Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P353
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
PRESSUPOSTOS
DESPACHO DE PRONÚNCIA
EFEITOS
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/01/2007
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Área Temática: DIR PROC PENAL * HABEAS CORPUS
Sumário : I – A providência excepcional de habeas corpus não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere – mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art.º 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite».
II – Não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e a correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele expediente só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários: justamente, os casos indiscutíveis ou de flagrante ilegalidade, que, por serem-no, permitem e impõem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal, e, por isso, sem remédio.
III – Em consequência desta específica circunstância processual do habeas corpus, a matéria de facto sobre que há-de assentar a decisão tem forçosamente de ser certa, ou, pelo menos, estabilizada, sem prejuízo de o Supremo Tribunal de Justiça poder ordenar algumas diligências de última hora – art.º 223.º, n.º 4, b), do Código de Processo Penal – mas sempre sem poder substituir-se à instância de julgamento da matéria de facto, e apenas como complemento esclarecedor de eventuais lacunas de informação do quadro de facto porventura subsistentes, com vista à decisão, ou seja, na terminologia legal, cingidas a esclarecer «as condições de legalidade da prisão».
IV – A natureza sumária e expedita da decisão de habeas corpus não permite que, não estando ainda firmes os factos, e o aspecto jurídico da questão se apresente problemático, o Supremo Tribunal de Justiça se substitua, de ânimo leve, às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção de fundo no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, possa, ainda que de forma implícita, censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade, que, para o efeito, importa que seja indiscutível. Até porque, não estabilizados [ainda] os factos e permanecendo discutível e não consensual a solução da questão jurídica, dificilmente se pode imputar, fundadamente, à decisão impugnada, qualquer que ela seja, mas sempre emanada de uma instância judicial, numa apreciação pouco menos que perfunctória, o labéu de ilegalidade, grosseira ou não.
V – Havendo os factos imputados ao arguido sido objecto de despacho de pronúncia ainda não transitado em julgado por ser objecto de recurso ainda pendente mas com efeito meramente devolutivo, que teve por indiciada a prática, em autoria material e em concurso real, de «um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 2, alíneas a) e c), do Código Penal, e um crime de subtracção de menor, previsto e punido pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma legal», tal significa que, até trânsito em julgado da decisão final que sobre o recurso do despacho de pronúncia ou sobre o mérito da acusação houver de ser proferida, mantém-se de pé, para efeitos processuais, a força atribuída aos indícios coligidos naquele despacho do juiz de instrução e respectiva qualificação jurídica, para mais não posta em causa naquele recurso, até porque não podia sê-lo.
VI – Não é necessário, para efeito de fundar a prisão preventiva, que haja a certeza de o arguido haver cometido um crime a que corresponda prisão preventiva. Basta, segundo o disposto no artigo 202.º, n.º 1, a), do Código de Processo Penal, (e descurando agora os demais pressupostos da prisão preventiva que não vêm ao caso), a existência de «fortes indícios» da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos».
VII – A este pressuposto dá corpo o despacho judicial de pronúncia, até que a decisão do recurso ordinário pendente sobre a legalidade da prisão preventiva ou o futuro trânsito em julgado da decisão do recurso intercalar da pronúncia ou o da decisão final sobre a verificação ou não, do crime, por ora ainda inexistentes, processualmente se lhe sobreponham, conforme o caso.
Decisão Texto Integral: 13

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. Invocando o disposto no artigo 222.º n.ºs 1 e 2, b), do Código de Processo Penal, um grupo de cidadãos assina a presente petição dirigida ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, dando corpo à providência excepcional de habeas corpus a favor do cidadão LMMG, devidamente identificado.
Fundam, em suma, o pedido, os seguintes resumidos fundamentos:
1. A providência de habeas corpus é uma medida excepcional, com vista a garantir a defesa da liberdade, sempre que haja prisão ilegal, visando repor a lei e a justiça.
2. Há prisão ilegal se o bem jurídico acautelado pelo tipo que permite a prisão não foi violado, não se verificando os elementos constitutivos do tipo.
3. Se o arguido é incriminado por uma previsão legal, que os factos que praticou não consentem, verifica-se a motivação imprópria referida na alínea b), do artigo 222.º do CPP.
4. A prisão preventiva mantém-se actual.

Terminam pedindo a imediata restituição à liberdade do beneficiário da petição.

A juíza do processo prestou a legal informação – art.º 223.º do Código de Processo Penal – nos seguintes termos:
1. Em 21 de Julho de 2005 foi deduzida acusação contra o arguido LMMG, imputando-lhe a prática, em co-autoria material e em concurso real, de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 2, alíneas a) e e), do Código Penal, e um crime de subtracção de menor, previsto e punido pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma legal.
2. Em consequência da abertura de instrução requerida pelo arguido LMMG, em 9 de Maio de 2006, o mesmo foi pronunciado pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 2, alíneas a) e c), do Código Penal, e um crime de subtracção de menor, previsto e punido pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma legal (fls. 1034 a 1042).
3. Em 2 de Novembro de 2006 o arguido apresentou a sua contestação (fls. 1191 a 1223).
4. Em 12 de Dezembro de 2006, em sede da primeira sessão da audiência de discussão e julgamento, foi deliberado aplicar ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva (fls. 1375 a 1381).
5. Do despacho que aplicou a medida de coacção ao arguido foi interposto recurso pelo Ministério Público arguindo a existência de nulidade insanável, uma vez que não lhe havia sido dada a palavra sobre a medida de coacção a aplicar ao arguido, nos termos do disposto no artigo 212.º, n.º 4, do Código de Processo Penal (fls. 1425 a 1427).
6. Do despacho que aplicou a medida de coacção ao arguido foi interposto recurso, igualmente pelo arguido.
7. Os recursos referidos em 5. e 6. já subiram para apreciação ao Tribunal da Relação de Coimbra.
8. Por requerimento datado de 14 de Dezembro de 2006, o arguido veio requerer a alteração da medida de coacção de prisão preventiva, pela medida de permanência na habitação, controlada através de meios de vigilância electrónica (fls. 1394 a 1398), o qual foi indeferido por despacho proferido em 19 de Dezembro de 2006, e do qual não foi interposto recurso (fls. 1438 a 1440).
9. Em sede da segunda sessão da audiência de julgamento, a qual decorreu em 5 de Janeiro de 2007, foi deliberado conceder a palavra ao Ministério Público para se pronunciar sobre a medida de coacção a aplicar ao arguido, nos termos do disposto no artigo 194.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na decorrência do recurso pelo mesmo interposto. Em consequência de tal, o Ministério Público promoveu a aplicação da medida de prisão preventiva ao arguido, mantendo o colectivo a decisão anteriormente proferida (fls. 1537 a 1547).
10. Em 16 de Janeiro de 2007 foi proferido acórdão, no âmbito do qual o arguido LMMG foi condenado pela prática, em co-autoria material, de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 2, alíneas a) e e), do Código Penal, na pena de seis anos de prisão, a qual ainda não transitou em julgado (fls. 1588 a 1640).
11. Do despacho proferido em 9. foi interposto recurso pelo arguido (fls. 1669 a 1688).
12. Do acórdão condenatório referido em 10. já foi interposto recurso pelo Ministério Público relativo à medida da pena (fls. 1690 a 1693).

É do seguinte teor o despacho que ordenou a prisão preventiva (fls. 1380):

«Da prova produzida até este momento se conclui que a menor E se encontra em convívio do arguido e sua mulher, tal como este disse na contestação.
Por decisão judicial proferida no processo de regulação do poder paternal a menor foi confiada ao pai biológico – BN – decisão que o arguido conhece e teima em não cumprir, não entregando a menor.
A menor é uma pessoa indefesa.
O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente.
Encontra-se assim indiciada a prática pelo arguido de um crime de sequestro. Este é punido com a pena de prisão de 2 a 10 anos.
A manutenção da permanência da menor E junto aos arguidos configura a continuação da actividade criminosa de sequestro, por parte do arguido.
Por outro lado e de acordo com a interpretação do Ac. do TC n.º 135/05 de 15/3/05, publicado no DR n.º 81, de 27/4/05, o facto de o arguido já por várias vezes se ter negado a apresentar a menor mesmo quando tal ordem lhe foi dada pelo tribunal, permite concluir pelo perigo de fuga, ou pela forte possibilidade de que aquela ocorra, pois quem com tanta facilidade se nega a não obedecer a ordens judiciais, confrontado com a iminência da entrega da menor, poderá encetar a fuga.
Assim, ao abrigo do disposto nos artigos 202.º, n.º 1, al. a), e 204.º, al. a) e c) do CPP, ordena-se a prisão preventiva do arguido LMMG a fim de este, subordinado a esta medida cautelar, aguarde os ulteriores termos do processo».

Por iniciativa do relator, foi ainda esclarecido pela juíza titular que o despacho de pronúncia a que se refere a informação foi objecto de recurso por banda do arguido, o qual foi remetido à Relação de Coimbra em 19/07/2006 e ainda ali se encontra pendente de decisão.
Tal recurso foi admitido com efeito meramente devolutivo (fls. 1099).

2. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, teve lugar a audiência (art.ºs 223.º, n.º 3, e 435.º do CPP).

Importa, agora, tornar pública a respectiva deliberação e, sumariamente, a discussão que a precedeu.

A pretensão assenta, como se vê, em alegada ilegalidade da prisão prevista no art.º 222.º, n.º 2, b), do Código de Processo Penal e, assim, alegadamente, motivada «por facto pelo qual a lei a não permite».
Cumpre averiguar se lhe assiste razão, que, no caso – deve advertir-se – se cinge a indagar se a figura processual em causa logra ou não dar cobertura processual aos objectivos pretendidos.
A providência de habeas corpus tem, como resulta da lei, carácter excepcional.
Não já, no sentido de constituir expediente processual de ordem meramente residual, como outrora aqui vinha sendo entendida, antes, por se tratar de providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excepcional,(1) haja ou não ainda aberta a via dos recursos ordinários.
“E é precisamente por pretender reagir contra situações de excepcional gravidade que o habeas corpus tem de possuir uma celeridade que o torna de todo incompatível com um prévio esgotamento dos recursos ordinários”.(2)
Porque assim, a petição de habeas corpus, em caso de prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal:
a) Ter sido [a prisão] efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;
c) Manter-se para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial.
“Exemplos de situações abrangidas por estas disposições poderiam encontrar-se na prisão preventiva decretada por outrem que não um juiz; na prisão preventiva aplicada a um arguido suspeito da prática de crime negligente ou punível com pena de prisão inferior a três anos; na prisão preventiva que ultrapasse os prazos previstos no artigo 215.º do C.P.P.
Confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente”(3).
Mas a providência excepcional em causa, não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere – mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art.º 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite».
Pois, não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários. Justamente, os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, por serem-no, impõem e permitem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante, agora, de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal.
Exactamente por isso, a matéria de facto sobre que há-de assentar a decisão de habeas corpus tem forçosamente de ser certa, ou, pelo menos, estabilizada, sem prejuízo de o Supremo Tribunal de Justiça poder ordenar algumas diligências de última hora – art.º 223.º, n.º 4, b), do Código de Processo Penal – mas sempre sem poder substituir-se à instância de julgamento da matéria de facto, e apenas como complemento esclarecedor de eventuais lacunas de informação do quadro de facto porventura subsistentes, com vista à decisão, ou seja, na terminologia legal, cingidas a esclarecer «as condições de legalidade da prisão».
Como afirmou este mesmo Supremo Tribunal no seu acórdão de 16 de Dezembro de 2003, proferido no procedimento de habeas corpus n.º 4393/03-5, trata-se aqui de «um processo que não é um recurso mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)».
“(…) Pelo contrário, os recursos de agravo previstos no artigo 219.º [do Código de Processo Penal] podem ter outros fundamentos, sobretudo os relacionados com a inexistência de uma necessidade cautelar que torne indispensável a aplicação da medida de coacção; com a não adequação da medida à necessidade cautelar; com a desproporcionalidade da medida face ao perigo que se visa evitar. Pense-se, a título de exemplo, em situações em que não se verifique qualquer perigo de fuga do arguido, de perturbação da ordem ou tranquilidade pública ou de continuação da actividade criminosa; em casos em que a medida aplicada não é idónea a garantir a não ocorrência do perigo que se receia; ou ainda na aplicação de uma medida demasiado gravosa tendo em conta outras que deveriam ser preferidas por menos desvaliosas e igualmente eficazes ou tendo em conta a gravidade do delito cometido e a sanção que previsivelmente lhe será aplicada”.(4)
A natureza sumária e expedita da decisão de habeas corpus, por outro lado, não permite que, quando o aspecto jurídico da questão se apresente altamente problemático, o Supremo se substitua de ânimo leve às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, ainda que de modo implícito, possa censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade, que, como se viu, importa que seja grosseira. Até porque, permanecendo discutível e não consensual a solução jurídica a dar à questão, dificilmente se pode imputar, com adequado fundamento, à decisão impugnada, qualquer que ela seja – mas sempre emanada de uma instância judicial – numa apreciação pouco menos que perfunctória, o labéu de ilegalidade, grosseira ou não.
Assim sendo, há que ver se a situação concreta se submete à previsão da invocada hipótese legal de habeas corpus.
A resposta – adianta-se já – é negativa.
Por um lado, a situação de facto está longe de devidamente estabilizada.
Com efeito, se o recurso da decisão final tiver como destino o tribunal da relação, (como o tiveram já, como se viu, os do despacho que ordenou a prisão preventiva), a esta compete conhecer de facto e de direito – art.º 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal – pelo que os factos a considerar ainda são provisórios e não devidamente estabilizados. E, acaso tal recurso seja dirigido directamente ao Supremo Tribunal de Justiça, também aqui, por via dos mecanismos previstos nos artigos 410.º, n.ºs 1 e 2, e 426.º, do mesmo Código, a matéria de facto pode ter de vir a ser reapreciada.
Entretanto, importa ter em conta que, como também ficou relatado, e consta da informação prestada, havendo sido requerida instrução, o arguido foi objecto de despacho de pronúncia, ainda que, como se apurou agora, não transitado em julgado, é certo, mas havendo o recurso sido admitido com efeito meramente devolutivo, não suspendeu os efeitos do despacho em causa (5), ou seja a pronúncia do arguido pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 2, alíneas a) e c), do Código Penal, e um crime de subtracção de menor, previsto e punido pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma legal. Tanto mais, que o recorrente não se insurge ali – como não podia insurgir-se, de resto (6) – contra a qualificação dos factos, mas, tão só, contra a alegada inobservância de formalidades processais.
O que significa que, até trânsito em julgado da decisão final que sobre o mérito da acusação houver de ser proferida, ou, pelo menos, da decisão do recurso do despacho em causa, que se lhe sobreponha, mantém-se de pé a força atribuída aos indícios coligidos naquele despacho do juiz instrutor e respectiva qualificação, pois, como se sabe, «no momento da decisão instrutória o que o tribunal decide é que há elementos que indiciam a responsabilidade do arguido» (7), ou que «no despacho de pronúncia o tribunal […] decide sobre a existência de indícios de que se verifiquem os pressupostos da aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e que o processo está em condições de prosseguir para a fase de julgamento», embora não decida sobre a efectiva verificação dos pressupostos da punibilidade, o que só acontecerá em sede de decisão final do caso.
Ora, como é de lei, não é necessário para efeito de fundar a prisão, que haja a certeza de o arguido haver cometido um crime a que corresponda prisão preventiva.
Basta, segundo o disposto no artigo 202.º, n.º 1, a), do Código de Processo Penal, (e descurando agora os demais pressupostos da prisão preventiva que não vêm ao caso), a existência de «fortes indícios» da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos». Condição esta a que o despacho judicial de pronúncia continua a dar cobertura até que o futuro trânsito em julgado, quer da decisão do recurso que o tem como objecto, quer da decisão final, por ora ainda inexistente, processualmente, se lhe sobreponha.
Por outro lado, e tenha ou não cabimento em sede de habeas corpus a indagação do acerto sobre a qualificação jurídica dos factos em causa,(8) o certo é que, pelos motivos apontados, essa qualificação a que haja de chegar-se por tal via, há-se ser segura, indiscutível, sem margem para dúvidas, e desse modo, se for o caso, levar à decisão de libertação imediata do preso.
Só que, no caso sub judice, a incriminação, para além do que fica dito sobre a actual transitoriedade do quadro de facto a que importará atender, será, decerto, no mínimo, pouco pacífica, nomeadamente quanto à questão de saber se os factos revelam aptidão para que possa concluir-se pela prática de um crime de sequestro. Basta atentar na circunstância, de, ainda recentemente – Acórdão de 01-02-2006, proc. n.º 3127/05, 3.ª Secçãoeste mesmo Alto Tribunal ter tido como tal um quadro de facto muito semelhante (9).
Questão largamente controvertida, assim, a da qualificação dos factos ora em causa, a ter o seu lugar próprio de discussão e decisão alargada e devidamente ponderada, em sede de recurso ordinário, porventura por este mesmo Alto Tribunal, mas não, no âmbito de numa providência que requer decisão expedita e necessariamente sumária, como esta.
Sendo certo que, como afirmam os requerentes, «a providência de habeas corpus é uma providência excepcional, com vista a garantir a defesa da liberdade», já não é certo que possa ser chamada para tal fim «sempre que haja prisão ilegal», pois como se viu, nem todos os casos de prisão ilegal aqui logram encontrar remédio adequado.
E se também é certo, como afirmam, que «há prisão ilegal se o bem jurídico acautelado pelo tipo que permite a prisão não foi violado, não se verificando os elementos constitutivos do crime», também o é que, nem sempre o Supremo Tribunal de Justiça, como acontece no caso, tem condições processuais necessárias para afirmar num juízo seguro, consciente, devidamente esclarecido e fundamentado, a ilegalidade da prisão, enfim, o juízo que vem pedido nesta concreta providência.
Finalmente, se também pode aceitar-se, em geral, ou pelo menos para alguns casos,(10) a tese dos requerentes segundo a qual «se o arguido é incriminado por uma previsão legal, que os factos que praticou não consentem, verifica-se a motivação imprópria referida na alínea b), do artigo 222.º do CPP», também tem de levar-se em conta, conforme o exposto, que é prematuro concluir em definitivo que in casu os factos «não consentem» a qualificação por eles tida como imprópria e em que assentou o despacho que ordenou a prisão preventiva, mantendo-se entretanto de pé, como se viu, a valia do despacho de pronúncia que, com o valor processual actual que lhe está associado, confere transitória força legal à qualificação ali operada.
Não se verifica, assim, ao menos por enquanto, o fundamento invocado – inexistência de facto pelo qual a lei a admite – para ter como ilegal a prisão preventiva decretada, assim improcedendo o pedido de habeas corpus.


3. Termos em que, tudo visto, deliberam neste Supremo Tribunal, após audiência, indeferir, por falta de fundamento bastante – art.º 223.º, n.º 4, a), do Código de Processo Penal – o pedido de habeas corpus atravessado pelo grupo de cidadãos em causa, no processo n.º 317/04.5TATNV, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas.

Custas pelos requerentes, nos termos do n.º 1 do artigo 84.º do Código de Custas Judiciais, com taxa de justiça que vai fixada em 5 unidades de conta.




Supremo Tribunal de Justiça, 1 de Fevereiro de 2007

Pereira Madeira (relator)
Simas Santos
Santos Carvalho (vencido, conforme declaração anexa)
Costa Mortágua



Declaração de voto
Vencido.
Embora concorde com a tese geral defendida no acórdão ora aprovado, no que respeita à natureza e fins da providência de habeas corpus por prisão ilegal, a razão da minha discordância radica, essencialmente, em considerar que, no caso concreto, estamos perante uma grosseira ilegalidade quanto à qualificação jurídica dos factos, tal como configurados até ao momento – e só com esses podemos contar nesta providência e não com outros que venham a ser entretanto apurados – pois os mesmos têm enquadramento inequívoco no crime de subtracção de menor e não do sequestro agravado, sendo certo que a moldura penal daquele não autoriza nem consente a medida gravosa de prisão preventiva.
O crime de sequestro está previsto no art.º 158.º do CP e aplica-se a «quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade».
Assim, este crime só pode ser cometido por omissão se o agente “mantiver presa ou detida outra pessoa”, pois nos restantes casos configurados na lei o agente pratica uma acção (deter, prender ou de qualquer forma privar de liberdade).
No caso em apreço, a factualidade que se aponta ao arguido no despacho que ordenou a prisão preventiva foi a de que “a menor E se encontra em convívio do arguido e sua mulher”, mas, “por decisão judicial proferida no processo de regulação do poder paternal a menor foi confiada ao pai biológico – BN – decisão que o arguido conhece e teima em não cumprir, não entregando a menor”, sendo que “a menor é uma pessoa indefesa” e que “o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente”.
Acusa-se, assim, o arguido de uma omissão consciente e dolosa no cumprimento do dever de obediência a uma decisão judicial que regulou o exercício do poder paternal.
Mas, tendo o arguido actuado por omissão, só poderia haver crime de sequestro se fosse entendido que a menor estava, antes da referida sentença que regulou o exercício do poder paternal, “presa ou detida”, pois é essa a previsão legal. E não é o que resulta dos factos.
Mas não se poderá entender que o não cumprimento da mesma sentença, isto é, a recusa de entregar a menor ao seu Pai, equivale a um acto de detenção ou de privação de liberdade, pois assim a menor é impedida da liberdade fundamental e constitucional de se deslocar ou ser deslocado pelas pessoas que têm o dever de dela cuidar?
A resposta, para o efeito de configuração de um crime de sequestro, só seria afirmativa se estivesse firmado na ordem jurídica, nomeadamente por sentença transitada em julgado, que o Pai é a única pessoa que detém o poder paternal, o que não sucede ainda. No caso, a sentença que regulou o exercício do poder paternal ainda não transitou em julgado e, portanto, apesar do recurso que ainda está pendente não ter efeito suspensivo, a sua execução só deveria ser ordenada, no interesse da menor, no momento em que ficasse firmemente fixado o poder paternal, pois a guarda, confiança e educação de uma menor de tenra idade não podem vogar ao sabor das diversas decisões judiciais que se forem produzindo.
Acrescente-se, ainda, que os factos em apreço são semelhantes aos anteriormente apreciados por este STJ em anteriores acórdãos, mas não são iguais, pois nestes houve uma acção do agente criminoso em retirar o menor da situação estabilizada em que se encontrava e aqui a situação, nesse aspecto, é a inversa.
Assim, mesmo numa providência excepcional e expedita como é o habeas corpus, poderia e deveria fazer-se esta análise jurídica, necessariamente perfunctória, que não iria impedir uma discussão mais alargada no processo principal, já que a decisão aqui lavrada só faria caso julgado quanto à prisão preventiva e com os elementos de facto até agora recolhidos.
Por outro lado, a circunstância do despacho de pronúncia produzir efeitos no processo quanto à qualificação jurídica dos factos não obsta a que os juízes do julgamento, ou os juízes que julgarem os recursos ordinários, muito menos este Supremo Tribunal de Justiça num habeas corpus, possam modificar livremente a qualificação jurídica, principalmente se for num sentido mais favorável ao arguido, pois neste ponto só o trânsito em julgado da decisão final constitui um marco inultrapassável.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, na “Constituição da República Portuguesa – Anotada”, vol. I, Coimbra Editora, 2007, pág. 510, referem que «a Constituição não estabelece nem configura a providência de habeas corpus como uma providência extraordinária, pelo que é duvidosa a bondade da jurisprudência dominante...mas não é de excluir a possibilidade de habeas corpus em alternativa ao recurso ordinário, quando este se revele insuficiente para dar resposta imediata e eficaz à situação de detenção ou prisão ilegal» (sublinhados nossos).
A resolução deste habeas corpus que defendi, de considerar que o arguido está em prisão preventiva “por facto pelo qual a lei não permite”, teria o mérito de pôr imediatamente cobro a uma manifesta ilegalidade, sem prejudicar e até podendo beneficiar a discussão mais serena que se vai continuar a fazer no processo principal, onde todas as questões podem e devem ser analisadas até à exaustão.
a) Santos Carvalho
____________________________
Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, 1986, págs. 273: “o habeas corpus é a providência destinada a garantir a liberdade individual contra o abuso de autoridade”.
2 Cfr., Cláudia Cruz Santos, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 10, fascículo 2.º, págs. 309
3 Autora o loc cit.
4 Autora citada, loc. cit.
5 «Efeitos do recurso: a) Efeito devolutivo: é aquele que se traduz em devolver ou atribuir ao tribunal a função de reexaminar a questão resolvida pela decisão recorrida. b) Efeito meramente devolutivo: é aquele em que apenas se devolve ao tribunal superior a resolução da causa. c) Efeito suspensivo: é o que efeito de interposição do recurso que consiste em suspender os efeitos da decisão recorrida, nomeadamente a sua exequibilidade ou é aquele em que se suspende a execução do decidido até resolução final do tribunal superior». Cfr. Castro Mendes, Dir Processual Civil, 1967, 1.º-140.
6 Cfr., art.º 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado pelo Ac. do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2000, de 19/1/2000, publicado no DR – I – A, de 7/3/2000.
7 Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, Verbo 2000, págs. 188.
8 Embora não se possa afirmar que seja essa a orientação prevalecente, que tem aceitado, em regra, a qualificação dos factos feita pelas instâncias a ela se limitando a aferir a legalidade da prisão.
9 « (…) III – A circunstância de a vítima do sequestro ser um menor não obsta à verificação do crime, por razões de protecção da sua dignidade de pessoa humana, que não pode ser instrumentalizada e tratada como coisaVI – No caso de concurso aparente, havendo várias normas punitivas, terá de prevalecer uma delas, excluindo a outra ou outras, através, designadamente, dos princípios da especialidade e da consumpção. VII – O crime de sequestro consome o de subtracção de menor, na medida em que a incriminação da privação da liberdade abarca a lesão do interesse do menor ao ser retirado da pessoa dele encarregada.»
10 Pois, apesar de os factos «não consentirem» uma concreta incriminação, podem, não obstante, «consentir» outra que suporte o decretamento da prisão.