Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
752-F/1992.E1-A.S1 -A
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
ABUSO DO DIREITO
REPRESENTAÇÃO SEM PODERES
INEFICÁCIA
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
BOA FÉ
TERCEIRO
VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
ADMINISTRADOR
MASSA FALIDA
ACTOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES
ATOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES
BEM IMÓVEL
CERTIDÃO
Data do Acordão: 07/05/2016
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Referência de Publicação: DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE, 208, 28.10.2016, P. 3850 - 3865
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – LIQUIDAÇÃO EM BENEFÍCIO DOS CREDORES / ADMINISTRADOR JUDICIAL / PODERES DE REPRESENTAÇÃO / AUXILIAR DO ADMINISTRADOR.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / ABUSO DE DIREITO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE DO DEVEDOR PERANTE O CREDOR.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 800.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC) , NA VERSÃO VIGENTE EM 1992: - ARTIGOS 1211.º, 1248.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 12/11/2013, PROC. N.º 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.º 655/99, EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .
Sumário :
Age com abuso de direito, na vertente da tutela da confiança, a massa falida, representada pelo respectivo administrador, que invoca contra terceiro - adquirente de boa fé de bem imóvel nela compreendido-  a ineficácia da venda por negociação particular, por nela ter outorgado auxiliar daquele administrador, desprovido de poderes de representação( arts. 1211ºe 1248º do CPC, na versão vigente em 1992), num caso em que é imputável ao administrador a criação de uma situação de representação tolerada e aparente por aquele auxiliar, consentindo que vários negócios de venda fossem por aquela entidade realizados e permitindo que entrasse em circulação no comércio jurídico certidão, extraída dos autos de falência, em que o citado auxiliar era qualificado como encarregado de venda.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, no Pleno das Secções Cíveis:

         1.

AA, na qualidade de administrador da massa falida de BB, intentou contra CC Lda., DD e EE e FF acção de condenação, invocando que o 2º R. marido adquiriu por escritura pública de compra e venda realizada no dia 28/06/2001, no 4º Cartório Notarial de Lisboa, perante o 4ºR., na veste de notário, para o casal que constitui com a 2ª Ré mulher, determinado prédio rústico, apreendido para a massa falida; de tal escritura constava que a 1ª R. teria  a qualidade de encarregada de proceder à venda do referido bem, o que não correspondia à verdade, já que era mero auxiliar do administrador da falência, sendo essencial a intervenção deste no negócio , à face da lei então aplicável (cfr. os arts. 1211°, n.° 2, e 1248°, do C. P. C); sucede que o A. não recebeu o preço de 40.500. 000$00 que, na dita escritura, consta ter sido pago pelo 2º R. marido à R.CC, Lda.

            A A. termina a petição, formulando os pedidos de declaração de ineficácia, em relação a si, da venda pretensamente titulada pela dita escritura pública de compra e venda, em que a 1ª Ré outorgou invocando a qualidade que não tinha de encarregada da venda, devendo, em consequência, os 2°s RR. serem condenados a restituir o prédio em causa à A. livre e desocupado de pessoas e bens.

   Os RR. DD e EE contestaram, impugnando a factualidade alegada e invocando que o A. bem sabia que a CC vinha realizando escrituras de venda dos imóveis apreendidos para a massa falida, pelo que a presente  acção constituiria um reprovável a venire contra factum proprium, envolvendo manifesto abuso de direito, nos termos do artigo 334° do Código Civil.

   A outorga de escritura, por parte dos R. R., foi celebrada de boa-fé, mediante documento/certidão exarada pelo Tribunal onde corria o processo de falência, de onde constava a qualidade de encarregada da venda, sem que qualquer dúvida tivesse sido levantada.

   O liquidatário judicial, bem sabendo ser a primeira R. quem outorgava as escrituras em representação da massa falida, nunca alertou os segundos R. R. para qualquer possível irregularidade, nem antes, nem após a celebração por estes, da escritura de compra e venda.

  Na sequência de tal negócio, efectuaram o pagamento do respectivo preço, como consta da escritura de compra e venda, no valor de € 202.013,15 (antes PTE 40.500.000$00), bem como a quantia de 10% sobre tal valor (acrescida de IVA), a título de comissão de agência, conforme condições lidas na altura do leilão.

  Atendendo a que, no mínimo, só por negligência grosseira do liquidatário judicial no controle das vendas as mesmas poderiam ter acontecido nos termos em que se verificaram, requereram a intervenção principal provocada do Estado Português, representado pelo Ministério Público, bem como do próprio liquidatário judicial, AA – sendo tal requerimento admitido no âmbito da intervenção acessória.

            Não se tendo logrado efectuar a citação pessoal da R.CC, Lda., foi ordenada a respectiva citação edital, sem que tenha sido apresentada contestação.

O Estado Português, notificado do incidente de intervenção acessória deduzido, contestou, aderindo à contestação dos RR.

A massa falida, representada pelo seu actual liquidatário - GG — notificada da contestação apresentada pelo Estado Português, replicou e ampliou o pedido, de modo a nele incluir o cancelamento do registo de aquisição , pugnando pela procedência da acção.

            Foram entretanto habilitados como herdeiros do interveniente acessório AA, HH e II, prosseguindo estes autos com estes sucessores/habilitados na posição que era ocupada pelo falecido .

Finda a audiência, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente.

            2. Inconformada, apelou a A./massa falida, tendo a Relação julgado procedente o recurso, considerando improcedente a excepção de abuso de direito  e revogando a sentença recorrida, em função do que:

            a) declarou a ineficaz em relação à A. a venda titulada pela escritura pública de compra e venda, realizada em 28/06/2001 no 4º Cartório Notarial de Lisboa, que teve por objecto o prédio rústico descrito no nº 2 da exposição da matéria de facto e em que a 1ª Ré outorgou invocando a qualidade que não tinha de encarregada da venda;

            b) condenou os 2°s RR. a restituir o prédio em causa à A. livre e desocupado de pessoas e bens;

            c) ordenou o cancelamento da inscrição da propriedade dos AA concretizada pela inscrição G-l e ficha n000437/250604 da conservatória do Registo Predial de Coruche (Ap. 16/250604);

         As instâncias fixaram o seguinte quadro factual, subjacente ao litígio:

            1- BB foi declarado falido por sentença proferida em 23 de Outubro de 1992 proferida nos autos apensos e transitada em julgado.

            2- Para a massa falida de BB foi apreendido, entre outros, identificado como verba n.° 1, o prédio rústico, sito em Foros da Branca Pelados, com a área de 16,975 há, inscrito na matriz sob o artigo 18 da Secção BC e descrito na Conservatória do Registo Predial de Coruche, sob a ficha n.° 02982 da freguesia de Coruche.

           3- No apenso da liquidação da massa falida o seu administrador -AA- foi encarregado, por despacho proferido a fls. 696 deste apenso de proceder à venda dos bens que a integravam por negociação particular.

            4- Este administrador foi autorizado no mesmo despacho a ser coadjuvado na venda dos bens por uma agência de leilões especializada, a 1ª ré "CC, Lda.".

            5- Como coadjuvante do administrador e por encargo deste a 1ª ré realizou um leilão particular dos bens que integravam a massa falida em 24 de Novembro de 2000, como acto integrante da negociação particular e no sentido de se encontrar, para esses bens, o melhor preço.

            6- Nesse leilão, esteve presente o administrador da falência.

  7- Nesse leilão foi objecto de licitações o prédio urbano apreendido sob a verba n° 1, identificado em 2.

            8- A maior licitação para aquisição deste bem foi feita por DD, 2.° réu, que ofereceu 40.500.000$00 (quarenta milhões e quinhentos mil escudos).

         9- Por despacho proferido a fls. 672 do apenso de liquidação do activo, o administrador foi autorizado a adjudicar os imóveis pelas ofertas mais elevadas obtidas no leilão realizado.

 10- Na sequência desta autorização o administrador da falência deu instruções à 1ª ré "CC, Ld.ª" para que fosse preparando a escritura, trabalho que envolvia a recolha de toda a documentação necessária juntos dos serviços públicos, contactos com o promitente comprador e marcação da escritura no notário.

 11- O administrador da falência requereu nos autos de liquidação do activo a passagem de certidões judiciais para outorga das escrituras de compra e venda dos imóveis apreendidos, tendo sido emitida, designadamente, a que consta de fls. 77-78, nos termos da qual é escrito o seguinte, após breve resenha dos autos de falência n.° 752/92, do 2º Juízo Cível, do Tribunal da Comarca de Santarém: "É quanto me cumpre certificar em face do que consta nos mencionados autos aos quais me reporto em caso de dúvida e do que me foi ordenado, destinando-se a presente certidão a outorgar a escritura de venda dos prédios a seguir indicados, pela encarregada da venda nomeada nos autos "CC, Lda.»: (...)

6º - Prédio rústico, inscrito na matriz sob o art° 18 da Secção BC e descrito na Conservatória do Registo Predial de Coruche sob a ficha n.° 02982 da freguesia de Coruche. (...) Santarém, 06 de Fevereiro de 2001".

            12- Em faxes enviados pelo administrador da falência à 1ª ré, datados de 25 de Junho de 2002, 28 de Junho de 2002, 27 de Julho de 2002, 23 de Outubro de 2002 e 15 de Janeiro de 2003, aquele insistia para que a 1ª ré diligenciasse no sentido de obter toda a documentação necessária e marcasse a data da escritura de compra e venda no Cartório Notarial.

            13- A estes faxes a 1ª ré respondeu dizendo ainda não ter marcado a escritura em causa por falta de documentos ou disponibilidade do comprador.

            14- Iam sendo realizadas outras escrituras dos imóveis apreendidos.

            15- Em faxes datados em 5 de Fevereiro de 2003, 6 de Março de 2003, 28 de Maio de 2003, 5 de Junho de 2003, 18 de Junho de 2003 e 26 de Junho de 2003 o administrador intimou a 1ª ré a proceder à convocatória imediata das escrituras em falta.

            16- Em faxes datados de 23 de Maio de 2003 e 26 de Junho de 2003 a 1ª ré respondeu justificando a não realização da escritura com a dificuldade de obtenção de documentos necessários e com as dificuldades financeiras do comprador, anunciando que a escritura teria lugar em 11 de Julho de 2003.

 17- A escritura pública de compra e venda do imóvel apreendido sob a verba n.° 1, não se realizou no dia 11 de Julho de 2003.

            18- Por escritura pública realizada em 28 de Junho de 2001 no 4.° Cartório Notarial de Lisboa, perante o Licenciado FF, Notário do cartório, aqui 3.° réu, o réu DD já havia adquirido para si e sua mulher, a 2ª Ré mulher, com quem era casado em comunhão geral de bens, o prédio rústico identificado em 2.

            19- Na referida escritura de compra e venda consta que a 1ª ré tinha a qualidade de mandatária judicial e que fora encarregue de proceder à venda.

            20- A autora nunca recebeu o preço de 40.500.000$00 (quarenta milhões e quinhentos mil escudos = €202.013,15) que da escritura consta como pago pelo 2.° réu DD à 1ª ré "CC Lda.".

            21- Além do valor do prédio o réu DD pagou €159,73 de registo, €2.368,04 (474.750$00), de escritura e €16.161,05 de imposto municipal de sisa.

            22- O réu DD registou esta aquisição a seu favor pela Ap. 16/250604.

            23- A 1ª ré "CC, Lda." já tinha celebrado outras escrituras tendentes à liquidação da massa falida e desse facto deu conhecimento ao seu administrador, enviando-lhe o preço por si recebido, ainda no ano de 20021.

 24- Designadamente, por escritos de 05.02.20032 e 02.09.20033, o Sr. Administrador da falência 752/1992, da comarca de Santarém, instou a R.CC, Lda. a informá-lo sobre as escrituras já realizadas.

            25- Da celebração dessas escrituras não resultou qualquer prejuízo para a massa falida pois o administrador da falência recebeu o preço por si aceite e acordado, constante das escrituras.

            26- A partir do mês de Julho de 2003, o liquidatário judicial nomeado nos respectivos autos de falência deixou de receber qualquer comunicação da 1ª ré "CC, Lda.".

            27- A 1ª ré sempre omitiu ao administrador da falência a realização da escritura pública de compra e venda celebrada em 28 de Junho de 2001.

         3. Interposta revista para o STJ pelos RR./adquirentes do imóvel, foi a esta concedido provimento pelo acórdão proferido em 20/5/2015 – nele se considerando procedente a referida excepção de abuso de direito, esgrimida pelos RR. ora recorrentes.  Tal decisão assentou na seguinte fundamentação:

A questão fulcral debatida nos autos – e que obteve respostas diferentes das instâncias – consiste em apurar da eficácia – no confronto da massa falida - da venda por negociação particular de certo imóvel, efectivada em processo de liquidação universal pela entidade designada no processo para coadjuvar o administrador da falência, num caso em que tal entidade se apropriou do preço pago pelos adquirentes do imóvel, não o entregando ao referido administrador.

   Como dá nota o acórdão recorrido, das disposições legais aplicáveis ao presente litígio – as constantes das normas do CPC que regulavam a falência, antes de ter sido editada a lei especial ( o CPEREF) que revogou tais artigos, assumindo toda a regulação legal do processo de falência – a venda por negociação particular devia efectivamente ser feita pelo administrador , como representante da massa falida – não podendo, consequentemente, a celebração formal de tal negócio jurídico ser delegada nas entidades procedimentalmente designadas para coadjuvar o referido administrador.

    E, nesta perspectiva, face ao estatuído na norma constante do art. 1248º do CPC, a referida entidade coadjuvante do administrador carecia efectivamente de poderes representativos da massa falida para outorgar na escritura de compra e venda dos imóveis abrangidos pelo procedimento de liquidação de tal património autónomo.

   Porém, a circunstância de, em termos estritamente jurídico formais, se poder constatar a existência de uma ilegalidade no acto de venda -traduzida em a alienação do imóvel ter sido realizada a coberto de uma legitimação material de quem outorgou efectivamente na escritura juridicamente inexistente face à lei de processo em vigor - não dispensa o intérprete e aplicador do direito da necessidade de cuidada ponderação das circunstâncias concretas do caso, de modo a verificar se se configura como proporcional, adequado e conforme às cláusulas gerais da boa fé e da proibição do abuso de direito colocar todos os riscos e consequências de tal ilegalidade a cargo dos compradores que – de boa fé – confiaram razoavelmente em que a entidade, designada no âmbito do próprio processo falimentar com funções de coadjuvação do administrador e por ele controlada e fiscalizada, estava efectivamente mandatada para proceder à venda.

  É que, como adiante se demonstrará, no caso dos autos, tal ilegalidade no acto de venda é primacialmente imputável ao próprio administrador da massa falida – não podendo consequentemente a negligência deste, geradora de uma situação de representação aparente pelo auxiliar que se arvorou em encarregado da venda, deixar de, por alguma via, se repercutir na esfera do património autónomo representado pelo administrador que agiu sem a devida diligência no exercício das suas funções: não seria, na verdade, proporcional e adequado fazer repercutir  todas as consequências da ilegalidade procedimental cometida, com culpa do administrador da massa falida, exclusivamente sobre a esfera jurídica dos terceiros/adquirentes de boa fé ( totalmente privados, em termos práticos,  da via da acção de regresso sobre o auxiliar/representante aparente, tendente nomeadamente a reaver o preço pago na escritura, atentos os factos constantes do requerimento de fls. 93, implicando o encerramento e a provável insolvabilidade dessa empresa e desaparecimento dos seus representantes) .

  Embora no direito português não exista um princípio geral dirigido à tutela autónoma da aparência jurídica, susceptível de determinar como regra  , em sede representativa, a vinculação do representado ao negócio celebrado por quem, não detendo efectivos poderes de representação, os aparentava razoavelmente, de modo a criar fundadamente em terceiros de boa fé uma situação de fundada confiança na legitimação substancial do representante aparente –determinando as necessidades de tutela da confiança a sujeição do pretenso representado  aos efeitos do acto praticado a coberto dos aparentes poderes de representação – existem afloramentos pontuais desta ideia base – desde logo, com maior amplitude, no domínio do direito comercial (citando-se o decidido no acórdão de 1/4/14, proferido pelo STJ no P. 4739/03.0TVLSB.L2.S1).

   A circunstância de a relevância e efeitos da figura da representação aparente serem menos amplas e intensas no domínio do direito civil, relativamente ao que ocorre em direito comercial, não significa, porém, que não possam verificar-se situações excepcionais em que a tutela da fundada confiança do terceiro de boa fé na existência de poderes representativos de quem outorgou no negócio imponha a vinculação do próprio representado aos efeitos do acto: tal ocorrerá , nomeadamente quando a desprotecção do terceiro traduzisse uma insuportável lesão da confiança, incompatível com os ditames da boa fé e com a proscrição do abuso de direito - decorrente da simultânea existência de uma muito fundada aparência de poderes representativos e de uma reprovável negligência do representado na criação dessa mesma aparência fundada.

    Ora, considera-se que tais pressupostos se verificam inteiramente no caso dos autos:

   Assim, a ilegalidade procedimental cometida – traduzida em ter outorgado no acto de venda por negociação particular a empresa da leilões designada nos autos para coadjuvar o administrador da falência, e não este –tem de se imputar primacialmente a reprovável falta de diligência do próprio administrador da massa falida, à época em exercício, no controlo da actividade levada a cabo pelo auxiliar escolhido para o coadjuvar, criando justificadamente tal omissão , na pessoa do outro contraente na venda por negociação particular realizada, uma muito fundada e consistente aparência de poderes representativos por parte do auxiliar:

a) - em primeiro lugar, foi ele- o administrador da massa falida -  que escolheu e requereu a nomeação nos autos de falência da entidade que outorgou no acto de venda, cumprindo-lhe naturalmente aferir cuidadosamente da respectiva idoneidade para o exercício das funções que lhe estavam cometidas e fiscalizar diligentemente a respectiva actuação – e respondendo pelos actos de tal auxiliar nos termos do disposto no art. 800º do CC;

b)- ora, é manifesto - perante a factualidade apurada -  que o administrador não controlou diligente e adequadamente a actuação da entidade designada no processo para o coadjuvar, consentindo, nomeadamente, que esta outorgasse em várias outras escrituras de alienação de bens compreendidos na massa falida; saliente-se que se infere claramente da correspondência trocada entre o administrador e a leiloeira CC que aquele admitia perfeitamente que as escrituras de venda por negociação particular pudessem ser realizadas por esta sociedade, sem qualquer intervenção pessoal do administrador: veja-se, nomeadamente, o teor da carta de fls. 178, em que a administrador interpela aquela sociedade por quotas, solicitando-lhe que informe quais as escrituras entretanto realizadas e intimando-a a explicitar os motivos da falta de realização das restantes escrituras.

   Resulta, pois, claramente desse documento que o administrador conhecia e estava perfeitamente consciente de que – apesar da falta de poderes do auxiliar – este vinha outorgando de forma reiterada nos actos de  celebração das próprias escrituras de venda, em violação da aludida norma processual e em indevida ( mas por ele tolerada e consentida) substituição do próprio administrador.

   E não teve sequer o administrador, por outro lado, a cautela mínima de prescrever que a dita agência de leilões não devia, mesmo nas escrituras que viesse, porventura, a realizar indevidamente, poder receber o preço dos bens alienados, cumprindo antes depositar tal valor pecuniário em instituição de crédito, em termos análogos aos previstos no nº4 do art. 905º do CPC, na versão emergente da reforma de 1995/96, vigente à data da celebração da escritura - fazendo nomeadamente constar tal limitação do teor da certidão judicial por ele requerida para habilitar o auxiliar designado a intervir no processo.

c)- finalmente – e em termos de muito substancial relevância para a ponderação dos efeitos a atribuir à situação de representação aparente culposamente criada – verifica-se que o administrador da falência não teve a menor atenção ao teor da certidão judicial cuja passagem ele próprio terá requerido ( ponto 11 da matéria de facto) e que expressamente atestava que o dito auxiliar estava habilitado ao exercício das funções de encarregado da venda, atestando que a dita certidão se destinava a outorgar a escritura de venda dos prédios a seguir indicados, pela encarregada de venda nomeada nos autos CC, Lda.

   Como é evidente, esta manifesta falta de cuidado do representante legal da massa falida no controlo do efectivo teor da certidão emitida, antes de a mesma ser entregue ao auxiliar e assim introduzida no comércio jurídico – servindo de base à actuação jurídica do dito auxiliar - era susceptível de iludir justificadamente terceiros sobre o âmbito efectivo dos poderes de representação que nos autos de falência estavam cometidos à CC, criando uma situação de representação aparente da massa falida por essa sociedade relativamente aos

actos de alienação em causa, cujas consequências não podem ser feitas repercutir exclusivamente sobre os terceiros de boa fé que, nomeadamente,  confiaram justificadamente no teor da dita certidão, solicitada e obtida  pelo próprio administrador como instrumento indispensável á feitura dos negócios de venda dos bens integrados na massa falida.

   Ou seja: o administrador da falência contribuiu decisivamente - com a falta de diligência no controlo da fidedignidade da certidão que serviu de suporte à actuação da CC e do próprio âmbito da actividade que vinha sendo efectivamente desenvolvida por esta entidade , nomeada nos próprios autos de falência - para a criação de uma justificada aparência de poderes representativos do auxiliar, decorrentes, desde logo, de se mostrar certificada a qualidade de encarregado da venda – que o habilitava, aos olhos do outro contraente - de boa fé - à realização da escritura de venda por negociação particular.

   Tal actuação negligente do administrador da falência – representante institucional e legal da própria massa falida, como património autónomo – não pode deixar de se repercutir na esfera jurídica da entidade por si legalmente representada, vinculada também ela, em conformidade com os princípios da boa fé, a ter de suportar as consequências do investimento na confiança justificadamente feito pelo outro contraente,  em função dos actos e omissões plenamente imputáveis ao dito representante legal.

Na verdade,  o terceiro/adquirente de boa fé confiou justificadamente na legitimação substancial de quem lhe foi apresentado como detentor da  qualidade de encarregado da venda por negociação particular do imóvel, sendo claramente desproporcionado que quem criou a aparência de poderes representativos para outorgar na venda por negociação particular realizada possa vir  ulteriormente pretender eximir-se à eficácia do negócio, alegando que tal qualidade, apesar de expressamente  certificada, se não verificava…

   E, neste concreto circunstancialismo, traduz efectivamente um reprovável venire contra factum proprium a pretensão de - eximindo-se à eficácia  do negócio realizado –pretender colocar exclusivamente a cargo do outro contraente de boa fé as consequências desfavoráveis da aparência de poderes representativos, plenamente imputável a actos e omissões  do representante legal da massa falida, - que tolerou que um seu auxiliar, processualmente designado apenas para o coadjuvar, actuasse – embora irregularmente – como verdadeiro encarregado da venda por negociação particular dos imóveis compreendidos na massa falida.

         4. Este acórdão transitou em julgado.

    No prazo de 30 dias, veio a A. /massa falida interpor recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência, com base na contradição da solução acolhida no acórdão recorrido com a que foi adoptada no acórdão fundamento- o proferido pelo STJ em 16/10/2014, noutro apenso da mesma falência, em que – perante um quadro factual perfeitamente idêntico ao dos autos – se considerou improcedente a referida excepção de abuso de direito, confirmando o decidido pela Relação e afirmando:

Invoca o recorrente o abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.

O abuso de direito significa o exercício de um direito , de forma inesperada, de acordo com os princípios da boa fé.

Na modalidade em causa significa que aquele que vem agora exercer o direito praticou anteriormente um facto que torna contrário à boa fé aquele exercício. No caso, seria o facto de o administrador da falência ter encarregado a 1ª R. de proceder à venda do bem em questão, o que inculcaria que lhe tinha conferido os poderes para a outorgar .

A verdade é que não foi isso que aconteceu. O que o administrador da falência fez foi deferir à 1ª R. a licitação e a adjudicação. Não a concretização da venda. Donde que não se tenha criado uma situação de boa fé sobre os poderes da 1ª R. que pudessem levar a entender que ela tinha os necessários poderes para vender. Dos autos não resulta a possibilidade de tal convencimento, não existindo, por isso, o anterior facto contrário ao actual exercício do direito.

Logo não ocorre o abuso de direito

   A recorrente formula as seguintes conclusões:

A - Quanto à contradição de Acórdãos

1ª- O Acórdão recorrido aplicou a lei de forma diferente - oposta, digamos - ao Acórdão de 16/10/2014 deste STJ proferido na Revista nº 752-E/1992.E1.S1, que se junta;

2ª- A divergência na aplicação da lei consiste em o Acórdão ora recorrido entender ocorrer na espécie abuso de direito na modalidade venire contra factum proprium enquanto o Acórdão em contradição, considerando expressamente a questão dessa ocorrência, decide que a mesma não se verifica;

3ª- Ambos os Acórdãos são proferidos no domínio da mesma legislação - o CPC, na versão anterior à revisão de 1995, e o Código Civil;

4ª- A situação de facto que subjaz a esta diferente aplicação da lei é igual ou, ao menos, não tem diferenças em que se baseie ou justifiquem essa diferença, tendo os dois Acórdãos sido proferidos em duas acções apensas aos mesmos autos de falência e esta ido em causa em ambos factos (e razões de direito) iguais - a outorga da escritura de venda pela agência de leilões que coadjuvava o Administrador da Falência de dois prédios que integravam a Massa Falida, tendo-se a agência apropriado para si do preço dessas escrituras que não entregou à Massa;

B - Quanto à errada aplicação da lei pelo douto Acórdão sob recurso

5ª- Numa venda por negociação particular em processo de falência no domínio do regime do CPC já revogado (em 1995) - o aplicável à hipótese dos autos - só o Administrador da Falência podia outorgar numa escritura de venda - arts. 1248º e 1211º do CPC;

6ª- Assim, uma venda outorgada em alegada representação da Massa por outra entidade era ineficaz em relação a esta;

7ª- O Administrador da Falência, no caso concreto dos autos, não está impedido de fazer valer essa  ineficácia,  reivindicando do comprador o  prédio vendido,  por esta pretensão  não representar abuso de direito, nomeadamente na modalidade de venire contra factum proprium; nomeadamente,

8ª- O Administrador da Falência nada fez que levasse o comprador a pode r supor que não exerceria esse direito;

9ª- O facto de o comprador porventura ignorar a lei e que a agência de leilões outorgante não podia obrigar a Massa Falida, não é susceptível de impedir as consequências da lei, mesmo desfavoráveis para si, nos termos do art. 69 do CC; e

10ª- O facto de o Administrador da Falência não ter questionado escrituras cm que outorgou como vendedora a agência de leilões e o preço de venda foi entregue pela mesma ia à Massa Falida não é paralelo ao caso dos autos em que a agência se apropriou desse preço (e escamoteou do Administrador a outorga da escritura de venda);

11ª- Uma vez que, desde logo, o interesse que primacialmente se salvaguarda na liquidação de uma Massa Falida é o ressarcimento na maior medida possível dos respectivos credores;

12ª- Assim, ninguém de boa fé poderia legitimamente esperar que fossem ratificadas escrituras em que o preço não foi recebido, em prejuízo directo dos referidos credores;

13ª- Ao não fazer essa ratificação, o Administrador age na estrita defesa dos interesses que lhe cumpre salvaguardar e não com abuso de direito;

14ª- Deste modo não está preenchida a previsão do art. 334º do CC;

15ã- Quando não decidiu em conformidade com as conclusões anteriores o aliás douto Acórdão recorrido violou, entre outras disposições legais, o disposto nos arts. 1248º e 1211º, nº 2 do CPC (redacção em vigor à data da decretação da falência dos autos) e 6º e 334º da Código Civil.

Termos em que, e nos mais de Direito, deve ser reconhecida a contradição entre os dois Acórdãos identificados - o agora recorrido e o proferido em 16/10/2014 na Revista nº 752-E/1992.E1.S1 - e, após, reconhecer que o agora recorrido não faz a melhor aplicação da lei, tendo-a feito, sim, o Acórdão indicado em contradição. Em consequência, deve ser proferida decisão dando provimento ao presente recurso e, em conformidade, revogar o douto Acórdão recorrido e substitui-lo por outro em que se decida que, na espécie, não ocorre abuso de direito, designadamente na modalidade de venire contra factum proprium, pelo que deve manter-se o decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no douto Acórdão que o presente revogou, condenando-se os RR como do mesmo consta.

Para tanto, requer-se seja o presente requerimento, contendo alegação nos termos do nº 1 do art. 690º do CPC, autuado por apenso, seguindo-se os ulteriores termos.

   Por sua vez, os recorridos contra alegaram, formulando as seguintes conclusões:

A) Como se lê em 11 "O administrador da falência requereu nos autos de liquidação do activo a passagem de certidões judiciais para outorga das escrituras de compra e venda dos imóveis apreendidos, tendo sido emitida, designadamente, a que consta de fls. 77-78, nos termos da qual é escrito o seguinte, após breve resenha dos autos de falência n° 752/92, do 2º Juízo Cível, do Tribunal da Comarca de Santarém: "É quanto me cumpre certificar em face do que consta nos mencionados autos aos quais me reporto em caso de dúvida e do que me foi ordenado, destinando-se a presente certidão a outorgar a escriture de venda dos prédios a seguir indicados, pela encarregada da venda nomeada nos autos "CC, Lda." (sublinhado nosso).

B) Como se pode verificar, foram atribuídos, pelo administrador da insolvência, poderes para que a "CC, Lda.", procedesse à venda do prédio dos autos.

C) O próprio administrador da falência, ao serem-lhe entregues as certidões que atrás se referem e que ele próprio requereu, tomou conhecimento do seu teor, nomeadamente, quanto aos poderes de venda atribuídos à leiloeira, mas, mesmo assim, não se coibiu de lhe as entregar, para que esta celebrasse a escritura.

D) Foram realizadas outras escrituras do mesmo teor e com certidões idênticas, como consta em 23 e 24.

E) Os ora Recorridos realizaram a escritura de boa-fé, perante notário público e com a outra parte munida de uma certidão emitida pelo próprio Tribunal, após requerimento para tal do próprio administrador da falência, a autorizá-la a celebrar tal escritura.

F) Os ora Recorridos pagaram o preço, a escritura e o respectivo registo.

 G) Se neste caso a Ia R. não entregou o preço à administração da massa falida, como fizera noutras ocasiões idênticas, a tal são alheios os Recorridos, que, repete-se, sempre agiram de boa-fé.

H) A administração da massa falida sempre tinha celebrado escrituras, através da I.ª R., nos precisos termos em que efectuara a dos autos.

I) Ao querer a anulação da presente escritura está a administração da massa falida a agir em abuso de direito, vindo contra facto por si criado, pois bem sabia que ela seria realizada nos moldes em que o foi,

Pelo que muito bem esteve a douta sentença de I.ª Instância.

Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve ser mantido o douto acórdão recorrido e mantida a douta sentença de Ia Instância,

         5. Pelo relator foi proferido despacho de admissão do presente recurso extraordinário, nos seguintes termos:

1. Nos 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado do acórdão proferido em 20/5/2015 nos presentes autos, a Massa Falida de BB veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, invocando como acórdão fundamento o proferido em 16/10/14 , pela 2ª Secção, não publicado, mas de que juntou cópia certificada, com nota de trânsito em julgado.

   Autuado por apenso tal requerimento e junta a alegação dos recorridos, importa determinar liminarmente se se verificam os pressupostos de admissibilidade de tal recurso.

Como se afirmou, por exemplo, no Ac. de 29/1/15 (P.20580/11.4T2SNT.S1-A, de14/4/15 ), para que exista um conflito jurisprudencial, susceptível de ser dirimido através do recurso extraordinário previsto no art. 688.º do NCPC (2013), é indispensável que as soluções jurídicas, acolhidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, assentem numa mesma base normativa, correspondendo a soluções divergentes de uma mesma questão fundamental de direito. 

O preenchimento deste requisito supõe que as soluções alegadamente em conflito: 

a) correspondem a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica fundamental: implica isto, não apenas que não hajam ocorrido, no espaço temporal situado entre os dois arestos, modificações legislativas relevantes, mas também que as soluções encontradas num e noutro acórdão se situem no âmbito da interpretação e aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica - não integrando contradição ou oposição de acórdãos o ter-se alcançado soluções práticas diferentes para os litígios através da respectiva subsunção ou enquadramento em regimes normativos materialmente diferenciados; 

b)  têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto; 

c) a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, ou seja, que integre a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto não relevando os casos em que se traduza em mero obter dictum ou num simples argumento lateral ou coadjuvante de uma solução já alcançada por outra via jurídica. 

E daqui decorre que  não se verificam os pressupostos de tal recurso extraordinário quando ocorrem diferenças substanciais na matéria litigiosa subjacente aos acórdãos recorrido e fundamento, normativamente relevantes, implicando a composição dos litígios a convocação e aplicação de regimes normativos perfeitamente diferenciados.

2.  Ora, analisada a situação dos autos, considera-se que tais pressupostos devem ter-se por verificados.

   Assim, ambos os acórdãos – recorrido e fundamento – assentam em situações factuais que, do ponto de vista normativo, devem ter-se por idênticas ou sobreponíveis: a matéria litigiosa, objecto de várias acções apensadas ao processo de falência, têm na sua base factualidades praticamente sobreponíveis, apenas variando os elementos circunstanciais, decorrentes de estarem em causa várias escrituras, celebradas com adquirentes diversos e em datas e condições particulares específicas de cada contrato: o que está em causa é sempre apurar da validade e eficácia de cada escritura de aquisição de imóveis apreendidos para a massa, pela circunstância de nela ter outorgado, não o administrador, mas um auxiliar deste, nomeado no processo para o coadjuvar ( mas sem poderes para a celebração de tais negócios jurídicos). Embolsando o respectivo preço : a principal diferença em tal quadro factual base, comum essencialmente a ambas as decisões, acaba por ser o facto 20 do acórdão fundamento, em que se especifica que o administrador não havia requerido que da certidão judicial passada constasse que a entidade que o coadjuvava no processo era encarregada da venda dos imóveis.

    Considera-se, porém, que tal diferença ou nuance factual não se projecta, de forma relevante, na fundamentação dos arestos em confronto e na respectiva ratio decidendi, já que se considerou, na decisão ora recorrida, que a negligência manifesta do administrador se traduziu em não ter controlado adequadamente o teor da dita certidão (independentemente dos precisos termos em que teria sido requerida a sua passagem), permitindo que esta entrasse em circulação no comércio jurídico, em termos de iludir terceiros acerca dos efectivos poderes jurídicos que cabiam ao seu auxiliar processual, cuja actuação estava obrigado a fiscalizar e controlar e por cujos actos respondia, afinal, como comitente.

 Em segundo lugar, os acórdãos em confronto revelam efectivamente uma diferente interpretação da figura do abuso de direito ( art. 334º do CC), na modalidade de venire contra factum proprium – afastando o acórdão fundamento claramente a possibilidade de subsunção do quadro factual apurado à dita figura do abuso de direito – e entendendo, pelo contrário, o acórdão recorrido – com apelo às figuras da representação tolerada e da representação aparente -  que traduz um reprovável venire contra factum proprium a pretensão deduzida pelo administrador, como representante legal da massa falida, destinada a obter a declaração de ineficácia da venda por negociação particular de imóvel, realizada pelo auxiliar designado ao referido administrador–colocando exclusivamente a cargo do outro contraente de boa fé as consequências desfavoráveis da aparência de poderes representativos, em que justificadamente confiou, imputável a actos e omissões do próprio representante legal da massa falida.

   Finalmente – e como parece incontroverso – estas diferentes interpretações normativas do conceito de boa fé projectam-se, de forma decisiva, na solução de mérito alcançada para o litígio.

3. Nestes termos, não se verificando os obstáculos à admissibilidade do recurso previstos no nº2 do art. 641º do CPC, tendo o recorrente cumprido adequadamente os ónus previstos no art. 690º e existindo entre as decisões em confronto a alegada divergência de interpretações normativas – sobre a qual nunca recaiu acórdão de uniformização proferido por este Supremo - admite-se o recurso, ao abrigo do disposto no nº1 do art. 692º, fixando-se-lhe o efeito meramente devolutivo ( art. 693º CPC). Remetam-se os autos à distribuição, nos termos do nº5 do art. 692º.

         6. Foi determinada a vista dos autos ao Exmo. representante do MºPº. nos termos das disposições conjugadas dos arts. 687º, nº1, e 695º do CPC, sendo emitido parecer do seguinte teor:

No presente recurso para fixação de jurisprudência invoca o Autor/Recorrente que o acórdão recorrido aplicou a lei de forma diferente ao acórdão de 16/10/2014 deste STJ proferido na revista nº 752-E/1992.E1.S1, consistindo a divergência na aplicação da lei em o acórdão recorrido entender ocorrer na espécie abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium enquanto o acórdão em contradição, considerando expressamente a questão dessa ocorrência, decide que a mesma não se verifica, mais sustentando o recorrente que o acórdão recorrido não fez a melhor aplicação da lei, por não estar preenchida a previsão do artigo 334 do C.Civil, inexistindo abuso de direito, concluindo a suas alegações requerendo que seja reconhecida a contradição entre os dois acórdãos e, após, reconhecido que o acórdão recorrido não fez a melhor aplicação do direito, devendo em consequência ser proferida decisão dando provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e substituindo-o por outro em que se decida que, na espécie não ocorre abuso de direito, designadamente na modalidade de venire contra factum proprium.

A questão suscitada no recurso circunscreve-se à questão do abuso de direito, sustentando o recorrente que in casu não está preenchida a previsão do artigo 334º do Cod. Civil.

 No despacho de admissão do recurso considerou-se existir entre o acórdão recorrido e acórdão fundamento, “uma diferente interpretação da figura do abuso de direito (art. 334 do CC), na modalidade de venire contra factum proprium – afastando o acórdão fundamento claramente a possibilidade de subsunção do quadro factual apurado à dita figura do abuso de direito – e entendendo, pelo contrário o acórdão recorrido – com apelo às figuras da representação tolerada e da representação aparente – que se traduz num reprovável venire contra factum proprium a pretensão deduzida pelo administrador, como representante legal da massa falida, destinado a obter a declaração de ineficácia da venda por negociação particular de imóvel, realizada pelo auxiliar designado ao referido administrador – colocando exclusivamente a cargo do outro contraente de boa fé as consequências desfavoráveis da aparência de poderes representativos, em que justificadamente confiou, imputável a actos e omissões do próprio representante legal da massa falida” (…), acrescentando-se que “estas interpretações normativas do conceito de boa fé projectam-se, de forma decisiva, na solução de mérito alcançada para o litígio”.

b. acórdão fundamento e acórdão recorrido

1. Efectivamente o acórdão fundamento, proferido ante quadro fáctico e normativo rigorosamente idêntico, apenas com uma irrelevante diferença na matéria de facto, depois de decidir que a venda realizada é ineficaz perante a autora [massa falida de BB], por falta de poderes de representação da [ 1ª] Ré CC para outorgar na escritura de compra e venda, no que concerne ao abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium invocado pela 2ª Ré e recorrente, adquirente do imóvel, tem o seguinte teor:

“O abuso de direito significa o exercício de um direito, de forma inesperada, de acordo com os princípios da boa fé.

Na modalidade em causa significa que aquele que vem agora exercer o direito praticou anteriormente um facto que torna contrária à boa fé aquele exercício. No caso, seria o facto do administrador da falência ter encarregado a 1ª ré de proceder à venda do bem em questão, o que inculcaria que lhe tinha conferido poderes para a outorgar.

A verdade é que não foi isso que aconteceu. O que o administrador da falência fez foi deferir à 1ª ré a licitação e a adjudicação. Não a concretização da venda. Donde que não se tenha criado uma situação de boa fé sobre os poderes da 1ª ré que pudessem levar a entender que tinha ela os necessários poderes para vender. Dos autos não resulta a possibilidade de tal convencimento, não existindo, por isso, o anterior facto contrário ao actual exercício do direito.

Logo não ocorre o abuso de direito”.

2. Já o acórdão recorrido, equacionando juridicamente a questão da ilegalidade da venda na perspectiva da representação aparente pelo auxiliar, considerou, por um lado que, tal ilegalidade no acto da venda é primacialmente imputável ao próprio administrador da massa falida, afirmando que:

 “não podendo a consequente negligência deste, geradora de uma situação de representação aparente pelo auxiliar que se arvorou em encarregado da venda, deixar, de, por alguma via, se repercutir na esfera do património autónomo representado pelo administrador que agiu sem a devida diligência no exercício das suas funções: não seria na verdade, proporcional e adequado fazer repercutir todas as consequências da ilegalidade procedimental cometida, com culpa do administrador da massa falida, exclusivamente sobre a esfera jurídica de terceiros adquirentes de boa fé”,

mais considerando que podem, no domínio do direito civil, “verificar-se situações excepcionais em que a tutela da fundada confiança do terceiro de boa fé na existência de poderes representativos de quem outorgou no negócio imponha a vinculação do próprio representado para os efeitos do acto: tal ocorrerá, nomeadamente quando a desprotecção do terceiro traduzisse uma insuportável lesão da confiança, incompatível com os ditames da boa fé e com a proscrição do abuso de direito – decorrente da simultânea existência de uma muito fundada aparência de poderes representativos e de uma reprovável negligência do representado”.

Considerou, por outro lado, que no caso dos autos, a ilegalidade procedimental cometida –traduzida em ter outorgado no acto de venda por negociação particular a empresa de leilões designada nos autos para coadjuvar o administrador da falência e não este- tem de se imputar primacialmente a reprovável falta de diligência do próprio administrador da massa falida, à época em exercício, no controlo da actividade levada a cabo pelo auxiliar escolhido para o a coadjuvar, criando justificadamente tal omissão, na pessoa do outro contraente na venda por negociação particular realizada, uma muito fundada e consistente aparência de poderes representativos por parte do auxiliar”.

Considerou, finalmente, na apreciação e análise da actividade e conduta do administrador da falência, que o mesmo agiu com manifesta falta de cuidado e negligência, decisivas para a criação de uma justificada aparência de poderes representativos do auxiliar, com repercussões na esfera jurídica da entidade por si legalmente representada, em conformidade com os princípios da boa fé, concluindo que, no concreto circunstancialismo apurado e detalhadamente analisado, traduz um reprovável venire contra factum proprium a pretensão de – eximindo-se à eficácia do negócio realizado- pretender colocar exclusivamente a cargo do outro contraente de boa fé as consequências desfavoráveis da aparência de poderes representativos, plenamente imputáveis a actos e omissões do representante legal da massa falida- que tolerou que um seu auxiliar, processualmente designado apenas para o coadjuvar, actuasse- embora irregularmente- como verdadeiro encarregado da venda por negociação particular dos imóveis compreendidos na massa falida, ou seja, considerou que o Autor, administrador da massa falida actuou com abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

3. No despacho de admissão do recurso considerou-se existir entre o acórdão recorrido e acórdão fundamento, “uma diferente interpretação da figura do abuso de direito (art. 334 do CC), na modalidade de venire contra factum proprium – afastando o acórdão fundamento claramente a possibilidade de subsunção do quadro factual apurado à dita figura do abuso de direito – e entendendo, pelo contrário o acórdão recorrido – com apelo às figuras da representação tolerada e da representação aparente – que se traduz num reprovável venire contra factum proprium a pretensão deduzida pelo administrador, como representante legal da massa falida, destinado a obter a declaração de ineficácia da venda por negociação particular de imóvel, realizada pelo auxiliar designado ao referido administrador – colocando exclusivamente a cargo do outro contraente de boa fé as consequências desfavoráveis da aparência de poderes representativos, em que justificadamente confiou, imputável a actos e omissões do próprio representante legal da massa falida” (…), acrescentando-se que “estas interpretações normativas do conceito de boa fé projectam-se, de forma decisiva, na solução de mérito alcançada para o litígio”.

c. abuso de direito

Segundo o artigo 334º do C. Civil, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».

Porque o Código Civil vigente consagrou a concepção objectivista do abuso de direito, não se exige, por parte do titular do direito, a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que, objectivamente, esses limites tenham sido excedidos de forma manifesta e grave – cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de 5.5.2015, Procº 3820/07.1TVLSB.L2lS1, in www.dgsi.pt.

Consagra-se, como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal que passaremos a citar, de 9.9.2015, Pº nº 499/12.2TTVCT.G1.S1, neste dispositivo um princípio fundamental da ordem jurídica, qual seja o de que o exercício dos direitos tem limites, pelo que a titularidade de um direito não confere um complexo de poderes absolutos inerente ao seu exercício.

Por um lado, o exercício dos direitos está limitado pela boa fé e pelos bons costumes, e, por outro lado, pelas finalidades de natureza económica e social subjacentes à conformação desse direito.

Deste modo, «o exercício do direito não deve exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, por a todos se impor uma conduta de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis no comércio jurídico, pelo que «os sujeitos de determinada relação jurídica devem agir como pessoas de bem, com correção e probidade, de modo a contribuírem, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica» ( cf. Ac. do STJ, de 15.12.2011, Pº 2/08.9TTLMG.P1.S1).

Assim, «serão excedidos limites impostos pela boa fé, designadamente, quando alguém pretenda fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior, quando tal conduta objetivamente interpretada, de harmonia com a lei, justificava a convicção de que se não faria valer o mesmo direito», e «outro tanto se poderá dizer dos limites impostos pelos bons costumes, ou seja, pelo conjunto de regras éticas de que costumam usar as pessoas sérias, honestas e de boa conduta no meio social onde se mostram integradas»[14].

De acordo com VAZ SERRA, Abuso do Direito (em Matéria de Responsabilidade Civil”, Boletim do Ministério da Justiça, nº 85, Abril de 1959, p. 253, «há abuso do direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a do titular do direito ser tratado como se não tivesse direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito contratual», e de acordo com o mesmo autor, quanto a saber quando haveria «ofensa clamorosa do sentimento jurídico», existiriam duas orientações fundamentais: «a subjetiva, segundo a qual há abuso quando o direito é utilizado com o propósito exclusivo de prejudicar outrem (ato emulativo); a objetiva, segundo a qual o abuso se manifesta, objetivamente, na grave oposição à função social do direito, no facto de se exceder o uso normal do direito ou em circunstâncias mais ou menos equivalentes»[15].

De acordo com PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 3ª edição, 1982, p. 297, «para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na coletividade» e no que respeita «ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei»[16].

Ainda segundo estes autores, «a nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito o do contexto em que ele deve ser exercido», ibidem, citando Castanheira Neves – Questão de Direito, I, pp. 513 e ss.

Na síntese do acórdão desta Secção, de 15 de Dezembro de 2011, proferido na revista n.º 2/08.9TTLMG.P1S1, poderá dizer-se que «existirá abuso do direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apodicticamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado».

Segundo Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra, Almedina, páginas 249 a 269, citado no acórdão deste Supremo Tribunal de 25.11.2014, Procº 3220/07.3TBGDM.B.P1.S1, o abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente e a sua proibição radica no princípio da confiança, pois “(…) um comportamento não pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas". E, segundo este autor, os pressupostos da protecção da confiança através do venire contra factum proprium passam, ou traduzem-se em, por:

" 1° - uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);

2° - uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;

3° - um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma conduta na base ao factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4° - Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível."

A jurisprudência do STJ, de que são, entre muitos, exemplo os acórdãos de 21.9.93, C.J., STJ, Ano I-III.21, de 1.03.2007, Pº 06A4571, de 8.6.2010, Pº 3161/04.6TMSNT.L1.S1, de 28.2.2012, Pº349/06.8TBOAZ.P1.S1, de 7.9.2015, Pº 769/08.1TVPRT.P1.L1 e de 9.9.2015, Pº 499/12.2TTVCT.G1.S1, aceita serem basicamente estes os pressupostos da figura de «venire contra factum proprium»

d. inexistência de contradição entre os acórdãos

1. Acontece, salvo o devido respeito, que relativamente à figura do abuso do direito, consagrada no artigo 334 do Cod. Civil, na modalidade de venire contra factum proprium  - sendo essa exclusivamente a questão que vem suscitada no presente recurso- não se vislumbra qualquer diferente interpretação normativa perfilhada pelo acórdão fundamento e o acórdão recorrido, não se alcançando em que possa consistir a eventual divergência de interpretações da figura e conceito em questão.

2. O que se passou, na verdade, foi que o acórdão fundamento, perante os mesmos factos considerou inexistir abuso de direito, na modalidade em causa, e o acórdão recorrido existir abuso de direito, o que, salvo melhor opinião, não reflete nem configura, qualquer divergência interpretativa sobre tal instituto, susceptível de ser “dirimida” através de fixação de jurisprudência, mas uma divergente interpretação, apreciação e valoração dos factos, que num caso, o do acórdão fundamento, foi no sentido de não se verificar abuso de direito, e no acórdão recorrido no de se verificar abuso de direito.

3. Mais, se bem o interpretamos o acórdão recorrido, a cuja fundamentação, diga-se, inteiramente aderimos, no recorte e consequências que, fundado princípio da tutela autónoma da aparência jurídica e da protecção da fundada confiança de terceiros de boa fé, extrai da figura da representação aparente pelo auxiliar, considerando existir no caso uma muito fundada aparência de poderes representativos, e uma reprovável negligência do representado, sempre concluiria pela vinculação do representado ao negócio, independentemente do abuso do direito, que considerou verificar-se – e bem- por parte do representante, já que a reprovável negligência do representante em que se respalda tal solução não coincide necessariamente, cremos, com a figura, porventura, ainda que  no quadro da concepção objectivista legalmente consagrada, de recorte mais fino e apertado, do abuso de direito ( que, também, acertadamente, se considerou existir), não se vendo, sempre salvo o devido respeito, qual o sentido na discussão em torno desta figura quando, ao que cremos, a solução de direito sempre seria a mesma, pois que ainda que interligadas, a resposta e solução encontrada para a representação aparente, no quadro dos autos e do seu específico circunstancialismo, se reveste de autonomia que prescinde da análise da segunda.

4. Ponto é que a figura do abuso de direito, em qualquer das suas modalidades, venire contra factum proprium, ou outra, consagrada no artº 334º do Cód. Civil, nos termos do qual é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”, objecto de abundante tratamento doutrinário e jurisprudencial, não é susceptível de ser apreciado em abstracto, e de, em abstracto gerar diferentes interpretações jurisprudenciais, carecendo o preenchimento do conceito dos factos concretos apurados e da sua subsunção, ou não, ao conceito ou definição plasmados na citada disposição legal, que o mesmo é dizer, que depende, em cada caso, da apreciação e valoração dos factos da causa pelo tribunal, e do apuramento de factos de cuja apreciação e valoração o tribunal conclua, na modalidade de venire contra factum proprium, pela existência de uma situação de confiança – uma conduta de alguém que possa ser entendida como posição vinculante em relação à situação futura- e o investimento na confiança pela contraparte e boa fé desta[1]-, ou seja, o “preenchimento”, ou subsunção da factualidade, ao conceito de abuso de direito, depende, em cada caso, da apreciação e valoração de factos, dos factos da causa, a ponderar casuisticamente, pelo tribunal.

5. É isso, não mais, que aqui está em causa: enquanto no acórdão fundamento se concluiu dos factos inexistir abuso de direito, no acórdão recorrido, concluiu-se pela existência de abuso de direito, situando-se a divergência entre ambos na mera apreciação e valoração, efectivamente divergente, da mesma factualidade (sem que, todavia, se verifique, no rigor dos conceitos identidade dos pressupostos de facto, e, portanto de um dos pressupostos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência), e não de diversa interpretação e aplicação do normativo do artigo 334º do Cod. Civil, inexistindo, consequentemente qualquer diferendo jurisprudencial a resolver por fixação de jurisprudência, que não se vê em que sentido possa, no caso, fixar-se, sendo, aliás, de notar que, tanto quanto resulta das alegações de recurso o recorrente o que pretende ver apreciado é o que considera ser um erro de julgamento do acórdão recorrido.

e. conclusão

Não se verificando, portanto, os requisitos necessários para o recurso de fixação de jurisprudência, que, consequentemente, não deve ser admitido.

         7. Importa, pois, começar por apreciar a questão prévia suscitada no anterior parecer.

   Note-se que, na concreta situação dos autos, é inegável que as perspectivas de solução jurídica do pleito, adoptadas nos acórdãos em confronto, são frontalmente antagónicas – conduzindo naturalmente a resultados práticos e jurídicos perfeitamente  opostos.

   Por outro lado, não parece haver dúvidas quanto à circunstância de, neste caso, tal dualidade ou diversidade de soluções jurídicas para o pleito não se poder imputar a quaisquer diferenças relevantes na matéria de facto subjacente ao litígio, num e noutro dos processos em que foram proferidos os acórdãos em confronto, já que a matéria de facto que lhes estava subjacente era perfeitamente coincidente: ora, a ser assim, a radical diversidade de soluções jurídicas alcançadas só pode ser encontrada num plano normativo que – no caso - passa pela divergente interpretação dos contornos do instituto do abuso de direito, excepcionado pelos RR em ambas as acções.

    É certo que, em situações normais e correntes, as cláusulas gerais, como as da boa fé e do abuso de direito, não são susceptíveis de apreciação em abstracto, independentemente das concretas , peculiares e casuísticas circunstâncias da matéria de facto litigiosa, bastando alguma nuance desta para se poder ter por afastada, no estrito plano normativo; a efectiva contradição das soluções jurídicas; ou seja, normalmente não será possível suscitar um recurso de uniformização de jurisprudência em torno da concretização ou densificação das referidas  cláusulas gerais, já que o preenchimento destas está indissoluvelmente ligado à ponderação e valoração das concretas situações litigiosas, quase sempre apresentando particularidades ou especificidades, que o intérprete terá naturalmente de  ponderar e valorar ao pronunciar-se sobre a subsunção de uma dada e concreta realidade da vida ao âmbito de determinada  cláusula geral.

    Saliente-se que este fenómeno tem criado dúvidas sobre a possibilidade de controlo – necessariamente normativo -  pelo TC do preenchimento e concretização de conceitos indeterminados ou de cláusulas gerais, já que tal operação implica uma valoração até certo ponto discricionária e casuística das circunstâncias próprias e específicas de cada caso concreto, potenciando um desdobramento da norma em plúrimas interpretações possíveis da mesma, delineadas em função do circunstancialismo tido por relevante em cada caso concreto: vejam-se, por exemplo, as objecções formuladas no Acórdão 655/99, ao considerar desprovido de natureza normativa a interpretação judicial realizada, sempre que estiver em causa o preenchimento e densificação de cláusulas gerais de segundo grau – como o são as da boa fé e do abuso de direito – potenciadoras de um controlo jurisdicional do resultado formal da aplicação das restantes normas que integram o ordenamento jurídico; na verdade, entendeu-se em tal aresto que:

O juízo aplicativo do critério sindicante do abuso do direito, concretizado numa decisão judicial em face de um particular conjunto concreto de circunstâncias (e, para a concepção dominante, segundo um determinado critério valorativo), é destituído do sentido normativo, com independência da sua decisão concretizadora, necessário a poder constituir objecto de sindicância por parte deste Tribunal – confinado que está este, em sede de recurso de constitucionalidade, às funções de controlo de constitucionalidade normativa.

A cláusula do abuso de direito – cláusula geral como que "de segundo grau", possibilitadora de um controlo do resultado da aplicação das restantes normas, incluindo as que contenham outras cláusulas gerais (ver, para esta distinção, C. Mota Pinto, Cessão..., cit., págs. 311-2, e Teoria geral do direito civil, cit., 1985, págs. 51-2) – reveste-se de uma singularidade irrepetível na sua concretização, de acordo com os estalões ou padrões valorativos para que remete, em cada acto de concretização/aplicação, singularidade de concretização, essa, que desqualifica o seu juízo aplicativo como objecto do controlo de constitucionalidade, confinado este, como está, a normas, e excluindo decisões judiciais.

   Considera-se, porém, que –apesar de o recurso de uniformização de jurisprudência deter também, tal como os recursos de constitucionalidade,  um carácter tipicamente normativo - tal objecção não releva, ao menos na situação ora em análise, fundamentalmente pela circunstância de a matéria de facto litigiosa, subjacente a cada uma das acções em que foram proferidos os acórdãos em confronto, ser perfeitamente idêntica e sobreponível – o que obriga naturalmente a considerar que, nesta peculiar - e seguramente pouco vulgar - situação a radical diferença de tratamento jurídico alcançada quanto à composição do litígio só pode ter assentado numa diversidade de concepções acerca do conteúdo e âmbito da própria cláusula geral.

    E não se afigura, por outro lado, que a circunstância de o acórdão recorrido ter feito apelo às figuras da representação aparente e da representação tolerada como forma e instrumento de demonstração da ocorrência de uma efectiva e  gravosa lesão do princípio da confiança no comércio jurídico possa, sem mais, ultrapassar a existência de um conflito ao nível da interpretação normativa da cláusula geral do abuso de direito; na verdade, o apelo feito àquelas figuras não traduziu uma via de solução jurídica  autónoma e diversa relativamente ao instituto do abuso de direito – e como tal susceptível de fundamentar autonomamente, fora dos quadros do instituto do abuso de direito, a solução jurídica de ininvocabilidade de certo vício do negócio no confronto dos adquirentes de boa fé - situando-se ainda na órbita dessa cláusula geral: na realidade, o apelo  aos referidos institutos da representação aparente e tolerada configura-se como meramente  instrumental da demonstração de que ocorreu, no caso, uma inadmissível e desproporcionada lesão da confiança de terceiros/adquirentes, integrável na figura do abuso de direito.

         8. Na concreta situação litigiosa, subjacente aos dois arestos em confronto neste recurso, não se duvida que a R./leiloeira – que apenas detinha a qualidade processual de auxiliar do administrador, em processo falimentar regido ainda pelas disposições do CPC , por iniciado em 1992 – não detinha poderes jurídicos para realizar a venda por negociação particular dos imóveis apreendidos para a massa falida, face ao preceituado no art. 1248º daquele Código, que impunha que tais negócios fossem outorgados pelo próprio administrador da falência.

    A questão fundamental que se suscita traduz-se, assim, em saber se a solução normativa traduzida na ineficácia do negócio relativamente àquele património autónomo e seu administrador, – que fluiria, em termos estritos, formais e imediatos, das normas civis acerca da legitimidade do representante – suportam, perante a especificidade da matéria litigiosa (perfeitamente idêntica e sobreponível nas duas acções), o confronto com a cláusula geral do abuso de direito.

   Saliente-se que, neste caso, a figura do abuso de direito surge claramente perspectivada como cláusula geral de segundo grau, vocacionada para possibilitar um controlo judicial dos resultados jurídicos que decorrem da aplicação estrita e realizada em primeira linha de outras normas primárias do ordenamento jurídico: a função essencial deste instituto consiste precisamente em temperar, com o apelo a regras e princípios fundamentais ( a boa fé, a confiança legítima, a finalidade económica e social dos direitos) os resultados que decorreriam de uma aplicação estrita e imediata de outras figuras ou regimes jurídicos, através de uma ponderação e de um  decisivo apelo, nomeadamente,  a critérios ético jurídicos ( no caso, essencialmente o princípio da confiança no comércio jurídico) – susceptível, em determinadas circunstâncias, de paralisar os resultados que decorreriam de uma aplicação meramente formal ou estrita do direito.

   Ou seja: a questão essencial a dirimir traduz-se em saber se a alegabilidade  ou invocabilidade pela própria massa falida, representada pelo seu administrador, do vício de ineficácia do negócio, com base na falta de poderes representativos do mero auxiliar daquele administrador, é ainda compatível com a tutela da confiança dos terceiros adquirentes de boa fé, num caso em que é manifestamente imputável ao representante legal e institucional daquele património autónomo a criação de uma aparência inteiramente fundada de poderes representativos na pessoa do seu auxiliar, traduzida  na criação, por facto imputável ao dito administrador, de uma situação de representação simultaneamente tolerada e aparente da massa falida pelo auxiliar do administrador.

   Na verdade, a actuação do administrador, anterior à celebração do negócio jurídico em causa, traduzida na criação de uma situação de representação aparente e tolerada da massa falida pelo seu auxiliar, originou manifestamente uma fundada convicção por parte dos adquirentes  de que o negócio em que outorgavam era válido e eficaz, por celebrado por quem detinha efectivos poderes representativos, implicando um reprovável venire contra factum proprium o ulterior comportamento que – desvalorizando e desconsiderando em absoluto a aparência de representação fundadamente criada – procura  prevalecer-se da ineficácia do negócio, com a consequente obrigação de restituição dos imóveis transmitidos (cujo preço se mostrava inteiramente pago pelos adquirentes de boa fé do imóvel).

 A proibição do comportamento contraditório configura actualmente um instituto jurídico autonomizado, que se enquadra na figura do abuso do direito (art. 334.º do CC), sendo nessa medida de conhecimento oficioso, desde que revelado pelos factos processualmente adquiridos (embora, no caso dos autos, a verificação de tal figura haja sido, como se referiu, suscitada expressamente pelos RR/recorridos).

   Este princípio surge caracterizado nos seus elementos fundamentais, por exemplo, no Ac. de 12/11/13, proferido pelo STJ no P. 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, nos seguintes termos:

Assim, há desde logo um primeiro e fundamental pressuposto a considerar: a existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança. Em segundo lugar exige-se que, quer a conduta anterior (factum proprium), quer a actual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente. Em terceiro lugar, que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa fé, vale por dizer, que tenha confiado na situação criada pelo acto anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contrária do agente. Em quarto lugar, que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma actividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa actividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente. Por último, exige-se que o referido “investimento de confiança” seja causado por uma confiança subjectiva objectivamente fundada; terá que existir, por conseguinte, causalidade entre, por um lado, a situação objectiva de confiança e a confiança da contraparte, e, por outro, entre esta e a “disposição” ou “investimento” levado a cabo que deu origem ao dano. Os pressupostos enumerados não podem em caso algum ser aplicados automaticamente pois, como observa o autor que vimos a acompanhar, o venire contra factum proprium é, em última análise, “uma técnica que não dispensa, e antes pressupõe, um controlo da adequação material da solução, com uma valoração global de todos os elementos à luz do ponto de vista da tutela da confiança legítima”; por isso, todos aqueles pressupostos “deverão ser globalmente ponderados, em concreto, para se averiguar se existe efectivamente uma “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as

exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objectivo”. Dentro desta mesma linha de pensamento, escreveu-se no acórdão do STJ de 12.2.09 (Revª 4069/08) que “no âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória (venire contra factum proprium), que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte em função do modo como antes actuara”. Assim tem de ser, acrescentamos nós, justamente porque o princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; ele está presente, desde logo, na norma do artº 334º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.

  Ora, considera-se, pelas razões expressas no acórdão recorrido, que todos estes pressupostos – que conduzem à paralisação da invocabilidade ou da  alegabilidade pela massa falida e respectivo administrador do vício de ilegitimidade representativa que afectou o negócio jurídico de alienação – se verificam, de forma clara, na concreta situação litigiosa, comum a ambas as acções em que foram proferidos os acórdãos em confronto, já que, nestas precisas circunstâncias, a oponibilidade aos compradores do vício de falta de poderes representativos de quem outorgou na escritura  e a consequente ineficácia do negócio celebrado seria gravemente lesiva do princípio da confiança, legítima e fundada, do outro contraente de boa fé.

   É que o vício do negócio realizado – traduzido em ter outorgado no acto de venda por negociação particular a empresa da leilões, designada nos autos apenas para coadjuvar o administrador da falência, e não este – tem de se imputar primacialmente a uma  reprovável falta de diligência do próprio administrador da massa falida, à época em exercício, no controlo da actividade levada a cabo pelo auxiliar escolhido para o coadjuvar, tendo tal omissão culposa criado justificadamente na pessoa do outro contraente uma muito fundada e consistente aparência de poderes representativos por parte daquele  auxiliar:

   Assim, por um lado, foi o administrador da massa falida que escolheu e requereu a nomeação nos autos de falência da leiloeira que outorgou no acto de venda, estando, por isso, nessa medida, especialmente obrigado a aferir com diligência  da respectiva idoneidade para o exercício das funções que lhe estavam cometidas e cumprindo-lhe fiscalizar diligentemente a respectiva actuação (respondendo, mesmo objectivamente,  pelos actos de tal auxiliar nos termos do disposto no art. 800º do CC).

    Ora, é manifesto - perante a factualidade apurada em ambas as acções -  que o administrador não controlou diligente e adequadamente a actuação da entidade designada no processo para o coadjuvar, consentindo, desde logo, que esta viesse outorgando, de forma continuada,  em várias escrituras de alienação de bens imóveis compreendidos na massa falida , apenas questionando tal intervenção quando essa entidade deixou de lhe prestar contas dos negócios em que vinha outorgando , apropriando-se das quantias monetárias que os outros outorgantes prestavam a título de preço, no âmbito das vendas realizadas; ou seja: permitiu o administrador que se criasse uma situação de representação tolerada e consentida na celebração dos negócios de alienação, apesar de bem saber que a dita leiloeira não detinha poderes formais para outorgar nas escrituras de alienação dos imóveis, mediante venda por negociação particular.

    Por outro lado, verifica-se que o administrador da falência não teve a menor atenção ao teor da certidão judicial cuja passagem ele próprio terá requerido e que expressamente atestava que o dito auxiliar estava habilitado ao exercício das funções de encarregado da venda, atestando que a dita certidão se destinava a outorgar a escritura de venda dos prédios a seguir indicados, pela encarregada de venda nomeada nos autos CC, Lda – criando com tal actuação, claramente negligente, uma fundada aparência de poderes representativos por parte de quem apenas o devia coadjuvar no processo, susceptível de iludir os outros contraentes, que naturalmente eram levados a confiar razoavelmente na fidedignidade do conteúdo dessa certidão.

   Na verdade, esta manifesta falta de diligência do representante legal da massa falida no controlo do efectivo teor da certidão judicial  emitida, antes de a mesma ser entregue ao seu auxiliar e assim introduzida no comércio jurídico – servindo de base à actuação jurídica substancialmente irregular do dito auxiliar do administrador - era susceptível de iludir justificadamente terceiros acerca da qualidade jurídica em que tal sujeito intervinha e sobre âmbito efectivo dos poderes de representação que, no desenvolvimento da falência, estavam cometidos à CC.

    Criou, assim, este comportamento uma situação de representação aparente da massa falida por essa sociedade relativamente aos actos de alienação celebrados

   Ora, considera-se que, por força dos princípios da boa fé e da proporcionalidade, as consequências da situação anómala criada pelo representante legal e institucional da massa falida não podem ser feitas repercutir exclusivamente sobre os terceiros de boa fé que confiaram justificadamente no teor da dita certidão, solicitada e obtida pelo próprio administrador como instrumento indispensável á outorga nos negócios de venda dos bens integrados na massa falida..

   Deste modo, o administrador da falência contribuiu decisivamente - com a falta de diligência no controlo da fidedignidade da certidão que serviu de suporte à actuação da CC e do próprio âmbito da actividade que vinha sendo efectivamente desenvolvida por esta entidade, nomeada nos autos de falência - para a criação de uma justificada aparência de poderes representativos por parte do auxiliar do administrador, decorrente, desde logo, de se mostrar certificada a qualidade de encarregado da venda – que habilitava a referida entidade, aos olhos dos outros contraentes de boa fé - à realização da própria escritura de venda por negociação particular.

   Na realidade, esta actuação negligente , imputável ao administrador da falência – representante institucional e legal da própria massa falida, como património autónomo – e potenciadora de uma situação de representação tolerada e aparente pela leiloeira na celebração das escrituras, não pode, por força de um princípio de justiça,  deixar de se repercutir por alguma forma na esfera jurídica da entidade por si legalmente representada, vinculada também ela, em conformidade com os princípios da boa fé, a ter de suportar as consequências do investimento na confiança, justificadamente feito pelo outro contraente,  em função de actos e omissões plenamente imputáveis ao dito representante legal.

   E que essa aparência de poderes representativos era efectivamente idónea para iludir terceiros acerca dos reais poderes representativos da leiloeira decorre do facto de o próprio notário – oficial público especialmente vocacionado para o controlo da legalidade dos instrumentos exibidos aquando da outorga em escrituras públicas – ter aceite como boa tal certidão, lavrando a competente escritura sem quaisquer reservas ( e sendo, aliás, por isso, também ele demandado nas acções intentadas pelo administrador)

   Por outro lado, é evidente e incontroverso o investimento na confiança feito pelo outro contraente – cuja boa fé ninguém questiona – confiando razoavelmente na plena eficácia e estabilidade do negócio jurídico, efectuado perante notário e com base numa certidão judicial proveniente do próprio processo de falência que claramente inculcava a existência na leiloeira dos poderes representativos próprios de quem dispunha da qualidade de encarregado da venda.

   O negócio de alienação consumou-se com o integral pagamento do preço devido e consequente entrega do bem ao comprador, que registou atempadamente a aquisição, importando ainda realçar que – numa situação em que a dita leiloeira e seus representantes não têm paradeiro conhecido, tendo essa R. sido citada editalmente em ambas as acções – a possibilidade prática de deles obter a efectiva restituição do preço pago se configura como evidentemente remota...

   Ou seja: a gravosa lesão da confiança no comércio jurídico passa, numa situação deste tipo, não apenas pela frustração da aquisição do direito real sobre o imóvel – que razoavelmente  se supunha consolidada com a consumação do negócio de venda  e realização do respectivo registo – mas também pela muito improvável possibilidade de  vir a obter da outorgante ou seus representantes legais a restituição dos valores patrimoniais prestados a título de preço.

  Em suma: considera-se, como no acórdão recorrido, ser claramente desproporcional e violador do princípio da confiança no comércio jurídico que -  quem criou, afinal,  a fundada aparência da existência de poderes representativos por parte de certa leiloeira para outorgar na venda por negociação particular de bens inseridos na massa falida - possa vir ulteriormente pretender precludir a eficácia do negócio, alegando que a qualidade de encarregado da venda, apesar de expressamente certificada, afinal se não verificava  - colocando exclusivamente a cargo do outro contraente de boa fé todas as consequências desfavoráveis da aparência de poderes representativos, plenamente imputável ao próprio representante legal da massa falida.

         9. Nestes termos e pelos fundamentos apontados:

- nega-se provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido, com custas pela entidade recorrente;

-  uniformiza-se a jurisprudência nos seguintes termos:

Age com abuso de direito, na vertente da tutela da confiança, a massa falida, representada pelo respectivo administrador, que invoca contra terceiro - adquirente de boa fé de bem imóvel nela compreendido-  a ineficácia da venda por negociação particular, por nela ter outorgado auxiliar daquele administrador, desprovido de poderes de representação( arts. 1211ºe 1248º do CPC, na versão vigente em 1992), num caso em que é imputável ao administrador a criação de uma situação de representação tolerada e aparente por aquele auxiliar, consentindo que vários negócios de venda fossem por aquela entidade realizados e permitindo que entrasse em circulação no comércio jurídico certidão, extraída dos autos de falência, em que o citado auxiliar era qualificado como encarregado de venda.

Supremo Tribunal de Justiça, 5 de Julho de 2016 – Lopes do Rego (Relator) – Salazar Casanova – Orlando Afonso – Távora Victor – Fernandes do Vale – Fernando Bento – Gabriel Catarino – João Trindade – Tavares de Paiva – Silva Gonçalves – Abrantes Geraldes – António Piçarra (Vencido quanto à questão prévia, nos termos da declaração junta) – Maria Clara Sottomayor (segundo declaração da Conselheira Fernanda Isabel Pereira quanto aos requisitos de admissibilidade do recurso) – Pinto de Almeida – Fernanda Isabel Pereira – Manuel Tomé – Júlio Gomes (com a declaração de que não admitiria o AUJ, nos termos da declaração junta pela Senhora Conselheira Ana Paula Boularot) – Manso Raínho - Maria da Graça Trigo – Roque Nogueira - Olindo Geraldes – Bettencourt de Faria (com declaração de voto junta) – Salreta Pereira (com a declaração de que não admitiria a uniformização com os fundamentos expressos na 1ª parte do voto de vencida da Senhora Juíza Conselheira Ana Paula Boularot) – João Bernardo (junto declaração de voto) – João Camilo – Paulo Sá – Maria dos Prazeres Beleza – Oliveira Vasconcelos – Fonseca Ramos – Garcia Calejo – Helder Roque – Ana Paula Boularot – (Vencida nos termos da declaração que junto) – Sebastião Póvoas (Vencido. Não conheceria do objecto do recurso por entender inexistir contradição de julgados, assim aderindo aos doutos votos de vencido dos Mºs. Consºs. António Piçarra, Clara Sottomayor, Júlio Gomes, Salreta Pereira e Ana Boularot. Quanto ao relato, opino pelo impedimento do Mº Cons. Relator, por ter relatado o aresto recorrido e atento o disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 115º CPC. Por tudo, consideraria prejudicado o conhecimento do mérito) – Pires da Rosa – Henriques Gaspar (Presidente).

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DECLARAÇÃO DE VOTO

Voto o acórdão, embora vencido quanto à questão prévia da admissibilidade por entender que, no caso em apreço, não se verificam os pressupostos para a Uniformização por inexistência de identidade factual entre os acórdãos em causa.


Tavares de Paiva

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DECLARAÇÃO DE VOTO

           A factualidade de ambos os acórdãos, embora praticamente idêntica, não é inteiramente coincidente e não existe verdadeira contradição entre os acórdãos quanto à figura e conceito do abuso de direito. A divergência ocorre, tão só, quanto à subsunção dos factos.

Tais razões levam-me a propender para a não admissibilidade/necessidade de fixação de jurisprudência e daí o meu voto de vencido, quanto à questão prévia.

Tendo esta obtido vencimento, votei favoravelmente a substância ou mérito do acórdão, mas com a declaração de que conferiria ao segmento uniformizador, para além de maior síntese, um pendor mais genérico e abstracto e não tão casuístico.


António Piçarra

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DECLARAÇÃO DE VOTO

Voto de vencida quanto à questão prévia da admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência, não acompanhando, neste particular, a tese que fez vencimento por entender que não existe conflito jurisprudencial relevante para efeitos de uniformização.

A identidade do concreto núcleo central da situação de facto e do quadro normativo aplicável é sempre exigível, sendo-o também a sua essencialidade para determinar o resultado das decisões contraditórias proferidas quer no acórdão-fundamento, quer no acórdão recorrido (artigo 688º do Código de Processo Civil).

No caso vertente, não é essencialmente idêntica a materialidade a que foi aplicado o regime jurídico do instituto do abuso de direito perspectivado como «cláusula geral de segundo grau», cuja apreciação é sempre casuística.

Não concordamos, assim, com a asserção de que «ambos os acórdãos – recorrido e fundamento – assentam em situações factuais que, do ponto de vista normativo, devem ter-se por idênticas ou sobreponíveis».

Com o devido respeito pela posição que fez vencimento, essa identidade não se verifica, designadamente, no tocante ao segmento fático que se refere ao teor da certidão judicial cuja passagem o próprio administrador da falência terá requerido e que expressamente atestava que o dito auxiliar estava habilitado ao exercício das funções de encarregado da venda.

           Admitido, como foi, o recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência, por maioria, subscreve-se, na íntegra, a decisão de mérito.


 Fernanda Isabel Pereira

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DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei a uniformização de jurisprudência, sem prejuízo do entendimento da inexistência de contradição entre os acórdãos. Estes consubstanciam apenas uma divergente interpretação, apreciação e valoração dos factos. Estes, por outro lado, embora semelhantes, não são totalmente coincidentes.


                Olindo Geraldes

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DECLARAÇÃO DE VOTO

           

Votei a decisão por concordar com o segmento unificador, ou seja, por entender que deve ser integrado no conceito de abuso de direito, a conduta negligente que viola a confiança do contraente de boa fé, sendo certo que, para que haja abuso de direito, não é necessário a intenção de abusar, bastando que a conduta seja objectivamente contrária aos ditames da boa fé.

Isto sem prejuízo de entender que a oposição de entendimentos normativos nos acórdãos em confronto não é clara.

Com efeito, apesar de se ter consagrado que: “…os acórdãos em confronto revelam efectivamente uma diferente interpretação da figura do abuso de direito ( art. 334º do CC), na modalidade de venire contra factum proprium – afastando o acórdão fundamento claramente a possibilidade de subsunção do quadro factual apurado à dita figura do abuso de direito – e entendendo, pelo contrário, o acórdão recorrido – com apelo às figuras da representação tolerada e da representação aparente -  que traduz um reprovável venire contra factum proprium a pretensão deduzida pelo administrador, como representante legal da massa(sublinhado nosso)” , entendemos que o acórdão fundamento, pelo menos expressamente, não parece afastar a tese do acórdão recorrido. E a oposição de julgados só deve relevar quando não é meramente implícita, ou dedutível.


Bettencourt de Faria

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DECLARAÇÃO DE VOTO

1. Subscrevo a posição do Senhor Conselheiro Bettencourt de Faria quanto à não admissibilidade do recurso.

2. Porém, na hipótese de admissão, entendo que a problemática subjacente é demasiado concretizada para possibilitar um segmento uniformizante. E tanto assim é que, no plano material, a uniformização de jurisprudência proposta limita-se a dar solução ao caso e não a estabelecer regras abstratas de interpretação do artigo 334.º do Código Civil.

3. Nessa conformidade, penso que – sempre se ultrapassada a questão da admissibilidade – o Pleno se deveria limitar a conhecer do recurso, recusando a fixação de segmento uniformizante, o que cabia no regime traçado pelos artigos 688.º e seguintes do Código de Processo Civil.


João Bernardo


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DECLARAÇÃO DE VOTO

Entendo que não existem nos acórdãos em causa diferentes conceções acerca do conteúdo e âmbito do instituto do abuso de direito.

Na verdade, ambos os acórdãos contemplam a proteção da confiança de terceiros adquirentes de boa-fé como finalidade principal do instituto do abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.

Só que enquanto no acórdão recorrido se entendeu que perante os factos dados como provados não se criou “uma situação de boa-fé sobre o poderes da 1ª ré que pudessem levar a entender que tinha ela os necessários poderes para vender”, no acórdão recorrido entendeu-se que “a aparência dos poderes representativos era efetivamente idónea para iludir terceiros acerca dos reais poderes representativos da leiloeira”.

Ambos os acórdãos se movem no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica fundamental – o abuso de direito – sem divergências quanto à interpretação do seu regime normativo e seus pressupostos, apenas divergindo, apesar da quase identidade dos factos, na apreciação casuística dos mesmos.

Concluindo: entendo que não há qualquer divergência sobre o conteúdo normativo do abuso de direito, apenas existe divergência na apreciação dos factos e, por isso, que o recurso não devia admitido.


  Oliveira Vasconcelos


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DECLARAÇÃO DE VOTO

Sempre s,d.d.r.o.c. não posso acompanhar a tese que fez vencimento, porquanto entendo, prima facie, que não existe fundamento para o conhecimento do presente recurso para uniformização de jurisprudência.

Se não.

Resulta do argumentário conclusivo da Ré, aqui Recorrente, que a mesma não obstante se arrime na afirmação de que o Acórdão produzido no âmbito destes autos se encontra em manifesta oposição com o Acórdão prolatado em 16 de Outubro de 2014 no processo 752-E/1992, pois em ambos os acórdãos existem aspectos de identidade que determinam a contradição alegada, designadamente decidem sobre a mesma questão fundamental de direito, ou seja, a divergência na aplicação da lei consiste em o Acórdão ora recorrido entender ocorrer na espécie abuso de direito na modalidade venire contra factum proprium enquanto o Acórdão em contradição, considerando expressamente a questão dessa ocorrência, decide que a mesma não se verifica, sendo que ambos os Acórdãos são proferidos no domínio da mesma legislação - o CPCivil, na versão anterior à revisão de 1995, e o Código Civil e a situação de facto que subjaz a esta diferente aplicação da lei é igual ou, ao menos, não tem diferenças em que se baseie ou justifiquem essa diferença, tendo os dois Acórdãos sido proferidos em duas acções apensas aos mesmos autos de falência e esta ido em causa em ambos factos (e razões de direito) iguais - a outorga da escritura de venda pela agência de leilões que coadjuvava o Administrador da Falência de dois prédios que integravam a Massa Falida, tendo-se a agência apropriado para si do preço dessas escrituras que não entregou à Massa.

Dispõe o normativo inserto no artigo 688º, nº1 do NCPCivil que «As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça quando o Supremo proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.».

Constituem, assim, requisitos para a admissão do recurso para uniformização de jurisprudência: i) que exista um Acórdão do STJ transitado em julgado, proferido nos autos onde se suscita a uniformização; ii) contradição entre o Acórdão proferido e outro que o mesmo Tribunal haja produzido anteriormente; iii) que essa contradição tenha ocorrido no domínio da mesma legislação e que respeite à mesma questão essencial de direito.

Os recursos para uniformização de jurisprudência pressupõem a existência de uma oposição relevante de acórdãos a qual só se verifica quando os mesmos consagrem soluções diferentes para mesma questão fundamental de direito, as decisões em oposição sejam expressas e as situações factuais e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.

In casu, não se antolha qualquer divergência quanto à interpretação do normativo inserto no artigo 334º do CCivil, que consagra a figura do abuso de direito, em qualquer das suas vertentes, maxime a aqui suscitada, qual é a do venire contra factum proprium, inexistindo qualquer dissenso no que tange à sua abrangência normativa.

O que se passou em ambos os Acórdãos, foi coisa diversa.

Enquanto no Acórdão recorrido se considerou como elemento essencial para a subsunção operada no artigo 334º do CCivil, a representação aparente e a representação tolerada como forma de efectiva e gravosa lesão do principio da confiança, no Acórdão fundamento não foi sequer equacionada esta situação mas outra diversa, aí se constatando que o administrador da falência deferiu à primeira Ré a licitação e a adjudicação, mas não a concretização da venda, o que levou à conclusão, boa ou má não importa aqui curar, que esta materialidade fáctica não quadrava o apontado instituto, sic «(…) Donde que não se tenha criado uma situação de boa fé sobre os poderes da I.ª ré que pudessem levar a entender que tinha ela os necessários poderes para vender. Dos autos não resulta a possibilidade de tal convencimento, não existindo, por isso, o anterior facto contrário ao actual exercício do direito.(…)».

Daqui se abarca que estamos face a uma diversa subsunção factual, com uma consequente e necessária apreciação e interpretação material, o que nos leva a afirmar a inexistência de um qualquer conflito jurisprudencial que esteja carecido de uniformização, pelo que não teria conhecido do respectivo objecto.

Sempre acrescento ex abundanti o seguinte, no que tange ao fundo.

Sempre salvo o devido respeito pela tese sufragada pela maioria do Pleno, entendo que os recursos para uniformização de jurisprudência têm um carácter tipicamente normativo e, sendo esta interpretação judicial efectuada em sede de densificação e preenchimento de cláusulas gerais de segundo grau, como o abuso de direito, está a mesma destituída dessa natureza, aliás como no texto é considerado, embora se conclua em sentido adverso, criando-se uma solução para este especifico caso concreto e para todos os que se vierem a repetir no âmbito destes autos de falência, como se uma regra de precedente se tratasse, o que se me suscita alguma perplexidade por exceder, também por aqui, o âmbito dimensional dos recursos extraordinários para uniformização de jurisprudência, para além de abrir a «caixa de Pandora» para futuros pedidos de uniformização em sede de concretização e densificação de conceitos abertos como o abuso de direito e a boa fé, que se não me afigura possível.


Ana Paula Boularot

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VOTO DE VENCIDO

      Sem prejuízo de pensar que o disposto nos invocados arts.1211, nº2 e 1248º do CPCivil, revogados com a entrada em vigor do CPEREF ( Dec.lei nº132/93, de 23 de Abril ), não arrasta necessariamente a nulidade dos negócios celebrados por alguém a quem o administrador encarregar da venda – o que aqui já não está em questão -  sempre entenderia que o olhar normativo sobre o que seja o abuso de direito que aqui nos ocupa é o mesmo em ambos os acórdãos. O que varia é a situação fáctica sobre a qual esse olhar recai e que, necessariamente, condiciona a perspectiva de quem olhano acórdão recorrido há uma certidão judicial exibida perante o notário que celebra a escritura ( e sobretudo sobre o réu comprador! ) que afirma textualmente que se destina a outorgar a escritura de venda dos prédios a seguir indicados, pela encarregada da venda nomeada nos autos “CC, Lda”; no acórdão-fundamento tal menção não existe, limitando-se a escritura a afirmar que    a 1ª ré | a mesma CC, Lda | tinha a qualidade de mandatária judicial | mandatária judicial? | e fora encarregue de proceder à venda. Uma factualidade diferente a permitir um olhar diferente a partir de um pensamento jurídico-normativo que é o mesmo, em meu entender, devendo acentuar-se que a questão a dirimir – o pretenso abuso de direito – se tem que aferir entre a massa falida e o seu administrador AA e os compradores – no acórdão recorrido o comprador sabe, e apenas sabe, que a “CC” foi encarregada de proceder à venda, no acórdão fundamento sabe – certificado judicialmente – que a certidão se destina a que a encarregada nomeada, a “CC”, possa outorgar a escritura de venda.

Fica aberto a quem julga, nas duas e diferentes situações, poder pensar de maneira diferente, partindo de um mesmo e só pensamento jurídico-normativo.

Acresce que, a fazer vencimento a tese defendida no acórdão, ela tem um segmento decisório excessivamente particularizado - … num caso em que é imputável ao administrador … – que afasta a uniformização de jurisprudência do seu aspecto criativo de uma formulação normativa plural.                                                               


 Pires da Rosa  

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[1] Cf, neste sentido, entre muitos outros, Ac. STJ,  de 21.9.93, C.J., STJ, Ano I-III.21, de 28.2.2012, Pº349/06.8TBOAZ.P1.S1 e de 7.9.2015, Procº 769/08.1TVPRT.P1.L1, 9.9.2015, Pº 499/12.2TTVCT.G1.S1.