

XII. Ora, na parte que aqui releva, estipula-se no art. 6°, n.º 2, deste Regulamento que «na alínea a) do n.º 2, do artigo 6º, da lei, estão compreendidos os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador:

a) Entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho».

XIII. Ao estabelecer nestes moldes este dispositivo legal, nota-se da parte do legislador um especial cuidado em precisar com grande rigor o local onde se iniciava o trajecto ou percurso a considerar no âmbito da extensão que estabelece ao conceito de acidente de trabalho, e a que se reporta a al. a), do n.º 2, do art. 6° da LAT/97, prevendo até, como afirma Carlos Alegre em anotação àquele preceito, «as duas formas mais comuns de residência: a condominial ou de arrendamento em prédio múltiplo e a isolada ou com saída directa para a via pública”. No primeiro caso, o percurso iniciava-se à porta de acesso às partes comuns do edifício (átrios, corredores, escadas, etc.), pelo que um acidente nas escadas comuns do edifício, ocorre já no percurso para ou do trabalho. No segundo caso, o percurso iniciava-se na porta de acesso à via pública, esteja essa porta no próprio edifício da habitação ou na extremidade de um jardim, quintal ou outra área ainda maior, mas pertencente ao uso da habitação».

XIV. Esta precisão do legislador não pode, a nosso ver, deixar de estar directamente relacionada com a circunstância – que decorre, aliás, do disposto no art. 6° da mencionada LAT (actual art° 9°) – da responsabilidade do empregador, em matéria de acidentes de trabalho, assentar, sobretudo, na chamada teoria do risco económico ou do risco de autoridade, em que o risco por aquele assumido não tem a natureza de um risco específico, mas antes a de um risco genérico ligado a um amplo conceito de autoridade patronal consequência da relação de subordinação (jurídica e/ou económica) de cada um dos seus trabalhadores, decorrente do vínculo contratual com cada um deles estabelecido e ainda que a actividade prestada escape ou possa escapar ao controlo e fiscalização directa do empregador, como resulta do al. f), do n.º 2, do referido normativo.

XV. Na verdade, a autoridade patronal, corolário daquela relação de subordinação, estendendo-se, por força da lei, ao trajecto normalmente utilizado pelo trabalhador de ida e de regresso para e do seu local de trabalho, durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto para o percorrer, cede a partir do momento em que o trabalhador disponha ou possa dispor livremente da sua autonomia, e isso sucede quando, antes de se deslocar para o seu trabalho ou após o regresso deste, se encontra na sua residência ou em espaços de natureza privada a ela afectos e por ele controlados, circunstância em que deixa de existir o chamado "risco de autoridade" e, portanto, não se pode considerar como acidente de trabalho qualquer acidente sofrido pelo trabalhador nesses locais e nesta circunstância.

XVI. No mesmo sentido se tinha pronunciado o Tribunal da Relação, em Acórdão de 24-05-2011, proferido no processo n.º 35/09.8TTSTB.E1, citando Pedro Romano Martinez (Direito do Trabalho – 3ª Edição, Almedina, pág. 829).

 XVII. Entretanto, com a LAT/2009, estipula-se no art. 9°, n.º 2, alínea b), que a alínea a), do número anterior, compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador; b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho.

XVIII. Ou seja, o legislador deixou cair a referência desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, podendo entender-se tal opção como uma reacção às várias acusações que a lei estaria a discriminar "os acidentes ocorridos após ultrapassada a porta de saída, entre os proprietários singulares do terreno situado entre essa porta de saída e a via pública e os sinistrados proprietários desses terrenos em regime de compropriedade mas de propriedade horizontal", violando-se o princípio de não discriminação, consagrado no art. 26º n.º 1 da Constituição da República.

XIX. Contudo, não pode com isso concluir-se que o legislador passou a tratar de igual modo as referidas situações, pois se ao abrigo da anterior legislação era entendimento que se notava da parte do legislador um especial cuidado em precisar com grande rigor o local onde se inicia o trajecto ou percurso a considerar no âmbito da extensão que estabelece ao conceito de acidente de trabalho, é perfeitamente possível que a intenção do legislador tenha sido o de não discriminar qualquer situação e deixar para verificar se no momento do acidente, o trabalhador tem total domínio e controlo sobre o espaço em que se encontra e onde aquele ocorre.

XX. Quer com isto dizer-se que é perfeitamente possível a interpretação, ao abrigo da LAT/2009, que os acidentes de trajecto ocorridos desde a porta de acesso para as partes comuns, podem não ser considerados como tal.

XXI. Deve entender-se que se se verifica esse domínio e controlo sobre o espaço – como no caso em apreço sucedia em relação ao espaço onde ocorreu o sinistro e que era de acesso à garagem da residência da A., dentro da propriedade desta – não se pode qualificar o acidente, em termos legais, como acidente de trabalho "in itinere"; se não tem esse controlo, como sucede quando o trabalhador no percurso de ida para o seu local de trabalho ou no regresso deste se encontra numa via pública ou em espaços comuns de um edifício, em regime de propriedade horizontal, espaços que, nessa medida, são de utilização comum e de acesso público, e sob o risco de autoridade da entidade empregadora, o acidente é de qualificar como acidente de trabalho "in itinere".

 XXII. Entendimento diverso criaria uma enorme incerteza e insegurança jurídica como bem se refere no mencionado Acórdão.

XXIII. Basta considerar as situações da vida real em que alguém que tem como residência habitual uma moradia unifamiliar, pela arquitectura da mesma tem de passar por um logradouro interior (logradouro esse só acessível após entrar em casa) para se dirigir à via pública e que tem um acidente nesse local. Também deve ser considerado como acidente de trajecto?

XXIV. Salvo o devido respeito por opinião contrária, não foi essa a intenção do legislador na LAT/2009, pois o que se pretendeu foi deixar de parte a discriminação normativa promovida pelo grande rigor da LAT/97, deixando à jurisprudência a comprovação do preenchimento dos requisitos já elencados para considerar uma determinada ocorrência como acidente de trabalho.

 XXV. Se a intenção do legislador fosse, como entendido pelo Juiz “a quo” que era o de abranger os acidentes nos logradouros das moradias unifamiliares, então em vez de eliminar do texto a expressão já aludida, teria, no rigor que o havia caracterizado, aditado ao referido texto a inclusão da menção para os logradouros nas moradias unifamiliares, deixando cair a menção para a via pública.

XXVI. Caso se adira ao entendimento da douta sentença, tudo passa a ser possível, desde considerar como acidente de trajecto o afogamento na piscina da moradia por queda na mesma; por queda no poço da propriedade porque não havia sido tapado pelo próprio sinistrado; por tropeçar nos ramos das árvores que o próprio sinistrado havia cortado e que deixou no respectivo caminho de saída; e muitas mais são possíveis de imaginar.

XXVII. É evidente que a interpretação que foi dada implicaria um aumento do risco e uma incerteza quanto às situações abrangidas.

XXVIII. Ora, no âmbito da responsabilidade objectiva ou pelo risco está limitada qualquer interpretação extensiva que alargue a previsibilidade legal.

XXIX. Assim, especificando a lei taxativamente as situações que podem ser abrangidas como acidentes de trabalho (percurso), não podia o Juiz “a quo” ter considerado como acidente de percurso o acidente dos presentes autos.

 XXX. Aliás, tanto que a interpretação não é, de todo, pacífica, que no Acórdão de que se recorre existe um voto de vencido, com os fundamentos já expendidos num voto de vencido num Acórdão da Relação de Guimarães (referido no texto do Acórdão recorrido).

XXXI. Pelo que o Acórdão recorrido violou, consequentemente, o disposto na al. b), do nº 2, do art. 9°, da LAT/2009.

7. A Autora não contra-alegou.

8. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal de Justiça, formulou parecer sustentando a improcedência da revista.

Considerou, em síntese, que o acidente dos autos deve ser considerado acidente de trabalho in itinere e, consequentemente, deve ser confirmado o direito da Autora à sua reparação.

           

9. O mencionado parecer, notificado às partes, não obteve resposta.

10. Preparada a deliberação, cumpre apreciar as questões suscitadas nas conclusões da alegação da Recorrente, exceptuadas aquelas cuja decisão se mostre prejudicada pela solução entretanto dada a outras, nos termos preceituados nos arts. 608.º, n.º 2 e 679º, ambos do Código de Processo Civil.

II – QUESTÕES A DECIDIR:         

- Está em causa, em sede recursória, saber se o evento ocorrido com a Autora pode ser qualificado como acidente de trabalho in itinere e, nessa medida, se é reparável pela Ré Seguradora.

III – FUNDAMENTAÇÃO:

O acidente dos autos ocorreu no dia 21 de Setembro de 2011, pelo que se encontra abrangido pelo regime de reparação de acidentes de trabalho aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2010.

A) DE FACTO

As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1. A Autora exercia a sua actividade de comerciante em nome individual, por conta própria.
2. No dia 21 de Setembro de 2011, cerca das 09.50h, à saída de sua casa, sita na Rua …, nº …, …, A..., sofreu um acidente.
3. Tal acidente ocorreu quando se dirigia para o local de trabalho, sito no Centro Comercial ..., em A..., após ter tirado o carro da garagem, ainda quando ia com o comando na mão para abrir o portão que dá acesso à via pública, dentro da sua propriedade.
4. O carro descaiu e bateu na Autora que se encontrava na frente do veículo, ficando esta debaixo do mesmo, totalmente imobilizada.
5. O horário da Autora era das 10h00 às 13h00, com intervalo para almoço até às 14h00 e encerramento às 19h30.
6. Em consequência do acidente a Autora perdeu a consciência, ficando em situação de semicoma.
7. Esteve internada durante um mês no Hospital de Santa Maria.
8. Depois foi transferida para o Hospital de Caldas da Rainha, onde esteve algumas horas.
9. Depois foi internada na Clínica de Todos os Santos, em Lisboa, onde permaneceu por mais de um mês.
10. Em consequência do acidente, sofreu traumatismo abdominal com lesão hepática, traumatismo torácico com fractura de múltiplos arcos costais (contusão pulmonar complicado de pneumotórax); traumatismo da bacia (fractura dos ramos ilio e isquio púbicos esquerdos com diástase da ilíaca ipsilateral) e fractura cominativa da omoplata esquerda.
11. A Autora foi afectada de ITA, de 22.09.2011 até 12.02.2012 (144 dias).
12. E de IPP fixada em 47,82%, desde 13.02.2012, data imediata à da alta.
13. A Autora apresentava as seguintes sequelas: crânio: complexo cicatricial deprimido na região frontal, à direita da linha média com 4 cm, nacarado, parcialmente oculto pelo cabelo.
14. No Abdómen extensa cicatriz cirúrgica, em relação com laparotomia exploradora (xifopúbica) e no hipocôndrio direito, rosadas, medindo 30 cm e 17 cm, respectivamente.
15. No membro superior esquerdo rigidez marcada no ombro (possibilidade de levar a mão à nuca e região lombar) sobretudo na antepulsão e ablução.
16. Limitação dolorosa da mobilidade do ombro direito (com dificuldade em levar a mão à nuca e região lombar).
17. Fractura da bacia com ruptura do anel pélvico consolidada em dor da hemibacia esquerda; assimetria da bacia com ascensão da hemibacia esquerda; marcha claudicante, limitação moderada da mobilidade da anca direita, em particular nas rotações.
18. Apresenta ainda sinais de luxação sacro ilíaca esquerda fixada com dois parafusos com ascensão da hemibacia esquerda, sinais de fractura do ramo ílio ísquio púbico esquerdo com ruptura do anel pélvico e sinais de fractura cominutiva do colo da omoplata.
19. A Autora tem dores no ombro direito.
20. Tem dores na bacia de predomínio esquerdo.
21. Dificuldade na mobilização do membro superior esquerdo.
22. Dificuldade na marcha e dificuldade na posição de cócoras.
23. Consegue tratar da sua higiene pessoal, pentear-se, vestir-se ou calçar-se sozinha, embora com alguma limitação.
24. Ainda hoje tem muitas dificuldades em caminhar, coxeando do lado esquerdo.
25. A Autora despendeu: € 420,00, em consultas médicas de ortopedia; € 112,80, em consultas de urgência no Hospital de A...; € 23,63, em exames médicos complementares – raio x; € 113,26, em medicamentos; € 28,00, em consultas no Centro de Saúde de A....
26. Para efeitos de reabilitação submeteu-se a 120 sessões de fisioterapia no Centro Clínico de Enfermagem …, Lda., entre 9 de Dezembro de 2011 e 29 de Junho de 2012.

27. Gastando nestes tratamentos de fisioterapia a quantia de € 3.000,00.

28. A Autora tinha a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho transferida para a Ré Seguradora pelo montante total anual de € 485,00 x 14 meses (= 6.790,00 €).

29. A Autora consta inscrita como beneficiária da Segurança Social com o nº …..

30. Em consequência das lesões relativas ao acidente, a Autora requereu ao ISS-IP subsídio de doença, tendo o mesmo sido pago, no montante de € 1.965,54, correspondente aos períodos de 21 de Setembro de 2011 a 09 de Fevereiro de 2012.


B) DE DIREITO

1. Está em causa nos autos, conforme se referiu supra, saber se o acidente sofrido pela Autora se trata, ou não, de um acidente de trabalho in itinere.

Não se discute, porquanto as partes não divergem quanto a esses pontos, a natureza dos danos sofridos pela Autora, nem as despesas que teve de suportar em consequência do acidente.

Por conseguinte, a questão a dilucidar prende-se com a interpretação a dar às normas que regem esta matéria no âmbito de aplicação do regime de reparação de acidentes de trabalho e aferir, in concreto, se estão reunidos os pressupostos legais indispensáveis à integração do acidente relatado nos autos no conceito de acidente de trabalho in itinere, abrangido pelo referido regime jurídico, aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.

Analisando e Decidindo.

2. O conceito de acidente de trabalho é-nos dado pelo art. 8º da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, conjugado com o preceito seguinte, que estende o conceito de modo a abarcar outras situações frequentes da vida real e que, pelas dúvidas suscitadas, mereceram da parte do legislador a sua clarificação jurídica.

Entendendo-se por acidente de trabalho, nos termos do seu art. 8.º, n.º 1, aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.

 

Resulta desta norma que o legislador erigiu “o local” e “o tempo de trabalho” como elementos fulcrais para a qualificação jurídica do acidente de trabalho.

Pelo que, logo no número seguinte do preceito, sentiu a necessidade de lhes fixar o sentido e alcance jurídicos, enunciando que «para efeitos do presente capítulo, entende-se por:

a) “Local de trabalho” – todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;

b) “Tempo de trabalho além do período normal de trabalho” – o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho».

3. Por sua vez no artigo 9.º do mesmo diploma, que o legislador denominou de “extensão do conceito”, foram elencadas outras situações que também se consideram como acidentes de trabalho. Incluindo-se neste normativo os acidentes de trajecto ou de percurso, igualmente designados na doutrina e jurisprudência como acidentes in itinere, porquanto ocorrem quando o trabalhador se desloca para o seu local de trabalho e regressa a casa.

Conforme refere Carlos Alegre[1], para clarificar o conceito, «o acidente de trajecto pode definir-se, em linhas gerais, como o que atinge o trabalhador no caminho de ida ou de regresso do local de trabalho».


Para compreensão do conceito de acidente in itinere valem as considerações expendidas no Acórdão do STJ, desta Secção, de 26 de Outubro de 2011,[2] proferido na análise de um caso ocorrido ainda na vigência do Regime Jurídico anterior dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais, que resultava da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro e do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, que a regulamentou, mas que, nesta parte, se mostra actual quanto às considerações que se transcrevem:

«(…) Para que se esteja em face dum acidente de trajecto indemnizável, já não exige o legislador o preenchimento daqueles exigentes requisitos da lei anterior, bastando para tanto que o acidente ocorra no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto para o percorrer.
Trata-se da consagração das modernas teorias que consideram que o risco de acidentes neste percurso é inerente ao cumprimento do dever que incumbe ao trabalhador de comparecer no lugar do trabalho, para nele executar a prestação resultante do contrato de trabalho, constituindo assim uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias.
Por isso, sendo o trabalhador obrigado a fazer o percurso necessário ao cumprimento da sua obrigação de trabalhar no lugar determinado pela sua entidade patronal e usando, para tanto, as vias de acesso e os meios de transporte disponíveis, justifica-se que os acidentes ocorridos neste percurso e no tempo habitualmente gasto para o percorrer, já gozem da protecção própria dum acidente de trabalho, conforme prescrevia o artigo 6º, nº 2, do DL nº 143/99, de 30/4.
Por outro lado, estão abrangidos nesta previsão legal, os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado pelo trabalhador e durante o período de tempo habitualmente gasto entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho – alínea a)».

 

4. Nesta matéria dos acidentes in itinere, e no que releva para o caso dos autos, existe uma alteração significativa em relação ao regime jurídico anterior, que resultava da aplicação da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro e do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, que a regulamentou, e o actual regime da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro.

Com efeito, nos termos conjugados do artigo 6.º, da Lei n.º 100/97, e do artigo 6.º, n.º 2, a), do Decreto-Lei n.º 143/99, era considerado como acidente in itinere o ocorrido entre a residência habitual ou ocasional do sinistrado, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho.

Nesse regime de 1997, o legislador consagrou o conceito de acidente de trabalho naquela norma, remetendo o demais, relativamente ao acidente ocorrido no trajecto de ida e de regresso para e do local de trabalho, para os termos que viessem a ser definidos em regulamentação posterior – cf. art. 6º, nº 2, alínea a).

Na Lei actualmente em vigor o legislador não se quedou pelo mero conceito de acidente de trabalho, conforme se salientou ab initio, procedendo, desde logo, na própria Lei nº 98/2009, ao alargamento do conceito de acidente de trabalho.

E fê-lo, ao estipular na alínea a), do n.º 1, do artigo 9.º, que se considera acidente de trabalho o ocorrido:

«a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;», e no n.º 2 deste mesmo artigo que a «alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador: (…) b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho; (…)».

Acontece porém que os actuais normativos não contêm redacção similar ao citado artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, no qual se consagrava como acidente in itinere o ocorrido entre a residência habitual ou ocasional do sinistrado, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho.

E a questão que se coloca é a de saber se, actualmente, em face da revogação desse segmento – desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalaçõesse pode considerar como acidente in itinere aquele que ocorre nas áreas comuns de um edifício ou residência do trabalhador/sinistrado, transposta que seja a porta de acesso da sua residência para essas zonas ou para a via pública até às instalações do seu local de trabalho.

Nomeadamente, saber se o acidente sofrido por um trabalhador que sai da sua residência situada num prédio ou numa moradia unifamiliar e sofre um acidente entre a garagem do seu prédio ou dessa moradia e o portão que dá acesso à via pública, se pode considerar como de trabalho, uma vez ocorrido no trajecto normalmente utilizado por aquele e durante o período de tempo habitualmente gasto no logradouro, partes comuns ou garagem da sua residência.

A este propósito refere Júlio Gomes[3], que é por vezes muito delicado saber « (…) em que local exacto é que principia o trajecto protegido e, mesmo, quando é que deve considerar-se findo (…)», como é o caso da situação « (…) em que o trabalhador reside em uma fracção de um prédio em regime de condomínio ou propriedade horizontal.» 

Com efeito, nessa situação, a dúvida que subsiste é se:

- A tutela dos acidentes de trabalho só deve iniciar-se quando o trabalhador acede à via pública?

- Ou deve considerar-se que o seu início ocorre antes, quando o trabalhador abandona a sua fracção ou moradia unifamiliar e entra nas áreas comuns ou pertencentes àquele?

Esta questão, como bem refere o referido Autor, «(…) é de resposta delicada, não só porque o direito comparado mostra que as duas soluções são possíveis e defensáveis – compare-se a situação alemã que, em princípio, considera que o trajecto tutelado relativamente a acidentes de trabalho, só tem início quando se acede à via pública, com a francesa que opta por considerar que o condómino inicia o trajecto protegido já quando sai da sua fracção para se deslocar nas áreas comuns do prédio – mas e sobretudo porque já teve resposta expressa na nossa lei, em norma entretanto revogada, sem que tenha sido substituída por outra em que o legislador tome expressamente posição sobre esta questão.»

Está aqui em causa, o acima referido e revogado art. 6.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, segundo o qual era considerado acidente in itinere o ocorrido nas partes comuns do edifício em cuja fracção habitasse o sinistrado, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública.

Defendendo, a este propósito, Júlio Gomes[4], que da revogação desta norma não se pode inferir, sem mais, o abandono da solução preexistente, podendo a mesma derivar de lapso do legislador ou, ao invés, «(…) à convicção de que a solução resultaria das regras gerais e da ratio da  tutela dos acidentes in itinere e da exclusão, em princípio, dos acidentes ocorridos na própria residência do trabalhador».

Dúvida que se impõe esclarecer.

5. Estipula o art. 9.º, n.º 3, do Código Civil, que o intérprete deve presumir, na fixação e alcance da lei, que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Princípio que deve nortear o intérprete quando confrontado com a tarefa de descortinar o sentido e alcance da norma.

Ora, resulta expressamente da conjugação da actual redacção do art. 9º, nº 1, alínea a), e n.º 2, alíneas a) e b), da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que basta que o evento danoso ocorra entre a residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o local de trabalho do sinistrado, para que, por si só, seja considerado como acidente in itinere e, como tal, tutelado pelo respectivo regime jurídico.

A norma actualmente em vigor mostra-se redigida em termos que permite desde logo excluir do conceito os acidentes ocorridos na própria residência do trabalhador.

Mas já não permite que se conclua, de imediato, no sentido de que não abarca os que se verifiquem entre a residência, após transposição da porta desta, e o local de trabalho.

O que bem se compreende, na medida em que se assiste, frequentemente no dia-a-dia, atenta a normalidade da vida, que os únicos meios de ligação da habitação à própria via pública, e destas para o local de trabalho, são feitos através de percursos que incluem acessos diversos, v.g., a escadas, pátios, logradouros, garagens, etc., sejam estes espaços comuns ou próprios do trabalhador sinistrado.

6. A este propósito decidiu-se no Acórdão da 1.ª Secção, deste Supremo Tribunal, datado de 25.03.2010[5], que incidiu sobre o caso de um acidente ocorrido quando o sinistrado descia as escadas de sua casa, escadas essas que davam acesso a um pátio, que confinava com um portão que limitava a propriedade do sinistrado da via pública e quando este se dirigia a um seu escritório, situado em compartimento do rés-do-chão, anexo à sua residência, que:

“… As áreas comuns de edifícios são elementos e partes características que só existem nos prédios constituídos em propriedade horizontal ou em regime de compropriedade, pelo que quando se elaborou a definição de acidente de trabalho in itinere, no art.º 6.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, o legislador não teve presente outro tipo de residências, como por exemplo, as vivendas unifamiliares, onde, por natureza tudo é espaço próprio e não há áreas comuns, mas que nem por isso deixam de ter, por via de regra, partes exteriores à habitação (escadas, pátios, logradouros, etc.), pertencentes ao mesmo dono e ao mesmo prédio e por onde obrigatoriamente se sai a caminho do emprego.

Tendo-se concluído nos seguintes termos:

“II. Na situação prevista estão expressamente contempladas duas situações: a de condomínios ou de compropriedade (em que se haja de se passar por áreas comuns para a via pública) ou a de habitações com acesso directo à via pública.

III. Há no entanto lacuna legal relativamente às situações em que a porta de acesso da habitação dá para uma área exterior, própria ou particular, antes de atingir a via pública a caminho do local de trabalho, ou o local de trabalho se situe nessa mesma área adjacente à habitação, e que deve ser resolvida lançando mão da analogia.

IV. Considera-se assim acidente “in itinere”, sob pena de violação do princípio de “não discriminação”, o ocorrido nas escadas exteriores de uma habitação quando o sinistrado se desloque para o seu local de trabalho, onde recebe clientes, e este se situe em anexo à sua residência, ainda dentro de propriedade própria”.

Exarando-se a seguinte fundamentação:

     

(…) «Não raras vezes as escadas exteriores ou pátios são os únicos meios de ligação da habitação à via pública, pelos quais é preciso passar antes que se chegue à porta, portão ou simples demarcação da entrada que serve de ligação directa com a via pública.

Nem por isso, no entanto, se pode concluir que o legislador quis estabelecer diferenciação de protecção entre os segurados que vivam em condomínios ou em compropriedade, com aqueles que vivem em moradias unifamiliares, ora protegendo uns (condóminos ou comproprietários), ora desprotegendo outros (proprietários singulares), quando, em igualdade de circunstâncias saiam da sua habitação a caminho do emprego.

A ocorrer tal interpretação, estar-se-á a violar o princípio da não discriminação, consagrado no art. 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.»

É certo que o aresto em causa incidiu sobre um acidente ocorrido em 2002, por conseguinte, em data em que vigorava o art. 6º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril, e a Lei nº 100/97, de 13 de Setembro.

Porém, já na vigência dessa legislação o Supremo Tribunal de Justiça entendia que o legislador embora só tivesse tido presente, quando elaborou a definição de acidente de trabalho in itinere, os edifícios dessa natureza – constituídos em propriedade horizontal ou em regime de compropriedade – sem fazer referência concreta às vivendas unifamiliares (“onde por natureza, tudo é espaço próprio e não há áreas comuns, mas que nem por isso deixam de ter, por via de regra, partes exteriores à habitação (escadas, pátios, etc.), pertencentes ao mesmo dono e ao mesmo prédio e por onde obrigatoriamente se sai a caminho do emprego”), não podia ser sufragada a aplicação da norma baseada numa interpretação que conduzia a uma diferenciação dessa natureza.

Interpretação que favorecia uns cidadãos, protegendo os que vivem em condomínios, mas desfavorecia outros a quem seria denegada a protecção: os que habitam moradias unifamiliares.

Pelo que, aceitá-la seria contemporizar com a discriminação dessas realidades e incorrer na violação dos princípios constitucionais ínsitos nos arts. 13º e 26º, nº 1, da CRP.

Se o legislador acaso foi inábil na redacção do preceito, não se pode pedir ou esperar do intérprete que se alheie das consequências que daí possam advir. Até porque cabe a este reconstituir a partir dos textos legais o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

E uma delas, como resulta do aresto supra citado, é a necessidade de abarcar no conceito de acidente in itinere também a realidade das moradias unifamiliares, colocando os seus proprietários singulares em igualdade de condições com as dos proprietários ou comproprietários de edifícios, sempre que saiam da sua habitação a caminho do seu local de trabalho.

Interpretação que, em nosso entender, o texto da lei comporta e não é contrariada pela lei actual, face ao conceito alargado de acidente de trabalho plasmado nos arts. 8º e 9º da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, com a extensão do conceito de acidente de trabalho.

7. É certo que ao estabelecer este conceito de acidente de trabalho, no Regime Jurídico de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais (Lei nº 98/2009), o legislador acabou por eliminar a referência discriminatória que resultava da anterior redacção do art. 6º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril. E que assentava no seguinte segmento: “desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações do local de trabalho”.

Eliminação que ao ser materializada pelo legislador permite que se integre no conceito não apenas essas partes comuns, anteriormente já incluídas, mas outras que se situem, de acordo com os normativos em vigor, entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador sinistrado e as instalações que constituem o seu local de trabalho, sejam partes comuns de prédios em condomínio, sejam logradouros de uma habitação/vivenda unifamiliar.

Defender o contrário seria enveredar por uma interpretação restritiva do conceito de acidente in itinere, com tendência para abarcar os acidentes ocorridos na via pública ou em áreas comuns e já não os que tivessem lugar em logradouro pertencente apenas ao trabalhador.

Ora, se fosse essa a intenção do legislador, por certo teria mantido a redacção anterior.

E se a suprimiu, só pode ter sido com um duplo objectivo: o de, por um lado, pôr fim à referida distinção e, por outro, dar oportunidade à Jurisprudência de, in concreto, definir e delimitar a sua aplicação. 

Interpretação de outra natureza poderia atentar contra a própria filosofia que esteve subjacente à aprovação do regime actual dos acidentes de trabalho, sobre a qual se pronunciou o Acórdão desta Secção, do STJ, datado de 30/3/2011, onde se fez a análise e a evolução histórica do conceito, podendo ler-se, a este propósito, que:

 “Daí adveio a necessidade da adaptação do seu regime à evolução da realidade sócio-laboral e ao desenvolvimento da legislação complementar no âmbito das relações de trabalho, da Jurisprudência e das Convenções Internacionais.
Por isso, a filosofia que esteve subjacente à nova lei, foi a da concretização duma melhoria do sistema de protecção dos trabalhadores e das prestações conferidas às vítimas de acidentes de trabalho e de doenças contraídas no trabalho e por causa dele.

Uma das melhorias trazidas pela nova lei foi em matéria de aciden-tes de trabalho in “itinere”, conforme iremos constatar através da análise da evolução histórica deste conceito”. [6]

Destarte, o critério que conduz à caracterização de um acidente como ocorrido in itinere, nos termos previstos nos arts. 8º e 9.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, deve bastar-se com a saída (“ultrapassagem”/transposição) da porta da residência por parte do trabalhador sinistrado, para um espaço exterior à sua habitação, quer esta se situe num edifício condominial, quer numa moradia unifamiliar, podendo o acidente in itinere ocorrer ainda antes de se entrar na via pública, para se dirigir ao seu local de trabalho, através do respectivo trajecto que utiliza nessa ida.



8. Posto isto e reportando-nos ao caso dos autos, verifica-se que:
De acordo com a matéria de facto dada como provada, a Autora exercia a sua actividade de comerciante em nome individual, por conta própria, e o seu horário era das 10h00 às 13h00, com intervalo para almoço até às 14h00 e encerramento.

Flui, igualmente, da matéria de facto que, no dia 21 de Setembro de 2011, à saída de sua casa, a Autora sofreu um acidente quando se dirigia para o seu local de trabalho, sito no Centro Comercial ..., em A..., após ter tirado o carro da garagem, e ainda quando seguia com o comando na mão para abrir o portão que dá acesso à via pública, dentro da sua propriedade, tendo o carro descaído e embatido na Autora, que se encontrava na frente do veículo, acabando esta por ficar debaixo do mesmo, totalmente imobilizada.

O acidente ocorreu cerca das 09.50h, sendo que o horário de entrada ao serviço da Autora era às 10h.

Decorre também do quadro factual traçado em juízo que, em consequência disso, sofreu traumatismo abdominal com lesão hepática, traumatismo torácico com fractura de múltiplos arcos costais (contusão pulmonar complicado de pneumotórax); traumatismo da bacia (fractura dos ramos ilio e isquio púbicos esquerdos com diástase da ilíaca ipsilateral) e fractura cominativa da omoplata esquerda, tendo a Autora ficado afectada de ITA, de 22.09.2011 até 12.02.2012 (144 dias) e de IPP, fixada em 47,82%, desde 13.02.2012, data imediata à da alta.

Entende a Recorrente que tendo o acidente ocorrido no espaço de acesso à garagem da Autora e sendo o mesmo propriedade desta, aquele evento não poderá ser considerado como um acidente de trabalho in itinere, uma vez que a sinistrada “tinha total domínio e controlo sobre o espaço em que se encontrava e onde aquele ocorreu”.
Mas sem razão.

Com efeito, de acordo com a factualidade apurada, o acidente ocorreu no momento em que a Autora saiu de casa para se dirigir ao seu local de trabalho, não estando em causa que não o tenha feito no período de tempo habitualmente gasto para o efeito ou que não seguia o trajecto normalmente utilizado.

Sucede que o acidente teve lugar no logradouro/garagem, propriedade da Autora, onde estava o seu veículo estacionado, ou seja, o acidente ocorreu no espaço entre a garagem da residência daquela e o portão que dá acesso à via pública. Portanto, já depois de ter transposto a porta da sua habitação. E quando se dirigia, como era habitual, ao seu local de trabalho.

Sendo certo que, conforme se salienta nos autos, a A. não estava impedida de estacionar o carro na garagem da sua residência, constituindo, inclusivamente, uma prática comum de todos aqueles que possuem um lugar para aparcar a sua viatura.

Tal facto não retira à deslocação empreendida pela Autora, em cujo contexto veio a ocorrer o acidente, a ligação à prestação de trabalho a que se dirigia e no qual reside o fundamento último do regime dos acidentes de trajecto, sendo por isso indiferente que a sinistrada tivesse o “domínio” ou a “propriedade” do espaço onde ocorreu o acidente, na medida em que este espaço já se situa fora da sua residência.

Efectivamente, estando assente que a Autora ia a caminho do seu local de trabalho nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o facto de o acidente ter ocorrido quando a Autora já havia transposto a porta de saída da sua habitação, embora ainda dentro da sua propriedade, não retira ao evento a natureza de acidente in itinere.

Por conseguinte, entendemos que se deve interpretar o disposto no art. 9.º, n.º 1, alínea a), e nº 2, alínea b), da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, como integrando no seu âmbito de aplicação o acidente ocorrido nos espaços exteriores à própria habitação, independentemente de se tratar de espaço próprio do sinistrado ou comum a outros condóminos ou comproprietários e mesmo ainda antes de se entrar na via pública.
Bastando, para tal, que já tenha sido transposta a porta de saída da residência e se prove que a vítima se deslocava para o seu local de trabalho, sendo esse o trajecto normalmente utilizado, no período habitualmente gasto pelo trabalhador e com esse objectivo.

Igual interpretação se recolhe da solução acolhida na lei francesa e das próprias considerações tecidas por Júlio Gomes, a que se fez referência no ponto 4).

Assim sendo, está legitimada a qualificação do sinistro dos autos como acidente de trajecto, ou seja, acidente in itinere.

9. Improcede, pois, a presente revista.

IV – DECISÃO:


- Termos em que se acorda em julgar improcedente o presente recurso de revista, mantendo-se integralmente o Acórdão recorrido.


- Custas a cargo da Recorrente, parte vencida – art.º 527, n.º 1, do Código de Processo Civil.

- Anexa-se sumário do presente Acórdão.


Lisboa, 18 de Fevereiro de 2016.

Ana Luísa Geraldes (Relatora)

Ribeiro Cardoso

Pinto Hespanhol

__________________________
[1] In “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, 2.ª Edição, Almedina, pág. 50. Sublinhado nosso. Autor também citado nos autos.
[2] Acórdão do STJ, proferido no âmbito do processo n.º 154/06.2TTCTB.C1.S1, Relatado por Gonçalves Rocha, e disponível em www.dgsi.pt. Sublinhados nossos.
[3] Neste sentido, cf. Júlio Manuel Vieira Gomes, in “O Acidente de Trabalho”, Coimbra Editora, págs. 179 e seguintes.
[4] Ibidem, pág. 181.
[5] Acórdão proferido no âmbito da Revista n.º 43/09.9T2AND.C1.S1, 1ª Secção, Relatado por Mário Cruz, e disponível em www.dgsi.pt, onde é feita a análise do acidente à luz do regime legal anterior. Sublinhados nossos.
[6] Acórdão desta Secção, proferido no âmbito do processo nº 4581/07, Relatado por Gonçalves Rocha, e disponível em www.dgsi.pt, para cujo desenvolvimento, no âmbito da evolução histórica, se remete.