Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
195/14.6TYVNG-E.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
CONHECIMENTO
FACTO EXTINTIVO
CADUCIDADE
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
TERCEIRO
Data do Acordão: 09/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE / FORMA DE RESOLUÇÃO E PRESCRIÇÃO DO DIREITO.
Doutrina:
- Ana Prata et al., Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, p. 360;
- Júlio Gomes, Nótula sobre a Resolução em Benefício da Massa Insolvente, IV Congresso do Direito de Insolvência, p. 121 a 123.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO L23.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 18-10-2016, PROCESSO N.º 7/13.8TBFZZ-G.E1.S1;
- DE 27-10-2016, PROCESSO N.º 3158/11.0TJVNF-H.G1.S1;
- DE 27-10-2016, PROCESSO N.º 653/13.0TBBGC-F.G1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - O “conhecimento do acto” a que alude o art. l23.º, n.º 1, do CIRE, não se basta com o mero conhecimento do ato ou negócio, implicando também o conhecimento dos pressupostos necessários para a existência do direito de resolução.

II - É ao impugnante da resolução que cabe alegar e provar os factos extintivos do direito à resolução, neste caso os que integram a caducidade.

II - Tendo o terceiro impugnante da resolução alegado factos que apenas indicam que entre a data em que a administradora da insolvência tomou conhecimento da existência dos atos que veio resolver e a carta da resolução que enviou decorreram mais de seis meses, tal não significa só por si só e necessariamente o conhecimento de todos os pressupostos do direito à resolução.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

No âmbito da insolvência de AA, Unipessoal, Lda., a Administradora da Insolvência resolveu em benefício da massa insolvente dois contratos de compra e venda que a Insolvente (como vendedora) havia celebrado com BB, Lda. (como compradora).

BB, Lda. intentou então contra a Massa Insolvente de AA, Unipessoal, Lda., por apenso aos autos da respetiva insolvência (correntes pelo Juízo de Comércio de Santo Tirso), a presente ação de impugnação da resolução.

Entre o mais que alegou, veio dizer que o ato resolutivo foi extemporâneo, pois que foi praticado para além do prazo de seis meses estabelecido no n.º 1 do art. 123.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

Contestou a Ré, concluindo pela tempestividade do ato resolutivo.

Foi depois proferido despacho saneador onde se conheceu da questão, e, tendo-se considerado ser extemporânea (por caducidade do direito respetivo) a resolução, julgou-se procedente a impugnação.

Inconformada com o assim decidido, apelou a Ré.

Fê-lo sem êxito, pois que a Relação do Porto, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, confirmou a decisão.

Mantendo-se inconformada, interpôs a Ré revista excecional.

Neste Supremo Tribunal a competente formação de juízes admitiu a revista assim interposta.

                                                           +

Da respetiva alegação extrai a Recorrente as seguintes conclusões:

1ª. O acórdão recorrido julgou procedente a exceção de caducidade do direito de resolução, considerando, em súmula, que a administradora de insolvência resolveu o negócio depois de ultrapassado o prazo de 6 meses após o conhecimento do mesmo.

2ª. O objecto do presente recurso circunscreve-se à interpretação do artigo 123º do CIRE, saber se o prazo de seis meses ali referido se deve contar desde a data em que o AI toma conhecimento das circunstâncias que o habilitam a resolver o negócio, tendo em conta que o normativo exige a invocação dos fundamentos da resolução que podem não ser conhecidos contemporaneamente ao conhecimento do acto em si - como defende a recorrente - ou se - com entendeu o Tribunal a quo na decisão recorrida - o prazo de caducidade se inicia, pura e simplesmente, com o conhecimento do acto em si mesmo, no caso, desde a data do conhecimento da celebração do contrato.

3ª. A posição defendida pela recorrente consta já de jurisprudência do STJ, concretamente no processo 3158/11.0TJVNF-H.G1.S1 em que foi Relator o Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Dr. Fonseca Ramos: “Nos termos do art. 9º do Código Civil, a letra da lei não é o único elemento de que o intérprete se deve socorrer para alcançar a mens legis, afigura-se-nos que, nos casos em que exista fundada dilação entre a data do conhecimento do acto praticado, no período temporal fixado no art. 120º, nº 1, do CIRE, e o efectivo conhecimento dos fundamentos e conteúdo desse acto, pode o AI comunicar a resolução nos seis meses sequentes a esse conhecimento, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.”

4ª. O legislador teve o cuidado de usar especificamente as palavras conhecimento do acto no artigo 123.º do CIRE, e nos artigos 120.º e 121.º do CIRE identificou quais eram os actos de que o administrador tinha de tomar conhecimento.

5ª. O prazo de caducidade, no caso concreto dos autos, começa apenas a contar quando o administrador toma conhecimento do acto a título oneroso realizado pelo insolvente dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência em que as obrigações por ele assumidas excedam manifestamente as da contraparte.

6ª. Até porque, a jurisprudência impõe ao administrador de insolvência uma cabal fundamentação da declaração de resolução, fazendo constar da mesma os factos concretos essenciais que revelem as razões invocadas para a destruição do negócio e permitam ao destinatário da declaração a sua posterior impugnação.

7ª. De outro modo estaríamos a promover uma actuação irresponsável e leviana do administrador de insolvência que teria de optar entre a inércia e a acção cega.

8ª. Logo, ao falar em conhecimento do acto, pretendeu o legislador incluir o conhecimento da prejudicialidade para a massa insolvente, e das concretas especificidades que fundamentam e permitem essa resolução pelo administrador de insolvência.

9ª. Mais, atendendo ao regime legal, a interpretação propugnada no presente recurso é a única que concilia e compreende a previsão da norma, que cuidou de incluir um prazo inicial (6 meses após o conhecimento do acto) e um prazo final (mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência).

10ª. Ou seja, este prazo de 2 anos após a declaração de insolvência, como limite ao exercício do direito de resolução pelo administrador de insolvência visa especificamente impedir abusos na actuação deste, e evitar a incerteza e insegurança.

11ª. Acresce que, alegou a Recorrente na sua contestação que a administradora de insolvência apenas tomou conhecimento do acto, isto é, de todo o conteúdo do negócio, concretamente do valor comercial e de mercado dos bens transmitidos em Novembro de 2015, quando procedeu à resolução do negócio, - o que desde logo sempre obrigaria a produção de prova.

12ª. Dizendo designadamente que apenas nesse momento, a administradora de insolvência ficou a saber que o valor alegadamente pago pela Recorrida era muito inferior ao valor de mercado do bem.

13ª. Pelo que, apenas nesse momento a administradora tomou conhecimento que tinha sido praticado pela insolvente, um acto a título oneroso, realizado dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência, em que as obrigações por ela assumidas excedem manifestamente as da contraparte.

14ª. Deste modo, o acervo fático considerado pelo tribunal a quo na sentença recorrida é manifestamente insuficiente para fundamentar a decisão proferida, porquanto do mesmo não resulta quando é que a administradora de insolvência teve esse conhecimento do acto tal como previsto nos artigos 121º e 123º do CIRE.

15ª. Nos termos da interpretação defendida pela Recorrente, deve considerar-se existir um conhecimento do acto apenas quando esse conhecimento corresponde à previsão das normas, e contém todos os elementos que o legislador considerou essenciais para permitir a resolução do negócio.

16ª. Assim sendo, não se verifica a caducidade do direito de resolução do negócio por parte da administradora de insolvência, pelo que errou o tribunal a quo ao dar provimento à exceção invocada.

17ª. A decisão proferida viola assim o artigo 123º do CIRE, fazendo uma errónea interpretação do preceito.

                                                           +

A Autora contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

É questão a conhecer:

- Caducidade ou não do direito à resolução.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes, tal como transcritos no acórdão recorrido:

1) Aos 19.02.2014, CC, Lda., com os demais sinais identificadores constantes dos autos, veio requerer a declaração de insolvência da ora insolvente AA, Unipessoal, Lda.;

2) Por sentença datada de 02.05.2014, foi declarada a insolvência de AA Unipessoal, Lda. (fls. 62 a 66 dos autos principais);

3) Aquando da realização da assembleia de credores, em 2 de Julho de 2014, foi deliberado pelos credores presentes o encerramento formal do estabelecimento da devedora insolvente e o prosseguimento dos autos para liquidação do ativo, em conformidade com a proposta apresentada pela Sr.ª Administradora da Insolvência, em aditamento por si junto ao relatório elaborado ao abrigo do disposto no art.º 155.º do CIRE (cfr. fls. 125 a135 dos autos principais);

4) Por exposição entrada em juízo aos 23 de Julho de 2014, por banda da administradora da insolvência, a mesma faz saber que após a realização da assembleia de credores foi possível constatar que, e passa-se a citar, “antes da declaração da insolvência da sociedade insolvente esta realizou vendas de cerca de € 20.000,00 à sociedade CC, Lda., de € 23 000,00 à sociedade DD e EE, Lda., e a FF no valor de € 20.000,00, tendo a signatária solicitado a junção dos documentos comprovativos de venda, depósito e extratos bancários”, tudo conforme teor de fls. 150-151 dos autos principais, cujo teor integral aqui se dá por reproduzido;

5) Por escrito datado de 30.11.2015, a Sr.ª Administradora da Insolvência enviou para a ora autora, através de carta registada com aviso de receção, a declaração de resolução dos contratos de compra e venda celebrado entre a insolvente e a BB, Lda. em 28 de Setembro de 2013 e 11 de Dezembro de 2013, tudo como flui do teor de fls.60 a 65 destes autos, que aqui se dá por reproduzido;

6) Por carta de 5 de Janeiro de 2015, a Sr.ª administradora da insolvência, Dr.ª GG, enviada à ora autora, faz saber que após análise contabilística a que procedeu foi possível constatar que, em Setembro do ano de 2013, a sociedade insolvente AA vendeu à BB, Lda. duas máquinas cilíndricas de corte e vinco pelo valor de € 3.000,00 mais IVA, e que em Dezembro de 2013 vendeu uma máquina de impressão pelo valor de € 26.500,00 acrescido de IVA, assim solicitando à destinatária de tal carta o envio do comprovativo do pagamento dos referidos equipamentos, e extrato de conta bancária donde conste a saída do respetivo montante, ali fazendo a advertência de que caso não procedessem ao envio de tais elementos no prazo máximo de 3 (três) dias, procederia à anulação de todos os aludidos negócios, tudo como flui do teor de fls. 16 e 17 dos presentes autos, que aqui se dá por inteiramente reproduzido, para os devidos e legais efeitos.

De direito

O acórdão recorrido, aliás coincidentemente com a decisão da 1ª instância, concluiu que apesar do art. 123.º do CIRE se reportar, em termos de epígrafe, à prescrição do direito (de resolução), será de entender que o prazo de seis meses ali previsto é de caducidade. Este ponto de vista, que se afigura correto e que corresponde ao entendimento quase pacífico da doutrina e da jurisprudência, não vem contestado no presente recurso, pelo que nos iremos referir doravante à caducidade.

Segundo o acórdão recorrido, o prazo de caducidade de seis meses do direito de resolução previsto no art. 123.º, n.º 1 do CIRE conta-se desde a data em que o administrador da insolvência tem conhecimento do ato em si mesmo, e não desde a data em que teve conhecimento das circunstâncias que o habilitam a resolver o ato.

E assim, no caso vertente, tendo a Administradora da Insolvência conhecimento das vendas já em 5 de Janeiro de 2015 (data em que enviou à Autora a carta referida no ponto 6 dos factos provados), estava caduco o direito à resolução que fez operar em 30 de Novembro de 2015.

Este entendimento do acórdão recorrido é sem dúvida respeitável, mas não é de subscrever.

A questão foi já tratada na jurisprudência deste Supremo Tribunal, e tem recebido resposta adversa àquela que foi adotada no acórdão recorrido. Efetivamente, tem-se entendido reiteradamente que o prazo de caducidade em causa se conta a partir do conhecimento dos requisitos necessários à existência do direito de resolução.

Por se tratar de entendimento já consolidado nesta 6ª Secção (que, nos termos do Provimento n.º 15/2014 do Exmo. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, detém competência exclusiva para a apreciação das causas a que alude o art. 128.º da LOSJ), e dado que nada termos a acrescentar de relevante ao mesmo, limitamo-nos a extratar aqui alguns excertos dessa jurisprudência, que subscrevemos.

Assim, no acórdão de 27 de Outubro de 2016 (processo n.º 3158/11.0TJVNF-H.G1.S1, relator Fonseca Ramos, disponível em www.dgsi.pt, aliás invocado como acórdão fundamento para a admissibilidade da presente revista excecional) concluiu-se (reproduz-se o respetivo sumário) que:

“I. Não impondo a lei insolvencial que todo e qualquer acto, praticado pelo devedor, nos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, deva ser resolvido pelo administrador da insolvência (AI), antes impondo ao AI que os actos passíveis de resolução sejam “prejudiciais à massa”, bem pode suceder que o AI tenha conhecimento de um acto praticado nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, mas não saiba de imediato se esse acto ou actos são prejudiciais à massa insolvente.

II. O processo de insolvência é urgente, os seus procedimentos devem ser céleres, uma vez que o interesse dos credores, e do próprio devedor, podem ser severamente prejudicados se não for acautelada a massa insolvente que é garantia, quantas vezes debilitada, da satisfação dos direitos dos credores.

III. Tal não justifica que se proceda a interpretação literal da lei, fazendo contar o termo inicial do prazo previsto no art.120º, nº1, do CIRE apenas do conhecimento do acto, não deixando margem para que o AI averigue, e possa avaliar, se o acto praticado no “período suspeito” é prejudicial à massa. Sabendo-se que esse prejuízo nem sempre resulta da aparência de um acto potencialmente lesivo, sendo prudente proceder a averiguações com vista a apurar com a diligência exigível, por exemplo, se o preço da venda de um imóvel é simulado ou não, ou se, através de negócios indirectos, mais ou menos complexos, mais se não visou que salvaguardar os interesses de certos credores em detrimento de outros.

IV. A adoptar-se a contagem do prazo, seu termo inicial, a partir do conhecimento do acto, o AI, por cautela, será tentado a resolver todo os actos do devedor enquadrados no “período suspeito” o que levará as declarações resolutivas cegas quanto à existência, ou consistente conhecimento de fundamento resolutivo – a prejudicialidade ou nocividade do negócio em relação à Massa – o que, além de colocar graves problemas aos visados, não deixa de colocar não menos graves dificuldades ao AI, sobretudo, se se entender, como parece ser comum, que sendo a acção de impugnação da resolução uma acção de simples apreciação negativa, não pode o AI, na contestação dessa acção, aduzir outros novos fundamentos tendentes ao preenchimento do requisito “prejudicialidade”.

V. Nos termos do art. 9º do Código Civil, a letra da lei não é o único elemento de que o intérprete se deve socorrer para alcançar a mens legis, afigura-se-nos que, nos casos em que exista fundada dilação entre a data do conhecimento do acto praticado, no período temporal fixado no art. 120º, nº1, do CIRE, e o efectivo conhecimento dos fundamentos e conteúdo desse acto, pode o AI comunicar a resolução nos seis meses sequentes a esse conhecimento, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.”

No acórdão de 18 de Outubro de 2016 (processo n.º 7/13.8TBFZZ-G.E1.S1, relator Júlio Gomes, disponível em www.dgsi.pt) observa-se que:

«(…) importa ter presente, desde logo, que os pressupostos para o exercício da resolução em benefício da massa insolvente são muito variáveis. Em princípio, exige-se a má-fé do terceiro (artigo 120.º n.º 4), ainda que esta se presuma nos casos em que tenha participado no acto ou dele tenha beneficiado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, mas em outras situações previstas no artigo 121.º n.º 1 não é requisito para a resolução a má-fé do terceiro (…). Exige-se, também, o carácter prejudicial do acto (n.º 1 do artigo 120.º), mas certos actos presumem-se prejudiciais à massa sem admissão de prova em contrário (n.º 3 do artigo 120.º) e a resolução “incondicional” prescinde por completo de tal requisito. Em resultado, existem situações em que o simples conhecimento do acto praticado pelo devedor e da data em que ocorreu possibilita a resolução do mesmo: pense-se na hipótese de o devedor ter efectuado a doação de um prédio dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência. Embora a eventual boa-fé do donatário tenha interesse em sede dos efeitos da resolução, o simples conhecimento da existência da doação e do seu momento temporal é suficiente para que o administrador possa resolver a doação. Mas mesmo no âmbito do artigo 121.º e do que a lei designa por resolução “incondicional” a situação pode ser muito diversa: assim, mesmo que o devedor tenha vendido um bem no ano anterior à data do início do processo de insolvência o mero conhecimento da venda não é suficiente para que o administrador possa resolver esse contrato. Terá, por exemplo, de averiguar se as obrigações assumidas pelo devedor excedem – e excedem manifestamente (artigo 121.º, n.º 1, alínea h)) – as da contraparte e até qual o modo de pagamento utilizado (artigo 122.º do CIRE). Não será, por conseguinte, suficiente para poder optar pela resolução o mero conhecimento da existência do acto.

Esta heterogeneidade de situações tem que ser tida em conta ao interpretar o artigo 123.º n.º 1. Interpretar o preceito como fixando o prazo de seis meses para o exercício do direito de resolução a partir do conhecimento da mera existência do acto teria como resultado um prazo manifestamente excessivo para certas situações (por exemplo, a resolução de uma doação), mas que se poderia revelar muito curto e até insuficiente para outras, em que se torna necessário determinar, designadamente, quem contratou (caso se trate de um contrato) com o devedor, qual a relação entre eles, qual o conteúdo do acto. Partindo da presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9.º n.º 3 do Código Civil, que também se refere à presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados) entendemos que a referência ao conhecimento do acto implica o conhecimento da plenitude do mesmo em tudo o que ele releva para efeitos de resolução do contrato (…).

A divergência entre as duas posições jurisprudenciais resulta de uma diferente concepção dos deveres do administrador nesta sede. Recorde-se, aliás, que alguma doutrina – é o caso de FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, em estudo monográfico dedicado a este instituto da resolução em benefício da massa insolvente – defende que ao conhecimento pelo administrador da insolvência deveria ser equiparado o “dever de conhecimento”.

Afirma este autor, com efeito, o seguinte: “Suponhamos, v.g., que o administrador da insolvência porventura tomou conhecimento, em abstracto, da prática de vários actos, mas descurou a sua apreciação em concreto. Parece dever entender-se que essa falta de actuação não pode prejudicar a contraparte dos que negociaram com aquele que se encontra numa situação de insolvência”. E acrescenta, ainda, o mesmo autor. “É certo que tal interpretação não é a que mais favorece os credores da massa insolvente, porque esta fica sem bens ou valores que doutra sorte a poderiam integrar. Mas o legislador foi peremptório na fixação de um prazo. E se se negligenciasse o momento em que o administrador da insolvência devia conhecer o circunstancialismo isso significaria, em concreto, um excessivo alargamento do prazo”. Outra doutrina critica o referido prazo de seis meses referindo-se á “necessidade de rapidamente se pôr termo á incerteza quanto ao destino dos atos em causa, tanto mais que em certos casos eles revestem natureza onerosa”, e pondo reservas quanto ao alargamento do prazo operado pelo legislador, de três para seis meses.

Afigura-se excessivo impor ao administrador da insolvência um dever de investigar ou de averiguar o real conteúdo dos atos praticados pelo devedor, mal chegue ao seu conhecimento a existência dos mesmos. Aceita-se que não deva ficar inteiramente inerte ou passivo, devendo, por exemplo, pedir esclarecimentos e informações ao devedor sobre quem incumbe um dever de colaboração, de acordo com o artigo 83.º do CIRE. Mas seria excessivo, sobretudo porque não dispõe de especiais poderes de investigação impor-lhe o ónus, sob pena de caducidade do direito, de pesquisar as conservatórias, a tentar apurar o verdadeiro conteúdo dos actos praticados pelo devedor. Recorde-se que no caso dos autos foi dada como provada a alienação pelo devedor de pelo menos nove prédios, sitos em diferentes localidades, sendo que alguns nem sequer estavam descritos nas competentes conservatórias do registo predial. A tese de que o prazo de seis meses começaria a correr do mero conhecimento da existência do acto conduziria a beneficiar o devedor que praticasse múltiplos actos prejudiciais à massa, mais ou menos complexos, na expectativa de o administrador da insolvência não conseguir descobrir o real conteúdo de todos ou de alguns deles no prazo dos seis meses.

A tese que aqui se acolhe – a de que o prazo de seis meses só deve contar a partir do conhecimento pelo administrador do acto na sua íntegra e, portanto, dos pressupostos de que depende o exercício do direito de resolução não representa, ao contrário do que se pretende, uma ameaça excessiva para a segurança jurídica.

Em primeiro lugar, porque além do prazo de seis meses a contar do conhecimento do acto pelo administrador da insolvência, há sempre que ter em conta que a resolução nunca pode ter lugar “depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência” (n.º 1 do artigo 123.º do CIRE, parte final). Depois porque a oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores a título oneroso pressupõe a má-fé destes (n.º 1 do artigo 124.º). Quanto à contraparte do devedor que veio a ser declarado insolvente, se se tratar de um adquirente a título gratuito, a obrigação de restituir só existirá “na medida do seu enriquecimento, salvo o caso de má-fé, real ou presumida” (n.º 6 do artigo 126.º), solução muito criticada pela doutrina mas que permite proteger adequadamente o donatário nos casos, por exemplo, de doação modal ou de doação remuneratória, negócios que a maior parte da doutrina considera serem gratuitos. Relativamente à contraparte a título oneroso – que até pode ser, no caso concreto, a contraparte de um negócio gravemente desequilibrado, como previsto na alínea h) do n.º 1 do artigo 121.º – a sua tutela decorre dos números 4 e 5 do artigo 126.º

Em suma, a protecção da contraparte que adquiriu a título oneroso não deve prevalecer sobre os interesses dos restantes credores e da massa.

Subscreve-se, pois, a asserção do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/06/2015, de que “o prazo de seis meses a que se refere o artigo 123.º do CIRE apenas se inicia após o Administrador da Insolvência ter conhecimento integral da factualidade inerente ao acto em crise”.»

No acórdão de 27 de Outubro de 2016 (processo n.º 653/13.0TBBGC-F.G1.S1, relator Pinto de Almeida, disponível igualmente em www.dgsi.pt) defende-se que:

«O art. 123º, nº 1, do CIRE prescreve que a resolução pode ser efectuada nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.

A questão é essencialmente de interpretação dessa norma legal e, concretamente, sobre o que deve entender-se por "conhecimento do acto (…).

É sabido que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei: esta constitui naturalmente o seu ponto de partida, eliminando aqueles sentidos que não tenham aí qualquer correspondência ou dando maior apoio a um dos sentidos possíveis; o objectivo essencial é reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, devendo presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º, nºs 1 e 3, do Código Civil).

O argumento literal não seria, em princípio, decisivo e não parece que o seja efectivamente neste caso.

Embora os termos utilizados na norma legal favoreçam aparentemente a referida tese – ao aludir ao conhecimento do "acto", apontaria para os elementos desse acto, em si objectivamente considerados, desatendendo outros elementos com ele relacionados – este factor hermenêutico só permite excluir o sentido que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (ainda que imperfeitamente expresso).

Ora, não é este o caso: embora aponte, aparentemente, nesse sentido, a letra da lei não impõe que se considere apenas o conhecimento do "acto puro e simples" que acima se referiu, com exclusão de um sentido mais amplo que contemple o acto em si e outros elementos a ele respeitantes, indispensáveis à efectivação da resolução.

Outros factores, como a razão de ser da norma e o elemento sistemático (contexto da lei) contribuem decisivamente para esse sentido.

Basta ver que, no regime da resolução condicional, poucas ou nenhumas situações existirão em que seja suficiente, para esse efeito, o mero conhecimento dos termos do negócio; para além disso, pode ter de demonstrar-se elementos que permitam concluir pela satisfação dos requisitos previstos no art. 120º, nºs 1 a 5, do CIRE (prejudicialidade do acto, má fé do terceiro, especial relacionamento com o insolvente, situação de insolvência actual ou iminente do devedor, etc.), o que implica a realização de diligências (na procura de documentação e de informação relevante), para as quais poderá não ser suficiente o prazo de seis meses a contar do conhecimento do simples acto.

Por outro lado, como atrás se referiu, esses elementos, pelo menos nos seus pontos essenciais, terão de constar da declaração de resolução, sem que ulteriormente (na contestação da impugnação) seja admissível ao administrador da insolvência suprir qualquer omissão que, a esse respeito, haja sido cometida. Será, pois, parece-nos, pelo menos incoerente exigir que essa fundamentação contenha as razões que determinam a destruição do negócio e, ao mesmo tempo, defender que o simples conhecimento do acto ou negócio é (sempre) suficiente para o administrador se decidir pela resolução, iniciando-se a partir daí o prazo para a efectivação desta.

Importa ainda notar que, como decorre do citado art. 123º, nº 1, parte final, a resolução nunca poderá ocorrer depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.

Sobre os efeitos, considerados gravosos, que decorreriam da tese contrária, isto é, do entendimento de que o prazo só se conta a partir do conhecimento pelo administrador dos pressupostos que fundamentam a resolução, importa referir que o início da contagem do prazo não fica dependente apenas da disponibilidade e da vontade do administrador da insolvência.

O processo de insolvência e todas as questões que lhe dizem respeito têm natureza urgente, pelo que a cognoscibilidade dos elementos indispensáveis à resolução há de ter por base uma diligência compatível com essa natureza, no âmbito, aliás, de um desempenho criterioso e ordenado (cfr. art. 59º, nº 1, do CIRE).

O próprio regime legal supletivo inculca esta ideia: o prazo de caducidade começa a correr no momento em que o direito puder ser exercido (art. 329º do CC), ou seja, no momento em que (logo que) o direito puder ser efectivamente exercido; não no momento em que o titular quiser exercê-lo.

A propósito do início da contagem do prazo, Gravato Morais questiona se deve relevar apenas o conhecimento do acto ou também importa a data em que o administrador devia tê-lo conhecido. Embora não afronte directamente a nossa questão, refere que a "falta de actuação (do administrador) não pode prejudicar a contraparte dos que negociaram com aquele que se encontra numa situação de insolvência"

E acrescenta: “o legislador foi peremptório na fixação de um prazo. E se se negligenciasse o momento em que o administrador da insolvência devia conhecer o circunstancialismo isso significaria, em concreto um excessivo alargamento do prazo. Acresce que a contraparte, que se vê sujeita à resolução do acto, pode sempre impugná-lo com base no art. 125º do CIRE, invocando essa factualidade, isto é, que o administrador devia tê-lo conhecido”.

Entende-se, por conseguinte, que o “conhecimento do acto” a que alude o art. 123º, nº 1, do CIRE, não se basta com o mero conhecimento do acto ou negócio, exigindo também o conhecimento dos pressupostos necessários para a existência do direito de resolução; sem prejuízo de se poder vir a demonstrar que o administrador da insolvência não actuou com a diligência que lhe era exigível, caso em que se deve contar o prazo desde o momento em que o administrador devia ter conhecido aqueles pressupostos.»

Em sentido coincidente com o que fica referido se pronuncia Júlio Gomes (Nótula sobre a Resolução em Benefício da Massa Insolvente, in IV Congresso do Direito de Insolvência, pp. 121 a 123). Expende o autor que:

«Importa, parece-nos, ter presente a grande variedade de situações em que o administrador pode resolver atos do devedor em benefício da massa. Em certos casos (…) só é necessário que o administrador da insolvência conheça a existência do ato para o poder resolver. Mas na maior parte das situações o conhecimento da mera existência do ato não será suficiente para o exercício da resolução: mesmo no âmbito do artigo 121.º pode ser necessário, por exemplo para resolver um ato praticado a título oneroso, ter conhecimento do conteúdo do próprio ato e do desequilíbrio das obrigações assumidas pelo devedor e pela sua contraparte (alínea h) do n.º 1 do artigo 121.º); e fora do âmbito do artigo 121.º pode ser necessária a demonstração do prejuízo e da má-fé do terceiro.

E daí que haja acórdãos a afirmar que “a referência ao conhecimento do ato implica o conhecimento da plenitude do mesmo em tudo o que ele releva para efeitos de resolução do contrato”, “o conhecimento dos pressupostos que podem fundamentar a resolução, ou seja, o ato em si e outros elementos a ele respeitantes indispensáveis à efetivação da resolução”, “o efetivo conhecimento dos fundamentos [resolutivos] e do conteúdo do ato praticado”.

Este entendimento parece ser o que melhor se coaduna com a exigência (…) de que a declaração de resolução seja fundamentada, ao que acresce que não poderão sequer ser invocados novos fundamentos, que não constassem já desta declaração de resolução, na contestação em uma eventual ação de impugnação da resolução (…).

Com efeito, e mesmo sem esquecer a necessária diligência com que o administrador deve atuar neste domínio, parece excessivo impor-lhe um prazo de seis meses contados a partir do conhecimento da mera existência do ato, quando este pode deparar-se com um conjunto de atuações mais ou menos complexo por parte do devedor, não sendo sempre evidente ou manifesto o prejuízo para a massa ou a má-fé do terceiro, quando estes sejam pressupostos para a resolução.»

Como acima dissemos, subscrevemos este entendimento, que vale integralmente para o caso vertente.

Enfim, afigura-se que - e isto é válido tanto para a resolução comum ou condicional (art. 120.º do CIRE) como para a resolução incondicional (art. 121.º) - do que se trata sempre é da resolução de um ato prejudicial à massa. E para que o administrador da insolvência possa concluir que um ato é prejudicial à massa tem de ter conhecimento de todos os elementos ou circunstâncias de facto inerentes ao ato, podendo não ser suficiente o simples conhecimento da sua prática. Acresce que, como sobredito, é de entender que a resolução tem de ser fundamentada, e não se logra perceber como tal seria operacionalizado sem que o administrador estivesse na posse de todos os elementos ou circunstâncias inerentes ao ato.

Passando ao caso vertente:

Percorrendo a carta de resolução - conquanto um pouco confusa[1] - vemos que a resolução foi feita sob a alegação de que “o valor de venda (…) revela-se inferior ao valor de mercado” e de se registar um “desfasamento ostensivo entre o valor do referido bem e da contrapartida prestada”. Embora esta alegação não esgote a razão da resolução, afigura-se-nos constituir o seu fundamento basilar, do qual se faz derivar depois a prejudicialidade dos atos das vendas, quer com reporte ao art. 120.º, quer com reporte à alínea h) do n.º 1 do art. 121.º. Não nos interessa aqui saber se tal alegação está devidamente fundamentada, assunto que é estranho ao objeto do recurso. O que interessa reter é que não é o simples facto da Administradora da Insolvência ter conhecimento, em 5 de Janeiro de 2015, da existência das vendas em causa, que implica o conhecimento de que se tratou de vendas prejudiciais à massa.

Ora, a Autora limitou-se a alegar, como fundamento da “extemporaneidade da resolução” ou “prescrição” (e a ela cabia a alegação e prova dos factos extintivos do direito à resolução[2], neste caso os que integram a caducidade do direito á resolução), a circunstância de em 5 de Janeiro de 2015 a Administradora da Insolvência ter conhecimento da existência dos atos resolvidos. E a isto se reduziu a sua alegação. Nada alegou quanto ao momento em que a Administradora possa ter tido conhecimento de que o valor venal dos bens vendidos era superior ao que foi pago como preço. Donde, não sendo (repete-se) tal conhecimento suficiente para se concluir pelo conhecimento das circunstâncias (valor venal) dos atos resolvidos, improcede necessariamente o fundamento da ação aqui em causa, ou seja, o fundamento da caducidade do direito à resolução. Note-se, para que fique claro, que, diferentemente do que parece pensar a Recorrente (v. conclusão 11ª), não importa sequer submeter a prova a alegação da Ré de que apenas teve conhecimento do valor comercial e de mercado dos bens quando procedeu à resolução. Isto é assim precisamente porque era à Autora, e não á Ré, que cabia alegar e provar os factos extintivos do direito à resolução.

Procede pois a pretensão recursiva da Ré, não podendo manter-se o acórdão recorrido nem a decisão da 1ª instância.

Ao invés, impõe-se decidir pela improcedência do fundamento em causa (caducidade), seguindo a ação relativamente aos seus demais fundamentos e pedidos.

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em conceder a revista e, revogando o acórdão recorrido e a decisão da 1ª instância, julgam improcedente a ação no que se refere à caducidade do direito de resolução, seguindo os autos seus demais termos como ao caso couber.

Regime de custas:

A Autora é condenada nas custas da presente revista, bem como nas custas da apelação.

                                                           ++

Sumário:

                                                           ++



Lisboa, 18 de Setembro de 2018

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Henrique Araújo

_______________________
[1] Não se percebe muito bem de que ato a título gratuito se está a falar no ponto 12 da carta. Muito menos se percebe que, contraditoriamente com a declaração resolutiva (que pressupõe que o ato a resolver seja válido), se venha falar (ponto 7) em negócio simulado (o que implicaria a respetiva nulidade).
[2] V. Ana Prata et al., Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, p. 360.