Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
701/07.2TBMCN.P1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ANTERIORIDADE DO CRÉDITO
CRÉDITO CONSTITUÍDO MAS AINDA NÃO VENCIDO
LIVRANÇA EM BRANCO
Data do Acordão: 09/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais:
Área Temática:
DIREITO DAS OBRIGAÇÕES - GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES / CONSERVAÇÃO DA GARANTIA PATRIMONIAL / IMPUGNAÇÃO PAULIANA.
DIREITO COMERCIAL - TÍTULOS DE CRÉDITO / LIVRANÇA.
Doutrina:
- Abel Pereira Delgado, “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças”, anotada, 4.ª ed., 67.
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., 800, 806,
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª ed., vol. II, 450 e nota 1.
- João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2.ª ed., 166 e 167.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, vol. I, 2.ª ed., 550, 552
- Vaz Serra, no B.M.J., n.º 61, 264; “Responsabilidade Patrimonial”, no B.M.J. n.º.75, 210-211.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 610.º, 611.º, 612.º, 614.º, N.º1
LULL: - ARTIGOS 10.º, 32.º, 77.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 12/3/2015, 29/11/2011, 13/12/2007, 22/6/04, 22/1/2004 E 12/12/2002, DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Nos termos do art.614º, nº1, do C.Civil, admite-se que o credor, cujo crédito já se constituiu, mas ainda não se venceu, possa recorrer à impugnação pauliana.

II – Na livrança em branco, a obrigação cambiária surge logo no momento da emissão, podendo o título circular por meio de endosso, mesmo ainda por preencher, desde que tenha indicado o nome do tomador

III – Assim, o crédito e a obrigação não surgem somente com o preenchimento da livrança em branco, embora este seja necessário para fazer valer os direitos cambiários.

IV – Deste modo, a entrega da livrança em branco implica a vinculação dos signatários do título e outorgantes na convenção às obrigações neste estabelecidas, decorrentes quer da obrigação cambiária, quer da obrigação subjacente.

V - O crédito da autora constituiu-se, pois, pelo menos, no acto da subscrição da livrança, altura em que, quando não antes, a prestação que o integra é posta à disposição da subscritora pela obrigação subjacente.

VI - Verifica-se que a constituição do crédito em questão ocorreu na altura em que a recorrente colocou o seu aval na livrança em causa, ou seja, no dia 24/5/05.

VII - E como as doações impugnadas foram celebradas por escrituras de 2/6/05 e de 28/12/05, haverá que concluir que existe anterioridade do crédito em relação àquelas doações.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 – Relatório.

Na Secção Cível da Instância Central de Penafiel, Comarca do Porto Este, BANCO AA, S.A., intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra BB, CC, DD, EE e FF, alegando que é legítimo portador de duas livranças subscritas pela sociedade GG, S.A., e avalizadas pelos 1º e 2º réus, uma no valor de € 21.000,00 e outra no valor de € 188.990,73.

Mais alega que nem aquela sociedade, nem os referidos avalistas, pagaram ao autor os montantes em dívida, no valor total de € 212.247,44, sendo que este tem sério e justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito, uma vez que os 1º e 2º réus, por escritura de 2/6/05, doaram aos seus filhos menores, os 3º, 4º e 5º réus, os únicos imóveis que possuíam, reservando para si o direito de uso dos mesmos.

Alega, ainda, que, por escritura de 28/12/05, os 1º e 2º réus procederam à divisão das quotas que detinham na sociedade «HH – Imobiliária, Ld.ª», doando as mesmas aos seus filhos, os 3º, 4º e 5º réus.

Alega, por último, que aquelas doações foram absolutamente simuladas, devendo tais negócios ser declarados nulos, ou, se assim não se entender, não tendo os 1º e 2º réus qualquer outro património susceptível de garantir o cumprimento das suas obrigações junto do autor, tais doações são impugnáveis, tendo o autor direito à sua restituição na medida da satisfação do seu interesse.

Conclui, assim, que deve a acção ser julgada totalmente procedente e, em consequência:

«I. A título principal,

a) Sejam declaradas nulas as doações efetuadas pelos 1º e 2º RR a favor dos 3ºs a 5º RR relativamente aos imóveis melhor identificados na petição e, em consequência, as respetivas reservas do direito de uso e/ou de habitação a favor dos 1º e 2º RR;

b) Sejam declaradas nulas as doações efetuadas pelos 1º e 2º RR a favor dos demais das quotas sociais da HH- Imobiliária, Lda.;

c) Seja ordenado o cancelamento das inscrições respetivas no registo;

II. A título subsidiário,

a) Seja declarada a ineficácia em relação ao Autor das doações efetuadas pelos 1º e 2º RR aos demais,

b) Seja ordenada a restituição dos imóveis melhor identificados na petição inicial ao património dos doadores;

c) Seja reconhecido ao Autor o direito à restituição daqueles imóveis, podendo executá-los no património dos obrigados à restituição».

Os réus contestaram, concluindo pela sua absolvição do pedido.

A autora respondeu, concluindo como na petição inicial e pedindo a condenação da 2ª ré, como litigante de má fé, em multa e indemnização a favor da autora, de valor não inferior a € 5.000,00.

Foi proferido despacho saneador, tendo-se selecionado a matéria de facto relevante considerada a assente e a que passou a constituir a base instrutória da causa.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença julgando a acção totalmente improcedente e condenando a 2ª ré, como litigante de má fé, na multa de 5 Uc e a satisfazer à autora indemnização no valor de € 1.014,75.

Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação daquela sentença, tendo, então, sido proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, onde se concluiu nos seguintes termos: 

«Pelo exposto, decide-se a final julgar parcialmente procedente o recurso, em consequência do que se revoga parcialmente a sentença recorrida, declarando-se agora ineficaz, em relação ao Banco Autor, as doações celebradas através da escritura de 2 de Junho de 2005 a que alude a al. “P)” dos factos provados [a atinente aos imóveis referidos nas als. “L)” e “M)” desses mesmos factos] e bem assim quanto à escritura de 28 de Dezembro de 2005 a que alude a al. “X)” dos mesmos factos provados [a atinente às quotas sociais relativas à sociedade “HH”], entre os aqui Réus, podendo o Banco Autor intentar execução quanto aos ditos bens doados, executando-os no património dos 3ºs a 5º RR, na medida do seu reconhecido interesse, a saber, para cobrança do seu crédito de € 188.990,73, sendo que no demais se mantém a decisão de absolvição dos RR. tal como decretada pela sentença recorrida».

A 2ª ré, CC, inconformada, interpôs recurso de revista daquele Acórdão.

Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2 – Fundamentos.

2.1. No acórdão recorrido consideraram-se provados os seguintes factos:

A) O Autor tem por objecto social a realização de todas as operações permitidas por Lei aos Bancos.

B) O Autor é legítimo portador de duas livranças subscritas pela sociedade anónima GG, S.A. e avalizadas, pelo menos, pelo 1º Réu: uma no valor de € 21.000,00 emitida em 15/12/2006 e com vencimento em 15/01/2007; outra no valor de €188.990,73, emitida em 26/01/2007 e com vencimento em 5/02/2007.

C) O réu BB casou-se com II, em 26.12.1978

D) Do casamento entre o réu BB e II nasceu JJ, em 24.06.1981.

E) O casamento referido em C) foi dissolvido por divórcio, decretado por sentença transitada em julgado em 24.01.1991.

F) Os réus BB e CC casaram entre si em 01.03.1992.

G) O casamento referido em F) foi dissolvido por divórcio decretado por sentença transitada em 21.06.2005.

H) Os réus BB e CC casaram de novo e entre si em 01.03.2006.

I) O casamento referido em H) foi dissolvido por divórcio decretado por sentença transitada em 19.09.2006.

J) Do casamento entre os réus BB e CC nasceu em 05.10.1993 o co-réu DD.

K) Do casamento entre os réus BB e CC nasceram em 13.02.1996 os co-réus EE e FF.

L) Pela ap. 00/00000004, mostra-se inscrita a favor dos 1º e 2ª réus a propriedade adquirida por usucapião sobre o prédio rústico – ... com 2.440 m2, sito no ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo nº 656º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 00000/00000004.

M) Pela ap. 00/000007, mostra-se inscrita a favor dos 1º e 2ª réus a propriedade adquirida por compra sobre a fracção autónoma designada pela letra “D” – Divisão ampla com instalações sanitárias e cozinha, no rés-do-chão, a poente 122 m2, sito na freguesia de ..., concelho de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 00000/000002-D.

N) Pela ap. 00/000003, mostra-se inscrita a favor dos 1º e 2ª réus a propriedade adquirida por doação do prédio urbano – Casa de cave, rés-do-chão, primeiro andar e quintal com a área coberta de 180 m2 e descoberta de 460 m2, sito no ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo nº 516º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 00000/000009.

O) Por escritura pública outorgada em 13 de Abril de 2005, de fls. 127 e 128 do livro 315-E do Cartório Notarial de ..., os 1º e 2º réus declararam “por força das suas quotas disponíveis e com reserva do direito de habitação, para si doadores, doam a seus filhos menores”, ora 3º, 4º e 5º réus, o imóvel referido supra em N).

P) Por escritura outorgada em 2 de Junho de 2005, de fols.69 a 72 do Livro Um - A do Cartório Notarial do ..., os 1º e 2º réus declararam “por força das suas quotas disponíveis e com reserva de uso para eles doadores, doam, em comum e partes iguais” aos seus filhos FF, EE e DD os imóveis referidos supra em L) e M).

Q) Pela Ap.00/00000009, mostra-se inscrita a favor dos 3º, 4º e 5º réus a propriedade, adquirida por doação, do prédio descrito sob o nº00000/000009;

R) Pela Ap.00/00000008, mostra-se inscrita a favor dos 3º, 4º e 5º réus a propriedade, adquirida por doação, do prédio descrito sob o nº00000/000002-D.

S) Pela Ap.00/00000008, mostra-se inscrita a favor dos 3º, 4º e 5º réus a propriedade, adquirida por doação, do prédio descrito sob o nº00000/00000004.

T) Pela insc.1-Ap.00/00000001, foi inscrito na Conservatória do Registo Comercial de ... a sociedade “GG, SA”, sendo designados para o quadriénio de 2004 a 2007, a 2ª ré como presidente do Conselho de Administração, e o 1º réu e KK como administradores.

U) Em 23 de Junho de 2006, o 1º réu renunciou ao cargo de administrador da sociedade “GG, SA”.

V) Pela insc.1-Ap. 00/00000000, foi constituída a sociedade comercial por quotas “HH – Imobiliária, Lda.”, pessoa colectiva nº000.000.009, com sede em ..., cujo objecto é a gestão imobiliária, compra e venda de imóveis para revenda e revenda dos adquiridos para esse fim, tendo como sócios os aqui réus e JJ.

W) Na sociedade “HH” os 1º e 2ª Réus titulavam uma quota de € 23.750,00 cada um, e os 3º, 4º e 5º réus e JJ, uma quota de €625,00 cada um.

X) Por escritura pública de 28 de Dezembro de 2005, os 1º e 2ª Réus procederam à divisão das sua quotas relativas à sociedade “HH” em quatro novas quotas de € 5.937,50 cada que doaram uma a cada um dos 3º, 4º e 5º réus e JJ.

Y) Em 16/11/2006 e em 10/01/2007, o 1º réu requereu o registo de aquisições provisórias por natureza dos imóveis referidos supra em L), M) e N), a favor da sociedade “HH”, que foram recusados.

Z) O autor interpelou a sociedade GG, SA bem como os 1º e 2ª réus para procederem ao pagamento dos montantes em dívida, o que os réus não fizeram.

AA) Sob o n.º 521/07.4TBMCN, do 2º Juízo do Tribunal do Marco, corre termos execução que o ora autor move contra GG, SA e os ora 1º e 2º réus, onde foram dadas à execução, como título executivo, as livranças referidas em B).

BB) A livrança no montante de €21.000,00 foi apresentada a desconto pela sociedade GG, S.A.

CC) O Autor aprovou o desconto da livrança referida em BB) e creditou o valor titulado na conta de depósitos à ordem daquela sociedade o nº00000000.00.001.

DD) A livrança no montante de €188.990,73 emerge do não pagamento, no respectivo vencimento, em 10/10/2006, de duas remessas documentárias de exportação, relativamente às quais o Autor havia feito entrega à sociedade referida dos montantes de €80.008,00 e €99.300,00 em 7 de Junho de 2006.

EE) A livrança referida em DD) foi preenchida ao abrigo da convenção de preenchimento subscrita pelos 1º e 2º Réus em 24 de Maio de 2005.

FF) A segunda assinatura aposta no verso das livranças referidas em B) foi produzida pelo punho da 2ª ré.

GG) A quarta assinatura aposta no verso do documento intitulado Convenção de Preenchimento da Livrança em Branco n.º 000 000000000000008, junta aos autos por fotocópia a fls. 27, foi produzida pelo punho da 2ª ré.

HH) Os 1º e 2ª réus assinaram e enviaram ao autor a carta, datada de 26 de Janeiro de 2007, sob o assunto “GG, SA V/Cartas de 17/01/2007”, donde consta, além do mais, “vimos na qualidade de avalistas informar V. Exas. de que pretendemos resolver tal incumprimento, bastando para isso que também haja por parte desse conceituado banco uma aceitação razoável, e que nos concedam prazo para podermos liquidar todo o débito.

II) Teor literal relevante do “Doc. n.º 5”, que é fls. 27 da p.i., datado de 2005.05.24, sendo ainda de referir que o mesmo se mostra assinado, no final, por todos os outorgantes nele referidos, sendo certo que “terceiros outorgantes” são os aqui 1º e 2ª RR./recorridos (BB e CC):

«CONVENÇÃO DE PREENCHIMENTO DA LIVRANÇA EM BRANCO N.º 000000000000000008

A livrança supra, subscrita pelo aqui primeira outorgante, à ordem do BANCO AA e avalizada pelos terceiros outorgantes, destina-se a garantir o bom pagamento de todas obrigações e/ou responsabilidades, constituídas ou a constituir pela primeira outorgante junto do BANCO AA, qualquer que seja a sua origem ou natureza decorrentes de quaisquer operações bancárias legalmente permitidos, ou de encargos delas decorrentes, nomeadamente, contratos de mútuo, aberturas de crédito, descobertos autorizados, desconto de letras e livranças, empréstimos em moeda estrangeira, remessas de exportação, créditos documentários, financiamentos à importação e exportação, garantias e avales, até ao limite máximo de 200.000,00 EUR., na conta n.º 00000000.00.001.

Pela presente convenção, a aqui primeira outorgante autoriza o BANCO AA em caso de falta de cumprimento de quaisquer obrigações ou responsabilidades inerentes a qualquer das operações acima referidas, a preencher a Livrança em anexo, pelo valor que for devido, a fixar as datas de emissão e vencimento, a designar o local de pagamento, e bem assim, a descontar essa Livrança e utilizar o seu produto para cobrança dos seus créditos.

A primeira outorgante autoriza ainda o BANCO AA a proceder ao débito, na sua conta de Depósitos à Ordem 00000000.00.001 pelo montante relativo ao pagamento do correspondente Imposto de Selo.

Os terceiros outorgantes, que intervêm na qualidade de avalistas no referido título, declaram que possuem um perfeito conhecimento do conteúdo das responsabilidades assumidas pelo primeiro outorgante, do seu montante e dos termos da presente convenção, à qual dão o seu acordo, sem excepções ou restrições de tipo algum, autorizando assim e por isso o preenchimento da Livrança nos precisos termos exarados.

Se no decurso da vigência da presente Convenção e das obrigações que a mesma titula/garante, se vier a verificar a substituição da unidade monetária Escudo por Euro, tal não constituirá causa de alteração das mesmas, nem das condições ora estabelecidas, sendo a conversão efectuada de acordo com as disposições legais e administrativas em vigor.»

Factos não provados

Com interesse para a decisão da causa não se provou que:

1. Ao celebrar os negócios referidos em O) e P) os 1º e 2º Réus pretenderam manter-se como verdadeiros proprietários dos imóveis em causa;

2. Apesar dos negócios referidos em O) e P), os 1º e 2º réus continuaram a assumir-se como verdadeiros donos dos imóveis;

3. Aquando do seu divórcio de 21.06.2005, os 1º e 2º réus partilharam os bens que tinham;

4. O prédio referido em N) foi doado à 2ª ré por seus pais, em 01.02.1993;

5. Em 1993 os pais da 2ª ré habitavam o prédio referido em D) e cultivavam-no e colhiam dele os frutos que produzia;

6. …Faziam-no mais de dez, vinte e trinta anos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, cientes que a propriedade lhes pertencia, que não lesavam o direito de outrem,

7. Porque o prédio referido em D) fora doado à 2ª ré, os 1º e 2ª réus pretenderam doá-lo apenas aos seus filhos comuns, para que não viesse a beneficiar JJ;

8. Os negócios referidos em P) e Z) correspondem a condições que os 1º e 2ª réus impuseram a si próprios para o divórcio;

9. A 2ª ré não aceitou que JJ pudesse vir a ser a única gerente da sociedade “HH”;

10. O 1º réu reside em … e trabalha no ... e em ...;

11. A 2ª ré reside no ... e trabalha no ...;

12. O 2º réu visita todos os dias os 3º, 4º e 5º réus na casa da 2ª ré;

13. Os réus possuem créditos sobre terceiros no montante de 70.000,00 €;

14. E possuem bens imóveis no valor de 250.000,00 €;

15. E estabelecimentos comerciais e escritórios no valor de 220.000,00 €;

16. E títulos de créditos no valor de 125.000,00 €;

17. E bens móveis e mobiliários no valor de 80.000,00 €.»

2.2. A recorrente remata as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ª) Os requisitos do art.610º do Código Civil aplicam-se quer quando os atos impugnados são gratuitos, quer quando são onerosos.

2ª) Incumbe ao credor a prova da existência e anterioridade do seu crédito à data da prática dos atos impugnados.

3ª) Não se mostra provado que à data dos negócios impugnados existissem já obrigações da recorrente para com o recorrido.

4ª) Apenas em Junho de 2006 ficou constituído o crédito do recorrido sobre a recorrente, que coincide com o preenchimento titulado pela livrança.

5ª) O vencimento e incumprimento da dívida para com a recorrente é posterior aos atos impugnados.

6ª) A convenção de preenchimento de livrança, fato aditado sob III a fls.453 não constitui nenhuma obrigação de pagamento da recorrente, nem determina por si qualquer dívida da recorrente.

Termos em que deve conceder-se a REVISTA, revogar-se o aliás douto acórdão do Tribunal da Relação e substituir-se por outro que mantenha a sentença da 1ª instância e julgue pela improcedência da ação.

2.3. A recorrida contra-alegou, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso.

2.4. A única questão que importa apreciar no presente recurso consiste em saber se existe anterioridade do crédito de € 188.990,73 em relação às doações celebradas por escrituras de 2/6/05 e de 28/12/05.

Assim, na sentença proferida na 1ª instância, considerou-se que aquele crédito se constituiu após a celebração dos negócios impugnados, já que apenas em Junho de 2006 é que foi constituído o crédito titulado pela livrança, na medida dos créditos documentários satisfeitos, pelo que, inexistindo prova de que tais negócios tenham sido realizados dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor, faltando, pois, um dos requisitos da impugnação pauliana, a acção foi julgada improcedente.

No acórdão da Relação do Porto, entendeu-se que, tendo a livrança no valor de € 188.990,73 sido preenchida ao abrigo da convenção de preenchimento subscrita pelos 1º e 2º réus em 24/5/05, o crédito do Banco autor constituiu-se, jurídico-legalmente, por esse acto de subscrição da livrança, pois que é face a ele que, pela obrigação subjacente, a prestação que o integra é posta à disposição do devedor, pelo que, sendo esse crédito anterior às doações celebradas por escrituras de 2/6/05 e de 28/12/05, foram estas doações declaradas ineficazes em relação ao Banco autor, assim se revogando parcialmente a sentença proferida na 1ª instância.

Deste acórdão interpôs recurso de revista a 2ª ré, CC, alegando que apenas em Junho de 2006 ficou constituído o crédito do Banco sobre a recorrente, com o preenchimento da livrança, sendo o vencimento e incumprimento da dívida posterior aos actos impugnados.

Mais alega que a convenção de preenchimento da livrança não constitui nenhuma obrigação de pagamento da recorrente, nem determina, por si, qualquer dívida desta.

Conclui, assim, que deve ser revogado o acórdão recorrido, mantendo-se a sentença da 1ª instância.

Vejamos.

Invocou a autora o disposto nos arts.610º, 612º e 616º, do C.Civil (serão deste Código as demais disposições citadas sem menção de origem), para impugnar os actos (doações) que envolveram diminuição da garantia patrimonial do seu crédito.

Os requisitos da impugnação pauliana são três, sendo que dois deles são gerais e um terceiro apenas se refere a determinadas hipóteses (cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pág.800).

Assim, exige-se, em princípio, que o crédito se mostre anterior ao acto a impugnar (art.610º, al.a)).

O segundo requisito é o de que o acto produza ou agrave a impossibilidade de o credor conseguir a inteira satisfação do seu crédito (art.610º, al.b)), incumbindo-lhe o ónus da prova do montante das dívidas e cabendo ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto provar que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor (art.611º).

O último requisito que, conforme já se referiu, não se exige em todos os casos, é o da má fé do devedor e do terceiro, cuja existência se torna necessária quando se trata de um acto oneroso e se dispensa se o acto for gratuito (art.612º).

Entendendo-se por má fé, nos termos do nº2, deste último artigo, a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor. Isto é, não se exige que haja com o acto a intenção de prejudicar ou o conhecimento da situação de insolvência do devedor, mas apenas que haja a convicção do agente de que o acto ocasiona dano ao credor (cfr. Almeida Costa, ob.cit., pág.806 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, vol.I, 2ª ed., pág.552).

Destina-se, pois, a impugnação pauliana a proteger o património enquanto garante do cumprimento das obrigações do seu titular.

Como vimos, é condição para o seu exercício a existência de um crédito que justifique a sua utilização, sendo que apenas o credor poderá acionar o seu exercício.

Bem se compreende a exigência, em princípio, do requisito da anterioridade do crédito, pois que haveria uma enorme perturbação do comércio jurídico caso os negócios pudessem ser impugnados em consequência de dívidas posteriormente contraídas (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob.cit., pág.550).

Acresce que, se o acto é praticado em data anterior à da constituição do crédito, não pode provocar um empobrecimento do património que garantiu a satisfação da obrigação assumida, uma vez que os bens afectados por esse acto já não o integravam.

Isto é, o credor não pode contar com bens que já não se encontravam no património do devedor quando este se obrigou perante aquele.

Todavia, a impugnação pauliana pode abranger os actos realizados antes do nascimento do crédito, desde que lhes tenha presidido uma intenção preordenada de impedir a futura satisfação daquele, sendo realizados dolosamente (cfr. a 2ª parte, da al.a), do art.610º).

Note-se que, nos termos do art.614º, nº1, se admite que o credor, cujo crédito já se constituiu, mas ainda não se venceu, possa recorrer à impugnação pauliana.

Trata-se de solução paralela à fixada no art.607º, em matéria de sub – rogação.

Teve-se em consideração o expendido por Vaz Serra, in Responsabilidade Patrimonial, BMJ nº75, págs.210-211, onde argumenta: «O seu direito é já certo e pode ter interesse legítimo em impugnar o acto antes de vencido o seu crédito, para impedir que os bens se percam ou se inutilizem as provas a produzir na acção» (cfr., ainda, João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2ª ed., págs.166 e 167).

A fixação da data do nascimento do crédito varia em consonância com a sua origem e natureza.

No caso dos autos, está provado que a autora é legítima portadora de uma livrança no valor de € 188.990,73, subscrita por «GG, S.A.» e avalizada, além do mais, pela 2ª ré, ora recorrente, emitida em 26/1/07 e com vencimento em 5/2/07 (cfr. as als.B, FF, HH e II, da matéria de facto provada).

Está, ainda, provado que tal livrança foi preenchida ao abrigo da convenção de preenchimento subscrita, também, pela 2ª ré, ora recorrente, em 24/5/05, emergindo do não pagamento, no respectivo vencimento, de duas remessas documentárias de exportação, relativamente às quais a autora havia feito entrega à sociedade referida dos montantes de € 80.008,00 e de € 99.300,00, em 7/6/06 (cfr. as als.DD, EE e II, da matéria de facto provada).

Resulta, assim, da matéria de facto que a livrança em questão foi subscrita pela sociedade «GG» e avalizada pelos 1º e 2º réus, como administradores daquela (cfr. a al.T da matéria de facto provada), destinando-se «a garantir o bom pagamento de todas as obrigações e/ou responsabilidades, constituídas ou a constituir pela primeira outorgante junto do BANCO AA, qualquer que seja a sua origem ou natureza decorrentes de quaisquer operações bancárias legalmente permitidos, ou de encargos delas decorrentes, nomeadamente, contratos de mútuo, aberturas de crédito, descobertos autorizados, desconto de letras e livranças, empréstimos em moeda estrangeira, remessas de exportação, créditos documentários, financiamentos à importação e exportação, garantias e avales, até ao limite máximo de 200.000,00 EUR ,  na conta n.º 00000000.00.001». (cfr. a convenção de preenchimento da livrança em branco nº000000000000008, reproduzida na al.II da matéria de facto provada).

Por conseguinte, dúvidas não restam que a 2ª ré, ora recorrente, apôs a sua assinatura, como avalista, em livrança em branco, a qual ficou na posse da autora, que, por sua vez, ficou com a faculdade de acabar de a preencher pelo valor constante do seu crédito ao tempo de qualquer incumprimento da obrigação, fixando-lhe a data do vencimento.

È o que consta do 2º parágrafo da aludida convenção de preenchimento, onde se refere que «Pela presente convenção, a aqui primeira outorgante autoriza o BANCO AA em caso de falta de cumprimento de quaisquer obrigações ou responsabilidades inerentes a qualquer das operações acima referidas, a preencher a Livrança em anexo, pelo valor que for devido, a fixar as datas de emissão e vencimento, a designar o local de pagamento, e bem assim, a descontar essa Livrança e utilizar o seu produto para cobrança dos seus créditos».

E, ainda, do 4º parágrafo da mesma convenção, onde se diz que «Os terceiros outorgantes, que intervêm na qualidade de avalistas no referido título, declaram que possuem um perfeito conhecimento do conteúdo das responsabilidades assumidas pelo primeiro outorgante, do seu montante e dos termos da presente convenção, à qual dão o seu acordo, sem excepções ou restrições de tipo algum, autorizando assim e por isso o preenchimento da Livrança nos precisos termos exarados».

Ora, como é sabido, a Lei admite e reconhece a figura da livrança em branco (cfr. os arts.10º e 77º, da LULL).

O preenchimento da livrança em branco faz-se, normalmente, de harmonia com o chamado contrato de preenchimento, que, no caso, foi expressamente estabelecido.

No entanto, a obrigação cambiária surge logo no momento da emissão, podendo a letra ou a livrança circular por meio de endosso, mesmo ainda por preencher, desde que tenha indicado o nome do tomador (cfr. Abel Pereira Delgado, in Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, anotada, 4ª ed., pág.67).

Como defende Vaz Serra, in BMJ, nº61º, pág.264, «A letra em branco não é, enquanto lhe faltar um elemento essencial, uma letra com plena eficácia, mas é já um título de crédito endossável, com fundamento no qual o crédito e a obrigação não surgem somente com o preenchimento, embora este seja necessário para fazer valer os direitos cambiários».

Assim, a entrega da livrança em branco implica a vinculação dos signatários do título e outorgantes na convenção às obrigações nesta estabelecidas, decorrentes quer da obrigação cambiária, quer da obrigação subjacente.

O que significa que, ao subscreverem a livrança em causa, os 1º e 2º réus quiseram obrigar-se, eles próprios, a título pessoal, como meio de garantirem a concessão de crédito pela autora, no caso de incumprimento da sociedade, sendo que, nos termos do art.32º, da LULL, «O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele  afiançada».

Deste modo, o crédito da autora constituiu-se, pelo menos, no acto da subscrição da livrança, altura em que, quando não antes, a prestação que o integra é posta à disposição da subscritora pela obrigação subjacente.

E também é nesse momento que, cambiariamente, nasce e fica constituída a obrigação da subscritora e dos seus avalistas pelo respectivo pagamento na data do vencimento, desde que observadas as condições pactuadas.

É certo que o montante da livrança só deve ser pago na data do vencimento. Ou seja, esse montante não é exigível antes do vencimento do título.

Porém, como resulta do já citado art.614º, nº1, o facto de o direito do credor não ser ainda exigível não obsta ao exercício da impugnação.

É que, como refere Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 7ª ed., vol.II, pág.450 e nota 1, «Não é necessário (…) que o crédito já se encontre vencido, para que o credor possa reagir contra os actos (de diminuição da garantia patrimonial) anteriores ao vencimento, contanto que a constituição do crédito seja anterior ao acto».

O que vale por dizer que é irrelevante a data do vencimento do crédito, importando apenas que a constituição do mesmo seja anterior ao acto impugnado.

Tem sido neste sentido a jurisprudência, designadamente, do STJ em casos semelhantes, como pode constatar-se, entre outros, através dos Acórdãos do STJ, de 12/3/15, 29/11/11, 13/12/07, 22/6/04, 22/1/04 e 12/12/02, disponíveis in www.dgsi.pt.

Voltando ao caso dos autos, verifica-se que a constituição do crédito ocorreu na altura em que a 2ª ré, ora recorrente, colocou o seu aval na livrança em questão, ou seja, no dia 24/5/05.

E como as doações em causa forma celebradas por escrituras de 2/6/05 e de 28/12/05, haverá que concluir que existe anterioridade do crédito de € 188.990,73 em relação àquelas doações.

Consideramos, pois, que a posição assumida no acórdão recorrido é a correcta.

Improcedem, assim, as conclusões da alegação da recorrente, pelo que deverá manter-se o aludido acórdão.

3 – Decisão.

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso de revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 27 de setembro de 2016

Roque Nogueira (Relator)

Sebastião Póvoas

Paulo de Sá