Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
680/06.3JDLSB.L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MAUS TRATOS
COACÇÃO SEXUAL
COACÇÃO GRAVE
ACORDÃO DA RELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
MEDIDA CONCRETA DA PENA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
Data do Acordão: 11/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: INDEFERIDA A ARGUIÇÃO DE NULIDADE
Sumário :
I - De acordo com o preceituado pelo art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, na redacção introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos. O STJ vem entendendo, de forma constante e pacífica, só ser admissível recurso de decisão confirmatória da Relação no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo.
II - Estando o STJ impedido de sindicar todas e cada uma das penas parcelares aplicadas – porque não superiores a 8 anos de prisão –, igualmente está impedido de exercer qualquer censura sobre a actividade decisória prévia que subjaz e conduziu à condenação do arguido por cada uma dessas penas, sendo apenas admissível sindicação no que tange à pena conjunta cominada, ou seja, no que concerne à operação de formação da pena única (de 10 anos de prisão).
III - Conquanto ao STJ esteja vedada a possibilidade de sindicação do acórdão impugnado no que respeita à vertente criminal da decisão impugnada, com excepção do segmento relativo à operação de formação da pena conjunta, não está impedido de sindicar a vertente civil da decisão.
IV - Constitui jurisprudência pacífica do STJ a orientação segundo a qual está vedada a arguição dos vícios da sentença no recurso para no STJ das decisões finais do tribunal colectivo já apreciadas pelo Tribunal da Relação, posto que se trata de questão de facto. Mas o STJ pode conhecer oficiosamente dos vícios da matéria de facto previstos nas als. a) a c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP.
V - Segundo preceitua o nº 1 do art. 77.º do CP, na medida da pena que pune o concurso de crimes são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que significa que o cúmulo jurídico não é uma operação aritmética de adição, nem se destina, tão só, a quantificar a pena conjunta a partir das penas parcelares cominadas. Com efeito, a lei elegeu como elementos determinadores da pena conjunta os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto.
VI - Com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente.
VII - Importante na determinação da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele.
VIII - No caso dos autos, o arguido foi condenado, como autor material, em concurso real, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, na pena de 4 anos de prisão, pela prática de um crime de maus-tratos, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática de três crimes de coacção sexual agravados, na pena de 6 anos de prisão, por cada um deles, pela prática de três crimes de coacção grave, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, por cada um deles, e, em cúmulo jurídico, na pena conjunta de 10 anos de prisão.
IX - Analisando os factos verifica-se que todos eles se encontram conexionados entre si, apresentando-se numa relação de afinidade e de continuidade, formando e constituindo um complexo delituoso de acentuada gravidade (que tem como vítima o próprio filho menor do arguido), na qual se destacam os crimes de coacção sexual agravado e o crime de abuso sexual de crianças agravado, bem reflectida nas medidas das penas aplicáveis. O complexo criminoso protagonizado pelo arguido, actualmente com 36 anos de idade, face aos concretos factos que o constituem e o período de tempo, cerca de 9 anos, ao longo do qual foi perpetrado, é revelador de propensão criminosa, razão pela qual é de lhe atribuir efeito agravante.
X - Por isso, considerando a elevada gravidade do ilícito global e o efeito dissuasor e ressocializador que se pretende e espera a pena exerça, é patente não merecer qualquer censura a pena conjunta fixada pelas instâncias.

Decisão Texto Integral:

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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
O arguido AA, com os sinais dos autos, através de requerimento tempestivamente apresentado, argúi a nulidade do acórdão de fls.3155 a 3170, que rejeitou o recurso que o mesmo interpôs de decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, decisão que, confirmando a de 1ª instância, o condenou na pena conjunta de 10 anos de prisão.
O arguido AA alega que aquele acórdão enferma de nulidade insanável ou, no mínimo, de irregularidade resultante do facto de não haver sido precedido de audiência, que requereu se realizasse na motivação do recurso que interpôs, o que viola o disposto no n.º 3 do artigo 419º do Código de Processo Penal, sendo inconstitucional a interpretação que este Supremo Tribunal fez daquele dispositivo, visto que posterga os seus direitos de defesa.
Mais alega que o acórdão visado padece de omissão de pronúncia por falta de decisão sobre as questões jurídicas por si suscitadas no recurso, designadamente, vícios e nulidades, tanto mais que a irrecorribilidade da decisão impugnada relativamente às penas parcelares cominadas, não veda ou preclude o conhecimento daquelas questões que, aliás, são de conhecimento oficioso.
Alega, ainda, que podendo e devendo o Supremo Tribunal de Justiça, pelo menos, apreciar a operação de formação da pena conjunta aplicada, tem poderes para conhecer as questões que se encontram a jusante e lhe são prévias, consabido que o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão, sendo certo que interpretação distinta dos preceitos legais aplicáveis viola os seus direitos de defesa, sendo inconstitucional.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto não respondeu.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
***
O requerimento de arguição de nulidade apresentado pelo arguido AA fundamenta-se, por um lado, no facto de este Supremo Tribunal haver proferido decisão sem que antes haja procedido à realização de audiência, conforme foi por si requerido na motivação de recurso, por outro lado, na circunstância de haver omitido pronúncia sobre questões jurídicas por si suscitadas, algumas de conhecimento oficioso, o que considera violador dos seus direitos de defesa, tal qual os mesmos se encontram consagrados no n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República.
Observação prévia a fazer é a de que o incidente de arguição de nulidades da sentença ou acórdão não é, obviamente, o meio processual próprio e adequado de invocação de eventuais inconstitucionalidades. O meio idóneo é o recurso para o Tribunal Constitucional.
Assim sendo, não nos iremos pronunciar sobre as inconstitucionalidades que o arguido entende o acórdão deste Supremo Tribunal enfermar.
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Relativamente à arguida nulidade insanável ou irregularidade resultante do facto de este Supremo Tribunal não haver convocado audiência, conforme o requerido pelo arguido, dir-se-á que a realização de audiência não se torna obrigatória pelo simples facto de o recorrente a solicitar.
Se assim fosse estava encontrada a forma de o recorrente, discricionariamente, impor a tramitação e a marcha do processo, impedindo o tribunal de exercer o seu poder/dever de conduzir aquele, designadamente de decidir, de acordo com as regras processuais, sobre a forma e o modo de apreciação do recurso. Em última análise o tribunal ficaria impedido de rejeitar o recurso, o que é de todo em todo impensável.
Estaríamos face à total subversão do processo penal em matéria de recursos.
Sobre o tribunal, aliás, recai a obrigação de rejeitar o recurso sempre que se verifique uma das situações previstas nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 420º do Código de Processo Penal, ou seja, a lei adjectiva não deixa à discricionariedade do tribunal a rejeição do recurso, impondo-a nos casos expressamente previstos.
No caso vertente certo é que este Supremo Tribunal rejeitou o recurso interposto pelo arguido AA por se verificarem, concomitantemente, as situações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 420º do Código de Processo Penal - Rejeição que entendeu relegar para conferência de acordo com jurisprudência desta Secção Criminal – cf. entre outros, o acórdão de 08.11.05, proferido no Processo n.º 2963/08..
Carece pois de qualquer fundamento, nesta parte, o requerimento apresentado pelo arguido AA.
No que concerne à eventual nulidade decorrente de omissão de pronúncia que o arguido AA entende inquinar o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, por falta de decisão quanto a questões jurídicas suscitadas na motivação de recurso, designadamente vícios e nulidades, bem como por falta de apreciação das questões de conhecimento oficioso, dir-se-á que no próprio acórdão já se deixou consignado que:
«No caso vertente estamos perante decisão condenatória de 1ª instância confirmada pelo Tribunal da Relação, sendo todas as penas parcelares aplicadas não superiores a 8 anos, conquanto a pena conjunta cominada ultrapasse aquele patamar situando-se nos 10 anos de prisão.
Deste modo, certo é ser irrecorrível a decisão impugnada no que respeita a todas e cada uma das penas parcelares aplicadas, a significar que relativamente a cada um dos crimes em concurso está este Supremo Tribunal impossibilitado de exercer qualquer sindicação, sindicação só admissível no que tange à pena conjunta cominada, ou seja, no que concerne à operação de formação da pena única.
Com efeito, estando o Supremo Tribunal impedido de sindicar todas e cada uma das penas parcelares aplicadas, igualmente está impedido de exercer qualquer censura sobre a actividade decisória prévia que subjaz e conduziu à condenação do recorrente por cada uma dessas penas».
Melhor explicitando observar-se-á que quando se rejeita um recurso por motivos formais, designadamente por irrecorribilidade da decisão impugnada, como sucedeu no caso ora em apreciação relativamente a todos e a cada um dos crimes pelos quais o arguido foi condenado, obviamente que o tribunal ad quem fica impedido de conhecer do mérito dessa mesma decisão, com excepção, obviamente, da parte do recurso não rejeitada por aqueles motivos formais, parte que no caso vertente se circunscreve à operação de formação da pena única, para além da vertente civil da decisão. Sendo certo que o impedimento recai não só sobre as questões suscitadas no recurso como sobre aquelas que o tribunal deveria apreciar – questões de conhecimento oficioso – caso o recurso viesse a ser conhecido.
Destarte, só podendo este Supremo Tribunal sindicar a vertente criminal da decisão impugnada no segmento atinente à operação de formação da pena única tout court, carece de total fundamento o requerimento apresentado pelo arguido AA.
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Termos em que se acorda indeferir a arguição de nulidade apresentada.
Custas pelo requerente/arguido, com 1 UC de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Novembro de 2010


Oliveira Mendes (relator)
Maia Costa