Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1790/17.7T8VFX.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
MORA DO DEVEDOR
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
CITAÇÃO
DECISÃO SURPRESA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
RECURSO DE REVISTA
CUMPRIMENTO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
DECLARAÇÃO
RECUSA
Data do Acordão: 01/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. Não viola o princípio da proibição das decisões-surpresa o acórdão da Relação que conhece de mérito sem previamente notificar as partes para se pronunciarem sobre as consequências da alteração da matéria de facto.

II. De acordo com a jurisprudência consolidada do STJ, a sindicância, em sede de revista, do uso de presunções judiciais pela Relação apenas pode ser feita se tal uso ofender norma legal, se padecer de ilogicidade manifesta ou se partir de factos não provados.

III. Acompanha-se o entendimento do acórdão recorrido, quer no que respeita à natureza não essencial do prazo fixado no contrato-promessa dos autos, quer no que respeita ao entendimento segundo o qual – perante a procedência da impugnação da matéria de facto no sentido de ser dado como provado que o réu não foi devidamente notificado para a realização do contrato definitivo – não se encontrava o mesmo réu em situação de incumprimento do contrato-promessa à data da propositura da presente acção.

IV. Contudo, admite-se que, tendo o réu declarado em sede de audiência não pretender emitir a declaração negocial correspondente à celebração do contrato prometido, tal declaração revista a natureza de uma recusa antecipada de cumprimento, a qual, de acordo com orientação doutrinal e jurisprudencial consolidada, dispensa nova interpelação da contraparte.

V. Sendo que, quanto aos efeitos dessa recusa antecipada de cumprimento, se acompanha a posição doutrinal de reconhecer que a autora adquiriu os direitos inerentes à situação de mora do devedor e, em concreto, o direito à execução específica do contrato-promessa.

VI. De qualquer forma, e ainda que não se entendesse, sempre tem de se considerar que a constituição em mora é efeito necessário da citação do réu para a presente acção, nos termos do n.º 1 do art. 805.º do CC.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA. intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB., pedindo que seja declarado o incumprimento do contrato-promessa celebrado entre as partes, por culpa exclusiva do R., e que seja obtida a declaração negocial do R. faltoso em cumprimento do mesmo contrato-promessa; ou, caso assim não se entenda, seja o R. condenado a pagar-lhe uma indemnização no valor total de € 49.750,95, acrescida de juros vencidos desde a data do incumprimento, por enriquecimento sem causa, assim como uma indemnização por danos morais; ou, ainda subsidiariamente, seja o R. condenado a pagar-lhe uma indemnização a ser liquidada em execução de sentença, acrescida de juros.

Para o efeito alegou, em síntese, ser irmã do R. e que ambos são os únicos herdeiros de seus pais, tendo celebrado, em 06.06.2013, um contrato-promessa de partilha mediante o qual o R. prometeu adjudicar à A., que prometeu adquirir, o imóvel que descreveu e que faz parte da herança, pelo valor de € 35.000,00, já que ao imóvel foi atribuído o valor de € 70.000,00.

No contrato foi declarado que a A. já havia entregue ao R. € 23.500,00, por conta do valor de € 35.000,00 acima mencionado, quantia aquela onde se inclui o total dos montantes já liquidados pela A. a título do empréstimo bancário contraído para aquisição do imóvel e das quantias pagas pela A. às Finanças a título de IMI.

Quanto ao remanescente, no valor de € 11.500,00, a A. liquidou-o ao R., nos termos estipulados no contrato, mediante duas prestações de € 3.830,00 cada e uma última prestação de € 3.840,00, tendo a primeira sido liquidada na data da assinatura do contrato, a segunda no final de Dezembro de 2013 e a terceira em 02.04.2014.

No referido contrato-promessa ficou estipulado que a escritura de partilha seria outorgada no mês de Abril de 2014, ficando a A. de notificar o R. da respectiva data mediante envio de carta registada com aviso de recepção, com uma antecedência mínima de quinze dias relativamente à data da escritura.

Alegou a A. ter efectuado, através da sua advogada, a marcação da escritura para dia 13.05.2014, bem como alegou ter enviado carta registada com aviso de recepção para o R., tendo este, porém, nos dias anteriores, revogado a procuração que havia conferido à mencionada advogada para que esta o representasse na dita escritura e não tendo comparecido no cartório notarial na referida data.

Desde então, alegou a A., o R. tem sistematicamente obviado à outorga da escritura, não tendo comparecido em 13.07.2016, nova data marcada para o efeito, no cartório que a A.  indicou, nem tendo avisado que não iria comparecer.

Subsidiariamente, para o caso de se entender não ser possível a execução específica, sustenta a A. que o R. lhe deve restituir, ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, tudo o que ela indevidamente suportou e pagou, no montante total de € 35.000,00, acrescido de metade da quantia de € 2.876,46 que liquidou junto das Finanças e de metade da quantia de € 840,00 que liquidou pelo condomínio do imóvel, bem como de metade da quantia de € 6.047,67 que liquidou no âmbito do empréstimo para cumprir o acordado no contrato-promessa, tudo no âmbito da gestão da herança, o que perfaz o montante total de € 39.882,06.

Sobre tal quantia alegou serem devidos juros de mora à taxa legal desde a data do incumprimento, ascendendo os juros vencidos ao montante de € 4.868,89.

Acrescentou a A. que, com toda esta situação e com a recusa do R. em assumir a sua responsabilidade, sofreu vários abalos, como nervosismo, preocupação e inquietação em virtude dos contactos que, sem sucesso, se viu obrigada a fazer. Como tal pretende ser indemnizada por danos não patrimoniais no montante de € 5.000,00.

O R. contestou, defendendo-se por impugnação, alegando nunca ter sido notificado para estar presente para outorga da escritura nas datas referidas na petição inicial e invocando que foi marcada telefonicamente a escritura para o dia 30.04.2014, não tendo a A. comparecido, apenas o tendo o R. e a sua companheira, sendo que nessa data não estavam pagos todos os impostos como a A. se comprometera a fazer, incluindo o imposto de selo, o que sempre obstaria à outorga da escritura.

Quanto aos valores que a A. reclama a título de pagamento, pela mesma A., do empréstimo, de impostos e das despesas de condomínio, alegou o R. que são os mesmos que aquela lhe reteve e incluiu no montante de € 23.500,00 referido no contrato-promessa.

Deduziu reconvenção, alegando que, desde 30.04.2014, tem sido ameaçado pela A. e que esta sabia que era doente oncológico e que tinha uma ordem de despejo, aproveitando-se da sua fragilidade para a celebração do contrato-promessa que ambos assinaram, o que lhe causou preocupações, dores de cabeça e angústia por estar a ser injustiçado. Sentindo-se, por outro lado, enganado porque a A. lhe reteve € 6.000,00 para pagamento de dívidas e, afinal, só pagou às Finanças em Julho de 2016, sendo que também o empréstimo da casa não se encontra ainda liquidado na íntegra, faltando pagar € 5.771,82, e assim correndo o R. o risco de poder vir a “ser penhorado” se a A. não pagar.

Pelo exposto alegou ter sofrido danos morais, pedindo a condenação da A. a pagar-lhe uma indemnização a esse título, no montante de € 5.000,00, acrescido de juros legais desde a notificação da reconvenção até integral pagamento.

A A. replicou, defendendo-se por impugnação e pedindo a condenação do R. como litigante de má fé a pagar-lhe uma indemnização no montante de € 3.000,00, invocando para o efeito que foi o mesmo quem não compareceu no dia 30.04.2014, às 16 horas, hora marcada para a escritura, bem como quem fez as contas e acertos das tornas que a A. lhe entregou e teria de entregar, daí resultando os termos expressos no contrato-promessa.

Após julgamento, foi proferida sentença com a seguinte decisão:

«Termos em que, face ao exposto, decido:

A) Julgar totalmente procedente a presente ação quanto ao pedido formulado a título principal e, consequentemente, declarar adjudicar à A., por partilha da herança de seus pais, a fração designada pela letra “D”, correspondente ao ……. andar ……. do prédio sito na Rua …, em …, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº ….. da referida freguesia de ….. e inscrito na matriz respetiva sob o artº …., com origem no artº ……..;

B) Julgar totalmente improcedente o pedido reconvencional formulado pelo R. e, nessa medida, absolver a A. reconvinda desse pedido.»

Inconformado, interpôs o R. recurso para o Tribunal da Relação ……., pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 21 de Janeiro de 2020 foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revoga-se o dispositivo sob a) da decisão impugnada, julgando-se a ação totalmente improcedente, mantendo-se, no mais, o decidido em primeira instância.»


2. Vem a A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando, após convite ao aperfeiçoamento, as seguintes conclusões:

«1.º Entende-se que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento não resultou minimamente provada qualquer factualidade em concreto, da qual se possa considerar dado como provados os factos, 11) alterado pela decisão recorrida e o facto 25) aditado, pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação ……...

2.º No caso em apreço, resulta por demais evidente que os Venerandos Juízes Desembargadores, não podiam fundamentar a decisão ora recorrida, com base em meras presunções judiciárias, uma vez que não resultou da audiência de discussão e julgamento qualquer tipo de factos e elementos dados como provados, com a mínima de segurança e certeza que é exigível, que os levassem a concluir que “A escritura referida em 6) foi marcada pela Dra. CC., para o dia 13.5.2014, pelas 16 h, no Cartório Notarial de …..»; e que “O Réu não recebeu nenhuma carta registada com AR, notificando-o para a realização da escritura nos dias 13.5.2014 e 13.7.2016.»

3.º Deste modo, dúvidas não subsistem, que estamos perante uma manifesta violação quer do princípio da livre apreciação da prova, quer do princípio da interpretação da lei ao caso concreto.

4.º Isto porque, apesar da prova ser suscetível de apreciação segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, não significa que consista numa liberdade de decidir e apreciar a prova com base no arbítrio e em meras impressões subjetivas do julgador, o que efetivamente sucedeu.

5.º Face ao exposto, entende-se que nunca os Venerandos Juízes Desembargadores, não poderiam julgar improcedente, por não provada, a respetiva ação perante uma situação de dúvida quanto à matéria de facto provada e não provada.

6.º A decisão ora recorrida carece de fundamentação em toda a sua essência, pelo que deve a mesma ser revogada, e consequentemente, ser a ação julgada procedente, por provada, ou caso V. Exas. assim não o entendam, em caso de dúvida, ser ordenada a realização de nova audiência de discussão e julgamento para esclarecimento da questão, factos provados e não provados.

7.º Por outro lado, no que concerne ao incumprimento perpetrado por parte do recorrido, resulta quanto a esta matéria, e com interesse para a decisão do presente recurso, a Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, considerou como provados, e bem a nosso ver, os factos constantes nos números 11), 12), 13), e 14).

8.º Na verdade, não nos restam dúvidas, de que a recorrente, em cumprimento do contrato de promessa, procedeu ao envio de carta registada com aviso de receção, para o recorrido com indicação do local, data e hora para a realização da escritura, assim como foi o mesmo informado pela Dr.ª CC. (mandatária que acompanhou e elaborou o presente contrato de promessa de partilha e que detinha procuração com poderes especiais daquele recorrido, que fora revogada) conforme facto provado.

9.º Se assim não o fosse, faria algum sentido a recorrente deslocar-se ao Cartório Notarial para o efeito, tendo ali permanecido à espera que o recorrido chegasse.

10.º A verdade é que, de forma lastimável, o recorrido firmou a sua tese logrando-se da infelicidade do falecimento de uma das testemunhas fulcrais, a Sra. Dra. CC., Advogada, cujo depoimento teria sido fundamental para o esclarecimento e descoberta da verdade material dos factos quanto à factualidade aqui em apreço e o mandato que a mesma detinha para outorgar a escritura, a qual foi revogada pelo R. o dia antes da escritura.

11.º Face ao exposto, pugna-se pela manutenção do facto 11), não se concordando com a alteração introduzida, assim como igualmente se pugna pela eliminação do facto 25) aditado pela decisão ora recorrida.

12.º No que concerne a esta questão, do manifesto incumprimento do contrato de promessa celebrado, por parte do recorrido a qual não foi tida em consideração pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação …., dúvidas não subsistem de que o recorrido se encontra em manifesta situação de incumprimento, pois que conforme resulta da prova produzida, nomeadamente das suas declarações de parte, o mesmo encontra-se ressarcido de todas as quantias que tinha direito a receber com a celebração do dito contrato de promessa.

13.º Tendo igualmente resultado como provado, em sede de audiência e julgamento, de que a recorrente pagou todas as dívidas inerentes à herança em 13.07.2016, conforme os pontos 15) a 20) da fatualidade provada, não podendo o Tribunal da Relação fazer prevalecer de que também tenha existido incumprimento por parte da recorrente, porque a mesma detém tudo pago.

14.º Razão pela qual, a Mma. Juiz do Tribunal “a quo” DECIDIU e DECIDIU BEM, em “lançar mão” do mecanismo da execução especifica, em face da manifesta e indubitável situação de incumprimento por parte do recorrido, que vai mais além do que da questão da concretização da notificação para a realização da escritura, pois o incumprimento do contrato de promessa por parte do mesmo revelou-se em sede da própria audiência de discussão e julgamento.

15.º A não se entender assim, o que somente por mera hipótese académica se admitiria, a decisão recorrida nos moldes em que foi proferida limita por completo, chegando mesmo a precludir, os direitos da ora recorrente, que não poderá voltar a recorrer e “lançar mão” do mecanismo legal da execução especifica, pois que o recorrido com esta decisão e vincado em não pretender celebrar a escritura publica, conforme demonstrou nas suas declarações, e em sede de alegações de recurso, irá sempre imiscuir-se à sua notificação para a marcação e realização da escritura, quando na verdade o mesmo é que se encontra em manifesta situação de incumprimento do contrato de promessa celebrado, pois que já foi ressarcido das quantias lhe eram devidas em virtude da assinatura do dito contrato, e ainda assim mantém-se como comproprietário do imóvel em questão, o que configura uma verdadeira e manifesta situação de abuso de direito e enriquecimento sem causa.

16.º Perante o preceituado no artigo 334.º do Código Civil, o exercício do direito não deve exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, por a todos se impor uma conduta de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis no comércio jurídico, pelo que se entende que estamos perante uma clara violação do presente normativo legal.

17.º Acresce que, o conhecimento inopinado pela Relação do mérito da causa, nomeadamente e em concreto com a alteração da redação do facto 11) e o aditamento de um facto novo – facto 25) – à matéria de facto dada como provado, e que influi diretamente na decisão do mérito da causa, ao ter sido proferida decisão totalmente contraditória da decisão proferida em 1.ª instância, traduz no nosso entendimento a supressão de um grau de jurisdição, o que é deveras nefasto para os direitos das partes, nomeadamente, não permitindo o exercício pleno do contraditório e da defesa das suas versões, pois que, de repente, sem que uma das partes o esperem, a 2:ª instância decide do fundo da causa, sem para o efeito as partes exercerem o seu contraditório.

18.º É que, no caso dos autos, não nos podemos esquecer e ignorar que a decisão recorrida procedeu a alterações da matéria de facto, nomeadamente alteração de redação e aditamento de fato dado como provado, para com base nessas alterações, inverter e contrariar totalmente a decisão proferida pela 1.ª instância.

19.º Quando na verdade, e de acordo com o vertido no artigo 662.º n.º 1 do Código de Processo Civil, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuseram decisão diversa”, pelo que igualmente se entende que o presente preceito normativo foi violado.

20.º A verdade é que, há que assegurar o contraditório e prevenir o risco de serem proferidas decisões – surpresa, pois nos termos do artigo 665.º n.º 3 e artigo 3.º do Código de Processo Civil, o relator deveria ter convidado as partes a produzir alegações sobre a questão de mérito que se pretendia decidir (com base nas alterações efetuadas à factualidade dado como provada) e antes de ser proferida decisão, deveria ter ouvido cada uma das partes.

21.º O certo é que, ao proceder dessa forma, o Tribunal da Relação ……. acabou por proferir uma decisão surpresa, a qual é manifestamente nula, por violação do disposto nos artigos 3º n.º 2, 615.º n.º 1 alínea d) 2.ª parte, 666.º, todos do Código de Processo Civil.

22.º O que constitui assim uma nulidade processual, nos termos do artigo 195º do Código de Processo Civil, que tem de ser arguida, de acordo com a regra geral prevista no artigo 199.º do mencionado diploma legal, e qual se argui através do presente recurso.

23.º Em suma, com a decisão constante no douto Acórdão, o Tribunal da Relação ……. fez errada interpretação e aplicação da lei, violando as normas jurídicas constantes dos artigos 3.º n.º 2, e 665.º ambos do Código de Processo Civil.

24.º Destarte, com todo o devido respeito, e salvo melhor opinião, não se encontra ao longo de todo acórdão proferido, e do qual se recorre, qualquer facto ou questão invocados que possam colocar em causa a douta decisão proferida em sede de 1.ª instância, não podendo, por essa razão, a recorrente AA., deixar de se insurgir contra o que considera, salvo o devido respeito, a violação do Primado da Justiça e da Regularidade Processual.

25.º Destarte, deve a decisão recorrida ser revogada atento os motivos supra expostos, para que prevaleça o decidido em 1ª instância, nomeadamente, a procedência da ação, que declarou adjudicar à A., por partilha da herança de seus pais, a fração designada pela letra “D” correspondente ao ……. andar …… do prédio sito na Rua …., e ….., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de …… sob o n.º ….. da referida freguesia de ……. e inscrito na matriz respetiva sob o art.º …., com origem no art.º …..»

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido e a repristinação da decisão da 1.ª instância.

O Recorrido não contra-alegou.


3. Por acórdão da conferência de 14 de Julho de 2020, o tribunal a quo pronunciou-se no sentido da não verificação da invocada nulidade por violação da proibição de decisões-surpresa, afirmando:

«Ora, o apelante/réu impugnou a matéria de facto, tendo-se considerado no acórdão que:

“Ora, no caso em apreço, o apelante - apesar de alguma deficiência na medida em que o raciocínio não é totalmente explicito- impugna, de forma suficiente, a matéria provada sob o facto 11, pretendendo que a parte final do mesmo facto passe a ser considerada não provada.

Face ao teor articulado das conclusões 6ª, 7ª e 10ª, infere-se também que o apelante pretende que seja aditado o seguinte facto: «O Réu não recebeu nenhuma carta registada com AR, notificando-o para a realização da escritura nos dias 13.5.2014 e 13.7.2016.»

E fez-se tal interpretação da impugnação da matéria de facto do apelante tendo em consideração que: «O STJ vem entendendo que, na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.”

Assim sendo, este Tribunal da Relação, ao alterar a redação do facto 11 e ao aditar o facto 25, atuou dentro do perímetro da impugnação da matéria de facto, não conhecendo de nenhuma questão nova, que desse azo à ativação ad hoc do princípio do contraditório (Artigo 3º). Do mesmo passo, pronunciou-se sobre questões suscitadas pelo apelante, e não sobre questões novas.»

O recurso foi admitido pelo mesmo acórdão da conferência de 14 de Julho de 2020 e os autos foram remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça por ofício de 18 de Setembro de 2020.

Cumpre apreciar e decidir.


4. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção das instâncias):

1. Pela Ap. …. de 05.06.1996 encontra-se inscrita no registo a aquisição a favor de DD. e EE., casados no regime de comunhão geral, por compra, da fração designada pela letra “D” correspondente ao ……. andar ……. do prédio sito na Rua …., em …., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ……. sob o nº …… da referida freguesia de … e inscrito na matriz respetiva sob o artº …, com origem no artº … .

2. Por escritura outorgada em 02.04.2014 foi declarado pelo R., na qualidade de cabeça-de-casal, que no dia 17.08.2008 faleceu EE., no estado de casada com DD., tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros este último e os seus filhos, a A., casada no regime de comunhão geral com FF., e o R., bem como que em 11.11.2012 faleceu DD., no estado de viúvo, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros a A. e o R., seus filhos.

3. Por escrito de 06.06.2013 subscrito pela A. e pelo R., estes declararam acordar em atribuir a fração referida em 1) à A., pelo valor de € 35.000,00 que aquela daria de tornas ao R., atribuindo à fração o valor de € 70.000,00.

4. Nas cláusulas quarta a sexta do escrito, anteriormente referido, declararam as partes que da quantia de € 35.000,00 referida no ponto anterior o R. já havia recebido a importância de € 23.500,00, encontrando-se em dívida a quantia de € 11.500,00, a qual seria paga da seguinte forma:

- € 3.830,00 na data da assinatura do contrato da qual o R. deu quitação; € 3.830,00 no fim de Dezembro de 2013;

- € 3.840,00 no dia 2 de Abril de 2014.

5. Nas cláusulas sétima e oitava do escrito referido em 3) acordaram as partes que a dívida ainda existente relativa ao empréstimo bancário do imóvel e as quantias referentes ao pagamento às Finanças do IMI seriam suportadas pela A., uma vez que já estavam incluídas no montante de € 23.500,00 referido em 4).

6. Na cláusula nona do escrito referido em 3) foi estipulado que a escritura seria marcada pela A. no mês de Abril de 2014 e que a mesma teria de notificar o R. da data da mesma com carta registada com aviso de receção com uma antecedência mínima de quinze dias da data da escritura.

7. Estipularam ainda as partes na cláusula décima do escrito referido em 3) que o contrato em causa satisfazia a vontade de ambos e que o seu não cumprimento importava o direito à execução específica nos termos do artº 830º do Código Civil.

8. A A. liquidou ao R. € 3.830,00 na data referida em 3), € 3.830,00 no final de Dezembro de 2013 e € 3.840,00 em 02.04.2014.

9. A escritura referida em 6) foi marcada pela Dra. CC., advogada, para o dia 30.04.2014, no Cartório Notarial de …, não se tendo realizado nessa data.

10. O R., a sua companheira e a Dra. CC. estiveram presentes nessa data nesse Cartório Notarial, não tendo a A. comparecido.

11. A escritura referida em 6) foi marcada pela Dra. CC., para o dia 13.5.2014, pelas 16h, no Cartório Notarial de …. [alterado pela Relação; redacção da 1.ª instância: A escritura referida em 6) foi marcada pela Dra. CC., para o dia 13.05.2014, pelas 16h00m, no Cartório Notarial de …, tendo aquela enviado carta registada com aviso de receção ao R. com a respetiva indicação];

12. Na data e hora anteriormente referidas a A. esteve presente com o seu filho e a Dra. CC. no mencionado Cartório Notarial, não tendo o R. comparecido e não tendo por isso sido realizada a escritura.

13. O R. esteve presente numa reunião com as Ilustres Advogadas que patrocinam a A. em que se se falou em marcação de nova data para a outorga da escritura referida em 6).

14. A escritura referida em 6) foi marcada para o dia 13 de Julho de 2016, pelas 10h00m, no Cartório Notarial de GG. sito em …….., não tendo o R. comparecido e não tendo por isso sido realizada a escritura.

15. Em 11.07.2016 a A. pagou nas Finanças € 13,80 referente a despesas e taxas diversas, emolumentos, cobradas à herança da sua mãe, representada pelo cabeça de casal.

16. Em 11.07.2016 a A. pagou nas Finanças € 615,82 no âmbito de processo de execução fiscal intentado contra a herança de sua mãe, representada pelo cabeça de casal, referente a IMI de 01.01.2012 a 31.12.2012, taxas, despesas e respetivos juros de mora.

17. Em 11.07.2016 a A. pagou nas Finanças € 428,91 no âmbito de processo de execução fiscal intentado contra a herança de sua mãe, representada pelo cabeça de casal, referente a IMI de 01.01.2012 a 31.12.2012, taxas, despesas e respetivos juros de mora.

18. Em 11.07.2016 a A. pagou nas Finanças € 183,40 no âmbito de processo de execução fiscal intentado contra a herança de sua mãe, representada pelo cabeça de casal, referente a IMI de 01.01.2013 a 31.12.2013, taxas, despesas e respetivos juros de mora.

19. Em 11.07.2016 a A. pagou nas Finanças € 175,30 no âmbito de processo de execução fiscal intentado contra a herança de sua mãe, representada pelo cabeça de casal, referente a IMI de 01.01.2014 a 31.12.2014, taxas, despesas e respetivos juros de mora.

20. Em 13.07.2016 a A. pagou nas Finanças € 7,20 referente a despesas e taxas diversas, emolumentos, cobradas à herança da sua mãe, representada pelo cabeça de casal.

21. Sobre a fração referida em 1) esteve inscrita no registo, pela Ap. …… de 20.06.2014, penhora a favor da Fazenda Nacional, sendo a quantia exequenda de € 711,79, no âmbito do processo de execução fiscal referido em 17) e respetivos apensos.

22. A inscrição anteriormente referida foi cancelada por determinação da Chefe de Finanças em despacho de 18.06.2018.

23. A A. encontra-se a liquidar as prestações no âmbito do empréstimo bancário contraído para aquisição da fração referida em 1).

24. A A. sente ansiedade e preocupação em resolver a situação mediante a celebração do contrato prometido.

25. O Réu não recebeu nenhuma carta registada com AR, notificando-o para a realização da escritura nos dias 13.5.2014 e 13.7.2016. [aditado pela Relação]


Ao abrigo do disposto no art. 607.º, n.º 4, aplicável por via da sucessiva remissão dos arts. 663.º, n.º 2 e 679.º, todos do CPC, adita-se o seguinte facto: o R. declarou em audiência de julgamento «não pretender emitir a declaração negocial correspondente à celebração do contrato prometido».


Foi dado como não provado:

a) O R. tivesse conferido procuração à Dra. CC. para o representar na escritura referida em 6) da fatualidade provada;

b) Dias antes da data referida em 11) da fatualidade provada o R. tivesse enviado um fax para o escritório da Dra. CC. a revogar a procuração anteriormente referida;

c) Tivesse sido enviada ao R. uma carta registada 15 dias antes da data referida em 14) da fatualidade provada, indicando-lhe o dia e hora para a realização da aludida escritura;

d) A A. tivesse pago a quantia de € 2.876,46 a título de despesas fiscais com a herança;

e) A A. tivesse liquidado a quantia de € 6.047,67 desde a data referida em 3) da fatualidade provada a título de amortização do empréstimo bancário contraído para aquisição da fração referida em 1) da fatualidade provada;

f) Falte apenas liquidar € 5.571,82 no âmbito do empréstimo anteriormente referido;

g) A A. tivesse pago € 840,00 a título de quotas de condomínio do prédio da fração referida em 1) da fatualidade provada referentes ao período de Janeiro de 2009 a Dezembro de 2013;

h) A A. tivesse sofrido e sofra de nervosismo, preocupação e inquietação em virtude dos diversos contatos que se tivesse visto obrigada a fazer com o R., sem sucesso;

i) No montante de € 23.500,00 referido em 4) da fatualidade provada estivessem incluídas as dívidas existentes perante o condomínio do prédio da fração referida em 1) da fatualidade provada e dívidas às Finanças de IRS;

j) Os montantes do empréstimo bancário e da dívida às Finanças a título de IMI incluídos na quantia de € 23.500,00 referida em 4) da fatualidade provada fossem, respetivamente, de € 4.500,00 e de € 1.500,00;

k) Tivesse sido a A. quem exclusivamente tivesse feito acertos de contas entre ela e o R. e chegado ao montante de € 23.500,00 referido em 4) da fatualidade provada;

l) A A. se tivesse aproveitado do fato de o R. ter uma ordem de despejo e da sua fragilidade para celebração do contrato referido em 3) da fatualidade provada.

m) O R. se sinta enganado por a A. só ter liquidado as dívidas às Finanças em Julho de 2006 e por o empréstimo contraído para aquisição da fração referida em 1) ainda se encontrar em dívida.


5. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o presente recurso tem por objecto as seguintes questões:

- Nulidade processual por violação da proibição de decisões-surpresa;

- Violação das normas que regulam os poderes atribuídos à Relação na apreciação da impugnação da matéria de facto, ao proceder à alteração do facto 11 e ao aditar o facto 25;

- Subsidiariamente, execução específica do contrato-promessa por incumprimento por parte do R.;

- Subsidiariamente, abuso do direito do R. ao recusar-se a cumprir o contrato-promessa dos autos.


6. Invoca a Recorrente a existência de nulidade processual por violação da proibição de decisões-surpresa, uma vez que a Relação, decidindo alterar o facto 11 e aditar o facto 25, de imediato conheceu de mérito, sem previamente notificar as partes para se pronunciarem sobre as consequências daquela alteração.

Independentemente da qualificação de tal nulidade como nulidade processual ou como nulidade da decisão com incidência sobre a decisão da causa (cfr. Teixeira de Sousa, “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária”, 22/09/2020, in blog do IPPC) – e considerando-se aplicável a esta última o regime da impugnação das nulidades da decisão previsto no n.º 4 do art. 615.º do CPC – certo é que, na medida em que o recurso de apelação inclui tanto a impugnação da decisão de facto como da decisão de direito, teve o apelado oportunidade de exercer o contraditório, tendo optado, no caso, por não se pronunciar.

A alteração da matéria de facto não tem, pois, de ser autonomamente notificada à contraparte. Só assim não seria se a alteração da decisão de facto constituísse, em si mesma, uma decisão-surpresa o que ocorreria, designadamente, se os termos dessa alteração não pudessem ter sido apreendidos pelo apelado.

Ora, e ainda que a Recorrente não o explicite claramente, afigura-se que efectivamente a mesma pretenderá que se reconheça que a impugnação da matéria de facto em sede de apelação não foi feita de forma a permitir-lhe exercer cabalmente o contraditório.

Vejamos então.

A 1.ª instância deu como provado o facto 11 com a seguinte redacção:

A escritura referida em 6) foi marcada pela Dra. CC., para o dia 13.05.2014, pelas 16h00m, no Cartório Notarial de …., tendo aquela enviado carta registada com aviso de receção ao R. com a respetiva indicação.

Na impugnação da matéria de facto, o apelante formulou as seguintes conclusões:

«5 - O Tribunal dá como assente, que esteve marcada nova escritura para o dia 13 de maio de 2014, fundamenta a sua convicção no email supratranscrito constante de fls. 51 e certificado de fls.53.

6 - Não podia o douto Tribunal Ad Quo dar como provado o envio de uma carta registada com AR, apenas porque consta essa afirmação num e-mail!

 7 - A Recorrida marcou uma nova escritura para 13 de julho de 2016, embora o Recorrente nunca tenha sido notificado para a mesma.

(...)

10  - Reforça-se, com exceção da escritura marcada para o dia 30 de abril de 2014, o Recorrente nunca foi notificado para qualquer outra escritura.»

Na parte que ora releva, pronunciou-se a Relação nos seguintes termos:

«O STJ vem entendendo que, na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. [nota 3]

Ora, no caso em apreço, o apelante - apesar de alguma deficiência na medida em que o raciocínio não é totalmente explícito - impugna, de forma suficiente, a matéria provada sob o facto 11, pretendendo que a parte final do mesmo facto passe a ser considerada não provada. Face ao teor articulado das conclusões 6ª, 7ª e 10ª, infere-se também que o apelante pretende que seja aditado o seguinte facto: «O Réu não recebeu nenhuma carta registada com AR, notificando-o para a realização da escritura nos dias 13.5.2014 e 13.7.2016[negrito nosso]

Face ao teor das, supra transcritas, conclusões de apelação não merece censura o juízo da Relação ao considerar compreensível a pretensão do apelante em sede de impugnação da matéria de facto. Deste modo, e concomitantemente, entende-se que era inteiramente apreensível para a apelada, ora Recorrente, que o apelante pretendia que a Relação alterasse a matéria de facto nos termos em que o veio a fazer, isto é, eliminando o segmento final do facto 11 e aditando um novo facto com o teor do que veio a consubstanciar o novo ponto 25.

Assim sendo, e tendo a apelada tido oportunidade de, se assim o entendesse, se pronunciar sobre a impugnação da matéria de facto, conclui-se pela não verificação da invocada violação da proibição das decisões-surpresa e do princípio do contraditório.


7. Passemos a apreciar a questão da alegada violação das normas que regulam os poderes atribuídos à Relação na apreciação da impugnação da matéria de facto – designadamente mediante o indevido uso de presunções judiciais – ao ter a Relação alterado a redacção do facto 11 e aditado o facto 25.

De acordo com a jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal (ver, exemplificativamente, o acórdão de 14.07.2016, proc. n.º 377/09.2TBACB.L1.S1[1], disponível em www.dgsi.pt), a sindicância, em sede de revista, do uso de presunções judiciais pela Relação apenas pode ser feita se tal uso ofender norma legal, se padecer de ilogicidade manifesta ou se partir de factos não provados.

Consideremos o teor da fundamentação do acórdão recorrido, na parte relevante:

«De tudo o que fica dito, infere-se que a prova - documental, por declarações de parte e testemunhal - é insuficiente para dar como provado o segmento final do facto provado sob 11, a saber: «tendo aquela enviado carta registada com aviso de receção ao réu com a respetiva indicação». Na verdade, o envio de carta registada com aviso de receção deve ser, em primeira linha, objeto de prova documental, a qual não foi feita de forma suficiente, atenta a ilegibilidade parcial dos talões juntos e, sobretudo, quer pela falta do aviso de receção assinado ou, em alternativa, pela junção do envelope remetido com a menção do motivo da não entrega, faltando também o teor das cartas alegadamente remetidas. Acresce que as testemunhas e a própria autora não evidenciaram conhecimento de ciência certa quanto à ocorrência do envio de tais cartas registadas com aviso de receção, confiando no alegado envio pela advogada, mas que - conforme visto - não está documentado.

Quanto à pretensão do Réu no sentido de ser dado como provado que «O Réu não recebeu nenhuma carta registada com AR, notificando-o para a realização da escritura nos dias 13.5.2014 e 13.7.2016.», há que atentar que estamos perante a alegação e prova de um facto negativo definido.

Segundo VAZ SERRA, «(...) se o direito, que se faz valer, tem como requisito um facto negativo, deve este facto ser provado por quem exerce o direito, precisamente como os factos positivos que sejam requisitos de direitos exercidos. Não há motivo para soluções diferentes nos dois casos, dado que os factos negativos não têm que se presumir pela mera circunstância de o serem (...)» - Provas (Direito Probatório Material), 1962, p. 64.5

Com efeito, o brocardo negativa non sunt probanda tem como campo de aplicação as proposições negativas indefinidas, no sentido de que um facto não ocorreu num determinado período de tempo longo, v.g. prova de não se ter assumido uma obrigação. É por esta ordem de razões que, numa ação de cumprimento, o credor não tem de provar que não recebeu a prestação (facto negativo indefinido), cabendo ao devedor demonstrar mais facilmente a execução (facto positivo). Sendo impossível provar diretamente uma proposição negativa indefinida, o objeto da prova transfere-se para prova de facto positivo contrário ou mediante presunções judiciais dos quais seja deduzível o facto negativo.6 De modo mais concreto, os factos negativos definidos devem ser provados por via presuntiva com base na demonstração de factos secundários/instrumentais dos quais se possa inferir como provável a veracidade do enunciado fáctico negativo. Por sua vez, os factos negativos indefinidos podem ser provados mediante a prova de facto específico positivo contrário.7

Refere-se em LUÍS FILIPE SOUSA, Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª Ed., pp. 298-299, que: «(...) é comum que as comunicações entre as partes ocorram pelo envio de carta, simples ou registada. Quando a relação entra em fase litigiosa, é comum que uma das partes negue a receção de carta. Neste contexto, há que valorar o envio da carta como indício da sua receção (indício missio). Ou seja, desde que se prova o facto-indiciário do envio da carta (por testemunhas, tratando-se de carta não registada ou pelo registo, tratando-se de carta registada), haverá que presumir a sua receção. O que fundamenta a presunção é a máxima da experiência no sentido da fiabilidade dos serviços dos correios no sentido de que o transporte se efetivou corretamente e a carta chegou em condições ao seu destino. Nos Estados Unidos é pacífica a presunção no sentido de que uma carta regulamente endereçada e remetida foi recebida.»

No caso em apreço, a presunção funciona, mas na sua formulação negativa. Ou seja, atenta a falta de prova do efetivo envio de cartas registadas com aviso de receção (envio esse imposto pela Cláusula 9ª do contrato-promessa assinado pelas partes - fls. 36), há que presumir que o réu não foi notificado para estar presente nas escrituras.

Termos em que:

Se altera a redação do facto 11 para: «11- A escritura referida em 6) foi marcada pela Dra. CC., para o dia 13.5.2014, pelas 16 h, no Cartório Notarial de …….»;

Se adita o seguinte facto provado: «25. O Réu não recebeu nenhuma carta registada com AR, notificando-o para a realização da escritura nos dias 13.5.2014 e 13.7.2016 [negritos nossos]

No caso dos autos, constata-se que a Relação eliminou a parte final do facto 11 não mediante uso de presunções judiciais, mas por entender que a prova do envio de carta com aviso de recepção teria de ser feita documentalmente. Ora, uma vez que a Recorrente nada alegou especificamente a este respeito, impugnando a exigência desse meio probatório, não cabe aqui pronunciar-nos.

A partir da alteração ao teor do facto 11 deu a Relação como provado o novo facto 25 («O Réu não recebeu nenhuma carta registada com AR, notificando-o para a realização da escritura nos dias 13.5.2014 e 13.7.2016») através de raciocínio presuntivo que, partindo da factualidade provada, não padece de qualquer ilogicidade.

Conclui-se, assim, pela não verificação da alegada violação das normas que regulam os poderes atribuídos à Relação na apreciação da impugnação da matéria de facto.


8. Subsidiariamente, e para o caso de improcederem as questões anteriores relativas à decisão de facto, pretende a Recorrente que se declare a execução específica do contrato-promessa uma vez que, em seu entender e de qualquer forma, o R. se encontra em situação de incumprimento. Importa considerar os termos em que as instâncias se pronunciaram acerca desta pretensão da A..

Recorde-se que, com especial relevo para a resolução da questão da execução específica do contrato-promessa dos autos, a 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:

6. Na cláusula nona do escrito referido em 3) foi estipulado que a escritura seria marcada pela A. no mês de Abril de 2014 e que a mesma teria de notificar o R. da data da mesma com carta registada com aviso de receção com uma antecedência mínima de quinze dias da data da escritura.

7. Estipularam ainda as partes na cláusula décima do escrito referido em 3) que o contrato em causa satisfazia a vontade de ambos e que o seu não cumprimento importava o direito à execução específica nos termos do artº 830º do Código Civil.

9. A escritura referida em 6) foi marcada pela Dra. CC., advogada, para o dia 30.04.2014, no Cartório Notarial de …, não se tendo realizado nessa data.

10. O R., a sua companheira e a Dra. CC. estiveram presentes nessa data nesse Cartório Notarial, não tendo a A. comparecido.

11- A escritura referida em 6) foi marcada pela Dra. CC., para o dia 13.05.2014, pelas 16h00m, no Cartório Notarial de ……, tendo aquela enviado carta registada com aviso de receção ao R. com a respetiva indicação.

12. Na data e hora anteriormente referidas a A. esteve presente com o seu filho e a Dra. CC. no mencionado Cartório Notarial, não tendo o R. comparecido e não tendo por isso sido realizada a escritura.

14. A escritura referida em 6) foi marcada para o dia 13 de Julho de 2016, pelas 10h00m, no Cartório Notarial de GG. sito em ……., não tendo o R. comparecido e não tendo por isso sido realizada a escritura.

8.1. Com base nesta factualidade dada como provada, a 1.ª instância afirmou o seguinte:

«Na cláusula 9ª do referido escrito que corporizou o contrato promessa foi estipulado que a escritura seria marcada pela A. no mês de Abril de 2014 e que a mesma teria de notificar o R. da data da mesma com carta registada com aviso de receção com uma antecedência mínima de quinze dias da data da escritura - cfr. ponto 6) da fatualidade provada.

Sucede que pese embora a escritura tivesse sido marcada para o dia 30.04.2014 a mesma não foi realizada e a A. não compareceu, desconhecendo-se o motivo de tal - cfr. pontos 9) e 10) da fatualidade provada.

Entretanto foi marcada nova escritura para o dia 13.05.2014, tendo sido enviada carta registada com aviso de receção para o R. Todavia, o mesmo não compareceu, não tendo por isso sido realizada a escritura - cfr, pontos 11) e 12) da fatualidade provada.

Por fim, foi marcada a escritura para o dia 13.07.2016, pelas 10h00m, não tendo o R. comparecido e não tendo por isso sido realizada a escritura, não tendo a A., contudo, logrado provar ter dado conhecimento ao R. da referida data e hora mediante envio 15 dias antes de carta registada contendo tal indicação - cfr. ponto 14) da fatualidade provada e alínea c) da fatualidade não provada.

Do exposto resulta o incumprimento do estipulado em primeiro lugar pela A., cuja culpa se presume nos termos do artº 799º do Código Civil, seguida de incumprimento do R. na data de 13.05.2014, tendo sido convocado previamente por carta registada com aviso de receção, cuja culpa igualmente se presume nos termos do mesmo preceito.

Invoca o R., porém, que na altura sempre não se lograria outorgar a escritura por não estarem ainda liquidadas todas as dívidas às Finanças da herança em causa, já que a A. somente as liquidou em 11 de Julho de 2016.

Com efeito, provou-se que a A. só em 11 de Julho de 2016 pagou as dívidas de IMI dos anos de 2012 a 2104 referentes à herança da sua mãe, bem como outras despesas e taxas fiscais que ainda pagou nessa data e também em 13.07.2016 - cfr. pontos 15) a 20) da fatualidade provada.

Todavia, não se pode concluir que tal por si só obstaria à outorga da escritura dado que desde logo não se sabe se os respetivos documentos de cobrança já haviam sido emitidos e, mesmo que assim fosse, sempre poderia a A. proceder à sua liquidação na data da escritura ou mesmo conseguir liquidar o IMT e o imposto de selo mediante a prestação de uma qualquer garantia, como inclusivamente sucedeu nos presentes autos (cfr. fls. 105-106).

Deste modo, e não se tendo provado que as escrituras marcadas não foram outorgadas em face da não liquidação das competentes obrigações fiscais por parte da A., falece o argumento apresentado pelo R. a esse respeito.

Do exposto conclui-se que houve um incumprimento de parte a parte e que, por fim, na última escritura marcada para 13.07.2016 o R. não compareceu, não tendo a A. logrado provar, como lhe competia nos termos do artº 342º, nº 1 do Código Civil, ter convocado o mesmo.

Houve assim uma situação de mora imputável a ambas as partes, nos termos dos artºs 804º, nºs 1 e 2 e 805º, nº 1 e nº 2, al. a) do Código Civil, persistindo agora o R. nessa situação, dado que declarou em sede de audiência não pretender emitir a declaração negocial correspondente à celebração do contrato prometido.

Ora, na cláusula décima do contrato promessa referiram as partes que o contrato em causa satisfazia a vontade de ambos e que o seu não cumprimento importava o direito à execução específica nos termos do artº 830º do Código Civil - cfr. ponto 7) da fatualidade provada.

Dispõe o artº 830º do Código Civil que:

(...)

Assim, como decorre do texto da lei a execução específica tem, em princípio, uma natureza supletiva, porquanto as partes podem afastá-la por convenção em contrário, sendo que no caso não o fizeram, tendo ao invés declarado acordar no recurso à mesma em caso de incumprimento.

Ademais, estando nós no caso perante um contrato-promessa relativo à celebração de contrato oneroso translativo de direito real sobre uma fracção autónoma, a execução específica nunca poderia mesmo ser afastada pela vontade das partes, assumindo natureza imperativa nos termos do nº 3 do mencionado artº 830º.

Procede, por conseguinte, o pedido de execução específica do contrato promessa formulado pela A., tanto que se encontra da sua parte cumprida a obrigação de pagamento das tornas acordadas e a liquidação do imposto devido, havendo pois que suprir a falta da correlativa declaração negocial por parte do R.» [negritos nossos]

8.2. A Relação, tendo, como se viu, alterado o facto 11 (eliminando a referência a que a escritura pública marcada para o dia 13.05.2014 fora comunicada ao R. «por carta registada com aviso de recepção») e aditado o facto 25 («O Réu não recebeu nenhuma carta registada com AR, notificando-o para a realização da escritura nos dias 13.5.2014 e 13.7.2016»), reapreciou a pretensão da A. de declaração da execução específica da seguinte forma:

«Face à alteração da matéria de facto, não pode afirmar-se que o réu esteja em mora no cumprimento do contrato-promessa porquanto está provado que o réu não recebeu nenhuma carta registada com AR, notificando-o para a realização da escritura nos dias 13.5.2014 e 13.7.2016. Dito de outra forma, a Autora não logrou provar que o Réu esteja em mora, o que implicava que o mesmo tivesse sido interpelado para a realização da escritura definitiva nos dias 13.5.2014 e 113.7.2016 por carta registada com aviso de receção (nos termos da cláusula 9ª do contrato-promessa), o que não está demonstrado (pelo contrário), sendo ainda certo que não está demonstrada essa interpelação mesmo por outra forma (mesmo verbal), atenta a matéria de facto provada.

Quem incorreu em mora foi a autora, ao não comparecer na escritura marcada para o dia 30.4.2014 (factos 9 e 10), sendo certo que era à Autora que competia marcar a escritura (cláusula 9ª).

Nos termos da cláusula 9ª do contrato-promessa, «A escritura de partilha será marcada pela Primeira Outorgante no mês de abril de 2014.» Conjugando esse texto com a conduta posterior das partes (factos 9 e 10), deve interpretar-se essa estipulação no sentido de que a escritura deveria realizar-se durante o mês de abril de 2014.

A fixação de uma data como termo final de celebração da escritura prometida pode ser entendida, em princípio, com um de dois sentidos:

a) ou como prazo limite, absoluto e improrrogável, cujo decurso implica ou determina o incumprimento definitivo do contrato e a sua imediata resolução ou caducidade;

b) ou como prazo relativo ou não essencial, apenas determinante de uma situação de mora, conferindo ao credor o direito de pedir o cumprimento do contrato ou uma indemnização moratória.

No caso de dúvida é de ter como verificada a hipótese referida em b) por estar mais de harmonia com a realidade ou a vontade hipotética das partes e ser a menos onerosa para o devedor - cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 4.6.98, Salvador da Costa, acessível em www.dgsi.pt/jtrl. A qualificação do prazo como fixo ou relativo depende da interpretação da vontade das partes e das suas declarações negociais - cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1.4 2003, Fernando Samões, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.

BRANDÃO PROENÇA, Do incumprimento do contrato-promessa bilateral, 1996, p. 112, entende que, em regra o prazo essencial não é absolutamente fixo (não há por parte dos promitentes um interesse temporalmente delimitado), mas apenas relativamente fixo. No entanto, poderá concluir-se pela essencialidade absoluta (em regra, subjetiva ou pactícia) sempre que aos promitentes só interesse celebrar o contrato dentro do prazo fixado por razões jurídicas (necessidade de serem observados outros prazos), materiais (carência absoluta do bem em causa ou do preço em dívida) ou quando certas circunstâncias coenvolventes o imponham, v.g., caducidade do empréstimo bancário deferido se a escritura não for realizada dentro de certa data.

Cremos que o prazo estabelecido era relativo ou não essencial porquanto no contrato-promessa as partes não afirmaram nem direta nem tacitamente a essencialidade de tal prazo - cf. Artigo 236º do Código Civil. De facto, nem do texto do contrato-promessa nem da factualidade provada emerge qualquer circunstancialismo que sustente que o prazo constituía um termo essencial absoluto, razão pela qual se conclui que o prazo é relativamente fixo ou não essencial.

Estando-se perante um prazo relativo ou não essencial, uma vez ultrapassada a data inicialmente estabelecida, a celebração do contrato prometido fica sem prazo e - consoante decorre dos Artigos 777º nº1 e 805º, nº1 do Código Civil - dependente de interpelação por banda de qualquer das partes com indicação de dia , hora e local para esse efeito - cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6.10.2003, Oliveira Barros, e de 25.11.2003, Azevedo Ramos, acessíveis em www.dgsi.pt/jstj. Na verdade, ultrapassado o prazo acordado para a realização da escritura, o quadro que se verifica “(...) é o mesmo que também se apresenta quando as obrigações contratuais não têm originariamente qualquer prazo, inicial ou final, fixado, pois o seu vencimento depende de interpelação do respetivo credor, que, sendo também ou não devedor, terá de prestar-se à declaração negocial integradora do contrato, para que haja realmente vencimento da obrigação. /Nestes casos, se nenhuma das partes desencadear o vencimento das obrigações contratuais, estas manter-se-ão até que se esgote o prazo da prescrição ordinária. A lei não sentiu aqui a necessidade - que identificou na promessa unilateral - de prever qualquer medida preventiva da vinculação das partes por tão longo período de tempo, pois está ao alcance de qualquer delas fazer vencer a obrigação, através da interpelação.” - ANA PRATA, O Contrato-Promessa e o seu regime civil, Almedina, 1995, pp. 641/642.

Não está demonstrado que, após 30.4.2014, quer a autora quer o réu tenham interpelado, validamente, a contraparte para a celebração da escritura.

Por todo o exposto, não estando demonstrada a mora do Réu, improcede os primeiros pedidos deduzidos pela autora (declaração de incumprimento e execução específica).

Também improcede o segundo pedido de condenação numa indemnização por enriquecimento sem causa porquanto as quantias entregues pela Autora ao Réu foram-no no âmbito da celebração de um contrato-promessa, o qual se mantém em vigor. Ou seja, as transferências patrimoniais tiveram causa específica (cf. Artigo 473º, nº1, do Código Civil). Finalmente, no que tange ao pedido de condenação por danos morais, improcede também o mesmo porquanto o facto 24 é insuficiente para tal, sendo certo que não está demonstrado que tais sentimentos sejam gerados por conduta específica do réu, não estando demonstrada sequer a mora do mesmo no cumprimento do contrato.» [negritos nossos]

Quid iuris?

8.3. Acompanha-se o entendimento do acórdão recorrido, quer no que respeita à natureza não essencial do prazo contratualmente fixado, quer no que respeita ao entendimento segundo o qual – perante a procedência da impugnação da matéria de facto no sentido de ser dado como provado que o R. não foi devidamente notificado para a realização do contrato definitivo – não se encontrava o mesmo R. em situação de incumprimento do contrato-promessa à data da propositura da presente acção.

Consequentemente, sempre seria de excluir quaisquer pretensões indemnizatórias da A. as quais, porém, não apenas não foram invocadas no presente recurso, como se afigura que, tendo sido formuladas em termos subsidiários em relação ao pedido de execução específica do contrato-promessa e não tendo a A. interposto recurso subordinado de apelação, não teriam de ser - como foram - reapreciadas pela Relação.

Aqui chegados, porém, importa considerar se a alteração da matéria de facto determina, por si só, o afastamento da execução específica do contrato-promessa dos autos.

 Sustenta a Recorrente que a situação de incumprimento do R. «vai mais além do que a questão da concretização da notificação para a realização da escritura, pois o incumprimento do contrato de promessa por parte do mesmo revelou-se em sede da própria audiência de discussão e julgamento».

Com efeito, e conforme consta da fundamentação da sentença, supra transcrita, e se consignou a respeito da decisão de facto, o R. «declarou em sede de audiência não pretender emitir a declaração negocial correspondente à celebração do contrato prometido».

Admite-se que esta declaração – que, tendo sido produzida em audiência de julgamento, se apresenta como sendo consciente, séria e inequívoca – revista a natureza de uma recusa antecipada de cumprimento; a qual, de acordo com orientação doutrinal e jurisprudencial consolidada, dispensa nova interpelação da contraparte (na doutrina cfr., entre outros, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pág. 258, Nuno Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 864 e segs. e José Carlos Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 2.ª ed., Universidade Católica Editora, Porto, 2017, págs. 326 e segs.; na jurisprudência deste Supremo Tribunal cfr., por exemplo, os acórdãos de 04.02.2010, proc. n.º 4913/05.5TBNG.P1.S1, de 26.09.2013, proc. n.º 564/11.3TVLSB.L1.S1 e de 13.10.2016, proc. n.º 7185/12.1TBCSC.L1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt.).

Sendo que, quanto aos efeitos da recusa antecipada de cumprimento, se acompanha a posição de Pinto Oliveira (ob. cit., págs. 867 e seg.) e de Brandão Proença (ob. cit., pág. 414) no sentido de reconhecer que a A. adquiriu os direitos inerentes à situação de mora do devedor; em concreto o direito à execução específica do contrato-promessa, tal como contratualmente previsto (facto provado 7), direito que, nos termos do art. 830.º, n.º 3, primeira parte, conjugado com o art. 410.º, n.º 3, ambos do CC, não poderia, aliás, no caso concreto, ser afastado pelas partes.

8.4. De qualquer forma, ainda que assim não se entendesse, sempre tem de se considerar que a constituição em mora é efeito necessário da citação do R. para a presente acção, nos termos do n.º 1 do art. 805.º do CC, como se ajuizou, por exemplo, no acórdão deste Supremo Tribunal de 07.10.2020, proc. n.º 341/18.0T8ABT.E1.S1[2], disponível em www.dgsi.pt, no qual se afirma:

«(...) [A] constituição em mora sempre teria ocorrido com a citação da R. para a presente ação, satisfazendo, sem reservas, qualquer impedimento à verificação do requisito legal – incumprimento - para que possa ser declarada a execução específica do contrato, nos termos do nº 1 do art. 830º do CC

Decisão na qual se acrescenta também o seguinte:

«Repare-se que não é apenas nestes casos que a citação para a ação determina o preenchimento de uma condição de procedência dessa mesma ação. Tal ocorre ainda, por exemplo, nos casos em que a ação visa a declaração de resolução de contratos, nos termos do art. 436º, nº 1, do CC, ou quando se mostra necessário demonstrar a legitimidade do credor cessionário e a eficácia da cessão de crédito perante o devedor demandado, atento o disposto no art. 583º, nº 1 (Acs. do STJ, de 10-3-16, 703/11, e de 6-11-12, 314/2002, em www.dgsi.pt). Assim também no que respeita à exigibilidade de obrigações, atento o disposto no art. 610º, nº 2, al. b), do CPC.»

8.5. A terminar, assinale-se que, concluindo-se, como concluiu o tribunal a quo, que as partes se mantêm vinculadas a cumprir o contrato-promessa dos autos, decretar a execução específica do mesmo não apenas se afigura como sendo a solução juridicamente correcta, como permite pôr termo, de forma justa e adequada, ao diferendo entre as partes, sem necessidade de nova interpelação judicial ou extrajudicial para cumprir.

9. Fica assim prejudicado o conhecimento do invocado abuso do direito do R..

10. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a decisão do acórdão recorrido e declarando-se adjudicar à A., por partilha da herança de seus pais, a fracção designada pela letra “D”, correspondente ao … andar … do prédio sito na Rua …., em ……., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de …… sob o n.º ….. da referida freguesia de … e inscrito na matriz respectiva sob o artigo …, com origem no artigo … .


Custas pelo Recorrido.


Lisboa, 28 de Janeiro de 2021


Nos termos do art. 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade das Exmas. Senhoras Conselheiras Maria Rosa Tching e Catarina Serra que compõem este colectivo.

Maria da Graça Trigo (Relatora)

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[1] Relatado pelo Conselheiro Tomé Gomes e votado na presente Secção do STJ.

[2] Relatado pelo Conselheiro Abrantes Geraldes e votado na presente Secção do STJ.