Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8250/15.9T8VNF.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
MODIFICAÇÃO DO TÍTULO
USUCAPIÃO
IMPEDIMENTO
LEI IMPERATIVA
VIOLAÇÃO
Data do Acordão: 12/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMNETE A REVISTAE BAIXA DOS AUTOS À RELAÇÃO
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / POSSE / USUCAPIÃO / NOÇÃO.
Doutrina:
- Aragão Seia, A Propriedade Horizontal, p. 55 e ss.;
- Durval Ferreira, Posse e Usucapião, versus Destaques e Loteamentos, p. 51 ; Posse e Usucapião, 3.ª Edição, p. 525 e ss.;
- Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião, p. 16 e 17;
- Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, p. 391 e 392.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1287.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 11-06-1986, IN BMJ 358, P. 529;
- DE 17-01-1989, IN BMJ 383, P. 548;
- DE 16-01-2003, PROCESSO N.º 03A1835, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-09-2003, IN CJ, TOMO III, P. 36;
- DE 03-10-2006, PROCESSO N.º 06A2497;
- DE 29-11-2006, PROCESSO N.º 06A335, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-12-2007, PROCESSO N.º 07A3023, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 07-06-2011, PROCESSO N.º 197/2000, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 20-10-2011, PROCESSO N.º 369/2002;
- DE 15-11-2011, PROCESSO N.º 718/03, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 11-12-2014, PROCESSO N.º 833/11, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-04-2015, PROCESSO N.º 10495/08, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 26-01-2016, PROCESSO N.º 5434/09, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 04-10-2018, PROCESSO N.º 4080/16, IN WWW.DGSI.PT.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 30-04-2002, PROCESSO N.º 001397, IN CJ, TOMO II, P. 126, WWW.DGSI.PT.
Sumário :
1. Na ação através da qual o autor pretende o reconhecimento do direito de propriedade sobre um bem, a defesa do réu sustentada na usucapião tanto pode integrar um pedido reconvencional como pode justificar a dedução de exceção perentória, tendo neste caso o objetivo de determinar a improcedência da ação.

2. Nos termos do art. 1287º do CC, o reconhecimento da usucapião, como forma de aquisição originária de direitos reais, é impedido quando exista “disposição em contrário”, abarcando os casos em que a usucapião se sobrepõe a um regime imperativo.

3. A produção de efeitos jurídicos correspondentes à modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por via judicial, não prescinde do acordo de todos os condóminos e, além disso, deve compatibilizar-se com regras imperativas em matéria de direito do urbanismo ligadas ao licenciamento da construção e da utilização de edifícios e respetivas frações.

4. O facto de a posse dos RR. sobre uma fração (rés-do-chão esquerdo) se ter estendido a uma área integrante de outra fração contígua cuja titularidade está inscrita em nome dos AA. (rés-do-chão esquerdo) ou o facto de a posse dos RR. sobre outra fração (garagem) ter abarcado a totalidade da área correspondente a outra fração contígua do AA. (garagem) não impede a procedência do pedido dos AA. de reconhecimento do direito de propriedade sobre as suas frações e de condenação dos RR. a desocuparem as áreas que lhes correspondem, de acordo com os elementos que constam do título constitutivo da propriedade horizontal elaborado de acordo com o precedente licenciamento camarário.

Decisão Texto Integral:

I - AA, BB, CC e DD

interpuseram a presente ação declarativa com processo comum contra

EE e FF.

pedindo que:

- Sejam declarados proprietários de duas frações autónomas (“J” e “Q) de um edifício em regime de propriedade horizontal e a condenação dos RR. a reconhecê-lo, a absterem-se de aí praticarem qualquer ato perturbador desse direito;

- Os RR. sejam condenados a pagar aos AA. a quantia necessária à demolição das paredes que delimitam as suas frações K e R. das frações dos AA. “J” e “Qe à reconstrução das mesmas, em observância das áreas correspondentes a essas frações nos termos que resultam do título constitutivo da propriedade horizontal;

- A condenação dos RR. a pagar-lhes uma indemnização por força da privação do uso das aludidas frações.

Alegaram que, por contrato de compra e venda, a 1ª A. e o seu falecido marido, GG (de quem as AA. HH e II são filhas), adquiriram duas frações autónomas, uma para comércio e outra para garagem.

Os RR., por sua vez, adquiriram e são proprietários de duas frações (“K” e “R”) autónomas adjacentes àquelas, mas ocupam parte da fração destinada a comércio (“J”) e a totalidade da fração destinada a garagem (“Q”), ocupação que ocorre através do prolongamento das paredes delimitativas das frações.

Invocaram os AA. que são proprietários das referidas frações, em toda a área das mesmas nos termos que resultam do registo predial e do título constitutivo da propriedade horizontal, encontrando-se inscrita a seu favor a propriedade sobre tais frações.

Os RR. contestaram e alegaram ter adquirido as suas frações “K” e “R” no exato estado em que as mesmas se encontram e que vêm praticando atos de posse sobre todas as áreas que ocupam, sendo delas proprietários, em toda a área delimitada pelas respetivas paredes, por via de usucapião.

Invocaram ainda a exceção de abuso de direito, dando conta que as paredes das aludidas frações foram construídas no local onde se encontram a pedido dos AA.

Alegaram ainda a exceção de prescrição referente ao pedido indemnizatório formulado.

Foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência:

- Declarou que os AA. são proprietários, em comum, das frações "J" e "Q", descritas na CRP de ... sob os n° ... - J e nº ... - Q, com as áreas, respetivamente, de 138 m2 e de 41 m2;

- Condenou os RR. a absterem-se da prática de qualquer ato perturbador do direito de propriedade dos AA. sobre as referidas frações "J" e "Q", na totalidade das mencionadas áreas de 138 m2 e de 41 m2, respetivamente; e

- Condenou os RR. a demolirem e a reconstruírem as paredes das frações "K" e "R", restituindo aos AA. a totalidade dos 41 m2 da fração "Q" e os 48 m2 da fração "J", reconstrução a ser feita no local a apurar em sede de incidente ulterior de liquidação (sic).

Ambas as partes interpuseram recurso de apelação, sendo os RR. a título principal e os AA. a título subordinado, este na parte em que julgou improcedente o pedido de condenação no pagamento em indemnização decorrente da privação do uso respeitante às áreas das frações dos AA. ocupadas pelos RR.

A Relação julgou procedente o recurso principal deduzido pelos RR. e revogou a sentença, absolvendo os RR. dos pedidos contra si formulados. Considerou ainda prejudicadas as demais questões suscitadas pelos RR. e o recurso subordinado interposto pelos AA.

Os AA. interpuseram recurso de revista com as seguintes questões essenciais:

- Encontrando-se registada a favor dos AA. a propriedade das frações J e Q, presume-se a titularidade do direito de propriedade sobre tais frações;

- A ocupação que os RR. exercerem sobre tais frações é insuscetível de operar a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal que carece de acordo de todos os condóminos, devendo ser realizada por escritura pública;

- A usucapião, como fonte de aquisição do direito real, só pode atuar nos estritos limites em que a propriedade horizontal se enquadra, e a alteração da propriedade horizontal apenas é admissível em ação de divisão de coisa comum ou em processo de inventário;

- Não foi junto documento emanado da Câmara Municipal comprovativo de que a alteração pretendida está de acordo com as leis e regulamentos em vigor na autarquia;

- Os RR. terão de ser condenados a realizar as obras de demolição e de reconstrução das paredes divisórias atualmente existentes de mood a que sejam respeitadas as áreas constantes do registo e do título constitutivo da propriedade horizontal;

- Os RR. deverão ser condenados a pagar uma indemnização correspondente à privação do uso em causa.

Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.

II - Factos Provados:

1. O prédio onde se situam as frações (a que os autos se reportam), descrito na CRP de VN de Famalicão sob o n° ... - ..., foi adquirido, por JJ, Ldª, a LL e a GG, em 9-3-95.

2. A JJ, Ldª, sujeitou o referido prédio ao regime da propriedade horizontal por escritura celebrada em 7-2-96, constante de fls. 36 e ss.

3. Consta do documento complementar anexo à escritura pública de constituição da propriedade horizontal do referido prédio, designadamente, o seguinte:

- FRACÇÃO "J" - Rés-do-chão, lado direito, entrada poente, destinada a comércio, com uma divisão e um WC, de área 138 m2, à qual atribuem o valor de cinco milhões e quatrocentos mil escudos, a que corresponde o valor relativo de noventa mil avos;

- FRACÇÃO "K" - Rés-do-chão, lado esquerdo, entrada poente, destinada a comércio, com uma divisão e um WC, de área 138 m2, à qual atribuem o valor de cinco milhões e quatrocentos mil escudos, a que corresponde o valor relativo de noventa mil avos;

- FRACÇÃO "Q" - Divisão na cave, destinada a garagem, com uma divisão ampla, de área 41 m2, designada pelo número dezassete, à qual atribuem o valor de trezentos e sessenta mil escudos, a que corresponde o valor relativo de seis mil avos;

- FRACÇÃO "R" - Divisão na cave, destinada a garagem, com uma divisão ampla, de área 37,50 m2, identificada pelo número dezasseis, à qual atribuem o valor de trezentos e sessenta mil escudos, a que corresponde o valor relativo de seis mil avos.

4. Em 21-3-96 foi registada a constituição da propriedade horizontal do referido edifício.

5. Os RR. são casados entre si no regime da comunhão de adquiridos.

6. Por escritura pública constante fls. 34 e ss., celebrado em 8-1-03, o R. EE, casado com a R. FF, declarou comprar e a JJ, Ldª, declarou vender-lhe as frações "K" e "R".

7. Encontra-se registada a favor dos RR. EE e FF, desde 9-1-03, a aquisição da fração "K", descrita na CRP de V. N. de Famalicão sob o n° ... - K, sita no r/c esqº, entrada poente, destinada a comércio, com a área de 138 m2, do "Bloco B" do edifício sito no lugar de ..., afeta ao regime da propriedade horizontal.

8. Encontra-se registada a favor dos RR. EE e FF, desde 9-1-03, a aquisição da fração "R", descrita na CRP de V. N. de Famalicão sob o n° ... - R, sita na cave, destinada a garagem, com o n° 16, com a área de 37,50 m2, do "Bloco B" do edifício sito no lugar de ..., afeto ao regime da propriedade horizontal.

9. As paredes da fração "K" encontram-se construídas de forma que no seu interior se encontram incluídos 48 m2 da área atribuída à fração "J", sendo que a área efetivamente ocupada pela fração "J" é de 97 m2 e a efetivamente ocupada pela fração "K" é de 192 m2.

10. As paredes da fração "R" encontram-se construídas de forma que no seu interior se encontra abrangida a totalidade dos 41 m2 atribuídos à fração "Q", sendo que a área efetivamente ocupada pela fração "R" é de 82 m2 e a ocupada pela fração "Q" é de 0 (zero) m2.

11. Por escritura pública constante fls. 16 e ss., celebrado em 20-6-03, a A. LL, no estado de casada com GG, declarou comprar e JJ, Ldª, declarou vender-lhe as referidas frações "J" e "Q".

12. Em 23-6-03, foi registada a aquisição das referidas frações a favor de LL, casada com GG.

13. As paredes que dividem as frações "K" e "J", bem como as paredes que dividem a fração "R" das restantes frações e áreas comuns, foram construídas por Construções Joanense, Ldª, na data em que o prédio foi construído, não tendo sofrido alteração até à presente data.

14. Antes de os RR. adquirirem as frações "K" e "R", as mesmas foram-lhes mostradas pelo legal representante de JJ, Ldª.

15. Nessa ocasião, as frações "K" e "R" apresentavam a configuração que ainda hoje apresentam, mantendo-se as respetivas paredes no mesmo local.

16. Tais frações apresentavam as áreas que têm hoje e os RR. não alteraram as paredes divisórias dessas frações.

17. Desde a data da aquisição das frações "J" e "Q", a A. LL e seu falecido marido GG e, subsequentemente, após a morte deste, também os AA. HH e II, vêm pagando as contribuições do condomínio e os impostos referentes às aludidas frações.

18. Desde a data da aquisição da fração "J", destinada a comércio, a A. LL e seu falecido marido GG e, subsequentemente, após a morte deste, também os AA. HH e II, vêm ocupando e utilizando a mesma, dentro dos limites fixados pelas paredes que a dividem das restantes frações e partes comuns do edifício.

19. Fazem-no à vista de toda a gente, de forma continuada, na convicção de não serem lesados direitos de outrem e na convicção de serem proprietários das referidas frações.

20. GG faleceu em 24-9-13, tendo-lhe sucedido como únicos e universais herdeiros as ora AA., a sua cônjuge LL e as suas filhas HH, casada com CC, e II.

21. Encontra-se registada a favor das AA. LL, HH, casada com CC, e II, "em comum e sem determinação de parte ou direito", desde 12-6-15, "por dissolução da comunhão conjugal e sucessão", a aquisição da fração "J", descrita na CRP de VN de Famalicão sob o n° ... - J, sita no r/c, dtº, entrada poente, destinada a comércio, com a área de 138 m2, do "Bloco B" do edifício sito no lugar de ..., afeta ao regime da propriedade horizontal.

22. Encontra-se registada a favor dos AA. LL, HH, casada com CC, e II, "em comum e sem determinação de parte ou direito", desde 12-6-15, a aquisição da fração "Q", descrita na CRP de ... sob o n° ... - Q, sita na cave, destinada a garagem, com o n° 17, com a área de 41 m2, do "Bloco B" do edifício sito no lugar de ..., afeta ao regime da propriedade horizontal.

23. Os RR. adquiriram as frações "K" e "R" acreditando que as mesmas se constituíam pelo que então lhes foi apresentado, desconhecendo que podiam estar a lesar interesses alheios.

24. Desde a data da aquisição da fração "K", os RR. vêm utilizando a mesma, com a totalidade da área e com a configuração que a mesma apresenta, arrendando-a e auferindo a respetiva remuneração e fechando-a quando não está a ser utilizada.

25. Desde a data da aquisição da fração "R", os RR. vêm utilizando a mesma, com a totalidade da área e com a configuração que a mesma apresenta, aí estacionando os seus veículos automóveis.

26. Os RR. vêm utilizando as referidas frações, nos moldes acima descritos, desde a data da aquisição das mesmas, de forma contínua, à vista de todos e ignorando lesar direitos de outrem, na convicção de que as mesmas lhes pertencem e de exercerem sobre elas o direito de propriedade.

27. Em data não concretamente apurada, mas situada cerca de 1 ano depois de o R. EE ter adquirido as frações "K" e "R", a A. LL transmitiu-lhe que o mesmo se havia apoderado da totalidade da área referente à fração "Q" e de parte da área referente à fração "J".

28. Nessa altura, o R. EE procedeu à medição da área das frações "K" e "R", tendo então constatado que as mesmas apresentavam uma área superior à constante das certidões de registo predial e da escritura de constituição da propriedade horizontal, mas recusou entregar ou desocupar qualquer área das referidas frações "K" e "R".

29. O valor locativo mensal da fração "J" ascende a 2 € por metro quadrado e o valor locativo mensal da fração "Q" ascende a 1 € por metro quadrado.

III – Decidindo:

1. Os AA. adquiriram a propriedade de duas frações autónomas de um edifício em regime de propriedade horizontal: “J” (138 m2, r/c dtº) e “Q” (41 m2, garagem nº 17), em 20-6-03, direito que se encontra registado a seu favor. Por seu lado os RR. adquiriram a propriedade de duas frações autónomas do mesmo edifício: “K” (138 m2, r/c esq.) e “R” (37,5 m2, garagem 16), em 8-1-03, encontrando-se também registadas a seu favor.

Todas as frações foram vendidas por JJ, Ldª, que, em 9-3-95, adquirira da 1ª A. e do seu falecido marido o prédio original e que, depois da construção, em 7-2-96, constituiu o regime da propriedade horizontal.

As frações em causa foram entregues aos adquirentes com a configuração que ainda ora apresentam, verificando-se, no entanto, que a fração K, dos RR., integra 48 m2 que pertencem à fração J, dos AA., e que a fração R (garagem), dos RR., integra a totalidade da área da fração Q (garagem), dos AA., situação que se mantém desde a construção do edifício.

Cerca de um ano depois da data da aquisição das frações pelos RR., ou seja, por volta de Janeiro de 2004, a 1ª A. deu notícia ao R. das divergências quanto às áreas das frações, mas este, invocando que havia recebido as frações K e R com a configuração que tinham, recusou-se a abrir mão das áreas que correspondiam às frações J e Q.

Os RR. adquiriram as frações que lhes foram apresentadas e entregues com as delimitações físicas que ainda agora apresentam, desconhecendo então que lesavam direitos de outrem. Desde essa altura que fazem uso das áreas ocupadas em termos correspondentes ao do direito de propriedade.

2. O pedido de reconhecimento dos AA. como titulares do direito de propriedade de duas frações autónomas com a configuração que resulta do título constitutivo da propriedade horizontal foi objeto de decisões divergentes: a 1ª instância reconheceu esse direito aos AA., ao passo que a Relação considerou que o direito de propriedade sobre a fração J se comprimiu na parte referente a uma parcela que, por via da posse e da correspondente usucapião, se integrou na fração K, dos RR., e que toda a área afeta à fração Q se integrou pela mesma via nos limites da fração R.

2.1. Os RR. não colocam em causa os títulos de aquisição do direito de propriedade dos AA. sobre as frações J e Q, tal como os AA. não questionam que os RR. sejam proprietários das frações K e R. Divergem apenas quanto à área e delimitação física de cada fração, pretendendo os AA. que se estabeleça a correspondência com o que consta do título constitutivo, ao passo que os RR. consideram que deve ser respeitada a situação ora existente.

A titularidade do direito de propriedade sobre cada uma das duas frações dos AA., para além de corresponder ao efeito da compra e venda que foi outorgada com a anterior proprietária (aquisição derivada), emerge ainda da presunção resultante da inscrição em seu benefício no registo predial (art. 7º do CRP), à qual, por seu lado, está subjacente a descrição e o licenciamento da construção e da utilização do edifício e de cada uma das frações.

Na tese dos RR., que foi acolhida pela Relação, o direito de propriedade sobre as suas duas frações ampliou-se fisicamente por via da posse prolongada por si exercida: relativamente ao espaço correspondente à fração Q, nenhum poder de facto foi efetivamente exercido pelos AA., já que a respetiva área foi completamente ocupada pelos RR., enquanto proprietários da fração R.; em relação à fração J, esse poder de facto foi exercido apenas sobre uma parte da área que lhe correspondia, sendo a outra área ocupada pelos RR., a par da ocupação da área correspondente à sua fração K.

No exercício do poder de facto sobre cada uma destas áreas em litígio, de forma correspondente ao exercício dos poderes inerentes ao direito de propriedade, encontram os RR. motivos para defender que o direito de propriedade invocado pelos AA. seja circunscrito às áreas das frações que não conflituem com o seu direito de propriedade extensivo a toda a área que por eles vem sendo ocupada.

No confronto com a pretensão de sentido reivindicatório que foi deduzida pelos AA., era processualmente admissível aos RR. suscitar a usucapião por via reconvencional, como mecanismo de reconhecimento do direito de propriedade sobre toda a área ocupada (art. 266º, nº 2, al. a), do CPC). Contudo, optaram pela mera defesa por exceção, que também é admissível, invocando a usucapião como fator impeditivo da procedência daquela pretensão (art. 576º, nº 3, do CPC).

Da procedência deste meio de defesa depende a improcedência daquele pedido de reconhecimento do direito de propriedade formulado pelos AA. relativamente a todas as áreas das suas duas frações.

2.2. A usucapião constitui uma forma de aquisição originária de direitos reais de gozo, permitindo que o exercício da posse em termos correspondente a um direito real se convole no reconhecimento desse direito na esfera do possuidor, com efeitos que retroagem à data do início da posse (arts. 1287º e 1288º do CC). Posto que tal situação de facto não seja sustentada na titularidade do direito (posse formal), o facto de se manter de forma contínua e prolongada durante um certo período de tempo abre ao possuidor a faculdade de requerer o reconhecimento do correspondente direito real por via da prescrição aquisitiva.

No caso, dúvidas não existem de que desde a data em que os RR. adquiriram a titularidade das suas frações se assumiram também como possuidores de toda a área correspondente à fração Q e de uma parte da área da fração J, ambas pertencentes aos AA. Por motivos não apurados, a 1ª A. e o seu falecido marido contemporizaram com essa situação de facto anómala e deixaram que os RR. se assumissem externa e persistentemente como proprietários de áreas que extravasavam os limites das sua frações, em prejuízo do direito daqueles.

Tal posse iniciou-se de boa fé e assim continuou mesmo depois de, em 2004, a 1ª A. ter confrontado o R. com a situação, que este confirmou com medições, reagindo os AA. apenas com a interposição da presente ação, em 2015, depois do óbito do marido da 1ª A.

Apesar disso, não se verificam os pressupostos da usucapião invocada pelos RR. que determine a improcedência da pretensão reivindicatória dos AA.

2.3. O relevo atribuído ao exercício de poderes de facto inerentes à titularidade do direito de propriedade pleno, integrando tanto o elemento objetivo da posse (corpus), como o seu elemento subjetivo (animus), não foi ao ponto de se sobrepor a todos os obstáculos ou impedimentos legais. A usucapião não constitui um instituto jurídico isolado, fazendo parte de um vasto “arquipélago” que engloba outras normas que a condicionam ou impedem, umas integradas no Cód. Civil e outras que emergem de diplomas avulsos como os que regulam a matéria de direito do urbanismo ou do licenciamento da construção ou utilização de edifícios.

Não se aceita, com a amplitude pretendida por Durval Ferreira, a natureza “agnóstica” da posse em toda e qualquer situação, sob pena de a realidade se impor mesmo perante a violação de regras imperativas ou em detrimento ou com desprezo de interesses de ordem pública.

Isso mesmo foi acautelado e antecipado pelo legislador na formulação expressa no art. 1287º do CC: ao definir a usucapião, previu que esta forma de aquisição originária não pode ser invocada quando exista “disposição em contrário”, previsão que nos transporta inequivocamente para os casos em que o reconhecimento desse título contende com lei expressa. Assim ocorre com o art. 6º, nº 3, da Lei nº 75/17, de 17-8, que, relativamente a terrenos baldios, prescreve textualmente que “encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objeto de apropriação por terceiros por qualquer forma ou título, incluindo por usucapião”.

Mas semelhante efeito impeditivo pode emergir de outras normas legais de natureza imperativa, ainda que de cariz genérico, como os arts. 294º e 280º, ex vi art. 295º do CC. Assim é quando a situação incida sobre objeto física ou legalmente impossível, designadamente por integrar a esfera do domínio público, no pressuposto, que é comum a todas as demais situações, de que o reconhecimento do direito de propriedade por via da usucapião - ou a invocação da usucapião contra o titular do direito de propriedade - não pode constituir uma forma de contornar ou ultrapassar os limites à negociabilidade ou transmissibilidade de bens por via do acordo de vontades.

Foi por esta via que se decidiu no Ac. da Rel. de Lisboa, de 30-4-02, www.dgsi.pt (001397) e Col. Jur., t. II, p. 126, relatado pelo ora relator, que “é insuscetível de conduzir à aquisição do respetivo direito de propriedade, por usucapião, a posse de uma parcela de terreno incluída num prédio rústico que foi objeto de operação de loteamento clandestino, integrado em Área Urbana de Génese Ilegal, dado que seriam violadas normas de natureza imperativa e lesados interesses de ordem pública”.

Semelhante juízo orientou também o Ac. do STJ de 4-10-18, 4080/16 (www.dgsi.pt), relatado pelo Cons. Tomé Gomes, ora primeiro adjunto, quando nele se refere que:

“A aquisição originária de um bem imobiliário por usucapião só é legalmente possível se a posse recair sobre coisa imóvel ou parte de coisa imóvel suscetível de constituir objeto de direito real.

A usucapião, enquanto ato jurídico de aquisição originária de direitos reais, não opera validamente sobre coisa que, nesse domínio, se traduza em objeto legalmente impossível, nos termos do art. 280º, aplicável por via do art. 295º, ambos do CC”.

Discorda-se assim da tese defendida por Durval Ferreira quando refere que a menção legal à existência de “disposição em contrário” está limitada aos casos se estabeleça “precisamente e no seu «teor literal», que certa e determinada posse não conduz à usucapião” (Posse e Usucapião, versus Destaques e Loteamentos …, p. 51, entendimento já expresso em Posse e Usucapião, 3ª ed., pp. 525 e ss.).

2.4. O mesmo efeito impeditivo pode decorrer da interpenetração de outros preceitos, conquanto se mostrem menos incisivos ou apresentem natureza mais difusa.

O direito do urbanismo, as regras sobre construções e edificações ou, como ocorre no caso sub judice, o regime jurídico-civilístico da propriedade horizontal constituem domínios em que, por via de disposições legais claras ou a partir da pré-compreensão de tais realidades, nos deparamos com impedimentos ao reconhecimento de efeitos jurídicos sustentados na figura da usucapião.

Assim acontece quando a invocação e reconhecimento da usucapião traduza violação do regime jurídico imperativo dos loteamentos urbanos, atento o disposto no art. 49º do DL nº 555/99, de 16-12 (v.g. Acs. do STJ de 26-1-16, 5434/09, de 30-4-15, 10495/08, de 7-6-11, 197/2000, em www.dgsi.pt), ou implique a prática de fracionamento de áreas urbanas de génese ilegal, nos termos do art. 45º da Lei nº 91/95, de 2-9, ou quando infrinja regras precetivas relacionadas com o fracionamento de prédios rústicos, nos termos do art. 1379º, nº 1, do CC, na redação do DL nº 111/15, de 27-8.

Sem embargo de outras intervenções, este Supremo Tribunal de Justiça já se confrontou diversas vezes com a figura da usucapião em confronto com o regime da propriedade horizontal onde florescem situações anómalas como a dos presentes autos.

Tal aconteceu no já citado Ac. do STJ de 4-10-18, 4080/16, em que estava em causa a invocação de posse exercida sobre parte de uma fração autónoma para sustentar o reconhecimento da existência de nova fração autónoma correspondente à área ocupada pelo interessado. Outrossim no Ac. do STJ de 20-10-11, 369/2002, que tratou da usucapião emergente da situação de posse exercida sobre parte comum do prédio em propriedade horizontal. Em ambos os casos, o resultado foi desfavorável ao interessado que invocou a usucapião, na medida em que o seu reconhecimento contendia com regras de cariz imperativo.

Para o efeito, no Ac. do STJ de 4-10-18 sintetizou-se que:

“O exercício de posse usucapível sobre parte delimitada de uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal não conduz, por si só, à aquisição de um direito de propriedade singular sobre essa parte, destacável daquela fração, já que essa parte não é suscetível, no quadro daquele regime, de constituir unidade independente, nos termos do arts. 1414º e 1415º do CC.

Face ao disposto do art. 1417º, nº 1, do CC, a propriedade horizontal pode ser originariamente constituída por usucapião, mas tal constituição tem de assentar em exercício de posse usucapível sobre prédio urbano, ou porventura parte dele, que reúna, desde logo, as características exigidas pelos arts. 1414º e 1415º do CC, mormente sobre frações em condições de constituírem unidades independentes, distintas e isoladas entre si com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.

Só assim poderão ficar a constar da sentença de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião as especificidades obrigatórias a que se refere o art. 1418º, nº 1, do CC.

A ação em que se vise o reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião terá de correr entre todos os condóminos para que a respetiva sentença possa ter eficácia de caso julgado material em relação a todos eles”.

Refere-se na respetiva fundamentação, além do mais, que:

“… a ação que vise o reconhecimento de uma tal constituição terá, obviamente, que correr entre todos os condóminos, pois se, para a divisão convencional de frações em novas frações, o art. 1422º-A, nº 3, do CC, exige a aprovação dos condóminos sem qualquer oposição, por maioria de razão, em caso de divisão potestativa, como é a operada por via da usucapião, têm de ser convocados também todos os condóminos, só assim podendo a sentença ter eficácia de caso julgado material em relação a todos eles”.

Considerou-se que, para se fazer valer a usucapião, era de exigir:

i) – Por um lado, a factualidade respeitante ao exercício da posse usucapível do prédio urbano ou parte dele sobre que se pretende ver reconhecida a propriedade horizontal;

ii) – Por outro lado, a descrição das características quer físicas, estruturais e funcionais, quer técnicas do objeto sobre que incide essa posse em termos de corresponder ao que é legalmente exigível para o reconhecimento de uma situação factual de propriedade horizontal, em especial no que se refere à concreta individualização e especificação das frações autónomas, de harmonia com o disposto nos arts. 1414º e 1415º do CC e ainda com a regulamentação aplicável às edificações urbanas”.

2.5. É este o plano em que nos situamos no caso presente.

A propriedade horizontal pode ser constituída por diversas vias previstas no art. 1417º do CC, entre as quais se inscreve também a usucapião. Em qualquer dos casos, é imprescindível o respeito pelos requisitos legais do art. 1415º, ou seja, supõe-se a existência de unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída para uma parte comum do prédio ou para a via pública.

Além disso, não podem deixar de se verificar os demais condicionalismos legais que seriam necessários se acaso a propriedade horizontal fosse constituída por declaração de vontade (v.g. ato unilateral ou por acordo de multiplicidade de sujeitos), no pressuposto de que o processo – qualquer processo judicial – não pode surtir efeitos vedados por outra via.

No caso, importa apreciar se se verificam ou não as condições formais ou materiais que permitam reconhecer judicialmente a ocorrência de uma modificação legítima do título constitutivo, atribuindo efeitos jurídicos de natureza real ao que transparece publicamente a respeito da delimitação física das frações dos AA. e dos RR.

Se acaso se aceitasse a defesa por exceção apresentada pelos RR., uma das frações registada a favor dos AA. (Q) deixaria pura e simplesmente de existir por via da redução da sua área a 0 (zero) m2, enquanto a outra (J) teria a sua área reduzida; em contrapartida tal implicaria o reconhecimento implícito da ampliação da área correspondente às duas frações dos RR., uma das quais (R) passaria a integrar na totalidade da área da fração Q e a outra (K) a integrar parte da área da fração J.

Foi nesta base que os RR. sustentaram a sua defesa com o objetivo de levar à improcedência do segmento essencial da pretensão reivindicatória dos AA., defesa cuja aceitação não pode dispensar a verificação dos requisitos que seriam exigíveis se acaso os RR. buscassem a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por via extrajudicial e, designadamente, através de escritura notarial.

Não se duvida que a situação refletida pela matéria de facto apurada revela uma situação de posse que se manteve e prosseguiu de boa fé até à citação para a presente ação. Mas a extração de efeitos jurídicos correspondentes à aquisição originária das áreas extravagantes ocupadas pelos RR. não pode prescindir da verificação dos requisitos legais de que depende a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal.

2.6. A atual redação do art. 1419º do CC permite que a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal seja formalizada por escritura pública ou por documento particular autenticado.

O facto de o preceito divergir do que no art. 1417º se prevê relativamente à “constituição” da propriedade horizontal permite questionar, desde logo, a admissibilidade da invocação da usucapião como fonte geradora da “modificação” do título preexistente ou a possibilidade de a mesma poder ser declarada por via judicial, na medida em que parece pressuposta a existência de um acordo entre todos os condóminos.

O Ac. do STJ de 15-11-11, 718/03, em www.dgsi.pt, negou explicitamente estas possibilidades, nele se observando que “a modificação do título apenas pode ser efetuada por acordo de todos os condóminos”. O mesmo ocorreu com o A. do STJ de 20-10-11, 369/2002, referindo que “a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal apenas pode ser efetuada de acordo com o preceituado no art. 1419º, nº 1, do CC, e nunca através de decisão judicial”. Ou ainda com o Ac. do STJ de 3-10-06, 06A2497, quando nele se sintetizou que “o título constitutivo da propriedade horizontal só pode ser modificado por acordo de todos os condóminos, vertido em escritura pública, estando vedado ao tribunal proceder a essa modificação”. Veja-se ainda o que refere Henrique Sousa Antunes, em Direitos Reais, p. 392, apelando à necessidade de acordo de todos os condóminos.

Não importa, contudo, que se assuma uma posição sobre esta sub-questão, já que outros motivos mais seguros determinam a improcedência da defesa dos RR. assente na figura da usucapião invocada para obter efeitos modificativos da propriedade horizontal.

Ainda que fosse viável a via judicial para obter a modificação to título, tal efeito jurídico jamais prescindiria do acordo de todos os condóminos. Na verdade, para além de estar em causa um efeito jurídico que a todos interessa, tal exigência decorre do facto de, com a ressalva do nº 3 do art. 1422º do CC, se prescrever o acordo de todos os interessados em casos de modificação extrajudicial.

Como refere Fernando Pereira Rodrigues, “o tribunal não pode alterar o título constitutivo da propriedade horizontal em violação das normas legais em vigor, designadamente sem aprovação de todos os condóminos e junção de documento emanado da Câmara Municipal comprovativo de que a alteração está de acordo com as leis e regulamentos em vigor na autarquia” (Usucapião, pp. 16 e 17).

Ora, só este motivo levaria ao insucesso da defesa dos RR. no sentido de impedir a reivindicação deduzida pelos AA. Resultado que sai reforçado quando se analisam os requisitos de natureza administrativa a que está sujeita não apenas a constituição da propriedade horizontal como a modificação do título constitutivo.

2.7. A construção de edifícios carece de licença camarária, ficando o interessado obrigado a executar a obra de acordo com o projeto que a sustenta. Assim o determina o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação aprovado pelo DL nº 555/99, de 16-12 (com a última alteração decorrente da Lei nº 79/17, de 18-10), conjugado com a Port. nº 113/15, de 22-4.

Segundo o Anexo I, nº 15, f), desta Portaria, além de outros elementos, o promotor imobiliário que pretenda o licenciamento da construção deve apresentar:

 “I - Plantas à escala de 1:50 ou de 1:100 contendo as dimensões e áreas e utilizações de todos os compartimentos, bem como a representação do mobiliário fixo e equipamento sanitário;

….

V) Discriminação das partes do edifício correspondentes às várias frações e partes comuns, valor relativo de cada fração, expressa em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio, caso se pretenda que o edifício fique sujeito ao regime da propriedade horizontal”.

A coincidência entre a construção que foi licenciada e a obra executada, designadamente no que concerne aos aspetos estruturais do edifício e às divisões (e, depois, a coincidência entre o edificado e a licença de utilização), é imposta por outras normas do DL nº 555/99, de 16-12, no que concerne e a licença de utilização concedida depois de realizada a edificação.

Nos termos do art. 63º, nº 1, deste diploma:

“O pedido de autorização de utilização deve ser instruído com as telas finais, acompanhadas de termo de responsabilidade subscrito pelo diretor de obra ou pelo diretor de fiscalização de obra, no qual aqueles devem declarar que a obra está concluída e que foi executada de acordo com os projetos de arquitetura e especialidades, bem como com os arranjos exteriores aprovados e com as condições do respetivo procedimento de controlo prévio e que as alterações efetuadas ao projeto estão em conformidade com as normas legais e regulamentares que lhe são aplicáveis”.

Além disso, determina o art. 66º que:

“1. No caso de edifícios constituídos em regime de propriedade horizontal, a autorização pode ter por objeto o edifício na sua totalidade ou cada uma das suas frações autónomas.

2 - A autorização de utilização só pode ser concedida autonomamente para uma ou mais frações autónomas quando as partes comuns dos edifícios em que se integram estejam também em condições de serem utilizadas”.

Determina ainda o art. 59º, nº 1, do Cód. do Notariado, que:

“1. Os instrumentos de constituição da propriedade horizontal só podem ser lavrados se for junto documento, passado pela câmara municipal, comprovativo de que as frações autónomas satisfazem os requisitos legais.

2. Tratando-se de prédio construído para transmissão em frações autónomas, o documento a que se refere o número anterior pode ser substituído pela exibição do respetivo projeto de construção e, sendo caso disso, dos posteriores projetos de alteração aprovados pela câmara municipal.

3. O documento autêntico que se destine a completar o título constitutivo da propriedade horizontal, quanto à especificação das partes do edifício correspondentes às frações autónomas ou ao seu valor relativo, expresso em percentagem ou permilagem, não pode ser lavrado sem a observância do disposto nos números anteriores”.

Por seu lado, e com efeitos mais incisivos no caso concreto, prescreve o art. 60º, nº 1:

“Os instrumentos de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal que importem alteração da composição ou do destino das respetivas frações só podem ser lavrados se for junto documento camarário comprovativo de que a alteração está de acordo com os correspondentes requisitos legais”.

São estes os elementos que devem ser apresentados pelo interessado ou interessados perante o Notário para efeitos de constituição da propriedade horizontal por via extrajudicial.

O título constitutivo da propriedade horizontal, a que está necessariamente subjacente a licença de construção e de utilização do edifício, é o elemento fundamental para se estabelecer o confronto entre o direito real sobre cada uma das frações e a sua materialização nesse edifício, como se decidiu, noutro contexto, no Ac. do STJ de 11-12-14, 833/11, relatado pelo ora relator, em www.dgsi.pt, em que estava em causa a delimitação entre o logradouro de uma fração e o logradouro integrado nas partes comuns. Aí se concluiu que “a indefinição da delimitação entre o logradouro que constitui «parte comum» e o logradouro que é exclusivo de uma fração autónoma deve ser resolvida através da análise do título constitutivo, conjugado com o projeto que esteve na base do licenciamento da construção e da constituição da propriedade horizontal”.

2.8. Da multiplicidade de normativos enunciados resulta que a realidade respeitante tanto às frações autónomas como às partes comuns dos edifícios em regime de propriedade horizontal deverá estar em consonância com os requisitos legais, quer os que resultam das regras constantes do Cód. Civil (máxime dos arts. 1415º, 1416º e 1418º), quer os que decorrem da legislação que regula o licenciamento da construção e da utilização que serviu de base à fixação daquele regime jurídico.

Na jurisprudência esta matéria tem sido largamente debatida, sendo bem ilustrada no Ac. do STJ de 13-12-07, 07A3023 (www.dgsi.pt), em cujo sumário se expressou que:

“Não pode adquirir-se a propriedade de parte física de fração autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal antes que haja alteração do título constitutivo que autonomize essa parte física da fração da outra em que estava inserida.

O Tribunal não pode alterar o título constitutivo da propriedade horizontal em violação das normas legais em vigor, designadamente, sem a aprovação de todos os condóminos e junção de documento emanado da Câmara Municipal comprovativo que a alteração está de acordo com as leis e regulamentos em vigor na autarquia, porque não pode impor a terceiros nem aos Condóminos uma decisão que a todos atinge, quando os condóminos e o Município não são sequer partes na ação”.

Na respetiva fundamentação sustentou-se que:

“Num prédio constituído em propriedade horizontal a posição jurídica dos respetivos titulares não é a mesma que a dos proprietários de prédios a ela não sujeitos, pois existem partes próprias e partes comuns; e, mesmo nas partes próprias, existem limitações sérias ao poder de alterar o seu conteúdo e objeto.

Na verdade, na propriedade horizontal há um interesse relevante plural que se sobrepõe aos interesses individuais, sendo aquele um interesse coletivo, manifestado num título constitutivo dessa forma específica de direito real.

No direito real de propriedade horizontal a questão do domínio encontra-se repartida entre vários sujeitos, os condóminos, entrelaçando-se os interesses individuais de uns, de forma inseparável, com os interesses dos demais condóminos, através de regras próprias, sendo de destacar que não está na disponibilidade de um ou de vários deles, conseguir(em), só por si, a alteração do título de constituição desse tipo de propriedade, a menos que o título assim o tenha previsto desde o início, anteriormente à primeira alienação. (arts. 1419º e 1422º-A, nº 3).
É indispensável, portanto, que o título de constituição o permita ou a assembleia de condóminos se pronuncie e aprove as alterações sem qualquer oposição”.

E mais adiante:

“… há que ter presente que a usucapião só opera a aquisição do direito real por forma correspondente ao direito sobre o qual se exerce a posse.
E o direito que se exerceu aqui foi o da posse sobre uma pequena parte física de uma fração autónoma alheia (fração A), de que os RR. são titulares, em prédio submetido ao regime de propriedade horizontal.

Ora, na propriedade horizontal, o direito de propriedade exclusiva só se pode exercer sobre frações autónomas, perfeitamente individualizadas no título constitutivo e não sobre partes delas (arts. 1414.º, 1415.º, 1418.º e 1420.º do CC.), pelo que estando a garagem e arrecadação inserida fisicamente no espaço que é pertença dos RR. (fração “A”), não pode ela operar enquanto a situação de indivisibilidade se mantiver, o que só poderia vir a acontecer se entretanto se tivesse tornado possível a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal”.

Semelhante juízo se extrai de outros arestos, de que constitui exemplo o Ac. do STJ de 16-1-03, 03A1835, em www.dgsi.pt:

“Como resulta do art. 62º, nº 1, do Cód. do Notariado, é praticamente obrigatório o registo da constituição da propriedade horizontal (e também o da modificação).

Constando do registo que o local de aparcamento nº 1 faz parte integrante da fração "F", e não da fração "E", a aquisição pelos RR. desta última fração, negociada com a condição de que o lugar de aparcamento correspondente à fração "E" fosse o designado pelo n.º 1, constitui, quanto a este aparcamento, uma compra insuscetível de registo, por não ter sido precedida, como a lei imperativamente impõe, da inscrição registral da mencionada alteração da composição das frações.

Essa alteração da composição das frações consubstancia uma modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, para a qual a lei exige o acordo de todos os condóminos e a forma de escritura pública, verdadeira formalidade ad substantiam (arts. 220º, 371º e 1419º, nº 1, todos do CC)”

Na respetiva fundamentação refere-se que:

“… a solução acolhida no acórdão recorrido representa em termos práticos a consagração duma modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por meio de sentença judicial, o que não é legalmente possível; para tal efeito exige-se sempre que haja acordo de todos os condóminos e que a modificação se realize por meio de escritura pública, a qual se assume como verdadeira formalidade ad substantiam, isto é, como requisito de validade do negócio (arts. 220º, 371º e 1419º, nº 1, do CC). Está vedado ao tribunal intrometer-se no assunto e afastada a possibilidade de que isso possa suceder, ainda que seja no quadro duma ação de suprimento judicial do consentimento, dado o carácter excecional de que este sempre se reveste. O art. 1419º, nº 1, atrás citado, é terminante e imperativo: só o acordo unânime, devidamente formalizado, de todos os condóminos poderá validar a modificação. E é evidente, como resulta de todos os textos legais referidos, que a exigência de escritura pública (e, indiretamente, da posterior inscrição no registo) se mantém, mesmo que à data daquela ainda não haja condóminos, ou haja um só. Este é o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência, que se perfilha (cfr. Aragão Seia, A Propriedade Horizontal, p. 55 e ss.).

O art. 1419º, nº 1, atrás citado, é terminante e imperativo: só o acordo unânime, devidamente formalizado de todos os condóminos poderá validar a modificação.” (cf., no mesmo sentido, os Acs. do STJ de 11-6-86 – BMJ 358-529 e de 17-1-89 – BMJ 383-548; cf. ainda o Cons. Aragão Seia, Propriedade Horizontal, p. 56)”.

Leia-se ainda o Ac. do STJ de 29-11-06, 06A3355, em www.dgsi.pt, em cujo sumário se refere que “a constituição da propriedade horizontal por decisão judicial depende da verificação simultânea, quer dos requisitos civis previstos no art. 1417º do CC, quer dos requisitos administrativos fixados no RJUE.

Ou ainda o A. do STJ de 18-903, CJ, t. III, p. 36, quando nele se refere que “a possibilidade de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por escritura pública, havendo acordo de todos os condóminos, não afasta as normas imperativas de interesse e ordem pública relativa à conformidade da constituição com o projeto licenciado”.

Entendimento também expresso por Fernando Pereira Rodrigues, quando refere que “o tribunal não pode alterar o título constitutivo da propriedade horizontal em violação das normas legais em vigor, designadamente sem aprovação de todos os condóminos e junção de documento emanado da Câmara Municipal comprovativo de que a alteração está de acordo com as leis e regulamentos em vigor na autarquia” (Usucapião, pp. 16 e 17).

2.9. No caso concreto, a verificação da existência de uma modificação do título de propriedade horizontal por via da usucapião judicial é liminarmente impedida em face do desajustamento entre o título de propriedade horizontal e o projeto que serviu de base quer ao licenciamento, quer à constituição originária da propriedade horizontal. Essa divergência é manifesta no que concerne a todas as frações a que os autos se reportam.

No que respeita às frações J (dos AA.) e K (dos RR.), a situação de facto revela que a parede divisória não está colocada na posição determinada pelo título constitutivo, não podendo, por isso, sobrepor-se ao que emerge desse título ao qual subjaz o licenciamento camarário, nos termos do art. 1418º do CC (refere Henrique Sousa Antunes a este respeito que “apesar do silêncio da lei, o regime previsto no art. 1418º é, naturalmente, aplicável às modificações do título constitutivo” (Direitos Reais, p. 391).

No que concerne às frações Q (dos AA.) e R (dos RR.), a situação é ainda mais gritante, pois falta pura e simplesmente a parede divisória, não podendo sequer invocar-se a norma do art. 1422º-A, nº 1, do CC, sobre a junção de frações, que notoriamente apenas foi gizada para casos em que o proprietário é comum.

Ademais, a aceitação da defesa dos RR. sempre seria de recusar ante a impossibilidade de fixar os elementos previstos no art. 1418º, nº 1, do CC (valor relativo de cada uma das 4 frações recompostas). Se estes elementos são imprescindíveis aquando da formalização do ato constitutivo da propriedade horizontal, sob pena de nulidade do título, nos termos do nº 3, jamais poderiam ser dispensados só pelo facto de a situação ser apreciada em sede de sentença judicial.

2.10. Daqui decorre que não pode manter-se o acórdão recorrido, na parte em que julgou improcedente o pedido de reivindicação deduzido pelos AA. com base na usucapião que os RR. invocaram como meio de defesa.

Os AA. não só adquiriram as frações J e Q dos anteriores proprietários (aquisição derivada), como se verifica ainda que beneficiam da presunção da titularidade (art. 7º do CRP), via dupla que leva ao reconhecimento de que são proprietários de tais frações, com os limites que decorrem do título constitutivo da propriedade horizontal.

Tal implica ainda que os RR. sejam condenados a absterem-se de praticar qualquer ato perturbador desse direito de propriedade.

Improcede, por isso, a defesa dos RR. na parte em que considerou verificada a usucapião com efeitos impeditivos daquelas pretensões e, em contraponto, há que repor nesta parte a sentença que julgou procedentes tais, revogando o acórdão recorrido.

3. Na sentença da 1ª instância os RR. foram ainda condenados a destruir e a reconstruir as paredes das frações "K" e "R", de forma a restituírem aos AA. a totalidade dos 41 m2 da fração "Q" e os 48 m2 da fração "J". Para o efeito, foi convolado o pedido de condenação no pagamento das despesas que os AA. suportariam com a destruição e reconstrução das paredes divisórias nos termos que se mostrassem necessários a estabelecer a correspondência com os limites de cada uma das frações.

Nem os AA. nem os RR. se insurgiram contra esta convolação do pedido de condenação no pagamento de quantia ilíquida em condenação na prestação de facto (realização de obras necessárias).

Porém, os RR., para além de terem impugnado a sentença na parte em que reconheceu aos AA. o direito de propriedade sobre toda a área das frações J e Q, impugnaram ainda subsidiariamente, no precedente recurso de apelação, essa condenação na prestação de facto. No pressuposto de uma eventual procedência do pedido de reivindicação, consideraram os RR. que tanto a demolição da parede que divide a fração J e K como a construção ou reconstrução de paredes divisórias necessárias para que seja respeitado o que consta do título constitutivo da propriedade horizontal deveriam constituir encargo comum dos RR. e dos AA., em partes iguais.

Ora, esta matéria não foi objeto de apreciação pela Relação, por ter sido considerada prejudicada, sendo certo que a norma do art. 665º, designadamente o seu nº 2, não é aplicável ao recurso de revista, por expressa exclusão prevista no art. 679º do CPC.

O mesmo se diga da apreciação da questão suscitada pelos AA. no precedente recurso subordinado de apelação.

Os AA. recorreram subordinadamente na parte em que a sentença da 1ª instância lhes negou o direito de indemnização com base na privação do uso.

No entanto, a apreciação do objeto desse recurso subordinado ficou prejudicada pela solução dada quanto à reivindicação, competindo à Relação fazê-lo.

IV – Face ao exposto, acorda-se em revogar o acórdão recorrido e, em sua substituição, julga-se a ação parcialmente procedente, de modo que:

a) Se reconhece aos AA. a qualidade de proprietários das frações “J” e “Q”, com os limites que resultam do título constitutivo da propriedade horizontal;

b) Condenam-se os RR. a absterem-se de praticar qualquer ato perturbador desse direito de propriedade, na parte respeitante às áreas que integram as frações “J” e “Q” e a devolverem essas áreas aos AA.;

c) Determina-se a remessa dos autos à Relação a fim de ser apreciada a apelação interposto pelos RR. na parte relativa ao pedido dos AA. de condenação dos RR. na demolição e reconstrução de paredes decretado pela 1ª instância;

d) Será ainda apreciada pela Relação a questão que AA. suscitaram no recurso de apelação subordinado relacionada com o pedido de condenação dos RR. no pagamento de uma indemnização pela privação do uso.

Custas da revista a cargo dos RR., na proporção de 50%, tendo em conta o decidido nas als. a) e b). No mais, as custas ficarão a cargo da parte vencida a final.

Notifique.

Lisboa, 6-12-18

Abrantes Geraldes (Relator)



Tomé Gomes


Maria da Graça Trigo