Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2908/18.8T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANO BIOLÓGICO
DANOS FUTUROS
MENOR
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DANOS PATRIMONIAIS
ASSISTÊNCIA DE TERCEIRA PESSOA
DUPLA CONFORME PARCIAL
SEGMENTO DECISÓRIO
DECISÃO MAIS FAVORÁVEL
RECURSO DE REVISTA
Data do Acordão: 04/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA EM PARTE A REVISTA DO A E NEGADA A REVISTA DA R
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Tendo em consideração os elementos indicados no relatório sobre o sentido da decisão da 1ª instância e do TR, existe dupla conformidade decisória inequívoca em relação às condenações da Ré inseridas no dispositivo da sentença sob as alíneas b), c) e d).

II. Não veio solicitada a admissão da revista a título excepcional relativamente a nenhum dos segmentos condenatórios autonomizados, pelo que não pode este tribunal ultrapassar o obstáculo “dupla-conforme” – art.º 671.º, n.º1 do CPC – não se entrando no conhecimento do objecto dos recursos que se reportem a tais segmentos.

III. No que respeita ao recurso do A./menor ocorre a mesma dupla conformidade, quanto à indemnização pelo dano biológico, na medida em que a decisão do TRP veio a melhorar a sua situação, atribuindo-lhe um valor indemnizatório superior ao concedido em 1ª instância, ainda que não coincidente com os valores peticionados.

IV. Não ocorre o impedimento à admissibilidade da revista “dupla conforme” quanto ao recurso da ré, em todas as vertentes da condenação exceptuadas as alíneas referidas em 1.

V. A compensação dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496.º, n.º 1, do Código Civil), não pode – por definição – ser feita através da fórmula da diferença consagrada no n.º 2 do art. 566.º do CC. Deve antes ser decidida pelo tribunal, segundo um juízo de equidade (art. 496.º, n.º 4, primeira parte, do CC), tendo em conta as circunstâncias previstas na parte final do art. 494.º, do CC.

VI. A orientação do STJ é a seguinte: “A aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma ‘questão de direito’»; se é chamado a pronunciar-se sobre «o cálculo da indemnização» que «haja assentado decisivamente em juízos de equidade», não lhe «compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto ‘sub iudicio’»

VII. Não sendo a decisão recorrida um caso que se afaste dos padrões gerais da jurisprudência na fixação deste tipo de danos, impõe-se apenas dizer que a função do STJ consiste em apurar se tal decisão se encontra devidamente justificada, face às circunstâncias do caso, e aos critérios gerais usados em casos similares, tudo ponderado à luz do princípio da igualdade.

VIII. A afectação da integridade físico-psíquica (em si mesma um dano evento, que, na senda do direito italiano, tem vindo a ser denominado “dano biológico”) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e danos de natureza não patrimonial. Na primeira categoria não se compreende apenas a perda de rendimentos pela incapacidade laboral para a profissão habitual, mas também as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais, mesmo quando o lesado é menor e ainda não exerce uma profissão.

IX. São reparáveis como danos patrimoniais as consequências danosas resultantes da incapacidade geral permanente (ou dano biológico), ainda que esta incapacidade não tenha tido repercussão directa no exercício da profissão habitual.

X. A afectação da capacidade geral é aferida em função dos índices da Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil e, na medida em que a afectação em causa se traduza em danos patrimoniais futuros previsíveis, a indemnização deve ser fixada segundo juízos de equidade, dentro dos limites que o tribunal tiver como provados, conforme previsto no n.º 3 do art. 566.º do Código Civil.

XI. Tendo o A., à data do acidente com 6 anos,  ficado a padecer de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 50 pontos, com repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau 7 de uma escala de 7 de gravidade crescente, não estando impossibilitado de vir a ter uma vida profissional normal mas tendo sido provado que as sequelas de que ficou portador exigem esforços suplementares no exercício daquela actividade profissional futura (impossibilitado de exercer actividade profissional que exija andar, correr, saltar ou permanecer largos períodos em pé) a indemnização pelo dano biológico, com recurso à equidade, atenta a comparação com outras situações judicialmente decididas, não se afasta delas ao fixar o valor indemnizatório em 300.000 euros

XII. Na fixação do quantum indemnizatório por ajuda de terceiros o tribunal socorreu-se dos critérios habituais: tempo estimado da necessidade de ajuda diária e em número de anos; valor horário da ajuda, mensal e acumulado em anos; valor do salário mínimo nacional ou aproximado; tempo médio de vida do lesado, distinguido em função do sexo.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. AA, BB e CC (menor, representado pelos seus pais, atrás identificados), instauraram acção declarativa, com forma de processo comum, contra SEGURADORAS UNIDAS, SA.

Pediram a condenação da ré a pagar-lhes a quantia de € 1.730.645,00, nos termos seguintes:

- € 500.000,00, a título de indemnização pela IPP de que o autor CC ficou a padecer;

- € 1.000.000,00, a título de indemnização relativa à ajuda de terceira pessoa da qual o autor CC carece;

- € 9.400,00, referentes à perda de retribuição da autora;

- € 21.245,00, referentes ao custo que os autores têm vindo (e continuarão até aos 20 anos do CC) a suportar relativos a despesas mensais com medicamentos, talas moldadas de posicionamento, consultas e deslocações;

- € 200.000,00, a título de dano moral.

Pediram ainda a condenação da ré a ressarcir o autor CC pelos danos patrimoniais e morais futuros, a liquidar ulteriormente e relativos à necessidade de adaptações arquitectónicas da habitação/residência e de aquisição de viatura adaptada às necessidades físicas.

Como fundamento, alegaram factos tendentes a demonstrar que sofreram danos – que discriminaram e quantificaram – em consequência de acidente de viação ocorrido por culpa exclusiva do condutor do veículo de matrícula ...-...-HF, cuja responsabilidade civil estava transferida para a ré, mediante contrato de seguro.


2. A ré contestou, aceitando os factos atinentes à dinâmica do acidente e impugnando os factos alegados pelos autores no que respeita à extensão e montante dos danos.


3. Percorrida a tramitação subsequente, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:

I. Condenou a ré a pagar:

A) Ao autor CC a quantia de € 784.000,00;

B) Ao autor CC as quantias a liquidar em incidente ulterior e relativas ao custo das obras de adaptação arquitectónicas da casa de habitação, sendo-o as alterações/construção de uma casa de banho adaptada, como de aquisição de equipamento que lhe possibilite sentar-se, levantar-se e deitar-se sozinho, e infra-estruturas de acesso a andar superior/substituição de escadas, como ao custo de veículo adaptado à condução pelo autor;

C) À autora BB a quantia de € 9.400,00, referentes à perda de retribuição;

D) Aos autores AA e BB a quantia de € 27.000,00;

E) Juros de mora vencidos e vincendos sobre as quantias arbitradas, à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

II. Absolveu a ré do mais peticionado.


4. Inconformados a Ré e o A menor apelaram da sentença e os recursos foram conhecidos pelo TRP que decidiu:

“Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação do autor CC e parcialmente procedente a apelação da ré, revogando-se, em parte, a sentença recorrida e, em consequência:

A) Condena-se a ré a pagar ao autor CC a quantia de € 1.050.000,00 (um milhão e cinquenta mil euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, a calcular à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;

B) Mantém-se o que foi decidido nas alíneas b), c) e d) da parte dispositiva da sentença recorrida.”


5. Inconformadas recorreram, de modo independente, a ré e o A./menor, tendo sido admitidos por despacho do relator junto do TR.


6. Conclusões da revista do A./menor (transcrição):

1ª O douto Acórdão em crise melhorou, em termos globais, a indemnização atribuída, todavia, atenta a nossa melhor jurisprudência para casos análogos e face à tragédia dos autos, ainda se encontra aquém dos valores que consideramos justos e equitativos.

2ª À data do evento o CC tinha apenas 6 anos. Entendemos, por isso, fundamental que se proceda ao adequado enquadramento da perícia médica inserta nos autos e que, de seguida, se imagine ter pela frente o futuro de privação em que o CC, “do nada”, mergulhou. Mau de mais!!

3ª É inegável que a condição física e psicológica do CC foi brutalmente alterada com o trágico evento que o vitimou. É igualmente indiscutível que se o CC já estivesse a trabalhar e, consequentemente, a auferir salário, seria bem mais fácil chegar a um valor indemnizatório.

4ª O CC nasceu sem qualquer tipo de limitação, era uma criança feliz e cheia de sonhos e, de repente, viu-se com todas as limitações que constam do relatório médico e dos factos provados. O CC corria, saltava, brincava, jogava futebol com os amigos e tinha um futuro, dito normal, à sua frente - quer em termos pessoais, quer em termos profissionais.

5ª Desconhecemos como irá ser o desenvolvimento do CC/R.te; mas sabemos que, se não tivesse sido vítima do evento dos autos, mesmo que não pretendesse prosseguir com os estudos poderia ser mecânico (como o seu pai), trolha, pedreiro, carpinteiro, picheleiro, jogador de futebol profissional, entre outras muitas dezenas de profissões em que o desempenho físico é absolutamente determinante.

6ª Mesmo nas profissões em que a questão física não é tão determinante (advocacia, magistratura, medicina, etc., etc.), as limitações de que o CC padece, se em termos abstratos o não impedem totalmente de as exercer, se analisarmos objetivamente a probabilidade de ter sucesso, concluímos que é obviamente diminuta.

7ª Mesmo desconsiderando o relatório médico particular, junto com o articulado superveniente (que apontava para 70 pontos de IPP e não 50), se analisarmos a perícia e se refletirmos sobre as limitações de que o CC irá padecer no futuro, a indemnização de 300.000,00€ é assaz inferior a outras fixadas pelo STJ.

8ª O CC, a ter profissão à data do vento, estaria, com elevadíssima probabilidade, completamente incapaz; todavia, pelo simples facto de apenas ser estudante, pode vir a ser substancialmente prejudicado.

9ª É necessário perceber e ter na devida conta (ao sentenciar) que o CC não vai ter o apoio dos pais eternamente, que poderá vir a ter extrema dificuldade de vingar em termos profissionais e que a indemnização que lhe venha a ser fixada será absolutamente fulcral para o seu futuro.

10ª Analisando a evolução passada (últimos 72 anos) em termos de crescimento dos salários e do aumento do custo de vida e efetuando a previsão para igual período, para futuro, há que reconhecer que é assustador. O quantum indemnizatório de 300.000,00€, relativo ao défice funcional de que ficou a padecer, esfumar-se-á em menos de metade desse tempo (36 anos)!

11ª A incapacidade funcional tem, quase sempre, uma abrangência mais ampla do que a perda da capacidade de ganho e pode, muito bem, não coincidir com esta, tudo dependendo do tipo ou espécie de trabalho exercido; por isso, o valor indemnizatório a atribuir pela perda da incapacidade profissional deve autonomizar-se face às perdas funcionais profissionalmente não incapacitantes.

12ª Se dividirmos €300.000,00 pelos 72 anos de vida que poderá ter pela frente, chegamos à quantia de 4.166€/ano o que, por sua vez, dá a exígua quantia de 347,22€/mês – valor que não chega para pagar a renda de um humilde apartamento em várias das cidades deste nosso lindo país.

13ª Para se efetuar os cálculos relativos à perda da capacidade de ganho terá que se ter em consideração um salário médio previsível. O salário médio costuma fixar-se entre 1,5 e 2 salários mínimos (665€ em 2021), ou seja, entre 997,50€ e os 1.330€. Multiplicando 1.330€ x 14 = 18.620€/ano x 57 anos = 1.061.340€.

14ª Se é verdade que não nos podemos basear só em cálculos matemáticos para se determinar um montante, é absolutamente determinante ter tais cálculos em conta na determinação do quantum indemnizatório.

15ª Na situação sub judice somos, atento o supra exposto, da opinião que a indemnização peticionada - 500.000,00€ - é aquela que mais se adequa às gravíssimas limitações de que o CC ficou a padecer – cfr. a este respeito a jurisprudência acima citada, com destaque para o acórdão (Ac.) do STJ, de 19.12.2018, Proc. 1173/14.OT2AVR.P1.S1; o Ac. Do STJ de 09/07/2014, proc. 686/05.0TBPNI.L1.S1.

16ª Em matéria de indemnização a título de danos não patrimoniais, o Tribunal da Relação do Porto entendeu que deveria reduzir o montante de €350.000,00 para €200.000,00. Todos sabemos que não há dinheiro algum que repare aquilo que o CC perdeu - a infância, a adolescência, a possibilidade de procriar, a possibilidade de vir a exercer uma imensidão de profissões e atividades de lazer, etc.

17ª Não repetindo a doutrina supra exposta, numa breve pesquisa pela jurisprudência -com o que se procura dar expressão à preocupação da normalização ou padronização quantitativa da compensação devida por esta espécie dano, e, por essa via, aos princípios da igualdade e da unidade do direito e ao valor eminente da previsibilidade da decisão judicial – verifica-se que em situações análogas à dos presentes autos (mormente no que tange ao coeficiente de desvalorização e quantum doloris) têm sido fixados valores indemnizatórios que se situam entre €250.000,00 e €400.000,00.

18ª Tais considerações aliadas ao quadro fáctico em apreço, com particular relevo para o sofrimento experimentado pelo CC, quer aquando da produção da lesão, quer posteriormente, designadamente com os numerosos internamentos hospitalares e tratamentos médicos a que foi submetido e considerando outrossim que em resultado das graves e irreversíveis lesões (designadamente paraparésia e a impossibilidade de procriar) de que ficou a padecer - com apenas 6 anos de idade viu-se, de um momento para o outro e, infelizmente, até ao final dos seus dias, privado quer da possibilidade de realizar os seus sonhos, quer da qualidade mínima a que qualquer pessoa, pelo simples facto de o ser, tem pleno direito, levam-nos a considerar como razoável e equitativo, nos termos do art.º 566.º, n.º 3 do Cód. Civil, o montante de €350.000,00, mais ajustado aos valores que, em casos similares, têm sido fixados na casuística, mormente do STJ – cfr. Ac. de19.12.2018, Proc. 1173/14.OT2AVR.P1.S1, de 2.03.2011 (processo nº 1639/03.8TBBNV.L1-6ª secção) e Ac. de 29.10.2008 (processo nº 3380/05).

19ª A indemnização atribuída a título de ajuda de terceira pessoa. A este título os AA. na p.i peticionavam 1.000.00,00€. Dado o enquadramento menos gravoso, no recurso para o Venerando Tribunal da Relação do Porto concluíram peticionando a quantia nunca inferior a 550.000€.

20ª Os Venerandos Desembargadores quantificaram o dano, acabando, a final, por alcançar o quantitativo de global superior a 570.000,00 [(€ 8.400,00/ano x 70 anos) + € 10.000,00], todavia, como nas conclusões de recurso, o apelante pugnou pela fixação da indemnização, nesta parte, em € 550.000,00, foi este o valor que lhe atribuíra.

21ª Assim, como o Venerando Tribunal apenas se encontrava limitado pelo pedido global (que era efetivamente superior), podiam e deviam ter condenando no indicado valor de 590.000,00€- o que se peticiona.

22ª Pensamos que seria mais justo e equilibrado ter relegado para liquidação de sentença os montantes relativos a fraldas, ajudas medicamentosas, tratamentos de fisioterapia, consultas de urologia entre outras ajudas técnicas de que irá carecer para a vida toda como consta do relatório do Gabinete Médico-Legal (tendo só considerado até aos 21 anos).

23ª Analisando os factos provados sob as als. L), CC) e MM), o relatório Médico-Legal dúvidas não restam de que o CC irá carecer, vitaliciamente, de ajudas medicamentosas, tratamentos e demais ajudas técnicas.

24ª Assim, deveria ter se relegado para liquidação de sentença todos os tratamentos de fisioterapia, consultas (designadamente de urologia e fisiatria), ajudas medicamentosas, fraldas, cremes, sondas vesicais, próteses e ortóteses, custos com deslocações, eventuais cirurgias entre outras necessidades que se venham a revelar importantes para evitar um retrocesso ou agravamento das sequelas, obviamente por indicação do seu médico assistente (como bem refere o douto relatório Médico-Legal).

25ª Relegando para liquidação de sentença os Venerandos Conselheiros cumprirão com o disposto no art. 609º, nº 2, do CPC e, acima de tudo, acautelarão os interesses futuros do CC.

Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente condenando-se nos termos acima alegados e relegando para liquidação de sentença nas questões cima enunciadas, assim se fazendo Justiça!


7. Nas conclusões das alegações da Ré figuram as seguintes conclusões (transcrição):

1.  A recorrente pugna pela alteração do douto Acórdão da Relação no que respeita ao quantum indemnizatório global e especificadamente, na sua vertente de dano não patrimonial, patrimonial futuro e por ajuda de terceira pessoa.

2. O valor indemnizatório a atribuir ao A. a título de danos não patrimoniais não deverá ultrapassar o citado valor de 175.000,00€.

3.  Não obstante a gravidade da situação de facto, existem outras situações de gravidade e dano superior, por exemplo situações de paraplegia ou tetraplegia, com ausência de movimentação ou se marcha, em que a indemnização terá que ser, por obrigação do princípio da equidade e igualdade ser substancialmente superior à considerada nos autos.

4.  Um dos critérios delineadores da indemnização é a culpa do lesante, sendo que no caso concreto, o que se apurou com relevo nesse especto, foi que o dano do A. foi causado em sequência de um despiste do veículo em que o A. seguia, conduzido pelo seu pai, nada se tendo provado quanto à conduta negligente ou dolosa do mesmo. No entanto, atento a natureza da relação entre lesado e lesante é possível presumir que o despiste terá sido fortuito e inserido no normal risco da circulação estradal a que todos nós estamos sujeitos.

5.  Na ponderação difícil que tem de ser feita neste caso, procurando a justiça da indemnização entende-se que o valor a atribuir ao A. título de dano moral se deverá limitar aos 175.000,00€, quantia essa adequada e equitativa para a compensação dos danos não patrimoniais.

6.  A recorrente não pode, de todo, aceitar como bom o arbitramento da quantia de 300.000,00€ a este título, aliás sem qualquer fundamentação de base e de suporte, diga-se em abono da verdade.

7.  A recorrida esta de acordo com a reconversão deste dano no dano biológico, tal situação não inviabiliza que para o calculo da indemnização não devam ser tidos em conta os habituais princípios orientadores do cálculo da indemnização pelo dano patrimonial futuro, idade, retribuição, esperança média de vida, no entanto a indemnização deverá ser substancialmente reduzida em face do facto de não existir perda efectiva de rendimento e da total imprevisibilidade do evento futuro (profissão e retribuição).

8.  Tendo em conta estes princípios orientadores, dos dados concretos apurados nos autos temos que o A. á data do acidente tinha 6 anos de idade, a esperança média de vida é de 77 anos para os homens, e o A. iniciava a sua vida de estudante.

9.  Neste caso o A. terá uma esperança média de vida de mais 71 anos, completamente inserta e insegura a sua profissão futura, no entanto podemos usar como referência o salário mínimo nacional de 635,00€ mensais, sendo que o cálculo aritmético desta equação, aplicando no final os 50 pontos de incapacidade, daria um resultado de 270.000,00€!

10. Considerando esse facto, o facto de é totalmente imprevisível qual a profissão que o A. venha a desempenhar no futuro o qual a sua retribuição, bem como, que as limitações de que padece possam vir a ter influência nessa mesma profissão, e ainda, de extrema importância, a antecipação do pagamento, entende a A. qualquer valor que ultrapasse os 200.000,00€ fixados na douta Sentença de 1º Instância é excessivo, exorbitante e totalmente injustificado em face dos ditames actuais.

11. Não querendo diminuir as limitações do A., a verdade é que o A. sendo uma criança tão jovem irá adaptar-se á sua situação de facto e naturalmente procurar ajustar o seu futuro á sua realidade… é inevitável e natural que a capacidade que os humanos têm em se adaptar surja e se imponha, tornando a vida do A. mais fácil, dentro das suas dificuldades, naturalmente.

12. Não obstante, ser inegável que o A. em decorrência do acidente ficou com limitações e lesões graves, no entanto essa limitações e lesões a nível de dano biológico ou dano patrimonial futuro não têm a importância e/ou repercussão que aparentam, pelo que no entender da recorrente tal compensação deverá ter em conta todas estas circunstâncias e atenuantes e ser arbitrada em 200.000,00€ valor já fixado em sede de 1ª Instância.

13. A ora recorrente insurge-se contra o valor arbitrado pelo douto Acórdão da Relação a título de ajuda de terceira pessoa, considerando que é completamente injustificado e desproporcionado o valor de 550.000,00€ para a assistência de terceira pessoa.

14. Para o apuramento da indemnização a atribuir ao A. a este título resultou provado que o A. necessitará de ajuda de terceira pessoa para fazer parte da sua higiene pessoa, vestir-se, despir-se, deitar-se e levantar-se da cama, subir ou descer escadas, rampas e deslocar-se à casa de banho, tendo sido fixado em sede de perícia medica a necessidade de 4 horas de apoio/diário.

15. A aqui recorrente foi também condenada no pagamento do custo das obras de adaptação da casa de morada de família, nomeadamente alteração/construção de uma casa de banho adaptada, aquisição de equipamento que possibilita ao A. sentar-se, levantar-se, deitar-se sozinho e infraestruturas de acesso ao andar superior/substituição de escadas e ao custo de veículo adaptado à condução pelo A.

16. Pelo que, aquando da liquidação e concretização destas obras o A. ficará muito mais independente e terá menos necessidade do auxílio da terceira pessoa, pois que se grande parte do auxílio se centra no levantar, sentar, deitar, locomoção quando as adaptações estiverem concluídas a suas dependências diminuirão… não é mais do que uma decorrência lógica e necessária da leitura do processo.

17. Por outro lado, o A. à data do acidente tinha 6 anos de idade, ou seja, naturalmente o A. era quase totalmente dependente dos seus pais, situação que se iria manter por mais alguns anos, com o natural e progressivo incremento da independência com o aumentar da idade. Mas na realidade até aos seus 18 anos viveria na dependência moral e social dos seus pais, que por lei se encontram obrigados ao seu sustento, apoio, educação, alimentação e em todos actos do seu dia a dia.

18. O auxílio do A. pelos seus pais decorre de uma obrigação natural, o que não quer dizer, claro está, que não deva ser valorizado, não é isso que se pretende. No entanto, isso também não quer dizer não deva ser tido em conta.

19. A contabilização do dano não pode ser de molde a enriquecer financeiramente o A. CC e os AA pais.

20. Se durante os dois primeiros anos o A. tinha total dependência de terceiro, a partir dai terá uma dependência de apenas 4 horas diárias e no futuro aquando da adaptação da residência e do automóvel essa dependência, naturalmente reduzir-se-á.

21. A idade do A. CC é já por si só uma dependência, dependência essa que se irá esbatendo com o crescimento do mesmo.

22. É de presumir que no futuro o A. CC será uma pessoa praticamente independente, conforme situações até mais gravosas de pessoas que conhecemos nosso dia a dia, que confinadas a uma cadeira de rodas conseguem fazer uma vida completamente autónoma, é tudo uma questão de adaptação, crescimento e amadurecimento.

23. Assim que, a título de indemnização por ajuda de terceira pessoa o A. não deve ser compensado em quantia superior á fixada em sede de 1º Instância.

24. A recorrente não consegue compreender os cálculos que o douto Tribunal da Relação efectuada, com efeito, ainda que consideremos o valor diário de 20€ (4 horas x 5€) x 30 dias x 12 meses, chegamos a um valor de 7.200,00€ anuais. Se multiplicarmos esses 7.200,00€ por 60 anos (78 anos de esperança média de vida – 8 anos à data da alta), chegamos a um valor de 504.000,00€ e não de 570.000,00€.

25. Esse valor não poderia nunca ser posto à disposição do A. sem uma redução substancial pela antecipação do pagamento, pela imprevisibilidade da duração da vida do A. e pela natural adaptação do A. à sua situação.

26. Pelo exposto, a indemnização alcançada segundo os cálculos aritméticos do douto Tribunal da Relação deveria ser descontada em 50%, e fixada em 235.000,00€.

Nestes Termos e demais de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão deve o presente recurso ser julgado procedente por provado com a consequente alteração do douto Acórdão da Relação nos termos requeridos, fazendo-se desse modo, Verdadeira Justiça!


Não foram oferecidas contra-alegações, não obstante terem os recursos sido notificados mutuamente pelos mandatários.


Dispensados os vistos, cumpre analisar e decidir.


II. Fundamentação

De facto

Das instâncias vieram provados os seguintes factos:

A) No dia 14.07.13, cerca das 19 horas, na Estrada Nacional n.º ..., próximo da entrada da via de acesso para a ..., freguesia…, no concelho.... ocorreu um acidente de viação.

B) No sinistro foi interveniente o veículo matrícula ...-...-HF, marca ..., modelo …, conduzido pelo autor/pai e em que seguia o autor/filho - CC, na qualidade de ocupante, de seguida apenas CC.

C) No momento do sinistro, o CC seguia no banco de trás, sentado na cadeira adequada à sua idade.

D) O evento aconteceu da seguinte forma: o autor, pai do menor, conduzia o referido HF no sentido de marcha ... - ..., pela sua hemi-faixa e a cerca de 50 km/hora.

E) A dada altura o HF descontrolou-se e foi embater contra um poste, sito na berma do lado direito, atento o seu sentido de marcha.

F) Devido ao embate o HF rodou sobre si mesmo e foi imobilizar-se a meio da hemifaixa contrária àquela por onde circulava.

G) No local do acidente o CC, que sofreu lesões em razão do acidente, foi assistido pelos Bombeiros Voluntários ... e, de seguida - logo que possível - transportado para o Centro Hospitalar - ..., Epe, de seguida apenas CH....

H) No CH… foi observado e efectuou diversos exames, com base nos quais se constatou que o CC sofreu paraparésia por contusão modular em D9-D11, situação que exigiu internamento durante cerca de 02 semanas, primeiro no serviço de urgência e, de seguida, no serviço de pediatria.

I) O CC sofreu contusão medular, que se estendeu desde o nível da plataforma inferior de D10 à plataforma inferior de D11 predominantemente edematosa, incluindo diminutos vestígios hemáticos, com expansão associada. No TC charneira crâniocervical apresentava discreto aumento da distância do topo da apófise odontoide (ainda não ossificada) em relação ao basion (em cerca de 2mm).

J) Posteriormente o CC foi transferido para o Serviço de Pediatria do Centro Hospitalar ..., Epe, de seguida apenas CH..., para continuar o programa de reabilitação e de cuidados pediátricos, aqui ficando internado cerca de um mês.

L) Em Setembro de 2014, regressou a casa, a precisar de ajuda permanente de terceira pessoa (necessidade que lhe foi assegurada pela autora/mãe) e com indicação de carecer de efectuar fisioterapia diariamente.

M) O CC efectuou as sessões de fisioterapia prescritas no CH....

N) No ano seguinte voltou a ser internado - desta vez no Hospital …. – para preparação e colocação de próteses e ortóteses, a expensas da ré.

O) Aí permanecendo (internado) no Serviço de MFR durante cerca de 03 (três) meses.

P) Durante o internamento no Hospital ..., o CC efectuou diversos exames auxiliares de diagnóstico, a saber: RNM dorso lombar e ecografia renovesical.

Q) O internamento no Hospital…. evolui favoravelmente, designadamente ao nível da bexiga neurogénica, do tónus dos gémeos e solear acompanhado de clónus da tibiotársica e do padrão da marcha, situação que deu causa à atribuição de alta para o domicílio com a seguinte orientação: manter algaliações intermitentes, tal como instituído; repetir EUD, ecografia renovesical e estudo analítico, com função renal, anualmente; as infeções urinárias devem ser medicadas apenas se houver sintomatologia associada (febre, alteração de odor, piúria). As bacteriúrias sem sintomatologia não devem ser medicadas; manter tratamento fisiátrico na área da residência, em regime de ambulatório, com o objectivo de manutenção de balanço articular e potenciar a capacidade de marcha.

R) A ré custeou as despesas de saúde do CC até de Julho de 2017. S) O autor CC nasceu em 24.01.07.

T) Para a ré achava-se transferida a responsabilidade por acidentes de viação causados pelo ...-...-HF, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º …11.

U) O menor CC, com aparelho de ortótese e canadianas consegue permanecer na posição de pé e consegue deslocar-se em plano horizontal. Não consegue levantar-se do chão, nem passar da posição sentada à posição de pé. Apresenta marcha claudicante e necessidade permanente de ajudas técnicas para poder locomover-se (aparelho de ortótese, estes a substituir regularmente enquanto se mantiver o crescimento e a rectificar ulteriormente e cadeira de rodas), o que lhe determina um prejuízo estético avaliável em 5 graus, numa escala de sete de gravidade crescente.

Apresenta hipoestesias nos membros inferiores.

V) Mantém bexiga neurogénica, com necessidade de algaliação e dificuldade em controlar as fezes, com o que necessita de usar fraldas e cremes tópicos e de usar sondas vesicais.

X) Está impedido de ter relações sexuais completas ou de procriar.

Z) Necessita de ajuda de terceira pessoa para fazer parte da sua higiene pessoal, vestir-se e despir-se, deitar-se e levantar-se da cama, apanhar um objecto do chão, subir ou descer uma escada ou uma rampa. Necessita de ajuda para se deslocar à casa de banho.

AA) As lesões sofridas em consequência do acidente, apesar dos tratamentos efectuados e a efectuar, são causa directa de situação clínica de paraparésia bilateral, com movimento activo possível, que permite vencer a força da gravidade e de bexiga neurogénea, que lhe determinam um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 50 pontos.

BB) O CC não consegue saltar, saltitar; correr, jogar futebol, nadar, dançar, etc., com o que vê dificultada a participação em actividades próprias dos seus pares, o que lhe determina uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer avaliável no grau 07 de uma escala de 7 de gravidade crescente.

CC) O CC necessita e necessitará de medicação regular, a saber, antiespasmódicos, sondas vesicais, fraldas e medicação/cremes tópicos associados. Ainda de consultas regulares de fisiatria e de ciclos de fisioterapia, ao menos 60 sessões anuais até aos 18 anos e 15 sessões após. Bem assim de consultas regulares de urologia.

DD) Atentas as dificuldades de locomoção, o CC, para poder ter autonomia na realização da higiene respectiva e na circulação e acesso autónomos ao domicílio, necessitará de ter uma casa de banho adaptada, como equipamento que possibilite sentar-se, levantar-se e deitar-se sozinho, através de obras de adaptação domiciliárias.

O CC necessita de infra-estruturas domésticas adaptadas.

EE) O CC apenas poderá conduzir veículo automóvel adaptado.

FF) A consolidação médico-legal das lesões sucedeu em 08.06.15. GG) O período de défice funcional temporário total foi de 694 dias.

HH) O quantum doloris do CC é fixável no grau 5 de uma escala de 7 de gravidade crescente, sendo que a mais das dores próprias das lesões, sofreu com os muitos e diversos tratamentos e exames a que foi sujeito.

II) As sequelas são compatíveis com a actividade de estudante, mas exigem esforços suplementares, mormente nas deslocações e locomoção. Estes esforços suplementares manter-se-ão no exercício de actividade profissional futura, estando impossibilitado de exercer actividade profissional que exija andar, correr, saltar, permanecer largos períodos em pé.

JJ) A autora/mãe trabalhou, até à data do sinistro, como empregada fabril na empresa C…, Lda, com sede na rua do ..., n.º …, …, em …, concelho..., onde auferia retribuição igual ao salário mínimo nacional, acrescida do subsídio de alimentação.

LL) Para dar apoio ao CC, viu-se forçada a abandonar o seu trabalho, deixando de receber parte do salário que auferia e de beneficiar dos descontos para a Segurança Social com vista à garantia futura da reforma. Mantém a situação de inactividade profissional.

MM) Os autores têm vindo (e continuarão) a suportar despesas com o CC, ao menos até à autonomização deste: em medicamentos, fisiatria, fisioterapia, consultas de urologia, fraldas e cremes, deslocações a consultas e a fisioterapia, ortóteses, próteses e cadeira de rodas, sondas vesicais, em montantes não apurados.


E vieram não provados os seguintes factos:

1. A mais do provado de U) a II) e, em particular, em Z) o menor CC necessita da ajuda permanente de 3ª pessoa;

2. A incapacidade permanente geral de que ficou a padecer o CC é superior a 70 pontos;

3. O CC viu amputada a sua alegria de viver;

4. Está impossibilitado de, futuramente, namorar, conviver, confraternizar e acompanhar os jovens da sua idade.

5. A necessidade de ajuda/apoio para os actos mais simples do dia-a-dia, como o vestir-se, lavar-se, calçar-se, etc. manter-se-á até ao fim da vida.

6. O CC está impossibilitado no futuro de vir a ter uma vida profissional normal.

7. Mesmo que possível a prossecução de um objectivo de natureza profissional, levará muito mais tempo a atingi-lo e precisará de despender muito mais esforço para superar dificuldades e atingir objectivos.

8. Para contratar alguém para auxiliar o CC – que poderão ter de ser duas pessoas (em turnos distintos – p. ex: das 07 às 15 horas e das 15 às 23 horas), será necessária a quantia média mensal da ordem dos € 1.500,00 (pagar salário a duas pessoas, ao qual acrescem os descontos legais, seguros, etc.).

9. O uso das ortóteses dá causa ao aparecimento de feridas, para tratamento das quais são necessários cremes.

10. A mais do provado em MM), os autores têm vindo (e continuarão) a suportar as seguintes despesas mensais com o CC: em medicamentos – seis comprimidos/dia - custo mensal de € 18,81; em talas moldadas de posicionamento -média mensal de € 32,50; em consultas - média mensal de € 70,00; em deslocações - média mensal de € 100,00.

11. O CC sofre e continuará a sofrer dores fortes nas partes do corpo lesadas.

12. Devido às sequelas das lesões, o CC: poderá sofrer um agravamento da situação clínica; ter que vir a efectuar alguma ou algumas cirurgias; ser sujeito a mais internamentos, tratamentos e novas ajudas medicamentosas.

13. O CC apenas pode ser transportado em viatura adaptada.


De Direito

Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto dos recursos delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Os presentes recursos têm como objecto as seguintes questões:

- Quantum indemnizatório pelos danos patrimoniais futuros decorrentes do défice funcional permanente de que a A. ficou a padecer (ou, por outras palavras, o quantum indemnizatório devido pela vertente patrimonial do dano biológico).

- Quantum indemnizatório pelos danos não patrimoniais;

- Quantum indemnizatório pela ajuda de terceira pessoa.


Questão da admissibilidade dos recursos

Tendo em consideração os elementos indicados no relatório sobre o sentido da decisão da 1ª instância e do TR, existe dupla conformidade decisória inequívoca em relação às condenações da Ré inseridas no dispositivo da sentença sob as alíneas b), c) e d).

Não veio solicitada a admissão da revista a título excepcional relativamente a nenhum dos segmentos condenatórios autonomizados, pelo que não pode este tribunal ultrapassar o obstáculo “dupla-conforme” – art.º 671.º, n.º 1 do CPC – não se entrando no conhecimento do objecto dos recursos que se reportem a tais segmentos.

Ainda:

1. Quanto ao recurso do A./menor

Não obstante o já exposto sobre a dupla conformidade, impeditiva da revista “normal”, no que tange ao recurso do A./menor pode ainda questionar-se se a condenação da Ré quanto ao decidido sob a alínea a) não está igualmente a coberto da mesma dupla conformidade, na medida em que a decisão do TRP veio a melhorar a situação do A., atribuindo-lhe um valor indemnizatório (um milhão e cinquenta mil euros), superior ao concedido em 1ª instância (€ 784.000,00), ainda que não coincidente com os valores peticionados.

É que o valor global da indemnização atribuído pelo tribunal recorrido no montante de € 1.050.000,00 resultou da soma das seguintes parcelas, discriminadas pelo tribunal:

-  € 300.000,00 a título de indemnização pelo dano biológico (contra 200.000 na sentença) (situação do A. melhorou face à sentença);

- € 200.000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais (350.000 na sentença) – situação do A. piorou face à sentença;

-  € 550.000,00 a título de indemnização pela necessidade de apoio de terceira pessoa (contra € 234.000,00 na sentença) - (situação do A. melhorou face à sentença).

Por sua vez na sentença os valores parcelares da indemnização global haviam sido assim discriminados:

- 550.000 - danos de natureza não patrimonial (350.000) e para dano biológico (200.000);

- € 234.000,00 o valor da indemnização devida ao A./menor pela necessidade de apoio de terceira pessoa.

Isto significa que o valor da indemnização fixada pela necessidade de apoio de terceira pessoa está claramente abarcada por uma melhoria significativa dos valores arbitrados face à sentença, o que impediria o recurso deste segmento decisório, caso o mesmo viesse considerado como autónomo face à condenação global – o que, no caso dos autos, suscita algumas dúvidas. No entanto, com ou sem autonomia decisória, a dupla-conformidade é de reconhecer para a indemnização devida pela necessidade de apoio de terceira pessoa.

Dúvidas se suscitam relativamente ao valor indemnizatório arbitrado nas componentes dano não patrimonial (por sofrimento resultante do acidente) e por dano biológico (que veio qualificado como dano patrimonial apenas), já que há uma diferença de 50.000 euros para menos na decisão recorrida face à sentença.

Mas as dúvidas são dissipadas pela análise comparativa entre a sentença e o acórdão recorrido, pois neste quanto ao dano biológico houve uma melhoria do quantum indemnizatório de mais 100.000 euros; mas o mesmo não sucedeu com o dano não patrimonial fixado em 1ª instância em 350.000 euros e no acórdão recorrido em 200.000 euros.

Assim quanto ao dano biológico, dado a autonomia do segmento condenatório há dupla conforme impeditiva da revista, que assim não pode ser admitida, até por não ter sido pedida a sua admissão como revista excepcional.

Mas já o mesmo obstáculo não se coloca quanto aos danos não patrimoniais, em que a revista é admitida e deve ser conhecida.

2. Quanto ao Recurso da Ré

No que toca ao recurso da Ré, a análise comparativa entre a sentença e o acórdão, no que respeita à dupla conformidade, é a seguinte:

- a Ré viu a sua condenação descer na vertente dano não patrimonial (200.000), quando havia interposto recurso de apelação em que contestava os 350.000 da condenação na 1ª instância, pugnando pela sua redução;

- a Ré viu a sua condenação aumentar nas vertentes indemnização pelo dano biológico (300.000) e indemnização pela necessidade de apoio de terceira pessoa (550.000,00).

Isto significa que nas situações em causa, porque nunca se conformou com as condenações (nem na sentença, nem no acórdão recorrido), não ocorre a dupla conformidade impeditiva da revista normal, que assim deve ser conhecida na sua abrangência delimitada nas conclusões da revista.

Recurso do A. e da Ré

Iniciando a análise pela parte do recurso do A./menor, admitido, e que versa sobre os danos não patrimoniais, e também inserido no recurso da Ré, podemos dizer o que se segue.

Na sentença o dano não patrimonial foi assim analisado:

“Quanto aos danos não patrimoniais, correspondem a prejuízos não susceptíveis de avaliação pecuniária e o montante indemnizatório ou compensatório destes danos, que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito (art. 496º, n.º 1 do Cód. Civil), há-de ser fixado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa) ex æquo et bono, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias que, no caso, se justifiquem (arts. 496º n.º 1 e 3 e 566º n.º 3 do Cód. Civil). Podem consistir em sofrimento ou dor, física ou moral, desgostos por perda de capacidades físicas ou intelectuais, vexames, sentimentos de vergonha ou desgosto decorrentes de má imagem perante outrem, estados de angústia, etc.

Enquanto os primeiros podem ser reparados ou indemnizados, os danos não patrimoniais apenas poderão ser compensados.

A ressarcibilidade dos danos morais foi expressamente reconhecida no nosso ordenamento jurídico, conforme decorre do art. 496º do Código Civil que dispõe que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.

Do normativo legal ora transcrito resulta claramente que apenas são ressarcíveis os danos não patrimoniais que assumam determinada gravidade, merecedora da tutela do direito.

Conforme refere Antunes Varela (op. cit., pág. 606), “a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquando a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos”, referindo, ainda, que a gravidade apreciar-se-á também “em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado”.

Caso se conclua pela ressarcibilidade dos aludidos danos, a indemnização deverá ser fixada em conformidade com o disposto no n.º 3 do citado art. 496º do Código Civil. Assim, “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º”. O montante da indemnização deve, desta forma, ser fixado de forma equitativa, tendo em atenção o grau de culpabilidade, a situação económica do agente e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

No que respeita aos danos não patrimoniais, importa referir que o Tribunal tem, diferentemente da avaliação dos danos patrimoniais, não que verificar "quanto as coisas valem", mas sim que encontrar "o quantum necessário para obter aquelas satisfações que constituem a reparação indirecta" possível (Galvão Telles, Direito das Obrigações, pag. 377). O prejuízo, na sua materialidade, não desaparece, mas é economicamente compensado ou, pelo menos, contrabalançado: o dinheiro não tem a virtualidade de apagar o dano, mas pode este ser contrabalançado, "mediante uma soma capaz de proporcionar prazeres ou satisfações à vítima, que de algum modo atenuem ou, em todo o caso, compensem esse dano" - Pinto Monteiro, Sobre a Reparação dos Danos Morais, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Setembro 1992, nº 1, 1º ano, APADAC, pag. 20). Como se diz no Ac. STJ 16/04/1991 (BMJ 406-618, Cura Mariano), o art. 496º, do CC, fixou "não uma concepção materialista da vida, mas um critério que consiste que se conceda ao ofendido uma quantia em dinheiro considerada adequada a proporcionar-lhe alegrias ou satisfações que, de algum modo, contrabalancem as dores, desilusões, desgostos, ou outros sofrimentos que o ofensor tenha provocado".

Tudo isto é conseguido através dos juízos de equidade referidos no art. 496, nº 3, CC, o que, evidentemente "importará uma certa dificuldade de cálculo" (Ac. cit., pag. 621), mas que não poderá servir de desculpa para uma falta de decisão: é um risco assumido pelo sistema judicial.

No caso dos autos, temos que, como danos não patrimoniais, surgem as dores sofridas pelo Autor com as lesões e ademais a afectação da vida quotidiana e a incapacidade geral de que padeceu e ainda padece, o prejuízo de afirmação pessoal, o dano estético, tudo conforme matéria assente sob as alíneas I) a DD) e GG) a II).

Todos estes danos assumem um carácter suficientemente grave para permitir a sua tutela pelo direito, sendo que, neles se pode sublinhar, por mais relevante, a dor.

A dor, na definição da Associação Internacional para o Estudo da Dor, traduz-se numa "experiência sensorial e emocional desagradável associada a lesão tecidular ou descrita em termos de lesão tecidular" (João Lobo Antunes, Sobre a dor, in Um Modo de Ser, Gradiva, 2000, pág. 98), constituindo-se, assim, como uma "experiência subjectiva resultante da actividade cerebral como resposta a traumatismos físicos e/ou psíquicos", ou seja, como resposta, entre outras situações, a um traumatismo de qualquer parte do corpo ou da mente. Esta definição pode ser tomada como "pedra de toque para a aceitação dos seus elementos nucleares, ou seja a dor física e a dor psicológica" (J. Coelho dos Santos, A reparação civil do dano corporal: reflexão jurídica sobre a perícia médico legal e o dano dor, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Maio 1994, Ano III, nº 4, APADAC, IML-Coimbra, pag. 77), devendo -portanto - ter-se em conta, que "o dano-dor abarca a dor física e a dor em sentido psicológico, a primeira resultante dos ferimentos aquando da acção lesiva e das posteriores intervenções cirúrgicas e tratamentos - tendentes à reconstituição natural da integridade física da vítima na situação em que se encontrava antes da lesão, pois, idealmente, procura-se a cura, ou seja, impedir que a lesão corporal deixe sequelas permanentes - integrando a segunda um trauma psíquico consequente do facto gerador da responsabilidade civil, quer resulte duma pura reacção emotiva individual sem relação com qualquer ofensa física, quer seja um reflexo desta" (Coelho dos Santos, ob. cit., pag. 78; cfr., ainda, Mamede de Albuquerque-Taborda Seiça-Paula Briosa, Dor e dano osteoarticular, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Novembro 1995, Ano IV, nº 5, APADAC, IML-Coimbra, pag. 73-86).

Já se vê, assim, que não é fácil descrever esta experiência sensorial, mesmo para quem usa a palavra como instrumento para criação literária. "Virgínia Woolf lamentava a pobreza da língua quando se tratava de descrever a dor física, e Jonh Updike, (...) dizia que «a doença e a dor ...] interessam muito a quem as sofre, mas a sua descrição cansa-nos ao fim de poucos parágrafos»" (João Lobo Antunes, Sobre a dor, in Um Modo de Ser, Gradiva, 2000, pag. 97). A dor (tal como a doença), "é quase sempre uma experiência individual, intransmissível, profundamente solitária" (João Lobo Antunes, Aluno-médico-doente, in Um Modo de Ser, Gradiva, 2000, pág. 107), sendo o modo como é sofrida e a angústia que a envolve, fenómenos ideosincráticos, com um acentuado componente cultural (João Lobo Antunes, Sobre a dor, in Um Modo de Ser, Gradiva, 2000, pág. 102).

A avaliação da dor é, por seu turno, sempre algo complicada, por nela deverem intervir muitos factores, como sejam o sexo, a idade, a profissão, o meio social e cultural. Assim, deve ser levado em conta, na falta de outros dados que infirmem estas constatações, que os limiares e a tolerância individual à dor são mais baixos na mulher que no homem e que no mesmo sexo, são tanto mais baixos quanto maior for a emotividade (Pinto da Costa, O Código Penal e a Dor, Revista de Investigação Criminal).

Em termos médico-legais, por seu turno, importa sublinhar que o concreto quantum doloris do Autor em causa, no caso dos autos e na escala valorativa de sete graus (muito ligeiro, ligeiro, moderado, médio, considerável, importante, muito importante), com os dados constantes do processo, deve considerar-se como considerável (cfr., Oliveira Sá, Clínica Médico-Legal da Reparação do Dano Corporal em Direito Civil, APADAC, IML-Coimbra, 1992, pag. 135).

De enorme relevo ainda os défices temporário total e permanente parcial da integridade físico-psiquica. Como os tratamentos e internamentos padecidos. E a necessidade de apoio de terceira pessoa.

A nossa jurisprudência tem, também, caminhado no sentido de considerar merecedor de tutela o prejuízo de distracção ou de afirmação pessoal, valorando-se a diminuição ou anulação da capacidade do indivíduo para obter ou desfrutar os prazeres ou satisfações da vida como consequência directa do dano, desde que se aleguem e provem as actividades lúdicas que, praticadas antes do facto gerador do dano, ficam comprometidas por causa dele. Como refere João António Álvaro Dias (Dano…, ps. 388 - 389), «[n]ão merece contestação séria que certas lesões, pela sua gravidade, são susceptíveis de provocar a quem as sofre especialíssimas disfunções relacionais, desenquadramentos situacionais ou alterações comportamentais (na forma de estar e de ser… com os outros) que se repercutem negativamente sobre o trajecto vital (existencial?) do lesado. Quer retirando-lhe a possibilidade de se dedicar a pequenos e edílicos prazeres (…), quer privando-o de deambular fisicamente sustentado no seu corpo ou interagir, de forma profícua ou estéril, com ele, quer de se projectar ou reverberar na humana existência (ou mesmo para além dela) em jeito de auto-retrato. O dano de afirmação pessoal, a que algumas vezes anda associada a designação de dano à vida de relação, mais não é afinal que a lesão do conjunto de capacidade sociais, relacionais, que se expressam ou consubstanciam na capacidade, ou pelo menos na abstracta possibilidade, de a pessoa desenvolver, transformando em acto, um vida onde pontifiquem momentos mais ou menos intensos de satisfação estética (…), física (…), social (…) e familiar ou outros.»

Acresce o dano estético e o lapso de tempo pelo qual se prolongaram as incapacidades temporárias….

Bem assim o prejuízo de afirmação sexual e a incapacidade em procriar.

O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado, como se viu, segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e a do lesado – art. 494º ex vi art. 496º, nº3, ambos do Código Civil -, aos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, etc. Deve ter-se ainda presente que o bem supremo, e por isso o mais valioso, é o bem vida e que, por isso, a indemnização devida por danos físicos e psíquicos deverá calcular-se por referência à que seria arbitrada em caso de privação da vida.

É sabido que quanto a tal tipo de danos não há uma indemnização verdadeira e própria mas antes uma reparação ou seja a atribuição de uma soma pecuniária que se julga adequada a compensar e reparar dores e sofrimentos através do proporcionar de um certo número de alegrias ou satisfações que as minorem ou façam esquecer.

Ao contrário da indemnização cujo objectivo é preencher uma lacuna verificada no património do lesado, a reparação destina-se a aumentar um património intacto para que, com tal aumento, o lesado possa encontrar uma compensação para a dor, “para restabelecer um desequilíbrio verificado fora do património, na esfera incomensurável da felicidade humana” (Pachioni).

Por isso que o valor dessa reparação, como ensina o Prof. Antunes Varela, deva ser proporcional à gravidade do dano, devendo ter-se em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.

A indemnização reveste, assim, no caso dos danos não patrimoniais uma natureza acentuadamente mista: por um lado visa a compensação de algum modo, mais do que indemnizar as dores sofridas pela pessoa lesada; por outro lado não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico, com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente- v. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, 2ª ed., pág. 486 e nota 3 e pág. 488.

Isso mesmo se colhe da lei, nomeadamente dos artigos 495º, 496º, n.º3 e 497º, todos do Código Civil.

Tudo ponderado, atenta ademais a idade do Autor, julga-se adequada a fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em 350.000 EUR (trezentos e cinquenta mil euros)5.”

Por sua vez no acórdão recorrido disse-se:

Diz o artigo 496.º, n.º 1 que na fixação da indemnização se deve atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos e há-de apreciar-se em função da tutela do direito, devendo ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem patrimonial ao lesado17.

Nos termos do n.º 3 do citado artigo 496.º, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo, em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º.

Damos aqui como reproduzido o que acima dissemos acerca do juízo de equidade a propósito da fixação do valor da indemnização pelo dano biológico.

As circunstâncias expressamente referidas no artigo 494.º são o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado, fazendo ainda referência este preceito “às demais circunstâncias do caso”. Nas demais circunstâncias do caso incluem-se, obrigatoriamente, os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência e as flutuações do valor da moeda.

O facto de a lei ter mandado atender quer à culpa e à situação económica do lesante, quer à situação económica do lesado (pela remissão expressa do n.º 3 do artigo 496.º para o artigo 494.º), significa que, no caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza mista: por um lado, visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, visa reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente18.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem evoluído no sentido de que a compensação pelos danos de natureza não patrimonial deverá ser significativa e não miserabilista, constituindo um lenitivo para os danos suportados. Só dessa forma se dará cumprimento efectivo ao comando do artigo 496.º19.

Os danos de natureza não patrimonial sofridos pelo apelante decorrem da factualidade que está descrita nos pontos G) a Q), U) a CC) e GG) a II), que, no essencial, é a seguinte:

- Em consequência do acidente, sofreu contusão medular, que se estendeu desde o nível da plataforma inferior de D10 à plataforma inferior de D11 predominantemente edematosa, incluindo diminutos vestígios hemáticos, com expansão associada. No TC charneira crâniocervical apresentava discreto aumento da distância do topo da apófise odontoide (ainda não ossificada) em relação ao basion (em cerca de 2mm);

- Esteve internado durante cerca de duas semanas no Centro Hospitalar - ..., Epe (CH...) de posteriormente, mais um mês no Centro Hospitalar ..., Epe (CH...);

- Regressou a casa a precisar de ajuda permanente de terceira pessoa e com indicação de carecer de efectuar fisioterapia diariamente, tendo efectuado as sessões de fisioterapia prescritas no CH...;

- No ano seguinte, voltou a ser internado, desta vez no Hospital ..., durante cerca de três meses, para preparação e colocação de próteses e ortóteses;

- Durante o internamento naquele Hospital ..., o apelante efectuou RNM dorso lombar e ecografia renovesical;

- Teve alta, com a com a seguinte orientação: manter algaliações intermitentes; repetir EUD, ecografia renovesical e estudo analítico, com função renal, anualmente; medicar as infecções urinárias apenas se houver sintomatologia associada (febre, alteração de odor, piúria); manter tratamento fisiátrico na área da residência, em regime de ambulatório, com o objectivo de manutenção de balanço articular e potenciar a capacidade de marcha;

- Com aparelho de ortótese e canadianas, consegue permanecer na posição de pé e consegue deslocar-se em plano horizontal, mas não consegue levantar-se do chão, nem passar da posição sentada à posição de pé;

- Apresenta marcha claudicante e necessidade permanente de ajudas técnicas para poder locomover-se (aparelho de ortótese, estes a substituir regularmente enquanto se mantiver o crescimento e a rectificar ulteriormente e cadeira de rodas), o que lhe determina um prejuízo estético avaliável em 5 graus, numa escala de sete de gravidade crescente;

- Apresenta hipoestesias nos membros inferiores;

- Mantém bexiga neurogénica, com necessidade de algaliação e dificuldade em controlar as fezes, com o que necessita de usar fraldas e cremes tópicos e de usar sondas vesicais;

- Está impedido de ter relações sexuais completas ou de procriar;

- Necessita de ajuda de terceira pessoa para fazer parte da sua higiene pessoal, vestir-se e despir-se, deitar-se e levantar-se da cama, apanhar um objecto do chão, subir ou descer uma escada ou uma rampa. Necessita de ajuda para se deslocar à casa de banho;

- As lesões sofridas, apesar dos tratamentos efectuados e a efectuar, são causa directa de situação clínica de paraparésia bilateral, com movimento activo possível, que permite vencer a força da gravidade e de bexiga neurogénea, que lhe determinam um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 50 pontos;

- Não consegue saltar, saltitar; correr, jogar futebol, nadar, dançar, etc., com o que vê dificultada a participação em actividades próprias dos seus pares, o que lhe determina uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer avaliável no grau 07 de uma escala de 7 de gravidade crescente;

- Necessita e necessitará de medicação regular, a saber, antiespasmódicos, sondas vesicais, fraldas e medicação/cremes tópicos associados; ainda de consultas regulares de fisiatria e de ciclos de fisioterapia, ao menos 60 sessões anuais até aos 18 anos e 15 sessões após; bem assim de consultas regulares de urologia;

- Sofreu um défice funcional temporário toral de 694 dias;

- Apresenta um quantum doloris no grau 5 de uma escala de 7 de gravidade crescente, sendo que a mais das dores próprias das lesões, sofreu com os muitos e diversos tratamentos e exames a que foi sujeito;

- As sequelas são compatíveis com a actividade de estudante, mas exigem esforços suplementares, mormente nas deslocações e locomoção; Estes esforços suplementares manter-se-ão no exercício de actividade profissional futura, estando impossibilitado de exercer actividade profissional que exija andar, correr, saltar, permanecer largos períodos em pé.

Há que atender ainda a que o apelante tinha seis anos de idade à data do acidente.

Note-se que o défice funcional de que o apelante ficou portador já foi indemnizado autonomamente como dano de natureza patrimonial; mas englobámos o mesmo no elenco dos factos relevantes para a fixação da indemnização por danos de natureza não patrimonial, não para o considerar em si mesmo, mas na perspectiva do sofrimento que causa ao apelante ver-se portador de tal défice. Não há, por isso, duplicação de indemnizações, nesta parte.

Assim, ponderando todas as circunstâncias descritas na factualidade provada acima referida, em sede de equidade e tomando como referência o Acórdão do STJ acima citado (que fixou em € 250.000,00 o valor da indemnização por danos de natureza não patrimonial sofridos por uma criança de sete anos de idade, em situação mais gravosa que a do apelante), afigura-se-nos que o valor de € 200.000,00, pedido pelo apelante na petição inicial, se mostra adequado para compensação dos danos de natureza não patrimonial por ele sofridos.”

Vejamos agora como tem este STJ entendido que deve ser analisada a questão relativa aos  critérios gerais relativos à fixação da indemnização por danos não patrimoniais, nomeadamente através do decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.01.2016, proc. n º 7793/09.8T2SNT.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.

Disse-se aí:

A compensação dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496.º, n.º 1, do Código Civil), não pode – por definição – ser feita através da fórmula da diferença consagrada no n.º 2 do art. 566.º do CC. Deve antes ser decidida pelo tribunal, segundo um juízo de equidade (art. 496.º, n.º 4, primeira parte, do CC), tendo em conta as circunstâncias previstas na parte final do art. 494.º, do CC;

Como tem sido considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr., por exemplo, o acórdão de 06.04.2015, proc. n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para o acórdão de 28.10.2010, proc. n.º 272/06.7TBMTR.P1.S1, e para o acórdão de 05.11.2009, proc. n.º 381/2002.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt), «a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma ‘questão de direito’»; se é chamado a pronunciar-se sobre «o cálculo da indemnização» que «haja assentado decisivamente em juízos de equidade», não lhe «compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto ‘sub iudicio’»;

A sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto. Nos termos do acórdão deste Supremo Tribunal de 31.01.2012, proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, «os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição». Exigência plasmada também no art. 8.º, n.º 3, do CC: “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.”

Tendo presentes estes critérios gerais, vejamos, na parte relevante, a fundamentação que serviu de base ao acórdão recorrido:

1 - O valor pedido pelo A. na PI quanto ao dano moral – 200.000 euros;

2 - Os danos de natureza não patrimonial sofridos pelo A/recorrente, em especial os decorrem da factualidade que está descrita nos pontos G) a Q), U) a CC) e GG) a II).

3 - A necessidade de recorrer à equidade para apurar um valor compensatório;

4 - A comparação possível com outros situações resolvidas jurisprudencialmente, para efeitos de igualdade.

Nem o A. nem a Ré se conformam com esta decisão.

O A. sente que devia receber mais; a Ré que devia pagar menos.

Na perspectiva do A. o tribunal não atendeu à especial gravidade da situação do A.

Na perspectiva da Ré o tribunal não atendeu à comparação com outra situações concretas submetidas à análise dos tribunais em que existia uma gravidade  e dano superior, o que se exigia por força da equidade e igualdade, nem considerou  a culpa do lesante, in casu, através da ponderação da especial relação entre lesante e lesado, por o acidente de incluir nos riscos próprios e normais da  circulação estradal (conclusões 3, 4 e 5). Por isso, na sua opinião a condenação nunca poderia ultrapassar os 175.000,00€.

Conhecendo.

Na perspectiva deste tribunal, em face do caminho seguido pelo tribunal recorrido e na fundamentação apresentada não se afigura que exista um erro de julgamento fundado numa errada interpretação e aplicação de norma jurídica. Tratando-se de aplicar o regime dos artºs 496.º, n.º 3 e 494.º do CC, em que as circunstâncias expressamente referidas no artigo 494.º são o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e “as demais circunstâncias do caso”, nas quais se incluem os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência e as flutuações do valor da moeda, e não esquecendo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (que tem evoluído no sentido de que a compensação pelos danos de natureza não patrimonial deverá ser significativa e não miserabilista, constituindo um lenitivo para os danos suportados), pode verificar-se que o tribunal ponderou todos estes elementos:

- considerou que os danos de natureza não patrimonial sofridos pelo A. decorrem da factualidade descrita nos pontos G) a Q), U) a CC) e GG) a II);

- considerou a idade do A. e o seu sofrimento face ao défice funcional que o passou a atingir;

- comparou a situação do A. com, pelo menos, uma situação com contornos semelhantes na idade em que a indemnização fixada fora de 250.000, embora reportada a um caso de gravidade maior;

- explicitou a ratio legis da referência à culpa do lesado, na fixação da indemnização;

- julgou segundo a equidade.

Por tudo isto, acompanhamos os critérios subjacentes ao juízo equitativo do acórdão recorrido, não devendo este STJ substituir-se ao tribunal recorrido na fixação do valor equitativo.

Não sendo a decisão recorrida um caso que se afaste dos padrões gerais da jurisprudência na fixação deste tipo de danos, impõe-se apenas dizer que a função do STJ consiste em  apurar se tal decisão se encontra devidamente justificada, face às circunstâncias do caso, e aos critérios gerais usados em casos similares, tudo ponderado à luz do princípio da igualdade, o que se nos afigura ter acontecido na situação dos autos. Com efeito, tanto ao nível do enquadramento normativo como ao nível da apreciação dos factos relevantes e da análise comparativa de outras decisões do Supremo Tribunal de Justiça, a situação dos autos foi devida e correctamente ponderada, pelo que deve ser confirmada.

Improcedem, no que respeita aos danos não patrimoniais, as revistas do A. e da Ré.

Revista da Ré – dano biológico

A ré entende que o tribunal não fixou o quantum indemnizatório do dano biológico socorrendo-se dos critérios habituais, a saber: idade, retribuição, esperança média de vida.  – “à data do acidente o A. tinha 6 anos de idade, a esperança média de vida é de 77 anos para os homens, e o A. iniciava a sua vida de estudante”; devia considerar-se “a sua esperança média de vida de mais 71 anos” e quanto à sua profissão “completamente inserta e insegura (..)” usar-se o “salário mínimo nacional de 635,00€ mensais”, factores a ponderar em face da incapacidade funcional (50 pontos), nunca ultrapassando o valor de 270.000 euros, em vez dos 300.000 fixados (conclusões 7,8 e 9), mas idealmente fixando-se nos 200.000 euros. Na verdade, na sua concepção a indemnização deve ser reduzida por não existir perda efectiva de rendimento (A. era estudante) e ocorrer uma total imprevisibilidade de evento futuro (profissão e retribuição do A.) (conclusão 10), sendo o A. um jovem que se vai habituar e adaptar a viver com a limitação resultante do acidente (conclusão 11 e 12).

Como enquadramento da análise da questão suscitada pela Ré, optamos por seguir o entendimento da jurisprudência dominante do STJ, que pode ser vista no acórdão de 29 de Outubro de 2020, proc. 111/17.3T8MAC.G1.S1 (www.dgsi.pt), onde se lê:

“A respeito da reparabilidade da vertente patrimonial do denominado dano biológico considere-se o enquadramento geral apresentado no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 14/12/2016 (proc. n.º 37/13.0TBMTR.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt[1]):

À questão da «admissibilidade, em abstracto, de consequências danosas patrimoniais do dano biológico quando não se verifique incapacidade parcial permanente para o exercício da profissão habitual - tem a jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal respondido afirmativamente […].

Nas palavras do acórdão de 28/01/2016 (proc. nº 7793/09.8T2SNT.L1.S1), in www.dgsi.pt, retomadas no acórdão de 07/04/2016 (proc. nº 237/13.2TCGMR.G1.S1), in www.dgsi.pt, “A afectação da integridade físico-psíquica (em si mesma um dano evento, que, na senda do direito italiano, tem vindo a ser denominado “dano biológico”) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e danos de natureza não patrimonial. Na primeira categoria não se compreende apenas a perda de rendimentos pela incapacidade laboral para a profissão habitual, mas também as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais (neste sentido, decidiram os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Junho de 2015 (proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1), de 19 de Fevereiro de 2015 (proc. nº 99/12.7TCGMR.G1.S1), de 7 de Maio de 2014 (proc. nº 436/11.1TBRGR.L1.S1), de 10 de Outubro de 2012 (proc. nº 632/2001.G1.S1), e de 20 de Outubro de 2011 (proc. nº 428/07.5TBFAF.G1.S1), todos em www.dgsi.pt.)”.

Afirma-se, mais à frente, no acórdão de 28/01/2016, que vimos citando:

“Para além dos danos patrimoniais consistentes em perda de rendimentos laborais da profissão habitual, segue-se a orientação deste Supremo Tribunal, supra referida, de procurar ressarcir as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade laboral para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais. Trata-se das consequências patrimoniais do denominado “dano biológico”, expressão que tem sido utilizada na lei, na doutrina e na jurisprudência nacionais com sentidos nem sempre coincidentes. Na verdade, a lesão físico-psíquica é o dano-evento, que pode gerar danos-consequência, os quais se distinguem na tradicional dicotomia de danos patrimoniais e danos não patrimoniais (cfr. tratamento mais desenvolvido pela relatora do presente acórdão, Responsabilidade Civil – Temas Especiais, 2015, págs. 69 e segs.). Com esta precisão, a indemnização pela perda da capacidade de ganho, tem a seguinte justificação, nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de 10 de Outubro de 2012, cit.: “a compensação do dano biológico [dentro das consequências patrimoniais da lesão físico-psíquica] tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas.”

Entende-se que o aumento da penosidade e esforço para realizar as tarefas diárias pode ser atendido no âmbito dos danos patrimoniais (e não apenas dos danos não patrimoniais), na medida em que se prove ter como consequência provável a redução da capacidade de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas.

“A perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe ao lesado, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha e evolução na profissão, eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável - e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, - erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais” (acórdão do Supremo Tribunal de 10 de Outubro de 2012, cit.).”

Nestes termos, consideram-se reparáveis como danos patrimoniais as consequências danosas resultantes da incapacidade geral permanente (ou dano biológico), ainda que esta incapacidade não tenha tido repercussão directa no exercício da profissão habitual. Considera-se ainda que o aumento da penosidade e esforço pode ser atendido nesse mesmo âmbito (danos patrimoniais) - e não apenas no âmbito dos danos não patrimoniais -, desde que seja provado que tal aumento de penosidade e esforço tem como consequência provável a redução da capacidade genérica de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas

Afirma-se ainda no mesmo acórdão de 14/12/2016 que vimos citando, a respeito da intervenção deste Supremo Tribunal em tais matérias:

«Estamos […] no domínio dos danos patrimoniais indetermináveis, cuja reparação deve ser fixada segundo juízos de equidade (cfr. art. 566º, nº 3, do Código Civil). Ora, como tem sido considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr., por exemplo, o acórdão de 6 de Abril de 2015, proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para o acórdão de 28 de Outubro de 2010, proc. nº 272/06.7TBMTR.P1.S1, e para o acórdão de 5 de Novembro de 2009, proc. nº 381/2002.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt), “a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito»”; se é chamado a pronunciar-se sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, não compete ao Supremo Tribunal de Justiça “a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio»”. Para além disso, a sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade (ao abrigo do regime do art. 13º da Constituição e do art. 8º, nº 3, do Código Civil), o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto.» [negritos nossos]

E mais adiante esclarecendo o tipo de dano que está em causa e os critérios a utilizar na fixação do quantum indemnizatório:

“Em suma, trata-se de reconhecer que a afectação da integridade psico-física de uma pessoa, ao atingir a sua capacidade geral de trabalho, tem necessariamente um custo económico, mesmo que a capacidade do lesado para o exercício da sua profissão habitual (com ou sem reconversão de funções) não tenha sido afectada. Ou mesmo que, em razão da sua idade ou de outras circunstâncias, não exerça ainda qualquer profissão ou tenha cessado de exercer a sua profissão habitual ou (como sucede no caso dos autos) esteja prestes a cessar tal exercício.

Estando em causa duas dimensões distintas, são também distintos os critérios para avaliar cada uma das incapacidades, assim como os critérios para fixar a correspondente indemnização, a saber:

(i) A afectação da capacidade para o exercício de profissão habitual é aferida em função dos índices previstos na Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais e, na medida em que tal afectação se traduza na perda, total ou parcial, da remuneração percebida no exercício dessa mesma profissão, é susceptível de ser calculada de acordo com a fórmula da diferença prevista no n.º 2 do art. 566.º do Código Civil;

(ii) Enquanto a afectação da capacidade geral é aferida em função dos índices da Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil e, na medida em que a afectação em causa se traduza em danos patrimoniais futuros previsíveis, a indemnização deve ser fixada segundo juízos de equidade, dentro dos limites que o tribunal tiver como provados, conforme previsto no n.º 3 do art. 566.º do Código Civil.

Recorde-se que os índices de Incapacidade Geral Permanente não se confundem com os índices de Incapacidade Profissional Permanente, correspondendo a duas tabelas distintas, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro.

A importância da instituição de uma tabela de incapacidade geral, autónoma em relação à tradicional tabela de incapacidade profissional, poder ser assim explicitada:Durante décadas as tabelas de incapacidades por acidentes de trabalho e doenças profissionais serviram de recurso para a determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais futuros noutras situações de responsabilidade civil. Como afirma o preâmbulo do Decreto-Lei nº 352/2007 – numa orientação que aplaudimos - há contudo que distinguir os dois âmbitos: «No direito laboral (...) está em causa a avaliação da incapacidade de trabalho resultante de acidente de trabalho ou doença profissional que determina perda da capacidade de ganho, enquanto que no âmbito do direito civil, e face ao princípio da reparação integral do dano nele vigente, se deve valorizar percentualmente a incapacidade permanente em geral, isto é, a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia, assinalando depois e suplementarmente o seu reflexo em termos da actividade profissional específica» do lesado. Na prática as consequências da incapacidade laboral constituíram ao longo de décadas o único factor relevante para avaliar os danos patrimoniais futuros nas situações de responsabilidade delitual; e como, simultaneamente, os danos não patrimoniais eram sistematicamente compensados em montantes muito reduzidos, a aplicação da tabela de incapacidade laboral (com intervenção do perito médico-legal) acabava por constituir o factor determinante na fixação do montante indemnizatório com as consequências discriminatórias que isso acarretava por aferir os danos em função da perda de remuneração laboral das diferentes vítimas.” (Maria da Graça Trigo, «Adopção do conceito de dano biológico pelo direito português», in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 72, Vol. I, págs. 148 e seg.)

Entende-se não ser demais sublinhar a relevância teórica e prática do reconhecimento legal da incapacidade geral permanente, bem como da orientação consolidada da jurisprudência deste Supremo Tribunal de lhe atribuir, à luz do princípio geral do ressarcimento de danos, efeitos indemnizatórios.

Assim como não é demais reafirmar ser através da reparabilidade das consequências patrimoniais da afectação da capacidade geral que se contribui para um tratamento mais igualitário das vítimas, na medida em que tais consequências não serão indemnizadas com base na remuneração laboral, mais ou menos elevada, percebida à data da lesão.”

Tendo presentes os parâmetros enunciados passemos a apreciar o caso concreto dos autos.

Na sentença foi dito:

“Concretamente, a incapacidade permanente integra aquilo  que comummente se designa por dano ou incapacidade funcional. Efectivamente, essa incapacidade, que se reflecte na impossibilidade de uma vida de completa normalidade, com repercussões no intelecto, na vontade e em toda a capacidade em sentido lato, pode configurar-se como uma incapacidade permanente sofrida pelo lesado.

Realce-se, além disso, que a incapacidade funcional, mesmo que não determine efectiva e imediata perda ou diminuição de rendimentos ou de proventos por parte do lesado, importa necessariamente dano patrimonial (futuro), que deve ser indemnizado.

O relevo indemnizatório dessa “perda” (como dano patrimonial) tem sido tipicamente absorvido, nos casos como o dos autos, na autonomização (nomeadamente de responsabilidade jurisprudencial) do chamado “dano biológico” ou “corporal”, enquanto lesão da saúde e da integridade psico-somática da pessoa, imputável ao facto gerador de responsabilidade civil delitual e traduzida em incapacidade funcional limitativa e restritiva das suas qualidades físicas e intelectuais de vida. (…)

Neste contexto de dualidade ressarcitória, o dano biológico sofrido pelo Autor tem de ser apreciado na sua vertente patrimonial, ainda que não enquanto “perda de capacidade de ganho”, posto que cabe no âmbito de causalidade e de previsibilidade tipicamente associados ao acidente que o autor sofreu e às suas circunstâncias de evolução normal de vida.

Quanto, pois, à indemnização pelo dano biológico, com incidência patrimonial, quer-se significar que, tal como se referiu no ac. do STJ de 26.1.2017 (proc. 1862/13.7TBGDM.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), “havendo uma incapacidade permanente, mesmo que sem rebate profissional, sempre dela resultará uma afetação da dimensão anátomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo e causadora de uma diminuição da efetiva utilidade do seu corpo ao nível de atividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que de futuro terá de levar a cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo. E é neste agravamento de penosidade que se radica o arbitramento de uma indemnização.”.

Assim, o défice funcional, ou dano biológico, representado pela incapacidade permanente resultante das lesões sofridas em acidente de viação, é susceptível de desencadear danos no lesado de natureza patrimonial e/ou de natureza não patrimonial. Serão do primeiro tipo, quando a incapacidade, total ou parcial, se repercuta negativamente no exercício da actividade profissional habitual do lesado, e, consequentemente, nos rendimentos que dela poderia auferir; serão ainda desse primeiro tipo quando, embora sem repercussão directa e imediata na actividade profissional e na obtenção do ganho dela resultante, implique um maior esforço no exercício dessa mesma actividade ou limite significativamente as possibilidades de o lesado optar por outras vias profissionais ao longo da sua vida activa.

É precisamente nesta última vertente que se manifesta o dano-consequência tratado nos autos, uma vez que o défice funcional de que o Autor ficou a padecer é compatível com o exercício de actividade profissional (de alguma actividade profissional futura, que não exija locomoção rápida e eficiente), embora dela demande esforços suplementares.

De facto, quando estão em causa danos corporais que, embora traduzidos num determinado índice de défice funcional, não se projectam, directa e imediatamente, na capacidade de ganho, o prejuízo estritamente funcional que resulta para o lesado não perde a natureza de dano patrimonial, na medida em que se traduz num dano de esforço, obrigando-o a um maior empenho para conseguir levar a cabo as mesmas tarefas e obter o mesmo rendimento. Isto sem embargo de poder ocorrer uma valoração autónoma e independente dos danos não patrimoniais que eventualmente emirjam das lesões que determinaram esse défice genérico permanente.

A compensação do dano biológico tem como base e fundamento a relevante e substancial restrição às possibilidades exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar: na verdade, a perda relevante de capacidades funcionais mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado constitui uma verdadeira “capitis deminutio” num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência,        condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades exercício profissional e de escolha e evolução na profissão, eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável - e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, - erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais.

Manifesto ser assim no caso de uma incapacidade com a gravidade daquela de que o Autor ficou a padecer, de 50 pontos.

Não qualquer dúvida de que o défice funcional permanente de 50 pontos atribuído ao Autor, por força das lesões sofridas, e a subsequente sobrecarga de esforço que provoca no desempenho regular de futura actividade profissional (sempre evidentemente impossibilitado o exercício de uma gama de actividades profissionais que demandem competências físicas inexistentes), implicam consequências na sua vida, configurando-se com danos futuros artigo 564º, n.º 2.

Dada a impossibilidade óbvia de restauração natural, a indemnização, nestes casos, é fixada em dinheiro. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente artigo 566º, nºs 1 e 3.

Cremos, no entanto, que, na presente situação, pode traçar-se uma linha vermelha, inultrapassável: a indemnização pelo dano patrimonial futuro (sem rebate profissional total), não deve ultrapassar o valor da indemnização que seria devida se tal dano viesse a projectar-se, directa e imediatamente, na capacidade de ganho do lesado (com rebate profissional). Julgamos, pois, inteiramente pertinentes as considerações do Acórdão do STJ de 22.05.2019, acessível na base de dados da dgsi, quanto à necessidade de não considerar directa e imediatamente os resultados das tabelas de cálculo disponíveis, que outrossim se constituem como tecto máximo, hoc sensu…

De acordo agora com a síntese feita pelo recente Ac. do STJ de 19.6.2019, na mesma base de dados, com recurso ao elenco pertinente de arestos relevantes, a atribuição de indemnização por perda de capacidade de ganho/dano biológico patrimonial, segundo um juízo equitativo, tem-se baseado em função dos seguintes factores principais: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, ou previsível profissão habitual, como em profissão ou actividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações; a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, ou da previsível actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas, tendo em consideração as competências do lesado.

Na mesma decisão do STJ, reitera-se o que há muito se refere na jurisprudência: a indemnização para reparação da perda da capacidade futura de ganho deve apresentar como conteúdo pecuniário “um capital produtor do rendimento que o lesado deixará de perceber em razão da perda da capacidade aquisitiva futura e que se extingue no termo do período de vida, atendendo-se, para o efeito, à esperança média de vida do lesado”, sem deixar de “considerar a natural evolução dos salários”. Neste âmbito, será de entender como relevante o valor líquido da remuneração auferida pelo lesado, uma vez que tal corresponde em rigor à aplicação da teoria da diferença consagrada no art. 566º, 2, do CCiv. e “não deve prescindir do que é normal acontecer (id quod plerumque accidit) no que se refere à expectativa média de vida (…) e ao período de vida ativa (em regra, até aos 75 anos), bem como à natural progressão na carreira e ao previsível impacto na massa salarial a receber”.

Por fim, é ainda de registar que, “ponderando-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros”, importa “introduzir um desconto no valor achado, condizente ao rendimento de uma aplicação financeira sem risco, e que, necessariamente, deverá ser tida em consideração pelo tribunal que julgará equitativamente”. No entanto, como se advertiu no Ac. do STJ de 19.4.2018, “o recebimento de uma só vez do montante indemnizatório não releva atualmente como em tempos não muito recuados já relevou, tendo em conta que a taxa de juro remuneratório dos depósitos pago pelas entidades bancárias é muito reduzido (…), o que implica, por si só, a elevação do capital necessário para garantir o mesmo nível de rendimento”.

Desde logo, quanto ao recurso ao apelidado método comparativo com outras decisões semelhantes de tribunais superiores para a fixação do valor da indemnização pelo dano biológico com recurso à equidade, cumpre-nos pois referir aqui algumas decisões que podem ter para o caso concreto, relevo: Os ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA de 26-01-2017, PROCESSO N.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1; de 19-04-2018, PROCESSO N.º 196/11.6TCGMR.G2.S1; de 19-09-2019, Processo n.º 2706/17.6T8BRG.G1.S1 e de 30-05-2019, todos na base de dados da dgsi4.

(…)

Realce-se, além disso, que a incapacidade funcional, mesmo que não determine efectiva e imediata perda ou diminuição de rendimentos ou de proventos por parte do lesado, importa necessariamente dano patrimonial (futuro), que deve ser indemnizado.

Estando até hoje assente que, pelo facto de o lesado não exercer, à data do facto lesivo, qualquer profissão remunerada, a incapacidade funcional de que o mesmo ficou a padecer em consequência dessa lesão não afasta a existência de dano patrimonial, compreendendo-se neste as utilidades futuras e as simples expectativas de aquisição de bens.

Na realidade, a força de trabalho de uma pessoa é um bem, sem dúvida, capaz de propiciar rendimentos. Logo, a incapacidade funcional, importa sempre diminuição dessa capacidade, obrigando o lesado a um maior esforço e sacrifício para manter o mesmo estado antes da lesão e, inclusivamente, provoca inferiorização, no confronto do mercado de trabalho, com outros indivíduos por tal não afectados.

A repercussão negativa que a incapacidade funcional tem para o lesado centra-se, assim, na diminuição da sua condição física, resistência e capacidade de esforços, o que se traduzirá numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo no desenvolvimento das actividades pessoais em geral e numa consequente e igualmente previsível maior penosidade na execução das diversas tarefas que normalmente se lhe depararão no futuro.

A incapacidade funcional constitui, desde modo, dano patrimonial futuro, que os art.ºs 562.º e 564.º do C.Civil impõem que se indemnize, independentemente da prova de um prejuízo pecuniário concreto dela resultante, não tendo o lesado, pois, sequer de alegar ou provar qualquer perda de rendimentos.

Por conseguinte, a incapacidade funcional, ainda que não impeça o lesado de continuar a trabalhar e ainda que dela não resulte perda de vencimento, reveste a natureza de “um dano patrimonial, já que a força do trabalho do homem, porque lhe propicia fonte de rendimentos, é um bem patrimonial, sendo certo que essa incapacidade obriga o lesado a um maior esforço para manter o nível de rendimentos auferidos antes da lesão”.

A incapacidade permanente de que o lesado fique a padecer em consequência de um facto danoso é, além do mais, como se disse, susceptível de afectar e diminuir a potencialidade de ganho, por via da perda ou diminuição da remuneração ou da implicação para o ofendido de um esforço acrescido para manter os mesmos níveis de ganho.

Mas essa mesma incapacidade permanente pode, igualmente, afectar o lesado, quando implica para ele um esforço ou sacrifício suplementar para exercer as várias tarefas e actividades gerais quotidianas.

A incapacidade funcional, afectando o corpo humano ou um seu órgão (Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica – no actual sentido médico-legal deste termo), representa uma alteração da pessoa, que afecta a sua integridade física, impedindo-a de exercer determinada actividade corporal ou sujeitando-a a exercitá-la de modo deficiente, doloroso ou mais penoso/exigente.

Realmente, a incapacidade funcional de que o lesado tenha ficado a padecer pode traduzir-se numa incapacidade para a generalidade das profissões, numa incapacidade genérica para utilizar o corpo enquanto prestador de trabalho e produtor de rendimento ou numa possibilidade de o utilizar em termos correspondentemente deficientes ou penosos.

Por isso, a incapacidade funcional, na medida em que a precede e consome, tem, em princípio, uma maior abrangência do que a perda da capacidade de ganho, podendo não coincidir com esta, tudo dependendo do tipo ou espécie de trabalho efectivamente exercido profissionalmente. Com efeito, a afectação da integridade física do lesado traduz-se num dano patrimonial, por ser previsível que, no futuro, a incapacidade funcional de que ficou a padecer tenha repercussão negativa na sua capacidade de ganho.

(…)

Ou seja, dúvidas não temos que a incapacidade parcial permanente (IPP) ou, como é denominado no relatório do INML junto aos autos – o Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquico- constitui fonte de um dano futuro de natureza patrimonial, traduzido na potencial e muito previsível frustração de ganhos, na mesma proporção do “handicap” físico e/ou psíquico, independentemente da prova de prejuízos imediatos nos rendimentos do trabalho do lesado. Sendo assim, de valorar e indemnizar tal dano (patrimonial), no caso das lesões sofridas pelo lesado deixarem sequelas permanentes, susceptíveis de se poderem reflectir negativamente no futuro, em termos de capacidade de trabalho por exigirem um esforço suplementar, em termos de progressão na carreira, muito embora não originem, em termos imediatos, perdas de rendimentos.

E a propósito do cálculo da indemnização dos danos futuros tem a nossa Jurisprudência acolhido a solução de que a indemnização a pagar ao lesado deve ser calculada tendo em atenção não o tempo provável da sua vida profissional activa, mas a longevidade previsível do lesado, pois que se não pode ignorar que a vida não se esgota com o terminus da vida activa, nem que a pensão de reforma auferida até ao fim da vida está directamente relacionada com o montante do salário auferido durante a vida activa, pelo que corresponderá a um montante de capital capaz de produzir um rendimento mensal que cubra a diferença entre a situação anterior e a actual, durante o período de vida profissional activa do lesado, sem esquecer a necessidade de se ter em conta a sua esperança de vida e que se extinga ao fim dela.

E assim, tendo em conta a idade do Autor à data do acidente; o facto de ser à data estudante; que em consequência das lesões sofridas é portador de sequelas anatomo-funcionais que se traduzem numa incapacidade permanente parcial geral fixada em 50 pontos, tendo em atenção a Tabela nacional de Incapacidades inserta na Portaria 377/2008, de 26.05, actualizada pela Portaria 679/2009, de 25.06, ponderando todos os factores acima expostos, recorrendo à equidade, cremos que é justa, equilibrada e adequada a indemnização em 200.000 EUR (duzentos mil euros).”

Por sua vez no acórdão recorrido disse-se:

(…) Nos autos, configura-se uma situação em que o autor ficou a padecer de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 50 pontos, com repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau 7 de uma escala de 7 de gravidade crescente.

Porém, não se provou que, no futuro, o apelante esteja impossibilitado de vir a ter uma vida profissional normal (ponto 6. Da factualidade não provada), estando apenas provado que as sequelas de que ficou portador exigem esforços suplementares no exercício daquela actividade profissional futura, estando impossibilitado de exercer actividade profissional que exija andar, correr, saltar ou permanecer largos períodos em pé (ponto II) da factualidade provada).

Não se provou, pois, que o apelante tenha ficado impossibilitado de vir a auferir rendimentos proveniente do seu trabalho, podendo exercer uma actividade intelectual ou manual que não exija o uso do aparelho locomotor (tal como já explicámos quando reapreciámos a matéria de facto).

O apelante não tem, assim, direito a ser indemnizado pela perda de capacidade de ganho, mas tem direito a ser indemnizado pela incapacidade traduzida na diminuição da sua condição física, que, como tal, representa um dano específico e autonomamente indemnizável, nos termos que acima se expuseram e que mais desenvolvidamente se expuseram na sentença recorrida.

Como não se provou a efectiva perda de rendimentos do trabalho, não se nos afigura adequado utilizar as tabelas financeiras como método de cálculo do montante da indemnização12.

O cálculo terá de ser feito com recurso à equidade, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, designadamente, a idade do apelante e o grau de défice funcional de que ficou portador.

Há, assim, que ponderar o grau de incapacidade de 50 pontos de que o apelante ficou portador, com repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau 7 de uma escala de 7 de gravidade crescente, que ficou impossibilitado de exercer actividade profissional que exija o uso do aparelho locomotor e ainda que tinha seis anos à data do acidente.

Ponderadas aquelas circunstâncias, afigura-se-nos ser excessiva a quantia de € 450.000,00, pedida pelo apelante, que foi arbitrada no Acórdão do STJ de 10.09.1913a uma criança de sete anos de idade, que ficou portadora de um défice funcional de 90 pontos com total incapacidade para o exercício de qualquer profissão.

Por isso, em sede de equidade e tendo como referência aquela recente decisão do Supremo Tribunal de Justiça, afigura-se-nos que se mostra adequada a indemnização de € 300.000,00 pelo dano biológico, de natureza patrimonial, sofrido pelo apelante.

Atente-se em que a indemnização pelo dano biológico terá de ser calculada por referência à data da instauração da acção, uma vez que na sentença recorrida se consignou expressamente que não se procedeu a qualquer actualização e, consequentemente, se atribuíram juros desde a citação (cfr. artigo 805.º, n.º e AUJ

Porém, entre a data da propositura da acção e a dará do aresto acima referido mediu apenas um ano (03.10.18 a 10.09.19), pelo que entendemos que o mesmo pode ser tomado como referência.”

Analisando.

No caso dos autos, estando em causa uma situação em que o lesado não ficou a padecer de incapacidade para a sua profissão habitual (era estudante e não exercia actividade profissional devida à sua tenra idade), mas em que se reconheceu ter sido afectada a sua capacidade geral (com défice funcional fixado em 50 pontos), a atribuição da correspondente indemnização deve ser feita de acordo com o critério supra enunciado supra:  a afectação da capacidade geral é aferida em função dos índices da Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil e, na medida em que a afectação em causa se traduza em danos patrimoniais futuros previsíveis, a indemnização deve ser fixada segundo juízos de equidade, dentro dos limites que o tribunal tiver como provados, conforme previsto no n.º 3 do art. 566.º do Código Civil.

Conforme tem afirmado a jurisprudência deste STJ (continuando a citar o acórdão de 29 de Outubro de 2020, proc. 111/17.3T8MAC.G1.S1):

Devendo a indemnização ser fixada, como se afirmou, segundo juízos de equidade dentro dos limites que o tribunal tiver como provados, conforme disposto no n.º 3 do art. 566.º do CC, e não existindo no caso dos autos limites de danos que o tribunal tenha dado como provados, a equidade constitui o único critério legalmente previsto para a fixação da indemnização devida. Ora, tal como explanado nos referidos acórdãos do STJ de 25/05/2017 (proc. n.º 2028/12.9TBVCT.G1.S1), de 09/11/2017 (proc. n.º 2035/11.9TJVNF.G1.S1) e de 01/03/2018 (proc. n.º 773/07.0TBALR.E1.S1), a que nos vimos reportando:

«Na jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr. acórdãos de 20/10/2011, proc. nº 428/07.5TBFAF.G1.S1, de 10/10/2012, proc. nº 632/2001.G1.S1, de 07/05/2014, proc. nº 436/11.1TBRGR.L1.S1, de 19/02/2015, proc. nº 99/12.7TCGMR.G1.S1, de 04/06/2015, proc. nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, de 07/04/2016, proc. nº 237/13.2TCGMR.G1.S1, de 14/12/2016, proc. nº 37/13.0TBMTR.G1.S1, e de 16/03/2017, proc. nº 294/07.0TBPCV.C1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt), a atribuição de indemnização por perda de capacidade geral de ganho, segundo um juízo equitativo, tem variado, essencialmente, em função dos seguintes factores: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho - antes da lesão -, tanto na profissão habitual, como em profissão ou actividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências. A que acresce um outro factor: a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas (tendo em conta as qualificações e competências do lesado).»

A utilização destes critérios conduz, assim, a que na parcela indemnizatória por danos patrimoniais se tenha em conta a repercussão da lesão da integridade psico-física sobre a capacidade geral do lesado, sem que isso signifique duplicação da indemnização por aqui não estarem a ser considerados autonomamente os danos não patrimoniais relativos ao sofrimento físico e psíquico, que foram considerados autonomamente pelas instâncias – e bem.”

Conforme orientação deste STJ, nomeadamente no acórdão referido, é de afirmar ainda que a esta quantia não há que fazer qualquer dedução (a fim de, alegadamente, se evitar um enriquecimento injustificado resultante do recebimento antecipado de valores que o autor apenas receberia ao longo da vida), uma vez que se trata de indemnização fixada segundo a equidade (n.º 3 do art. 566.º do CC) e não de indemnização calculada de acordo com a fórmula da diferença (n.º 2 do art. 566.º do CC).

Tendo o tribunal recorrido utilizado os critérios habituais da jurisprudência para fixar um valor indemnizatório equitativo, valor que subiu relativamente à condenação em 1ª instância, para precisamente melhor atender à especificidade do caso, nenhuma censura nos merece a solução a que se chegou, até porque também se atendeu a uma situação paralela (Acórdão do STJ de 10.09.1) em que o valor fixado foi de 450.000 euros para uma criança “de sete anos de idade, que ficou portadora de um défice funcional de 90 pontos com total incapacidade para o exercício de qualquer profissão”, quando no caso dos autos o A. não está impossibilitado de exercer “qualquer” profissão, mas tão só algumas.

Improcede a revista da Ré quanto ao valor do dano biológico.

Revista da Ré – dano por ajuda de terceiros

No acórdão recorrido disse-se:

“Na sentença recorrida, fixou-se em € 234.000,00 o valor da indemnização devida ao apelante pela necessidade de apoio de terceira pessoa, assim discriminada: - € 10.000,00 pelo período inicial de ITA; - € 8.000,00 anuais até aos 20 anos; - € 2.000,00 anuais até ao termo previsível da vida do apelante.

O apelante pretende que o valor daquela indemnização seja fixada em € 550.000,00, ponderando a quantia anual de € 8.400,00, correspondente a um vencimento mensal de € 600,00 + 14 meses.

Está provado que o apelante necessita de ajuda de terceira pessoa para fazer parte da sua higiene pessoal, vestir-se, despir-se, deitar-se e levantar-se da cama, apanhar um objecto do chão e subir ou descer uma escada ou uma rampa, e ainda para se deslocar à casa de banho (ponto Z)).

Está ademais provado que a consolidação médico-legal das lesões do apelante ocorreu em 08.06.15, tendo, em consequência, este sofrido um défice funcional temporário de 694 dias (pontos FF) e GG).

Mantendo-se a quantia de € 10.000,00 correspondente ao período de ITA (até 08.06.15), não se vê razão para distinguir entre a ajuda de terceira pessoa de que o apelante vai necessitar até aos 20 anos de idade e aquela de que vai necessitar a partir dessa idade e até ao termo previsível da sua vida.

Assim, para suportar o apoio de terceira pessoa o apelante irá necessitar da quantia de € 8.000,00 desde a idade que tinha no final do período de ITA (8 anos) até à idade de 78 anos, que era, em 2018, a esperança média de vida para os indivíduos do sexo masculino14.

O que ascende ao valor global de 570.000,00 [(€ 8.400,00/ano x 70 anos) + € 10.000,00].

Como nas conclusões de recurso, o apelante pugnou pela fixação da indemnização, nesta parte, em € 550.000,00, será este o valor que lhe será atribuído.”

A Ré discorda da decisão, porquanto:

- o A. necessitará de ajuda de terceira pessoa para fazer parte da sua higiene pessoa, vestir-se, despir-se, deitar-se e levantar-se da cama, subir ou descer escadas, rampas e deslocar-se à casa de banho, tendo sido fixado em sede de perícia medica a necessidade de 4 horas de apoio/diário (Conclusão 14).

- A Ré foi também condenada no pagamento do custo das obras de adaptação da casa de morada de família, nomeadamente alteração/construção de uma casa de banho adaptada, aquisição de equipamento que possibilita ao A. sentar-se, levantar-se, deitar-se sozinho e infraestruturas de acesso ao andar superior/substituição de escadas e ao custo de veículo adaptado à condução pelo A., o que fará com que o A. passe a ser mais independente e terá menos necessidade do auxílio da terceira pessoa (conclusão 15 e 16).

- Ainda que à data do acidente o A. só tivesse 6 anos de idade e fosse naturalmente quase totalmente dependente dos seus pais, ao crescer, vai adquirir independência (conclusão 17).

- A recorrente não consegue compreender os cálculos que o douto Tribunal da Relação efectuou, mesmo que se considerasse o valor diário de 20€ (4 horas x 5€) x30 dias x 12 meses, pois apenas se chegaria ao valor de 7.200,00€ anuais, multiplicado por 60 anos (78 anos de esperança média de vida – 8 anos à data da alta) o que nunca ultrapassaria 504.000,00€ (conclusão 24).

- O valor apurado teria de ser depois reduzido pela antecipação do pagamento, pela imprevisibilidade da duração da vida do A. e pela natural adaptação do A. à sua situação (conclusão 25) em 50% (conclusão 26).

Analisando os argumentos da Ré:

Quanto ao modo de cálculo utilizado pelo TR – está claro no acórdão como se chegou ao valor da condenação: € 8.000,00 – valor anual (vencimento mensal de € 600,00 + 14 meses) X 70 anos desde a idade que tinha no final do período de ITA (8 anos) até à idade de 78 anos, que era, em 2018, a esperança média de vida para os indivíduos do sexo masculino.

Daqui decorre que o tempo de vida considerado foram 70 anos, e não os 60 propostos pela ré, cuja justificação é atender à esperança média de vida dos homens.

Quanto aos valores mensais considerados estão em linha de conta com a orientação dominante, utilizando o valor de um salário de 600 euros, inferior ao salário mínimo nacional, o que não é excessivo.

Relativamente ao desconto de antecipação, é orientação dominante do STJ que, no actual contexto económico-financeiros, com taxas de juros quase nulas na remuneração dos depósitos, não se justifica qualquer desconto, por o pagamento de uma só vez não potenciar um enriquecimento do lesado, posição com a qual se concorda.

Relativamente aos dois argumentos finais, importa esclarecer se assentam em premissas não confirmáveis a esta distância, podendo verificar-se ou não, o que justifica que, à cautela, devam ser desatendidas.

Improcede, assim, a pretensão da recorrente Ré.

III. Decisão

Recurso do A.:

1. Não se conhece do objecto do recurso relativamente à condenação da Ré na indemnização pelo dano biológico;

2. Quanto aos danos não patrimoniais, improcede a revista.

Recurso do R.:

Improcede a revista na totalidade.

Confirma-se o acórdão do Tribunal da Relação.

Custas da revista em 50% para cada uma das partes, atento o indeferimento das pretensões de ambas.


Lisboa, 6 de Abril de 2021


Fátima Gomes (relatora)

Fernando Samões

Maria João Vaz Tomé

Nos termos do art. 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exma. Senhora Conselheira, Maria João Vaz Tomé que compõe este Colectivo.