Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
711/11.5PBAGH.L1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: ARMA PROIBIDA
CULPA
CÚMULO JURÍDICO
FINS DAS PENAS
HOMICÍDIO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
PREVENÇÃO ESPECIAL
PREVENÇÃO GERAL
VIOLAÇÃO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 11/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Área Temática: DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES
Doutrina: - Figueiredo Dias, Direito Penal – Questões fundamentais – A doutrina geral do crime - Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, p. 121; Direito Penal Português -As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, §55, § 56, § 278, p. 211; Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 109 e ss..
Legislação Nacional: CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, 71.º, 77.º, N.º2, 152.º, NºS 1, ALÍNEA D), E 2; 165.º, NºS 1 E 2; 164.º, Nº 1, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 15-11-2006, PROCESSOS N.º 2555/06 E Nº 3135/06 , AMBOS DA 3.ª SECÇÃO.
Sumário : I -    A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade ─ art. 40.º, n.º 1, do CP.

II -  O art. 71.º do CP estabelece o critério de determinação da medida concreta da pena, dispondo que esta operação, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

III - As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

IV - As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação das penas, em função da reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases de coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.

V - Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito, do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados.

VI - Relativamente à pena do cúmulo, na ponderação dos factos e personalidade do arguido, valorando o ilícito global perpetrado, a natureza, a interligação e a elevada gravidade dos factos praticados, que radicam em pluriocasionalidade não advinda de tendência criminosa, perante a moldura penal abstracta de 3 a 15 anos e 6 meses de prisão, mostra-se adequada a pena única de 7 anos de prisão, pela prática de 1 crime de violência doméstica do art. 152.º, n.ºs 1, als. b) e c), e 2, do CP, de 3 crimes de violação do art. 164.º, n.º 1, al a), do CP, de 1 crime de homicídio qualificado, na forma tentada, dos arts. 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. h), do CP e de 1 crime de detenção ilegal de arma do art. 86.º, n.º 1, al. d), da Lei 5/2006, de 23-02.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

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            No processo comum nº nº711/11.5PBA, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Angra do Heroísmo, o Ministério Público acusou o arguido AA, também conhecido pela alcunha de "F…", solteiro, servente de construção civil, nascido a 1 de Setembro de 1968, natural da freguesia de Pedro Miguel, concelho da Horta, ilha de Faial, filho de BB e de CC, residente, antes de preso, na R… das D…, nºXX, em Santa Bárbara, Angra do Heroísmo imputando-lhe a prática em autoria material e em concurso real de:

- um crime de violência doméstica, p. p. pelo art° 152° , nºs 1 , a1.s b) e c) , e 2 , do Código Penal (diploma a que se reportam os demais preceitos legais referidos sem menção de origem);

- três crimes de violação, p. p. pelo art° 164° , nº 1 , aI. a) ;

- um crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, p. p. pelos art°s 22°, 23°, 131°, 132°, nºs 1 e 2, aI. b) e pelo art° 86°, nº 3, da Lei 5/2006 , de 23.02 (em concurso aparente com um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, p. p. pelos art°s 143°, n° 1,144°, aI. d) e 145°, nºs 1 ,aI. b), e 2;

- um crime de detenção ilegal de arma , p. p. pelos artºs 2°, nº 1, aI. m), 3°, nºs 1 e 2, aI. t), 4°, nº 1 e 86° , nº 1 , al. d) , da Lei 5/2006, de 23.02 .

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O Hospital de Santo Espírito de Angra do Heroísmo deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, dele reclamando o pagamento da quantia de € 1.345,44 , referente ao custo do tratamento médico prestado à ofendida em consequência da conduta do arguido.

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            O Tribunal Colectivo, por acórdão de 21 de Junho de 2012, decidiu:

“1 - absolver o arguido AA da prática de um crime de homicídio qualificado e de um crime de detenção ilegal de arma de que vinha acusado;

2 - condenar o arguido AA da prática de :

- um crime de violência doméstica, p. p. pelo art° 152° , nºs 1 , aI. b) e 2 ;

- dois crimes de violação, p. p. pelo art° 164º , nº 1 , aI. a) e

- um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistir, p. p. pelo art° 165°, n° 2, para o qual se convola o crime de violação de que vinha acusado e , consequentemente , condená-lo nas penas de quatro (4) anos de prisão, quatro (4) anos e seis (6) meses de prisão, quatro (4) anos e seis (6) meses de prisão e três (3) anos e seis (6) meses de prisão, respectivamente;

3 - em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de oito (8) anos de prisão;

4 - condenar o arguido/demandado a pagar ao demandante Hospital de Santo Espírito de Angra do Heroísmo a quantia de mil trezentos e quarenta e cinco euros e quarenta e quatro cêntimos (€ 1.345,44) , acrescida de juros de mora contabilizados à taxa de 4% , desde a data da formulação do pedido até integral pagamento.”

Mais condenou o arguido nas custas do processo.

Custas do pedido de indemnização civil a cargo do arguido/demandado.

Ordenou o demais de lei,

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            Inconformado, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa, apresentando as seguintes conclusões na motivação de recurso:

1°. O recorrente é delinquente primário, sempre tendo levado até aqui uma vida conforme o direito.

2°. O recorrente não tem uma personalidade mal formada que justifique a aplicação da pena a que foi condenado.

3°. A douta sentença recorrida não imputa qualquer perigosidade quanto à sua personalidade, quer quanto aos factos por este praticados que justifiquem o cumprimento de uma pena de prisão efectiva de 8 anos, tendo-se violado o artigo 40 nºs 1 e 2 do CP.

4°. A pena de prisão aplicada ao recorrente é exagerada, quer se considerem os imperativos da prevenção geral ou especial, dando uma prevalência exagerada à sua vertente retributiva, com violação do artigo 71 do CP.

Termos em que deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, revogando-se as penas de prisão estabelecidas para cada um dos crimes em que o recorrente foi condenado, bem como a pena de cúmulo jurídico de 8 anos de prisão, substituindo-se as primeiras penas de prisão parcelares não superiores a 3 anos cada e por uma pena única não superior a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, assim se fazendo,

JUSTIÇA

            O Ministério Público, suscitou a questão prévia

“Tendo em consideração que os fundamentos suscitados pelo Recorrente para pôr em crise o acórdão recorrido versam exclusivamente sobre matéria de direito, nos termos do disposto no artigo 432°, n.º 1, alínea c) do CPP, é o Supremo Tribunal de Justiça que tem competência para se pronunciar sobre o recurso ora interposto.”

E sobre o mérito do recurso concluiu que “tendo em consideração a inexistência de violação dos artigos 40°, 70° e 71º, todos do C. Penal, deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se o douto acórdão nos seus precisos termos, assim se fazendo Justiça.”

            O recurso foi admitido por despacho de fls. 392, tendo os autos sido remetidos ao Tribunal da Relação de Lisboa, que, por seu despacho de 4 de Setembro de 2012, considerou que “(…)estando em causa no presente recurso unicamente o reexame de matéria de direito, nos termos do citado art. 432º n.º 1 aI. c) do CPP, entende-se ser o Supremo Tribunal de Justiça o competente para o conhecimento do presente recurso, determinando-se, após baixa, a remessa dos autos a esse Venerando Tribunal”

            Neste Supremo, o Dig.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer onde assinala:

 “2 – QUESTÃO PRÉVIA: Da competência material do STJ.

2.1 – Decorre da motivação apresentada pelo recorrente, como já vimos, ter este interposto o presente recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, sendo certo que o Sr. Juiz titular do processo, no despacho a que alude o art. 414.º, n.º 1 do CPP, o admitiu também para aquele Tribunal da Relação, para onde mandou remeter os autos [fls. 380 e 392/393].

Pese embora o entendimento subsequentemente sufragado, no Tribunal da Relação, pelo Sr. Desembargador relator, no sentido de declinar a competência da Relação para conhecer do recurso, atribuindo-a ao Supremo Tribunal de Justiça, invocando para tanto o disposto no art. 432.º, n.º 1/c) do CPP, e não obstante este visar exclusivamente o reexame de matéria de direito, afigura-se-nos que o seu conhecimento competirá, ainda assim, à Relação – art. 427.º do CPP.

Dispõe, na verdade, o art. 432.º, n.º 1/c) do CPP, competir ao STJ o conhecimento dos recursos interpostos dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito.

Ora no caso, sendo de evidenciar que a pena única imposta ao arguido é de 8 anos de prisão, logo superior àquela limitação, certo é que esta pena única resulta do cúmulo jurídico das quatro penas parcelares acima identificadas em 1.1, todas inferiores a 5 anos de prisão.

E o certo é que, como igualmente já vimos, e para além do mais, o recorrente visa, também, o reexame da medida concreta de todas as aludidas penas parcelares por que foi condenado.

Não se ignora a clivagem existente nas secções criminais deste STJ a propósito da competência (e rejeição, nos casos de ter ocorrido um anterior grau de recurso) para conhecimento de recursos quando, nos casos de concurso de crimes, a pena única ultrapassa os 5 anos de prisão e o recorrente pretenda o reexame de penas parcelares inferiores àquele limite.

Adere-se, no entanto, à jurisprudência [praticamente uniforme da 5.ª secção, mas também já sufragada nesta 3.ª Secção, por exemplo na decisão sumária de 26-10-2011, proferida no Processo n.º 8/10.8PQLSB.S1 pelo Sr. Conselheiro Sousa Fonte], e seus fundamentos, no sentido de ser a Relação a competente para conhecer do recurso interposto de acórdão condenatório em que, não obstante a pena única fixada ser superior a 5 anos de prisão, o recorrente vise, também, o reexame de questões que se prendam com as penas parcelares (componentes do concurso) inferiores àquela limitação. Como, num caso de contornos idênticos, observa o Sr. Conselheiro Artur Costa, em Decisão Sumária datada de 21-10-2011, proferida no Processo n.º 238/06.7PBAGH.S1, citamos, «Mesmo que se leve em conta que a pena aplicada tanto é a relativa à pena singular, como à pena conjunta, dentro da focada perspectiva de restrição drástica dos recursos para o STJ, como objectivo visado pelas alterações introduzidas no Código de Processo Penal pela Lei n.° 48/2007, de 29 de Agosto, só serão passíveis de tal recurso as decisões do tribunal colectivo ou de júri que isoladamente tenham aplicado por um crime pena superior a 5 anos ou que, num concurso de crimes, tenham aplicado unia pena única superior àquele limite, ainda que as penas parcelares aplicadas sejam iguais ou inferiores a 5 anos. Neste caso, porém, o recurso será restrito à medida da pena única, a menos que alguma das penas parcelares seja também superior 5 anos, caso em que o recurso abrange essas penas parcelares e a pena conjunta (entre muitos outros, cf. Acórdão de 02-04-2008, Proc. n.° 4 15/08, da 3.ª Secção, de 15/07/2008, Proc. n.° 816- 08, da 5ª Secção, este do mesmo relator deste processo, Acórdão de 15-04-2011, Proc. n.° 33-10.9GDSNT.S1, também da 5ª Secção).

Na verdade, seria um contra-senso, na perspectiva da reforma introduzida, visando a restrição do recurso para o Supremo Tribunal, que o legislador, ao falar de pena aplicada em concreto, em vez de pena aplicável em abstracto, pretendesse levar o STJ a conhecer de todos os crimes que formam um concurso de infracções, mesmo que tais crimes correspondam àquela noção que normalmente se designa de criminalidade bagatelar ou a que tenha sido aplicada uma pena de gravidade não superior a determinado limite, a que, em geral, se associa a pequena e média criminalidade.

Esse contra-senso tornar-se-ia mais saliente se, levando às últimas consequências tal tese — a de que a pena conjunta e só esta é que, por ser superior a cinco anos de prisão, determinaria a competência do STJ — se tivesse que admitir que era possível o recurso directo para o STJ mesmo que não se pusesse em questão a pena única, superior àquele limite, mas só qualquer das penas parcelares, inferiores a cinco anos de prisão, com eventual reformulação consequencial da pena única. Isto é, nos casos em que a pena única só indirectamente e por via da impugnação de qualquer das penas singulares inferiores a cinco anos de prisão viesse a ser posta em causa, e não como decorrência da violação dos critérios de determinação desta.

Servindo-nos do caso sub judice, bastaria que o arguido pusesse em causa a pena de 8 meses de prisão aplicada por um dos crimes de violação de domicílio, a qual, implicando a reformulação do cúmulo jurídico na hipótese de proceder o recurso, levaria a que a competência para o conhecimento dele fosse transferida para o STJ.

Ora, tal não pode admitir-se pelas razões apontadas.

Sendo assim, como, no caso sub judice, se põem em causa as penas parcelares e não só a pena única, tem de seguir-se a regra geral, segundo a qual «exceptuados os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª instância interpõe-se para a relação».

Ora, estando aqui em causa, sem dúvida, o pedido de reexame da medida concreta das supra indicadas penas parcelares, que são todas de medida inferior àquele limite, continuamos a não vislumbrar, com todo o respeito pela tese contrária, fundamento bastante para afastar a apontada orientação jurisprudencial.

                2.2 – PELO EXPOSTO, e ponderando o preceituado nos mencionados arts. 427.º, 428.º e 432.º, n.º 1/c), todos do C. P. Penal, emite-se parecer no sentido de que é de ponderar a declaração de incompetência do STJ para conhecer do recurso e de ordenar a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, por ser para tanto o competente.

***

                3 – Do mérito do recurso:

                3.1 – Caso assim se não entenda, e então quanto ao respectivo mérito, cabe apenas dizer que nos revemos inteiramente nos fundamentos aduzidos no Aresto impugnado, devidamente secundados, na sua respostas [fls. 385 e segs.], pelo magistrado do Ministério Público na 1.ª Instância, no que diz respeito às duas questões de direito suscitadas pelo recorrente: (i)medida concreta de cada uma das penas parcelares aplicadas, e (ii)sua repercussão na pena única subsequentemente fixada.

                À luz dessa fundamentação, e sem necessidade de mais desenvolvidas considerações em apoio do decidido, estamos em crer que nenhuma censura pode merecer a decisão impugnada.

                Dir-se-á apenas, ex abundanti, por um lado, e quanto à medida concreta de cada uma das penas parcelares, que a questão a discutir poderia até ser esta de saber se, excepção feita à pena decorrente do crime de violência doméstica [esta graduada, adequadamente, na metade superior da respectiva moldura penal abstracta], as demais penas não deveriam ter sido fixadas em medida mais próxima do ponto médio das respectivas molduras abstractas, que não praticamente no mínimo de cada uma dessas molduras; e por outro, quanto a qualquer dessas penas, as parcelares e a pena única, que por razões de prevenção especial, decorrentes desde logo do perfil psicológico do arguido, mormente nos segmentos espelhados nos pontos 44.º a 46.º da decisão de facto proferida, quer de prevenção geral, estas decorrentes da forte incidência deste tipo de crimes na sociedade portuguesa actual e do alarme social que lhe está hoje associado, tudo a impor especiais necessidades de defesa do ordenamento jurídico e de tutela dos sentimentos de confiança e segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais, que urge assegurar e satisfazer, estamos em crer não se justificar qualquer intervenção correctiva nesta sede, sendo que, como o Supremo Tribunal vem dizendo – no acolhimento aliás dos ensinamentos de Figueiredo Dias [In Direito Penal Português, II – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 197] –, em recurso de revista não é de sindicar o quantum exacto das penas, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção manifesta da quantificação efectuada. Não sendo, a nosso ver e nos termos supra expostos, este o caso, não cremos que se justifique aqui qualquer intervenção correctiva da medida de qualquer uma das penas aplicadas, quer as parcelares, quer a pena única do concurso.

***

3.2 – TERMOS EM QUE, e a conhecer-se pois, nesta Instância, do mérito do recurso, se emite parecer no sentido de que, na sua total improcedência, é de confirmar o veredicto condenatório proferido. “

            Cumpriu-se o disposto no artº 417º nº 2 do CPP, tendo o arguido apresentado resposta.

            Não tendo sido requerida audiência, seguiu o processo para conferência, após os vistos legais.

            Consta do acórdão recorrido

“Factos provados:

1 - O arguido e DD viveram em comunhão de mesa. leito e habitação desde Março de 2001 até 2009, na residência sita na R… das xx,  nº xx, freguesia de Santa Bárbara. Angra do Heroísmo .

2 - EE, nascida a 16 de Fevereiro de 2002, foi registada como filha do arguido e de DD e, à data dos factos que em seguida se descrevem tinha 9 anos de idade.

3 - Desde 2009 que o arguido e DD não mantinham qualquer relação enquanto casal. apenas viviam na mesma residência.

4 - Em data que não foi possível concretamente apurar mas situada por volta do dia 13 ou 14 de Agosto de 2011, no interior da residência onde ambos habitavam e na presença da EE, o arguido dirigindo-se a DD, disse-lhe "tu és uma puta", "velhaca", "andas a meter-me os cornos, tens um amante".

5 - O arguido, por diversas vezes e em datas não concretamente apuradas entre os dias 13 ou 14 e 23 de Agosto de 2011, perguntou a EE se sabia que a sua mãe tinha um amante.

6 - Durante o período compreendido entre os dias 20 e 23 de Agosto. o arguido começou a controlar toda a vida quotidiana de DD, não a deixava sair de casa sozinha, fechava os cortinados da residência para que aquela não visse ninguém. nem fosse possível do exterior vê-la, e obrigava-a a estender a roupa somente quando acompanhada por si.

7 - Em data não apurada concretamente mas situada por volta do dia 20 de Agosto de 2011, o arguido verificou todos os contactos existentes da agenda do telemóvel de DD, bem como as chamadas realizadas e recebidas, retirou o cartão telefónico do aparelho, cortou-o e deitou-o para o lixo.

8 - De seguida, por suspeitar que a DD pudesse utilizar o telemóvel da filha EE. retirou também deste o cartão telefónico que cortou e deitou para o lixo.

9 - Nos dias 21 e 22 de Agosto de 2011 , o arguido disse a DD para o acompanhar ao tratamento de metadona, obrigando-a a ir com ele e, para o efeito, no primeiro dos referidos dias, mostrou-lhe uma navalha que trazia no bolso das calças.

10 - Na tarde do dia 21 de Agosto de 2011, a hora não concretamente apurada, o arguido chamou a DD ao quarto do casal da residência comum, fechou a porta e colocou uma caixa de ferramentas atrás da mesma para impedir a entrada de terceiros, sendo que, ao lado da cama ali existente se encontrava colocada uma catana no chão.

11 - De seguida, ordenou à DD que se deitasse , ao que esta acedeu por recear que aquele a magoasse ou matasse .

12 - Após o que disse à DD "se tu dás aos outros, também hás-de dar a mim" e, contra a vontade desta, que se encontrava com medo que o arguido a magoasse ou matasse, introduziu-lhe o seu pénis erecto na vagina e imprimiu movimentos ritmados e repetidos, ejaculando para o interior da mesma.

13 - No dia seguinte, durante a tarde, a hora não concretamente apurada, o arguido seguiu a DD até à residência utilizada pela filha mais velha desta, sita perto da casa que arguido e DD ocupavam.

14 - Aí chegados, o arguido trancou a porta da rua pelo seu interior e, no corredor dessa residência, mandou a DD deitar-se no chão e, de seguida, introduziu o seu pénis erecto na vagina da DD e imprimiu-lhe movimentos repetidos até atingir a ejaculação.

15 - A DD suportou tal penetração porque temia pela sua integridade física e que a sua filha EE, que se encontrava no exterior da residência, se apercebesse do que se estava a passar.

16 - Na noite de 22 para 23 de Agosto de 2011, em hora não concretamente apurada mas por volta das 23.00/24.00 horas, no interior da sala da residência que ambos ocupavam, a DD, quando ali se estava a deitar, pediu ao arguido um comprimido "Unisedil" , para descansar .

17 - O arguido, sabendo que tais comprimidos provocam sonolência e confusão mental , deu-lhe três comprimidos e obrigou-a a tomá-los dizendo-lhe "toma que é para dormires melhor" , após o que a instou a abrir a boca para confirmar que os tinha engolido.

18 - Com essa conduta pretendia o arguido que aquela tomasse uma quantidade de comprimidos que sabia que a faria dormir e, desse modo, ficaria incapacitada de resistir.

19 - Mais tarde, cerca das 02.40 horas desse dia 23 de Agosto de 2011, quando DD se encontrava deitada na sala, a dormir, o arguido colocou-se em cima dela e introduziu o seu pénis erecto na sua vagina, fazendo movimentos repetidos e ritmados, o que a fez acordar, tendo-lhe aquela dito que parasse, após o que adormeceu de seguida, de novo.

20 - Foi então que o arguido, em circunstâncias que não foi possível concretamente apurar, empunhando uma faca de cozinha com lâmina de aproximadamente 21 cm, desferiu dois golpes na zona genital, outro na parte interna da coxa direita e dois junto ao pescoço da mesma.

21 - De seguida, encontrando-se posicionado de joelhos entre as pernas da DD, pegou numa cadeira e com ela desferiu algumas pancadas pelo corpo da DD e; quando se preparava para desferir outra pancada, surgiu a EE que o empurrou e gritou para largar a sua mãe.

22 - Depois de ter sido empurrado pela filha, o arguido levantou-se, ficou uns instantes na sala após o que saiu da residência e começou a gritar “Auuuuuuu! Já estou livre!" .

23 - Como consequência directa e necessária desta actuação do arguido, DD sofreu :

- na face anterior da região cervical, duas feridas incisas superficiais, envolvendo pele e tecido subcutâneo, uma com 8 em e outra com 6 em ; as quais foram suturadas;

- uma ferida incisa na face interna da coxa direita; junto à região inguinal, com cerca de 5 cm , envolvendo pele e tecido subcutâneo; que foi suturada;

- uma equimose vulvar entre a sutura na coxa direita e o intróito vaginal;

- uma ferida inciso-contusa , com 6 cm , no terço inferior do pequeno e grande lábio direito da vagina, que foi suturada;

- uma outra ferida perfurante , com 4 em , na face posterior e inferior da vagina, que foi suturada;

- um hematoma na região torácica esquerda e múltiplas escoriações e equimoses dispersas pela face, tronco e membros .

24 - Estas lesões determinaram 15 dias de afectação da capacidade de trabalho geral e 15 dias de afectação da capacidade de trabalho profissional. 

25 - A catana que o arguido tinha na sua posse era por si utilizada nos trabalhos de jardinagem que levava a cabo.

26 - Com as condutas levadas a cabo pelo arguido e que acima ficaram descritas nos pontos 4 a 9 queria este humilhar e afectar a honra, consideração pessoal, auto-estima e amor-próprio de DD, fazendo-a temer pela vida e/ou pela sua integridade física.

27 - Ao introduzir o seu pénis na vagina de DD, de forma repetida e ritmada, contra a vontade desta e forçando-a a suportar tais relações de cópula completa consigo, a 21 e 22 de Agosto de 2011 e ao aproveitar-se da situação de inconsciência em que a DD se encontrava na sequência da toma de comprimidos ocorrida na noite de 22 para 23 de Agosto, quis o arguido satisfazer os seus instintos sexuais, intenção que renovou nessas três ocasiões, mesmo sabendo que agia contra a vontade da mesma.

28 - Ao desferir golpes com uma faca no pescoço, perna e vagina da DD., bem como ao atingi-la com uma cadeira no tronco e membros, pretendia o arguido atingi-la na sua integridade física, o que logrou alcançar.

29 - Todos os actos acima descritos foram levados a cabo de forma livre e deliberada, com consciência da sua ilicitude, bem sabendo que são proibidos e punidos pela lei penal e, ainda assim, não de absteve de os praticar.

30 - Sabia o arguido que DD era mãe da sua filha e com a mesma havia mantido uma relação como se fossem marido e mulher.

Mais se provou que:

31 - O arguido é o segundo de cinco filhos que, juntamente com os progenitores, constituía um agregado familiar de condição socioeconómica humilde

32 - Este agregado desfez-se, ainda na infância do arguido, em consequência do comportamento violento do progenitor no seio da família. o que, aliado a algum distanciamento afectivo da progenitora, marcou o seu desenvolvimento.

33 - Na sequência da separação dos pais, o arguido passou a residir com a avó materna , pessoa afectiva e próxima que, apesar das precárias condições em que viviam, garantia a subsistência do agregado .

34 - Frequentou a escola até ao 4º ano de escolaridade, que concluiu por volta dos 12/13 anos de idade.

35 - Começou a trabalhar desde muito cedo, na execução de trabalhos na área da construção civil, como forma de ajudar a subsistência do agregado.

36 - Com cerca de 15 anos de idade veio viver para a ilha Terceira, integrando o agregado de uma tia, do qual cedo se autonomizou numa tentativa de fugir ao controlo sobre si exercido, passando a residir em quartos arrendados.

37 - Esta época da sua vida caracterizou-se por alguma instabilidade residencial e laboral a que não são alheios os hábitos aditivos que vem revelando e que terão tido inicio quando tinha 21 anos de idade.

38 - Desde então e até 2008 oscilou entre períodos de consumo e períodos de abstinência, até que iniciou um tratamento, integrando um programa de substituição com metadona.  Apesar disso mantinha alguns consumos de cocaína e tomava, regularmente, "xanax" e "unisedil".

39 - Entretanto havia estabelecido uma relação do tipo conjugal, que perdurou perto de onze anos , da qual tem dois filhos , actualmente com 23 e 19 anos de idade e com quem mantém um relacionamento próximo.

40 - Depois de alguns relacionamentos de curta duração, passou a viver maritalmente com a DD , situação que , havia mais de dez anos que se vinha mantendo, existindo uma filha deste relacionamento, actualmente com 9 anos de idade.

41 - O agregado vive em casa da DD e, como principal fonte de rendimento, conta-se o rendimento social de inserção, aliado ao abono de família e a alguns trabalhos, pontuais, da DD, como empregada doméstica.

42 - Desde 2007/2008 que o arguido não mantinha actividade laboral minimamente regular , ocupando-se , essencialmente , mas de forma irregular , na apanha de algas e marisco , bem como na prestação de serviços pontuais para vizinhos ou conhecidos, nomeadamente na área da jardinagem.

43 - Apesar das dificuldades deste agregado e da pouca participação que o arguido tinha na dinâmica e sobrevivência da família, os conflitos existentes não eram violentos.

44 - Cerca de um ano antes dos factos ora em apreço o arguido passou a evidenciar um comportamento mais impaciente, mais desconfiado e menos participativo na dinâmica da família mas apenas em Agosto de 2011 assumiu uma conduta violenta no seio da família.

45 - À data de detenção apresentava elevado estado de ansiedade, evidenciava descompensação, dificuldade no discurso, que era incoerente, verborreia, hiper-vigilante e fixação pelo sobrenatural .

46 - Tem vindo a ter acompanhamento psiquiátrico no estabelecimento prisional e apresenta algumas melhorias, mantendo, contudo, alguns sinais de instabilidade psicológica

47 - A companheira do arguido, face à factualidade supra referida, dá por definitivamente terminado o relacionamento com o arguido que, contudo, se mantém muito centrado na relação com companheira, desejando a reconciliação conjugal e familiar.

48 - Em meio prisional, o arguido cumpre com as regras estabelecidas e apresenta um adequado relacionamento interpessoal, sendo que continua a efectuar a toma da metadona e , por prescrição médica, efectua medicação anti-psicótica .

49 - Não tem antecedentes criminais.

Do Pedido de Indemnização Civil:

50 - Em consequência das agressões perpetradas pelo arguido a DD sofreu os ferimentos supra descritos que careceram de tratamento hospitalar.

51 - Tal tratamento foi prestado pelo Hospital de Santo Espírito de Angra do Heroísmo onde a ofendida foi atendida no serviço de urgência, o que importou em € 109,50

52 - Esteve internada de 23.08.2011 a 26.08.2011 , o que importou em € 985,20.

53 - Foi de novo atendida no serviço de urgência, o que importou em € 109,50.

54 - Efectuou tratamentos diversos, nomeadamente três suturas, que importaram em € 86,76 , três pensos, que importaram em € 27,72 , uma incidência no tórax e duas incidências na grelha costal , que importaram em € 12,48 e € 14,28 , respectivamente.

55 - Estes tratamentos ainda não foram pagos.

Não ficou provado que:

- o arguido, no dia 13 ou 14. de Agosto, disse à DD que ela era uma "velhaca de merda" e "não vales nada" e que entre os referidos dias e 23 de Agosto de 2011 , disse à filha EE que mataria a mãe;

- nos dias 21 e 22 de Agosto de 2011 , o arguido disse a DD que a mataria se esta não o acompanhasse ao tratamento de metadona e que no. dia 22 lhe exibiu uma navalha que trazia no bolso das calças;

- no dia 21 de Agosto o arguido usou de força física sobre a DD para lhe introduzir o seu pénis erecto na vagina;

- a residência da filha da DD era propriedade daquela e , nesta residência, no dia 22 de Agosto , o arguido agarrou DD por trás , no tronco , e fazendo uso de força fisica sobre a mesma , obrigou-a a deitar-se no chão , não tendo a DD força fisica para o impedir;

- com a toma dos comprimidos pretendia o arguido que a DD não o impedisse de introduzir o seu pénis na vagina dela , o que pretendia fazer quando aquela adormecesse , bem que sabia que apenas desse modo seria possível manter com DD tais relações sexuais, as quais não seriam consentidas se aquela não tivesse tomado os comprimidos;

- na noite de 22 para 23 de Agosto, o arguido não aceitou a recusa de DD em ter tais relações sexuais de cópula consigo pelo que lhe tapou a boca com uma mão ;

- após esfaquear DD , o arguido, em cima dela e continuando a tapar-lhe a boca, agarrou numa catana , com lâmina de 40,5 cm , que se encontrava ao lado do colchão onde se encontravam, e quando se preparava para a esfaquear no pescoço com a mesma, de forma a matá-la, apareceu a filha EE que o empurrou e gritou para largar a sua mãe;

- o arguido , ao atingir o corpo da DD com uma faca, queria e tentou matá¬la, só não o tendo conseguido por razões alheias à sua vontade, bem como que julgou tê-la morto;

- a catana não tinha qualquer uso definido e que o arguido não tinha qualquer justificação para a ter na sua posse.

Não se provaram quaisquer outros factos “

           

            O que tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

            Inexistem vícios e nulidades de que cumpra conhecer nos termos do artº 410º nºs 2 e 3 do CPP.

-

            Relativamente à questão prévia suscitada pelo Digm Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo,

            Tendo em conta o disposto no artº 432.º, nº 1 al,. c) (correspondente à anterior alínea d), do Código de Processo Penal, e Acórdão do Pleno deste Supremo, n.º 8/2007, de 14.03.2007, DR 107 Série I de 2007-06-04, que fixou a seguinte jurisprudência: «Do disposto nos artigos 427.º e 432.º, alínea d), do Código de Processo Penal, este último na redacção da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, decorre que os recursos dos acórdãos finais do tribunal colectivo visando exclusivamente o reexame da matéria de direito devem ser interpostos directamente para o Supremo Tribunal de Justiça» considera-se competente este Supremo para  apreciação do objecto do presente recurso, uma vez que versa exclusivamente sobre matéria de direito, e provém de decisão do tribunal Colectivo que aplicou pena de prisão superior a 5 anos.

            O recorrente entende que a pena de prisão aplicada é exagerada, quer se considerem os imperativos da prevenção geral ou especial, dando uma prevalência exagerada à sua vertente retributiva, com violação do artigo 71 do CP., termos em que deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, revogando-se as penas de prisão estabelecidas para cada um dos crimes em que o recorrente foi condenado, bem como a pena de cúmulo jurídico de 8 anos de prisão, substituindo-se as primeiras penas de prisão parcelares não superiores a 3 anos cada e por uma pena única não superior a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.

            Alega na motivação:

                “Não aceita o recorrente, a opção do tribunal" a quo" pela aplicação de uma pena de prisão de 8 anos, com a qual discorda, pois existem circunstâncias nos autos se tivessem sido sopesadas na douta sentença, com certeza que a mesma teria decidido por menos anos de prisão e consequentemente pela suspensão da execução da pena de prisão, em que o recorrente foi condenado.

O recorrente não tem antecedentes criminais e não é imputado qualquer título de perigosidade concreta ou falta de preparação para manter conduta ilícita. O recorrente está socialmente bem integrado.

Na realidade deu-se também como provado que o recorrente nasceu no seio de uma família numerosa, com acentuadas dificuldades económicas, e que o agregado familiar desfez-se, ainda na infância do recorrente, em consequência do comportamento violento do progenitor no seio da família a que, aliado a algum distanciamento afectivo da progenitora, marcou o seu desenvolvimento.

Frequentou a escola até ao 4º ano de escolaridade e começou a trabalhar muito cedo, na construção civil, como forma de ajudar a subsistência do agregado. Com 15 anos veio viver para a Ilha Terceira, integrando o agregado de uma tia, da qual cedo se autonomizou, passando a viver por sua conta e risco, altura em que oscilou entre períodos de consumo de estupefacientes e de abstinência, o arguido não é pessoa violenta, apesar de conflitos existentes entre a sua companheira. No E.P. de Angra do Heroísmo o arguido interpessoal, sendo que continua a efectuar o tratamento de metadona e por prescrição médica, efectua medicamentação anti - psicótica.

Ponderando tudo o que antecede, afirma-se reunidas todas as condições para que o recorrente tivesse sido condenado em pena de prisão não superior a 5 anos (cúmulo jurídico), e que a sua execução fosse suspensa por igual período de tempo, como mais aconselhável e suficiente para afastar da criminalidade o recorrente e assim ficam satisfeitas as exigências da punição e reprovação dos crimes.

Atentos estes factos, entende o recorrente que as penas não deveriam ter sido superiores ao limite mínimo para cada um dos crimes porque foi condenado.

Atendendo o disposto no artigo 77 nºs 1 e 2 do CP, operando-se o cúmulo jurídico, deveria a pena única a aplicar-se não ser superior a 5 anos de prisão.“

            Analisando.

 

Todos estão hoje de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Não falta, todavia, quem sustente que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista, enquanto outros distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado. Só não será assim, e aquela medida será controlável mesmo em revista, se, v.g., tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. ( Figueiredo Dias in Direito Penal Português -As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, p. 211, e Ac. de 15-11-2006 deste Supremo Tribunal e desta 3ª Secção, , Proc. n.º 2555/06)

            A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artº 40º nº 1 do C. Penal.

            O artigo 71° do Código Penal estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Como ensina Figueiredo Dias (Direito Penal – Questões fundamentais – A doutrina geral do crime - Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, p. 121):“1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”

Aduz o mesmo Ilustre Professor – As Consequências Jurídicas do Crime, §55 que “Só finalidades relativas de prevenção geral e especial, e não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma ‘infringida’”

Todavia em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa (ultrapassar a medida da culpa), pois que o princípio da culpa, como salienta o mesmo Insigne Professor – in ob. cit. § 56 -, “não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.”

Ou, e, em síntese: “A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização. A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.”- v. FIGUEIREDO DIAS, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 109 e ss.

A função da culpa encontra-se consagrada no artº 40º nº 2 do     Código Penal que estabelece: Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

É no âmbito do exposto, que este Supremo Tribunal vem interpretando sobre as finalidades e limites da pena de harmonia com a actual dogmática legal.

Como resulta, v. g. do Ac. deste Supremo de  15-11-2006, Proc. n.º 3135/06 - 3.ª Secção,  o modelo de prevenção acolhido pelo CP - porque de protecção de bens jurídicos - determina que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

O n ° 2 do artigo 71º do Código Penal, estabelece:

Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou, contra ele, considerando nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência:

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.

Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito, do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados.

É patente a elevada gravidade dos factos e a forte intensidade do dolo, bem como os sentimentos ostensivos de desprezo da dignidade humana manifestados na prática dos crimes, e os fins de lascívia e putativo ciúme, determinantes, ínsitos ao estado emotivo, sabendo o arguido que DD era mãe da sua filha e com a mesma havia mantido uma relação como se fossem marido e mulher.

.

Como bem fundamenta a decisão recorrida:

“Em todas as situações o arguido agiu com dolo, que se apresenta na sua forma mais grave - dolo directo .

A ilicitude das suas actuações é também muito intensa, quer na perspectiva da acção. quer do resultado.

Na realidade, no que respeita ao crime de violência doméstica, pese embora não se tenha prolongado por muito tempo mas "apenas" durante algumas semanas, certo é que actuação do arguido aconteceu como que num crescendo de gravidade.

Iniciou por falar alto/gritar com a sua companheira para passar a ter um comportamento mais agressivo e controlador, obrigando-a a andar na sua companhia, impedindo-a de ver para o exterior da casa (e de ser vista), confrontando-a com desconfianças de que tinha amantes e impedindo-a de comunicar com terceiras pessoas através do seu telemóvel. Todo este crescendo culminou com a agressão que levou a cabo na pessoa da companheira, desferindo-lhe cinco golpes com uma faca de cozinha, na zona genital, coxas e pescoço e de seguida bateu-lhe no corpo com uma cadeira, causando-lhe as lesões acima referidas.

No que se reporta aos crimes de natureza sexual temos que o arguido, por duas vezes, manteve com a sua companheira, contra a vontade desta, relações de cópula e , numa terceira ocasião, aproveitando-se da circunstância da DD pretender tomar comprimidos para dormir, obrigou-a a ingeri-los em dose superior à aconselhável, o que fez com que esta ficasse sem capacidade de reacção o Foi nestas circunstâncias que o arguido, mais uma vez. manteve com ela relações de sexo, introduzindo-lhe o seu pénis erecto na vagina .

Em desfavor do arguido há ainda que considerar que alguns dos factos ocorreram em frente à filha do "casal", nomeadamente as imputações à companheira de que esta tinha amantes, para além de ter também "envolvido" a filha nestas desconfianças, questionando-a relativamente aos "homens/amantes" que a DD teria.

Em favor do arguido alinha-se, desde logo, a ausência de passado criminal e o facto de se encontrar emocionalmente perturbado.

Na realidade, arguido e companheira havia cerca de dois anos que não mantinham relacionamento sexual.

Pelo menos inicialmente, o arguido aceitou este estado de coisas sem problema de maior.

Contudo, com o passar do tempo e também pelo facto de, ultimamente, pelo menos de forma ocasional, ter passado a consumir substâncias estupefacientes, desenvolveu-se nele uma fixação no sentido que a sua companheira, por não ter relacionamento sexual consigo, mantê-la-ia com outro(s) homem(ns).

Toda esta conjugação de factores levou a que se verificasse uma descompensação de natureza psicológica, que se traduzia em ansiedade e fixação, quer pelo sobrenatural, quer pela fidelidade da sua companheira.”

Tendo em conta o exposto e que, como vem provado.

O arguido é o segundo de cinco filhos que, juntamente com os progenitores, constituía um agregado familiar de condição socioeconómica humilde; este agregado desfez-se, ainda na infância do arguido, em consequência do comportamento violento do progenitor no seio da família. o que , aliado a algum distanciamento afectivo da progenitora, marcou o seu desenvolvimento; na sequência da separação dos pais, o arguido passou a residir com a avó materna, pessoa afectiva e próxima que, apesar das precárias condições em que viviam, garantia a subsistência do agregado, frequentou a escola até ao 4º ano de escolaridade, que concluiu por volta dos 12/13 anos de idade.

Com cerca de 15 anos de idade foi viver para a ilha Terceira, integrando o agregado de uma tia, do qual cedo se autonomizou numa tentativa de fugir ao controlo sobre si exercido, passando a residir em quartos arrendados; esta época da sua vida caracterizou-se por alguma instabilidade residencial e laboral a que não são alheios os hábitos aditivos que vem revelando e que terão tido inicio quando tinha 21 anos de idade; desde então e até 2008 oscilou entre períodos de consumo e períodos de abstinência, até que iniciou um tratamento, integrando um programa de substituição com metadona;  apesar disso mantinha alguns consumos de cocaína e tomava , regularmente, "xanax" e "unisedil"; entretanto havia estabelecido uma relação do tipo conjugal, que perdurou perto de onze anos, da qual tem dois filhos, actualmente com 23 e 19 anos de idade e com quem mantém um relacionamento próximo.

Depois de alguns relacionamentos de curta duração, passou a viver maritalmente com a DD, situação que, havia mais de dez anos que se vinha mantendo, existindo uma filha deste relacionamento, actualmente com 9 anos de idade; o agregado vive em casa da DD e, como principal fonte de rendimento, conta-se o rendimento social de inserção, aliado ao abono de família e a alguns trabalhos, pontuais, da DD, como empregada doméstica.

Começou a trabalhar desde muito cedo, na execução de trabalhos na área da construção civil, como forma de ajudar a subsistência do agregado; desde 2007/2008 que o arguido não mantinha actividade laboral minimamente regular, ocupando-se, essencialmente , mas de forma irregular, na apanha de algas e marisco, bem como na prestação de serviços pontuais para vizinhos ou conhecidos , nomeadamente na área da jardinagem.

Apesar das dificuldades deste agregado e da pouca participação que o arguido tinha na dinâmica e sobrevivência da família, os conflitos existentes não eram violentos; cerca de um ano antes dos factos ora em apreço o arguido passou a evidenciar um comportamento mais impaciente, mais desconfiado e menos participativo na dinâmica da família mas apenas em Agosto de 2011 assumiu uma conduta violenta no seio da família.

À data de detenção apresentava elevado estado de ansiedade, evidenciava descompensação, dificuldade no discurso, que era incoerente, verborreia, hiper-vigilante e fixação pelo sobrenatural .

Tem vindo a ter acompanhamento psiquiátrico no estabelecimento prisional e apresenta algumas melhorias, mantendo, contudo, alguns sinais de instabilidade psicológica

A companheira do arguido, face à factualidade supra referida, dá por definitivamente terminado o relacionamento com o arguido que, contudo, se mantém muito centrado na relação com companheira, desejando a reconciliação conjugal e familiar.

Em meio prisional, o arguido cumpre com as regras estabelecidas e apresenta um adequado relacionamento interpessoal, sendo que continua a efectuar a toma da metadona e , por prescrição médica, efectua medicação anti-psicótica.

Tendo ainda em conta que, como refere a decisão recorrida “o primado do direito penal da culpa, de harmonia com o qual se há-de tomar em consideração, primordialmente , o maior ou menor juízo de censura sobre a personalidade do agente, de algum modo revelada no facto, não esquecendo às necessidades de prevenção geral, que "radica no significado que a 'gravidade do facto' assume perante a comunidade" e, nessa medida ,.procura dar satisfação à necessidade comunitária de punição do caso concreto que, relativamente a este tipo de crimes, como é sabido, se revelam muito grandes”, quer as exigências da prevenção especial, nomeadamente dissuasoras de reincidência, e sem prejuízo de em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa, sendo que o crime de violência doméstica é punido com pena de 2 a 5 anos de prisão - vd. art° 152º , nºs 1 , aI. d) e 2; o crime de violação é punido com pena de 3 a 10 anos de prisão - vd. art° 164º , na 1 , aI. a) e o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência é punido com pena de 2 a 10 anos de prisão - cfr. art° 165º , nºs 1 e 2 , conclui-se que apenas a pena correspondente ao crime de violência doméstica se mostra desajustada, reputando por justa a pena de três anos de prisão quanto ao mesmo crime: as demais penas parcelares aplicadas não são desproporcionais, nem se mostram contrárias às regras da experiência.

Relativamente à pena do cúmulo, na ponderação dos factos e personalidade do arguido, valorando o ilícito global perpetrado, a natureza, interligação e elevada gravidade dos factos praticados, que, porém radicam em pluriocasionalidade não advinda de tendência criminosa, a personalidade emocionalmente perturbada do arguido, e os efeitos previsíveis da pena no comportamento futuro do arguido, face às exigências de socialização, e considerando as exigências de prevenção geral e o limite da intensa culpa, e que, nos termos do disposto no art° 77°, nº 2; a moldura penal abstracta é de 3 anos a 15 anos e seis meses de prisão, revela-se adequada a pena única de 7 anos de prisão.

Termos em que, decidindo:

            Acordam os deste Supremo – 3ª Secção – em dar parcial provimento ao recurso e consequentemente revogam o acórdão recorrido quanto à pena parcelar aplicada pelo crime de violência doméstica p. e p. pelo art° 152º , nºs 1 , aI. d) do C.P, e fixam-na em três anos de prisão, mantendo-se as demais penas parcelares.

            Consequentemente, revogam a pena única, e condenam o arguido na pena única de sete anos de prisão.

            Tributam o recorrente em 5 UC de taxa de justiça

Supremo Tribunal de Justiça, 7 de Novembro de 2012

Elaborado e revisto pelo relator,

Pires da Graça (Relator)

Raul Borges