Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
49/10.5TBNIS.E2.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: ACÁCIO DAS NEVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
TÉCNICO OFICIAL DE CONTAS
FARMÁCIA
SOCIEDADE UNIPESSOAL
OBRIGAÇÃO FISCAL
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Sobre o réu, enquanto TOC da autora, empresária em nome individual (farmácia) e posteriormente da Sociedade Unipessoal, da qual a autora é sócia e única gerente e para a qual veio a ser transferido o estabelecimento de farmácia, pendia a obrigação de aconselhar a autora em ordem a que os créditos e débitos da Farmácia passagem para a SU.

II. Ao não ter aconselhado a autora da conveniência dessa transferência de créditos e débitos, o recorrente incumpriu com a obrigação de aconselhamento a que estava sujeito – incumprimento esse cuja culpa se presume.

III. Assim e uma vez que, na sequência disso, em sede de liquidação adicional de IRS, se veio a verificar ter havido falta de transmissão das dívidas e de créditos da Farmácia para a SU e ter havido pagamentos efetuados pela SU respeitantes a fornecimentos à Farmácia da autora enquanto empresária em nome individual, que não foram objeto de registo na contabilidade da SU, de onde resultou que a autora teve que pagar determinada quantia em sede de liquidação adicional de IRS, é de considerar como verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



AA. instaurou a presente ação declarativa ordinária contra BB. e a então Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, SA, agora Fidelidade - Companhia de Seguros, SA, peticionando a condenação dos Réus, solidariamente, a pagarem-lhe a quantia de € 81.487,62, acrescida de juros de mora vincendos desde 06.03.2010 até integral pagamento sobre €74.135,05, sendo a Ré Seguradora apenas até ao limite da responsabilidade transmitida.

Alegou para o efeito e em resumo:

Foi proprietária da Farmácia M...., que explorou em nome individual, sendo o Réu seu técnico oficial de contas – TOC.

Em agosto de 2002, a conselho do Réu, constituiu uma sociedade unipessoal por quotas para exploração de farmácia (Farmácia S....) por ser vantajoso em termos fiscais, tendo o TOC efetuado diligências para a constituição da sociedade e continuado a exercer as funções de TOC da sociedade unipessoal.

O início da atividade deu-se apenas em 25.02.2003 devido à necessidade de obter os necessários licenciamentos, data em que foi outorgada a escritura pública de trespasse.

Em 2007 foi sujeita a uma inspeção tributária, onde se constatou a errada qualificação da operação contabilística e tributária da transmissão do património de empresária em nome individual para a sociedade unipessoal, não tendo sido solicitada a cessão de créditos dos fornecedores para a nova sociedade, nem sido emitidos os recibos em nome da sociedade unipessoal, apesar de os pagamentos terem sido efetuados através de cheques da conta bancária da sociedade unipessoal, sem que tenham sido objeto de registo na contabilidade, não obstante lhe hajam entregues cópias de todos os cheques emitidos e os recibos enviados pelos fornecedores.

O TOC participou a ocorrência à Ré face ao contrato de seguro celebrado pela Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, que, por sua vez, informou que o processo decorrente dessa participação do sinistro tinha sido enviado para a AVS – Corretores de Seguros, SA, que intermediava o seguro celebrado.

Em 10.08.2007 a Autora recebeu uma notificação da Direção Geral dos Impostos para proceder ao pagamento de uma liquidação adicional no valor de € 99.135,05, na sequência de correções feitas pelo Réu, por sua iniciativa.

Nem a AVS, nem a Ré comunicaram o resultado da participação, vindo a Autora a saber através da AVS, do encerramento do processo por ausência de resposta do Réu.

A Autora pretende ver-se ressarcida dos prejuízos sofridos, sendo que o Réu comparticipou com a quantia de € 25.000,00.

Na sua contestação, a ré invocou a incompetência territorial do Tribunal, a sua ilegitimidade ou a ilegitimidade da Autora e defendeu-se ainda por impugnação.

Por sua vez, o réu, na sua contestação, invocou a preterição do litisconsórcio ativo (face à não intervenção do marido da Autora), a ilegitimidade a Autora (dado que os serviços invocados foram prestados à farmácia e não à Autora) e ainda a sua ilegitimidade processual (devendo ser acionada apenas a Ré, para quem foi transferida a responsabilidade por atos praticados no exercício da sua atividade).

E defendeu-se ainda por impugnação, sustentado  que a criação de uma sociedade unipessoal não resultou de um conselho seu, mas de uma decisão exclusiva da Autora, não tendo intervindo na obtenção de quaisquer licenciamentos, ou aconselhado na feitura de qualquer trespasse, que desconhecia; contabilizando todos os documentos que lhe foram entregues, e que a sua assunção de responsabilidades foi errada e temporária, sustentando agora não ter cometido qualquer infração, erro ou omissão, não tendo prejudicado a Autora e que a quantia de € 25.000,00 foi, sim, emprestada.

A Autora deduziu Réplica na qual tomou posição no sentido de se não verificarem as exceções invocadas.

Foi proferido Despacho Saneador, no qual foram julgadas improcedentes as exceções dilatórias de ilegitimidade processual (preterição de litisconsórcio plural ativo, ilegitimidade processual ativa de passiva).

Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença, na qual a ação foi julgada improcedente, sendo os réus absolvidos do pedido.

Na sequência e no âmbito de apelação da Autora, o Tribunal da Relação … anulou parcialmente o julgamento quanto a determinados pontos da matéria de facto, e ordenou a realização de perícia colegial.

Repetido parcialmente o julgamento, veio a ser proferida nova sentença, na qual a ação foi uma vez mais julgada improcedente, sendo os réus absolvidos do pedido.

Na sequência e no âmbito de novo recurso de apelação da Autora, a Relação …, após alterar parcialmente a matéria de facto, julgando parcialmente procedente o recurso:

- Condenou o Réu BB. a pagar à Autora AA., a indemnização pelos danos provocados pela conduta ilícita e culposa do Réu, a apurar em liquidação do presente Acórdão (tendo como limite o valor de € 74.135,05, correspondente à diferença entre o valor de € 99.135,05 pago pela autora, relativo à liquidação adicional de IRS, e a quantia de € 25.000,00 entregue pelo réu à autora), a que acresce a quantia relativa a juros de mora, à taxa legal sucessivamente em vigor, contados desde 12/09/2007 e até integral pagamento;

- Mantendo no mais o decidido na sentença.

Inconformado, interpôs o réu BB. o presente recurso de revista, no qual formulou a seguintes conclusões:

a) O contrato de prestação de serviços de contabilidade celebrado entre o Recorrente e a “Farmácia M…” não foi reduzido a escrito, mas aquele desempenhou as funções de Técnico Oficial de Contas (TOC) por conta da “farmácia” acima referida. Embora não haja sido aprazada qualquer obrigação de aconselhamento, o Recorrente sempre o efetuou, por entender devido, acompanhamento e aconselhamento fiscais. Tais acompanhamento e aconselhamento incluía a explicação e o aconselhamento técnico, sendo – contudo – que a decisão e a gestão concreta sempre ficou reservada ao titular do negócio, no caso a Recorrida.

b) Não partiu do Recorrente o conselho de criação de qualquer sociedade unipessoal. Tal decisão partiu exclusivamente da Recorrida., sendo o papel do Recorrente o da feitura da análise e acompanhamento técnico-contabilístico das decisões da Recorrida, o que fez.

c) Em todo o caso, a constituição de uma sociedade, como indicado pela Recorrida beneficiou, do ponto de vista fiscal, a A., como aliás comprovado por um estudo efetuado e que se encontra já junto aos autos e que esteve aliás na base da douta decisão de 1.ª instância.

d) O Recorrente não aconselhou, como aliás resulta dos autos, a feitura de qualquer trespasse sendo que apenas com a citação da presente ação teve o Recorrente conhecimento da celebração deste e do seu teor, não tendo sido provado e não tendo havido quaisquer “instruções”, ou por qualquer forma haja tido intervenção na celebração do negócio titulado pelo doc 1 junto aos autos com a douta P.I.. Desde logo, a opção pelo trespasse não era entendida pelo Recorrente como sendo a melhor opção. O conselho que o Recorrente deu foi o da venda do património do empresário em nome individual à nova sociedade, o que aliás – na prática- veio a ter lugar.

e) O que era pretendido pela Recorrida, ao que agora se pode depreender do teor da P.I., era a “passagem de créditos e débitos do estabelecimento em nome individual para a sociedade”.

f) Tal “passagem” pode ser feita de um modo especial e ao abrigo do Princípio da Neutralidade Fiscal, sem que lhe corresponda liquidação de imposto, fazendo a total transferência do estabelecimento para a sociedade, sendo que, nessa situação o estabelecimento transformar-se-ia em sociedade, acabando o primeiro para dar origem à segunda. 37.º. Porém, pelas razões – aliás- referidas pela A. no artigo 6.º da douta P.I. não poderia ser feita tal transformação. Pois, a ausência de licenciamento da sociedade, impedia a transferência imediata do “conteúdo” do estabelecimento; sendo que o licenciamento só poderia ser obtido após a constituição da sociedade.

g) As necessidades específicas e as regras da atividade em causa, impediam que pudesse ser feita uma transferência nos termos previstos para o uso do instituto da neutralidade fiscal, porquanto não houve (nem podia haver) simultaneidade entre a cessão da atividade do estabelecimento em nome individual e o inicio da atividade da sociedade, neste sentido vd. doc. 2 junto aos autos com a contestação.

h) A transferência de débitos e créditos pretendida pela Recorrida – porque os créditos eram inferiores aos débitos – seria a venda de um património insolvente, em concreto, uma desvinculação do estabelecimento mediante os seus credores, procedendo à venda da sua dívida a um terceiro, figura – aliás fiscalmente “exótica”, além de ilegal.

i) A inspeção fiscal de que a Recorrida foi alvo não detetou qualquer irregularidade técnica.

j) O Recorrente não cometeu qualquer infração, erro ou omissão, nem foi não diligente, sendo certo que a cliente não ficou prejudicada, mas sim beneficiada com as opções técnicas, não é o Recorrente responsável, como aliás decorre do teor dos pareceres juntos aos autos e que não foram alvo de impugnação pela Recorrida.

l) Pelo que, deve o presente recurso proceder na sua totalidade e deve manter-se a absolvição do Recorrente com o que farão V. Exas. a habitual justiça.

Nestes termos e nos melhores de Direito, dado que seja por V.Exa., Venerandos Conselheiros, o V: douto suprimento, deve o presente ser recebido e, acolhidas que sejam as razões expostas, deve revogar-se o douto Acórdão aqui recorrido na parte em que conclui pela responsabilidade do aqui Recorrente, procedendo o presente na sua totalidade e mantendo-se a absolvição do Recorrente como decidido em 1.ª Instância, com o que se fará a desejada justiça.


Não foram apresentadas contra-alegações.


Dispensados os vistos, cumpre decidir:

Em face do teor das conclusões recursórias, enquanto delimitadora do objeto da revista, são as seguintes as questões de que cumpre conhecer:

- inexistência de incumprimento dos deveres funcionais a que o recorrente estava vinculado;

- inexistência de danos resultantes das opções técnicas do recorrente.


Factulidade dada como provada e como não provada pelas instâncias:

Factos provados:

A. O Réu BB. encontra-se inscrito como Técnico Oficial de Contas na Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, sob o nº …;

B. A Autora AA. cessou a sua atividade como empresária em nome individual em 15.07.2004 – cfr. doc. que fls. 365, que se dá por integralmente reproduzido;

C. A pessoa coletiva Farmácia S.... Unipessoal, Lda, com o NIPC ….., encontra-se inscrita na competente Conservatória de Registo Comercial desde 03.09.2002 – cfr. doc. de fls. 358 e ss. que se dá por integralmente reproduzido;

D. No período compreendido entre Janeiro de 2003 a Dezembro de 2007, com exclusão dos meses de Maio a Julho de 2003, Junho a Agosto de 2004, o 1º Réu constou da base de dados dos aderentes que a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas enviava mensalmente para seguradora de responsabilidade civil profissional;

E. A Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas foi tomadora dos contratos de seguro celebrados com a Ré Fidelidade titulados pelas apólices n.ºs … e …;

F. A apólice nº … vigorou no período compreendido entre 10 de Novembro de 2000 a 30 de Junho de 2003, cobrindo os riscos de responsabilidade profissional dos técnicos oficiais de contas inscritos na respetiva Câmara, com um capital máximo por sinistro e por ano de Esc. 10.024.100$00 por aderente, e com uma franquia de 10 % do valor da indemnização, no mínimo de Esc. 10.000$00 – cfr. doc. de fls. 85, que se dá por integralmente reproduzido;

G. A apólice nº … vigorou no período compreendido entre 01 de Julho de 2003 a 27 de Março de 2004, cobrindo os riscos de responsabilidade civil profissional dos técnicos oficiais de contas inscrito na respetiva Câmara, com um capital máximo por sinistro e por ano de € 50.000,00 por aderente, e com uma franquia de 10 % do valor da indemnização, no mínimo de € 49,88 – cfr. doc. de fls. 86, que se dá por integralmente reproduzido;

H. Nos termos do ponto 3. das Condições Particulares dos contratos de seguros referidos em F. e G., “para além do que se expressa nas Condições Gerais da Apólice, o âmbito da cobertura da mesma, compreende: As indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao Segurado, em consequência de danos patrimoniais causados a Clientes ou Terceiros, desde que resultem de atos ou omissões cometidos durante o exercício da atividade de Técnico Oficial de Contas”;

I. E no ponto 4. das Condições Particulares que “além das exclusões referidas nas Condições Gerais, fica ainda excluída a responsabilidade: (…) Por danos resultantes da prática da atos e/ou do exercício da atividade profissional, para os quais o Segurado não esteja legalmente habilitado”;

J. Bem como no ponto 5. das Condições Particulares dos contratos de seguro referidos em F. e G., “a garantia da apólice está limitada aos erros, atos ou omissões geradores de responsabilidade ocorridas após a data de início do contrato e antes do respetivo termos, reclamadas até ao período de 4 (quatro) anos subsequentes ao termo do contrato, desde que o facto gerador dos danos tenha ocorrido antes do retendo termo” – cfr. doc. de fls. 87 e ss. que se dá por integralmente reproduzido;

L. E na al. l) do nº 1 do artigo 4º das Condições Gerais que “ficam sempre excluídos os seguintes danos: (…) Decorrentes de acordo ou contrato particular, na medida em que a responsabilidade que daí resulte exceda a que o segurado estaria obrigado na ausência de tal acordo ou contrato” – cfr. doc. de fls. 90 e ss., que se dá por integralmente reproduzido;

M. Os presentes autos tiveram o seu início em 6 de Março de 2010, tendo o Réu BB. e a Ré Fidelidade sido citados, respetivamente, nos dia 11 e 9 desse mesmo mês;

N. A Autora foi proprietária de uma farmácia denominada “Farmácia M....”, sita no Largo … em …;

O. Explorando a mesma como empresária em nome individual;

P. Por escritura pública intitulada “trespasse”, datada de 25.02.2003, por AA. e marido, EE., ambos por si e aquela na qualidade de única sócia e gerente da Farmácia S...., Unipessoal, Lda, foi declarado que “são donos e legítimo possuidores de um estabelecimento comercial de farmácia denominado «Farmácia M.....» (…) Que pelo peço de CENTRO E TRINTA E QUATRO MIL QUATROCENTOS E QUARENTA E NOVE EUROS E OITENTA E NOVE CÊNTIMOS, que já receberam da representada da outorgante mulher, (…) àquela dão de trespasse o referido estabelecimento comercial com todos os seus elementos integrantes” – cfr. doc. de fls. 11 a 13, que se dá por integralmente reproduzido;

Q. O Réu BB. exerceu as funções de Técnico Oficial de Contas do estabelecimento “Farmácia M....”;

R. Em Agosto de 2002, a Autora constituiu a pessoa coletiva Farmácia S.... Unipessoal, Lda;

S. O Réu passou a exercer as funções de Técnico Oficial de Contas da Farmácia S.... Unipessoal, Lda após a sua constituição;

T. O Réu preencheu, ou funcionário a seu mando, e assinou como Técnico Oficial de Contas, e fez entregar da Repartição de Finanças … a declaração de início de atividade para efeitos fiscais;

U. Fazendo constar como início de atividade o dia 01.09.2002;

V. O Réu indicou à Autora o valor a fazer constar da escritura de trespasse referida em P.;

X. O convénio referido em P. apenas ocorreu em 25.02.2003 devido ao facto de haver necessidade de a obtenção de licenciamentos junto do Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento – Infarmed;

A. Em 2007 a Autora foi sujeita a uma inspeção dos Serviços Tributários;

AA. Não foi feita a transmissão das dívidas a que se referem os créditos dos fornecedores da Farmácia M.... para a Farmácia S.... Unipessoal, Lda;

AB. Não foi solicitado aos credores que os recibos de pagamento fossem emitidos em nome da Farmácia S.... Unipessoal, Lda;

AC. Houve pagamentos efetuados pela Farmácia S.... Unipessoal, Lda e respeitantes a fornecimentos à Farmácia M.... da Autora enquanto empresária em nome individual, que não foram objeto de registo na contabilidade da Farmácia S.... Unipessoal, Lda;

AD. Na declaração de rendimentos da Autora de substituição referente ao ano de 2004, recebida em 17.07.2007 consta como lucros e adiantamentos por conta de lucros a quantia de € 236.000,00; (Factualidade a que se atende nos termos do nº 4 do art. 607º do Código de Processo Civil, face ao teor do documento de fls. 231 e ss.)

AE. A 10 de Agosto de 2007 a Autora foi notificada pela Direção Geral de Contribuições e Impostos para proceder ao pagamento da quantia de € 99.135,05 (noventa e nove mil, cento e trinta e cinco euros e cinco cêntimos), por liquidação adicional de IRS;

AF. A liquidação adicional foi efetuada na sequência de correções levadas a cabo por iniciativa do Réu;

AG. E foi paga pela Autora em 12 de Setembro de 2007;

AH. Por carta datada de 30 de Junho de 2007, o 1.° Réu efetuou participação ao abrigo da apólice de responsabilidade civil profissional nº …, da Companhia de Seguros Real, solicitando a ativação da apólice de responsabilidade civil, da mesma constando, além do mais, que:

“(…) não valorizei suficientemente várias chamadas de atenção que me foram efetuadas pela empresária, de que tinha muitos encargos com pagamentos a fornecedores da ENI e também pessoais, com a consequente necessidade de efetuar retiradas de verbas, o que, a manter-se a ENI, não configuraria retirada de lucros, pelo que não teria encargos fiscais. Ora, com a alteração da forma jurídica da empresa, as mesmas retiradas na sociedade unipessoal seriam alvo de tributação, consideradas como distribuição/antecipação de resultados, ainda que só considerados em 50% do seu valor, com o consequente incremento dos encargos fiscais.

Admito agora que não valorizei devidamente esses avisos e após a referida inspeção constata-se que resulta um prejuízo material para o meu cliente no montante de 54.400 euros, com origem em erros meus, ainda que involuntários (…)” – cfr. doc. de fls. 18 e 19, que se dá por integralmente reproduzido;

AI. Em 18 de Julho de 2007 a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas enviou à Autora uma carta dando conta que o processo decorrente da participação do sinistro havia sido enviado para a AVS Corretores de Seguros, para efeitos de acionamento do seguro de responsabilidade civil profissional – cfr. doc. de fls. 22, que se dá por integralmente reproduzido;

AJ. A 15 de Dezembro de 2009 a Ré Fidelidade enviou carta ao mandatário da Autora, relativa ao processo de sinistro nº …, onde consta que: “Após análise dos elementos que constituem o nosso processo, somos a informar que foi enviada carta ao Técnico Oficial de Contas BB. a solicitar alguns esclarecimentos, por forma a nos pronunciarmos sobre a posição de responsabilidades desta Companhia, dado não termos obtido qualquer resposta, nem alegação que fundamentasse a existência do eventual erro profissional, procedemos encerramento do processo” – cfr. doc. de fls. 189, que se dá por integralmente reproduzido;

AL. A Ré encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob a matrícula nº …;

AM. Por AP. … encontra-se inscrita sobre tal matrícula a incorporação, por fusão, além do mais, da Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, SA – cfr. doc. de fls. 239 e ss., que se dá por integralmente reproduzido;

AN. O Réu entregou € 25.000,00 à Autora;

AO. O Réu, no âmbito da sua atividade de TOC da Farmácia M...., aconselhou a Autora à passagem da ENI da Farmácia M.... para uma sociedade unipessoal que veio a denominar-se Farmácia S...., Unipessoal, Lda;

AP. Por força do referido em Q), S) e AO), era da incumbência do Réu aconselhar a Autora a dar cumprimento a todas as obrigações contabilísticas e fiscais, por forma a que no momento da passagem da propriedade do estabelecimento de farmácia “Farmácia M.....” da Autora, enquanto empresária em nome individual, para a empresa Farmácia S...., Unipessoal, Lda, fosse obtida a neutralidade fiscal. (com a alteração efetuada pela Relação).

AQ. No âmbito das suas obrigações profissionais, cabia ao Réu, enquanto TOC da Farmácia M.... (ENI), aconselhar a Autora a proceder à transmissão para a Sociedade Farmácia S...., Unipessoal, Lda, após anuência dos atinentes credores, das dívidas que a ENI tinha para com os seus fornecedores e, transmitidas que fossem essas dívidas, aconselhar a gerência da SU a notificar os credores da ENI para emitirem os recibos em nome da Farmácia S...., Unipessoal, Lda. (aditado pela Relação).

AR. O Réu enviou à Farmácia S...., Unipessoal, Ldª, datada de 30 de Junho de 2007, a seguinte missiva:

Após análise do processo dessa empresa, concretamente da situação fiscal, entendi que seria vantajoso a passagem de ENI a sociedade unipessoal. Interpretei então que não estavam reunidos todos os pressupostos para aplicação do consagrado no artigo 38º do CIRS, princípio da neutralidade fiscal, nomeadamente por não poder haver simultaneidade entre a cessação da actividade da ENI e a constituição da Sociedade Unipessoal.

Após fiscalização à vossa contabilidade, vim a constatar que se poderiam ter reunido esses pressupostos, de modo a fazer cumprir, um conjunto de formalidades legais que permitiriam à nova empresa, usufruir da neutralidade fiscal, já referida. Nesse pressuposto, não foram por mim salvaguardados todos os benefícios inerentes a tal aplicação.

Tendo ainda desvalorizado, no que se refere à cessão de créditos, a necessidade da gerência da Farmácia S...., Unipessoal, Lda., notificar os credores para emitirem os recibos em nome da Sociedade, constatando assim que desse facto resultou, não ter sido aceite pelo Serviços Tributários a cessão de créditos, com elevado prejuízo material para essa firma, por estes erros, ainda que involuntários.

Pelo exposto, informo V.Exª., que vou solicitar a análise do assunto, procedendo à activação da apólice de Responsabilidade Civil, subscrita pela CTOC, com vista a ressarcir essa empresa dos prejuízos sofridos”. (aditado pela Relação).

AS. O Réu enviou à Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, datada de 30 de Junho de 2017, a seguinte missiva:

“Participação de ocorrência ao abrigo da Apólice de Responsabilidade Civil Profissional n.º …., da Companhia de Seguros Real

Participante: BB.

Técnico Oficial de Contas inscrito na CTOC sob o n.º …

Após análise da situação patrimonial e fiscal do contribuinte AA., empresário em nome individual, com actividade de Farmácia, entendi ser conveniente a sua transição para sociedade unipessoal por quotas, por haver, no meu ponto de vista, vantagens tributárias com tal transição, majoradas pelo facto da sede da empresa se situar em zona abrangida pelos benefícios fiscais à interioridade. Foi constituída a Farmácia S.... Unipessoal, Lda. A concretização dessa transição ocorreu em Fevereiro/Março de 2003.

Entendi que não estavam reunidos todos os pressupostos para aplicação do consagrado no artigo 38º do CIRS, princípio da neutralidade fiscal, nomeadamente por não poder haver simultaneidade entre a cessação da actividade da ENI e a constituição da Sociedade Unipessoal (constituída em Agosto de 2002 mas inactiva até Fevereiro de 2003), visto a actividade desenvolvida exigir alvará de licenciamento, a obter junto do Infarmed o que considerei, pelos dados que conhecia à data, ser um processo moroso e que exigiria a prévia constituição da Sociedade Unipessoal.

Por tal facto utilizei o critério de proceder à venda das Existências e do Imobilizado (avaliado nos termos do CIVA e com o consequente cálculo das mais ou menos-valias). E bem assim, interpretei que seria possível proceder à cessão de créditos a ser assumidos pela nova sociedade. Esta última situação, na leitura que fiz dos factos e informações que dispunha, sem quaisquer encargos tributários. Por outro lado e na sequência desse raciocínio deveria ter solicitado aos credores que emitissem os recibos em nome da sociedade, não o fiz e apesar de todos os pagamentos terem sido efectuados através da conta bancária da sociedade, não registei esses pagamentos na sua contabilidade.

Sobre esta questão constatei agora, após fiscalização à contabilidade do sujeito passivo, que o fisco não interpreta dessa forma e considera que, o valor desses créditos devem ser considerados como pagos à ENI e desse modo tributados, na totalidade, como rendimentos obtidos pela transmissão. O que vem a traduzir-se em elevados prejuízos materiais para o meu cliente.

Também não valorizei suficientemente várias chamadas de atenção que me foram efectuadas pela empresária, de que tinha muitos encargos com pagamentos a fornecedores da ENI e também pessoais, com a consequente necessidade de efectuar retiradas de verbas, o que a manter-se a ENI, não configuraria retirada de lucros, pelo que não teria encargos fiscais. Ora com a alteração da forma jurídica da empresa, as mesmas retiradas na sociedade unipessoal seriam alvo de tributação, consideradas como distribuição/antecipação de resultados, ainda que só consideradas em 50% do seu valor, com o consequente incremento dos encargos fiscais.

Admito agora que não valorizei devidamente esses avisos e após a referida inspecção constata-se que resulta um prejuízo material para o meu cliente no montante de 54,400 euros, com origem em erros meus, ainda que involuntários.” (aditado pela Relação).

Factos não provados:

c) Eliminado pela Relação.

d) A data da celebração do convénio referido em P. resultou do entendimento do Réu que a passagem de atividade em nome individual para a pessoa coletiva têm de ser coincidentes;

e) Os Serviços Tributários constataram que a transmissão do património da farmácia M.... da Autora enquanto empresária em nome individual para a Farmácia S... Unipessoal, Lda foi objeto de errada qualificação contabilística e tributária;

f) Ao Réu coubesse fazer a cessão dos créditos dos fornecedores;

g) Foram entregues ao Réu cópias de todos os cheques emitidos e recibos enviados pelos fornecedores da farmácia;

h) A Autora, em 12 de Setembro de 2007, enviou à AVS Corretores de Seguros, SA um escrito no qual declarou, além do mais, que “Após ter sido informada pelo nosso contabilista, de que face a erros técnicos de variada ordem iria receber uma notificação da Direção Geral de Impostos, a fim de proceder ao respetivo pagamento, fiquei a aguardar a respetiva notificação, o que veio a acontecer em 10/08/2007. (…) Solicitamos informação acerca da Companhia de Seguros responsável pela apólice de responsabilidade civil profissional em causa, identificada em epígrafe. (…)”;

i) A quantia de € 25.000,00 foi entregue pelo Réu à Autora como forma de comparticipação no pagamento da quantia referida em AE;

j) Atentos os termos em que foi celebrado o convénio referido em P., fosse possível obter a neutralidade fiscal.


 I - Quanto à inexistência de incumprimento dos deveres funcionais a que o recorrente estava vinculado:

1) Conforme bem se considerou no acórdão recorrido, a causa de pedir subjacente ao pedido de condenação formulado pela autora recorrida contra o réu recorrente, situada no domínio da responsabilidade contratual (contrato de prestação se serviços entre ambos celebrado), assenta no incumprimento ou cumprimento defeituoso das obrigações contratuais referentes aos deveres funcionais a que o recorrente, enquanto TOC, estava vinculado.

Segundo a Relação, em face do quadro legal estabelecido no Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, aprovado pelo DL nº 452/99, de 05 de novembro (designadamente dos eus artigos 6º, 52º, 54º e 55º), para alem da obrigação de procederem ao rigoroso cumprimento das normas técnicas em vigor perante a Administração Fiscal no âmbito do relacionamento entre os seus clientes e a Administração Fiscal, no seu relacionamento com os clientes, os TOCs estão sujeitos ao dever de proceder ao “desempenho consciencioso e diligente da sua atividade profissional, planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade dos seus clientes, prestando-lhes ainda todas as informações, do ponto de vista contabilístico e fiscal, para o rigoroso cumprimento das obrigações destes perante a administração fiscal, e elucidá-los da melhor forma de, cumprindo as obrigações fiscais, terem as maiores vantagens fiscais no exercício da sua atividade.” – deveres esse que o réu ora recorrente incumpriu ou cumpriu defeituosamente.

2) E isto, segundo a Relação, por um lado, porque não aconselhou a autora a optar por uma solução que lhe permitisse beneficiar do regime da neutralidade fiscal, através da transmissão do estabelecimento da autora (em nome individual) diretamente para uma sociedade unipessoal da autora, sem qualquer tributação:

“Sendo o Réu Técnico Oficial de Contas da Autora (ENI), não podia olvidar este regime da neutralidade fiscal que, conforme a sua denominação bem esclarece, permitiria a transmissão do estabelecimento de farmácia Farmácia M... em nome da Autora (ENI), para uma Sociedade Unipessoal de que a Autora é a única sócia, sem qualquer tributação. Não tendo acautelado esta solução, e tendo aconselhado a Autora a optar por outra formulação legal, a figura do trespasse, violou o Réu os seus deveres contratuais para com a Ré, nomeadamente de não a aconselhar, do ponto de vista contabilístico e fiscal, sobre a melhor solução para a transmissão do estabelecimento de farmácia Farmácia M..... de ENI para SU, transmissão essa que tinha sido sugerida pelo Réu à Autora.”

3) E, por outro lado, porque, não tendo procedido a tal aconselhamento, também não aconselhou a autora a proceder em ordem que os créditos e débitos da Farmácia passagem para a SU:

Por outro lado, tendo o Réu aconselhado a Autora (ENI) a proceder à transmissão do estabelecimento de farmácia Farmácia M.... da ENI para a SU, por via de trespasse, não a aconselhou a notificar os devedores da ENI para anuírem à transmissão dos seus créditos sobre a ENI para a SU, nem para, obtida essa anuência dos ditos fornecedores/credores, a Sociedade Farmácia S....., Unipessoal, Lda,, efectuada que fosse a transmissão da propriedade do estabelecimento de farmácia da ENI para a Sociedade Farmácia S....., Unipessoal, Lda, solicitasse aos fornecedores/credores da ENI que os recibos fossem emitidos em nome desta Sociedade, como seria a sua obrigação, em face dos constrangimentos fiscais e contabilísticos que tal omissão poderia acarretar para a Autora, uma vez que os depósitos bancários em nome da ENI, a ver pelo Relatório da Autoridade Tributária, passaram da ENI para a SU. Do que resultou, como é bom de ver, que os depósitos bancários passassem da ENI para a SU e as dívidas aos fornecedores ficassem na ENI, embora tenha havido pagamento pela SU de dívidas da ENI! O que demonstra, mais uma vez, que o Réu, enquanto Técnico Oficial de Contas da Autora, não a aconselhou conforme as melhores práticas contabilísticas e fiscais, conforme estava obrigado profissionalmente.”           

Assim, concluindo, diz a Relação que “afigura-se-nos evidente que as referidas condutas do Réu, ao não dar o melhor aconselhamento, do ponto de vista contabilístico e fiscal, para a transmissão do estabelecimento de farmácia Farmácia M.... de ENI para SU, ao abrigo de um regime de neutralidade fiscal, e, mesmo não se tendo procedido à transmissão do estabelecimento ao obrigo desse regime, mas sim ao abrigo do regime de trespasse, não ter aconselhado “a Autora a transmitir para a Sociedade Farmácia S..., Unipessoal, Lda, as dívidas que aquela tinha para com os fornecedores e, transmitidas que fossem essas dívidas, aconselhar a gerência desta última a notificar os credores da Farmácia M.... para emitirem os recibos em nome da Farmácia S...., Unipessoal, Ldaviolam, ilicitamente, as suas obrigações contratuais e funcionais.” (salientados nossos).

3) O réu recorrente, não obstante referir que não foi “aprazada” qualquer obrigação de aconselhamento, acaba por aceitar que sobre o mesmo impendia a obrigação de aconselhamento referida no acórdão recorrido.

 Todavia, segundo o mesmo, sendo tal aconselhamento, de natureza técnica, a decisão e a gestão concreta sempre ficou reservada à autora recorrida, não tendo partido de si o conselho da criação de qualquer sociedade unipessoal e que segundo um estudo efetuado junto aos autos a constituição da sociedade até beneficou a autora do ponto de vista fiscal.

  Mas, neste apeto, sem razão, na medida em que, muito embora a decisão sobre a constituição ou não da sociedade unipessoal sempre coubesse, naturalmente, à autora, até se provou especificamente (al. AO dos factos provados) que o réu “no âmbito da sua atividade de TOC da Farmácia M...., aconselhou a Autora à passagem da ENI da Farmácia M.... para uma sociedade unipessoal que veio a denominar-se Farmácia S..., Unipessoal, Lda”.           

Todavia, não está em causa a existência ou não de tal aconselhamento ou sequer saber se essa mudança do estabelecimento (em nome individual da autora para uma sociedade unipessoal da mesma) foi prejudicial ou benéfica para a autora, sendo que, atentos os fundamentos invocados no acórdão recorrido, o que está em causa é saber se houve aconselhamento, ou falta dele, sobre a forma como se deveria ter procedido a essa transmissão (diretamente, que não através de trespasse, de que resultaria ausência de tributação).

4) Ora, segundo o recorrente, conforme resulta dos autos, o mesmo não aconselhou a feitura de qualquer trespasse, apenas tendo conhecimento do mesmo com a citação para a presente ação, e que tal opção pelo trespasse em sequer era entendida por si como sendo a melhor opção, sendo que o conselho que foi no sentido da venda do património do empresário em nome individual à nova sociedade, o que aliás, na prática, veio a ter lugar.

 Efetivamente, contrariamente ao que diz a Relação (“… e tendo aconselhado a Autora a optar por outra formulação legal, a figura do trespasse…”), nada foi provado no sentido de o réu recorrente ter aconselhado a autora a proceder ao trespasse para efeitos de transferência do estabelecimento para a SU, nos termos referidos em P) dos factos provados.

 Não obstante carecer de fundamento a alegação do recorrente no sentido de não ter tido sequer conhecimento do trespasse - na medida em que se provou (al. V dos factos provados) que “o réu indicou à autora o valor a fazer constar da escritura de trespasse referida em P” -  o certo é que nada se provou, relativamente ao aconselhamento (ou ausência de aconselhamento) do réu à autora sobre a conveniência de se proceder ao trespasse do estabelecimento.

 Isto sendo certo que, a decisão de proceder ou não ao trespasse sempre pertenceria à autora, que em tese, até poderia ter decidido por sua iniciativa, seguindo ou não aconselhamento de terceiro e, quiçá, até contra as indicações do recorrente.

 De resto, até foi dado como não provado [sob a al. d)] que a data da celebração do trespasse “resultou de entendimento do réu que a passagem de atividade em nome individual para a pessoa coletiva têm de ser coincidentes”

 Assim, nesta parte, e porque era sobre a autora que pendia o respetivo ónus de alegação e prova (nos termos do nº 1 do artigo 342º do C. Civil), não se poderá concluir no sentido de ter havido violação, por parte do recorrente, dos seus deveres funcionais, enquanto TOC, de informação e de aconselhamento.

Ou seja, neste âmbito, não se poderá concluir, conforme o fez  a Relação, no sentido de ter havido incumprimento ou cumprimento defeituoso por parte do recorrente.

5) Quanto ao segundo argumento invocado pela Relação para concluir no sentido do incumprimento ou incumprimento defeituoso, (falta de aconselhamento da autora, pelo réu, da conveniência da transferência dos créditos e dos débitos da Farmácia para a Sociedade Unipessoal):

Não colocando em causa que tal transferência podia ser feita, com vantagens fiscais, ao abrigo do princípio da neutralidade fiscal, o recorrente limita-se a dizer que a ausência de licenciamento da sociedade impedia a transferência imediata do “conteúdo” do estabelecimento, o que apenas poderia ser obtido após a constituição da sociedade.

Trata-se, todavia, de um argumento que não colhe.

Isto na medida em que, a ser assim, o que o recorrente tinha a fazer era aconselhar a autora a aguardar pelo licenciamento da SU.

De resto, o recorrente, na sua missiva de 30.06.2007 [a que se alude na al. AR) dos factos provado] acabou por reconhecer que tendo interpretado “que não estavam reunidos todos os pressupostos para aplicação do consagrado no artigo 38º do CIRS, princípio da neutralidade fiscal…” e que veio a constatar que “se poderiam ter reunido esses pressupostos, de modo a fazer cumprir, um conjunto de formalidades legais que permitiriam à nova empresa, usufruir da neutralidade fiscal, já referida.”


Aliás, em bom rigor, quanto a este fundamento de incumprimento invocado pela Relação, o recorrente nem quer se pronuncia, limitando-se a dizer que a inspeção fiscal de que a Recorrida foi alvo não detetou qualquer irregularidade técnica e que não cometeu qualquer infração, erro ou omissão, nem foi não diligente.

E o certo é que, no âmbito de uma inspeção dos Serviços Tributários à autora, realizada em 2007, se veio verificar [als. AA) e seguintes dos factos provados] que:

- Não foi feita a transmissão das dívidas a que se referem os créditos dos fornecedores da Farmácia M..... para a Farmácia S.... Unipessoal, Lda;

- Não foi solicitado aos credores que os recibos de pagamento fossem emitidos em nome da Farmácia S.... Unipessoal, Lda;

- Houve pagamentos efetuados pela Farmácia S.... Unipessoal, Lda e respeitantes a fornecimentos à Farmácia M.... da Autora enquanto empresária em nome individual, que não foram objeto de registo na contabilidade da Farmácia S.... Unipessoal, Lda;

- Na declaração de rendimentos da Autora de substituição referente ao ano de 2004, recebida em 17.07.2007 consta como lucros e adiantamentos por conta de lucros a quantia de € 236.000,00; (Factualidade a que se atende nos termos do nº 4 do art. 607º do Código de Processo Civil, face ao teor do documento de fls. 231 e ss.)

- A 10 de Agosto de 2007 a Autora foi notificada pela Direção Geral de Contribuições e Impostos para proceder ao pagamento da quantia de € 99.135,05 (noventa e nove mil, cento e trinta e cinco euros e cinco cêntimos), por liquidação adicional de IRS;


Trata-se de omissões, cuja responsabilidade só pode ser imputada ao recorrente, enquanto responsável pela contabilidade do estabelecimento da autora (farmácia) em causa, enquanto estabelecimento individual e depois enquanto SU, de que resultaram para autora evidentes prejuízos.


Isto, muito embora tenha sido dado como não provado [als. f) e  g) dos factos não provados] que “ao réu coubesse fazer a cessão dos créditos dos fornecedores” e que “forma entregues ao réu cópias de todos os cheques emitidos e recibos enviados pelos fornecedores da farmácia”,  e muito embora não tenha sido especificamente dado como provado que, conforme diz a Relação “não a aconselhou a notificar os devedores da ENI para anuírem à transmissão dos seus créditos sobre a ENI para a SU, nem para, obtida essa anuência dos ditos fornecedores/credores, a Sociedade Farmácia S....., Unipessoal, Lda,, efectuada que fosse a transmissão da propriedade do estabelecimento de farmácia da ENI para a Sociedade Farmácia S....., Unipessoal, Lda, solicitasse aos fornecedores/credores da ENI que os recibos fossem emitidos em nome desta Sociedade”     Trata-se de erros/omissões da quais o recorrente, atentas as suas funções (de planificação, organização e coordenação  da contabilidade da autora, nos termos do nº 1 do artigo 6º do Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas) tinha a obrigação de se aperceber,  e de aconselhar a autora na devida conformidade.


De resto, é o que próprio recorrente acaba por reconhecer (reconhecendo mesmo não ter tido em consideração os avisos que lhe forma feitos nesse âmbito):

i. Na participação [al. AH) dos factos provados] à ré Seguradora (que foi absolvida e cuja absolvição não está ora em causa) quando ali diz:

“(…) não valorizei suficientemente várias chamadas de atenção que me foram efetuadas pela empresária, de que tinha muitos encargos com pagamentos a fornecedores da ENI e também pessoais, com a consequente necessidade de efetuar retiradas de verbas, o que, a manter-se a ENI, não configuraria retirada de lucros, pelo que não teria encargos fiscais. Ora, com a alteração da forma jurídica da empresa, as mesmas retiradas na sociedade unipessoal seriam alvo de tributação, consideradas como distribuição/antecipação de resultados, ainda que só considerados em 50% do seu valor, com o consequente incremento dos encargos fiscais.

Admito agora que não valorizei devidamente esses avisos e após a referida inspeção constata-se que resulta um prejuízo material para o meu cliente no montante de 54.400 euros, com origem em erros meus, ainda que involuntários (…)” ;

- E na carta de 30.06.2027 que enviou à Câmara dos Técnicos oficiais de Contas [referida em AS) dos factos provados], quando ali diz:

“(…) Por outro lado e na sequência desse raciocínio deveria ter solicitado aos credores que emitissem os recibos em nome da sociedade, não o fiz e apesar de todos os pagamentos terem sido efectuados através da conta bancária da sociedade, não registei esses pagamentos na sua contabilidade.

Sobre esta questão constatei agora, após fiscalização à contabilidade do sujeito passivo, que o fisco não interpreta dessa forma e considera que, o valor desses créditos devem ser considerados como pagos à ENI e desse modo tributados, na totalidade, como rendimentos obtidos pela transmissão. O que vem a traduzir-se em elevados prejuízos materiais para o meu cliente.

Também não valorizei suficientemente várias chamadas de atenção que me foram efectuadas pela empresária, de que tinha muitos encargos com pagamentos a fornecedores da ENI e também pessoais, com a consequente necessidade de efectuar retiradas de verbas, o que a manter-se a ENI, não configuraria retirada de lucros, pelo que não teria encargos fiscais. Ora com a alteração da forma jurídica da empresa, as mesmas retiradas na sociedade unipessoal seriam alvo de tributação, consideradas como distribuição/antecipação de resultados, ainda que só consideradas em 50% do seu valor, com o consequente incremento dos encargos fiscais.

Admito agora que não valorizei devidamente esses avisos e após a referida inspecção constata-se que resulta um prejuízo material para o meu cliente no montante de 54,400 euros, com origem em erros meus, ainda que involuntários.” (aditado pela Relação).”


Em face do exposto, haveremos de concluir no sentido de que ao não ter aconselhado a autora da conveniência da transferência dos créditos e dos débitos da Farmácia para a Sociedade Unipessoal, o recorrente incumpriu com a obrigação de aconselhamento a que estava sujeito na qualidade de TOC do estabelecimento de farmácia da autora.

Desta forma, e porque a culpa se presume (artigo 799º do C. Civil), impende sobre o recorrente a obrigação de indemnizar relativamente aos danos emergentes de tal incumprimento.


II - Quanto à inexistência de danos resultantes das opções técnicas do recorrente:           

 Sendo que a obrigação de indemnizar, para além da prova do incumprimento culposo (o qual, como acabámos de expor, se verifica), depende da prova dos danos e do respetivo nexo de causalidade (prova essa cujo ónus, da mesma forma, recaía sobre a autora recorrida, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 342º do C. Civil) a Relação considerou que, ainda que se não possa apurar o exato valor dos danos (ou seja, da indemnização devida à autora), resulta dos dados trazidos ao processo que tal valor corresponde, pelo menos, a parte do pagamento de € 99,135,05, feito pela autora a título de liquidação adicional de IRS.

E quanto a isto, o recorrente limita-se a dizer que “a cliente não ficou prejudicada, mas sim beneficiada com as opções técnicas”.           

Da factualidade dada como provada [vide als. AA) a AG) dos factos provados] resulta que a autora teve que pagar a quantia de € 99.135,05, referente à liquidação adicional de IRS que foi efetuada  após uma inspeção tributária à autora e na sequência de correções levadas a cabo por iniciativa do réu recorrente, sendo que tal resultou da falta de transmissão das dívidas a que se referem os créditos dos fornecedores da Farmácia M.... para a Farmácia S.... Unipessoal, Lda, da falta de solicitação aos credores para os recibos de pagamento serem emitidos em nome da Farmácia S.... Unipessoal, Lda e ainda pelo facto  de ter havido pagamentos efetuados pela Farmácia S.... Unipessoal, Lda e respeitantes a fornecimentos à Farmácia M.... da autora enquanto empresária em nome individual, que não foram objeto de registo na contabilidade da Farmácia S... Unipessoal, Lda.

 Emerge assim da factualidade dada como provada nos autos que a referida liquidação não teria sido feita, pelo menos no valor em que o foi, se o réu recorrente tivesse aconselhado adequadamente a autora nos termos supra mencionados – razão pela qual se imponha concluir no sentido de ter sido feita a prova da existência de prejuízos resultantes da conduta omissiva (incumprimento) do réu recorrente.

           

 Acompanhamos e subscrevemos assim o que, a propósito se expendeu no acórdão recorrido:

 “… em face dos dados trazidos ao processo, se pode concluir que, pelo menos em parte, o pagamento pela Autora da quantia de €99.135,05, a título de liquidação adicional de IRS, advém, necessariamente, de não estarem reflectidas nas contas da Farmácia S...., Unipessoal, Lda, por assunção de dívida, os créditos dos fornecedores da Farmácia M.... (ENI), pelo que os pagamentos efectuados pela Farmácia S...., Unipessoal, Lda aos fornecedores da Farmácia M.... (ENI), foram entendidos como pagamentos efectuadas à Autora (ENI) e não, como deveriam ser, se o Réu tivesse devidamente aconselhado a Autora, pagamentos das dívidas aos fornecedores da Farmácia M... (ENI), entretanto assumidas pela Farmácia S..., Unipessoal, Lda. Ou seja, pelo menos em parte, o valor pago pela Autora, a título de liquidação adicional de IRS, advém da conduta ilícita e culposa do Réu, ao não proceder diligentemente, nos termos acima expendidos, em função das suas obrigações contratuais e funcionais.”

 

Assim e porque os factos provados não nos permitem dizer qual o valor do prejuízo sofrido pela autora em resultado da conduta omissiva do réu recorrente bem esteve a Relação ao relegar a fixação do valor da indemnização para incidente de liquidação.


Improcedem assim as conclusões recursórias, impondo-se negar a revista.


Termos em que se acorda em negar a revista e em confirmar o acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente.


Lx. 26.01.2021

(Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo DL nº 20/2020, de 1 de maio, o Relator, que assina eletronicamente, declara que os Exmos. Conselheiros Adjuntos, abaixo indicados, têm voto de conformidade e não assinam o presente acórdão por não o poderem fazer pelo facto de a sessão, dada a atual situação pandémica, ter sido realizada por videoconferência).

Acácio das Neves (Relator)

Fernando Samões (1º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2ª Adjunta)