Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2133/16.2T8CTB.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
CRITÉRIOS
EQUIDADE
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. Tendo o lesado, com 30 anos à data do acidente e que auferia € 750 mês, ficado com um défice funcional permanente de 15 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro, e tendo ficado privado ainda de réditos que auferia de cerca de €6.000/ ano, pela sua actividade de motociclista, que esperava prolongar por mais 10 anos, justifica-se a fixação da indemnização por danos patrimoniais futuros (dano biológico) em € 60.000 fixada pela Relação;

II.  Tendo sido atribuído ao lesado um quantum doloris de 6 numa escala de 7, um dano estético relevante de 4 em 7 e repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de 6 em 7 pontos - uma vez que, quanto a este índice, ficou privado de continuar a praticar o motociclismo, o que fazia com regularidade, participando em diversas provas, incluindo federadas e, ainda, impossibilitado de praticar desportos que também fazia, como bicicleta BTT, esqui na neve e esqui aquático, tendo ficado, ainda, condicionado no exercício da actividade desportiva de mergulho, que também praticava- a tudo acrescendo a circunstância de ter sido submetido a cinco intervenções cirúrgicas, com um pós-operatório prolongado (com uma  repercussão temporária na actividade profissional total de 870 dias), de continuar a necessitar de medicamentos, consultas e tratamentos no futuro e de continuar padecer de dores,  afigura-se ajustada a indemnização de  € 70.000 por danos não patrimoniais que foi atribuída pela Relação.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:


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AA instaurou acção declarativa, com forma de processo comum, contra a Ré -NSeguros, SA, com sede na Zona Industrial Maia I, Sector IX, Lote 20, 4470-440 Maia,

Alegou, em resumo: que no dia 10.1.2014, cerca das 15:00 horas, no cruzamento da Rua Dr. ... e Travessa ..., em ..., ocorreu um acidente de viação entre o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-BC-.. (BC), conduzido por BB e o motociclo de matrícula ..-MH-.. (MH) conduzido pelo Autor, seu proprietário; que o acidente se deu por responsabilidade exclusiva do condutor do veículo automóvel ..-BC-..; e que  em consequência do acidente, o Autor sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais.

Pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 369.592,34, bem como em juros vincendos a calcular à taxa legal quanto aos danos patrimoniais e quanto aos danos futuros e não patrimoniais, apenas desde o dia seguinte ao da prolação da decisão que os atribuiu, relegando para execução de sentença os danos futuros alegados em 40º, 123º e 124º da pi.

A Ré contestou, admitindo a responsabilidade, mas impugnando os danos. Por outro lado, as indemnizações relativas aos períodos de incapacidade absoluta para o trabalho até 20.06.2016 (data da alta) e às despesas relativas aos montantes despendidos com médicos, consultas e medicamentos já foram ressarcidas pela sua congénere, a Liberty Seguros no processo de AT que correu termos no Tribunal de Trabalho (processo n.º 106/15....).

    Concluiu pela improcedência da acção.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu:

“a) Condenar a Ré NSeguros, SA a pagar ao A. a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de danos patrimoniais, que vence juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.

b) Condenar a Ré a pagar ao A. a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), a título de danos patrimoniais, a qual vence juros, à taxa legal, desde a notificação da presente sentença até efetivo e integral pagamento.

c) Condenar Ré a pagar ao A. a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros) a título de danos patrimoniais futuros decorrentes da repercussão do acidente na perda de capacidade de ganho, a qual vence juros, à taxa legal, desde a notificação da presente sentença até efetivo e integral pagamento.

d) Condenar a Ré a pagar ao A. a quantia € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais, a qual vence juros, à taxa legal, desde a notificação da presente sentença até efetivo e integral pagamento.

e) Condenar Ré a pagar ao A. a quantia de € 9.216,00 (nove mil e duzentos e dezasseis euros), a título de danos patrimoniais futuros, a qual vence juros, à taxa legal, desde a notificação da presente sentença até efetivo e integral pagamento.

f) Condenar a Ré a pagar ao A. os encargos e despesas com tratamentos e/ou intervenções cirúrgicas e fisioterapia que venham a ser necessárias para a sua total recuperação.

g) Absolver a Ré do demais peticionado.”

Inconformado, o Autor e Ré recorreram de apelação tendo a Relação decidido o seguinte:

“Julgar improcedente a apelação da Ré e parcialmente procedente a apelação do Autor e, revogando, em parte, a sentença:

a) Condenar a Ré a pagar ao Autor, a título de dano biológico na vertente de dano patrimonial futuro, a quantia de € 60.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do presente acórdão.

b) Condenar a Ré a pagar ao Autor, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 70.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do presente acórdão.

c) Confirmar o demais decidido.”

    Não se conformou o autor que interpôs recurso de revista, pugnando pelo aumento das indemnizações por danos patrimoniais futuros e danos não patrimoniais, mas esse recurso não foi admitido, por verificação da dupla conforme.

    Não se conformou, ainda, a ré/apelante que interpôs recurso de revista, que rematou com as seguintes conclusões:

“1.  Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra a fls., o qual decidiu julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente da decisão proferida pelo douto Tribunal a quo

2. Com efeito, o Tribunal de Castelo Branco entendeu condenar a ora Recorrente no pagamento ao Recorrido de uma indemnização no valor total de € 115 716,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de encargos e despesas com tratamentos e/ou intervenções cirúrgicas e fisioterapia que venham a ser necessárias para a sua total recuperação, por causa dos sofridos pelo Autor no seguimento do acidente de viação no qual foi interveniente o veículo com a matrícula ..-BC-.., seguro na Ré, ora Recorrente.

3.   Inconformados com tal decisão, Autor e Ré apresentaram recurso para a Veneranda Relação, a qual entendeu “Julgar improcedente a apelação da e parcialmente procedente a apelação do Autor e, revogando, em parte a sentença: a) Condenar a a pagar ao Autor, a título de dano biológico na vertente de dano patrimonial futuro, a quantia de 60.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do presente acórdão. b) Condenar a a pagar ao Autor, a título de danos não patrimoniais, a quantia de 70.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do presente acórdão. c) Confirmar o demais decidido.” – destacado nosso.

4.  Um dos pontos que a Veneranda Relação entendeu confirmar o decidido anteriormente pelo douto Tribunal de 1.ª Instância prendeu-se com a duplicação de indemnizações e o enriquecimento injustificado do Lesado, porquanto o acidente em apreço nos presentes autos ter sido simultaneamente de viação e de trabalho.

5.   Mantém a ora Recorrente a sua profunda e séria convicção de que a decisão em apreço nos autos configura uma imprecisa/incorreta interpretação das normas legais constantes dos artigos 483.º, n.º1, 487.º, 494.º, 496.º e no n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil e ainda dos artigos 9.º, 562.º e seguintes e 473.º e seguintes, todos do Código Civil, e do artigo 17.º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, sendo, porém, efetivamente complexa e difícil a apreciação jurídica do objeto do litígio.

I. DO RECURSO EXCECIONAL DE REVISTA

6.   Em primeiro lugar, tanto o Tribunal da Relação como o Tribunal de 1.ª Instância entenderam que o responsável civil por acidente de viação não tem o direito de abater à indemnização que lhe compete pagar o montante que já haja sido pago pelo responsável laboral, competindo antes a este último o direito ao reembolso pelo sinistrado daquilo que houver pago a este e na medida em que se verificar identidade de danos ressarcidos.

7. Sendo que, no entendimento da Recorrente, não podem ser cumuladas a indemnização que for atribuída ao Recorrido com base no acidente considerado com de viação, e a que já lhe foi atribuída em sede de processo de trabalho pela respetiva incapacidade, pois tal implicaria uma cumulação de indemnizações pelo mesmo dano, determinante de um locupletamento injusto do Recorrido à custa do património da Recorrente e da entidade patronal, mesmo que a responsabilidade desta última haja sido transferida para Seguradora. Ao contrário, as duas indemnizações apenas se poderão complementar até ressarcimento integral do dano causado, podendo embora o lesado optar pela que entender mais favorável para ele, deduzida dos montantes que já tenha recebido da outra entidade obrigada ao pagamento.

8. Aqui, cumpre relembrar que o artigo 672.º n.º 1, alínea c) do CPC admite o recurso de revista excecional de Acórdão da Relação que preencha o artigo 671.º, n.º 3, quando: “O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.”

      Nesta medida,

9.   O douto Acórdão recorrido está, salvo melhor opinião, em contradição com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do proc. n.º 555/04.0GTAVR.C1, cuja cópia se junta, (e que pode ser consultado in http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/387973508c618458802573d80057e625?OpenDocument).

10. E ainda com o Acórdão proferido Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do proc. n.º1255/07.5TTCBR-A.C1.S1, cuja cópia se junta, (e que pode ser consultado inhttp://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b0eed31bbbf907e08025808a0036bf35?OpenDocument)

11. De facto, entendeu o Venerando Tribunal da Relação no douto Acórdão do qual se recorre que o responsável civil por acidente de viação não tem o direito de abater à indemnização que lhe compete pagar o montante que já haja sido pago pelo responsável laboral, competindo antes a este último o direito ao reembolso pelo sinistrado daquilo que houver pago a este e na medida em que se verificar identidade de danos ressarcidos.

12. Contudo, no Acórdão proferido pelo mesmo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do processo n.º 555/04.0GTAVR.C, é professado um entendimento diverso, de que ocorrendo acidente de viação que consubstancie, ao mesmo tempo, acidente de trabalho, e tendo o sinistrado recebido da entidade patronal indemnização por danos patrimoniais futuros, apenas pode receber da responsável civil nova indemnização por danos diferentes dos que já foram indemnizados pela responsável laboral.

13. Nestes termos, o Acórdão proferido no âmbito do processo n.º  555/04.0GTAVR.C1 decidiu que à indemnização a pagar pelo responsável civil deveria ser reduzido o montante já indemnizado no âmbito da responsabilidade por acidentes de trabalho pelo responsável laboral.

14. No mesmo sentido entendeu o STJ: “Tendo-se decidido, na ação por acidente de viação, atribuir aos beneficiários uma indemnização por lucros cessantes, destinada a compensar a perda de capacidade geral de ganho do sinistrado, verifica- se uma cumulação de indemnizações, sendo o responsável pela reparação do acidente de viação quem deve responder em primeira linha pelo ressarcimento dos danos sofridos, ficando o responsável pelas consequências de acidente de trabalho desonerado do pagamento das prestações da sua responsabilidade até ao montante do valor da indemnização fixada pelo acidente de viação relativamente àqueles danos.”

15. Não pode o Autor cumular indemnizações pelo mesmo dano, motivo pelo qual no cálculo da indemnização devida pelo acidente de viação, deve ser descontado o valor já recebido em sede de acidente de trabalho.

16. Pretende-se desta forma evitar o enriquecimento injustificado do lesado, mediante a acumulação do próprio capital e os respetivos rendimentos.

17. Assim, o entendimento professado no âmbito dos Acórdãos supramencionados é de que a indemnização por acidente de viação não é acumulável com a emergente de acidente de trabalho, sendo antes complementares, pelo que que só na medida em que uma delas seja superior à outra é que o titular da indemnização tem o direito à diferença.

18. A complementaridade das indemnizações emergentes de responsabilidade civil e de responsabilidade por acidente de trabalho traduzir-se-ia, portanto, em que ambas concorreriam na indemnização dos danos sofridos pelo lesado, de forma a que este pudesse exigir da que fosse superior a diferença para o recebido na que fosse inferior.

19. Assim, a manter-se a decisão recorrida haveria uma cumulação de indemnizações no que diz respeito ao ressarcimento pelo dano futuro de perda de capacidade de ganho, o que consubstancia um enriquecimento ilegítimo do Recorrido, que dessa forma se vê ressarcido, duplamente, pelo mesmo dano no foro laboral e no foro civil.

20. Pelas razões expostas, não pode a ora Recorrente conformar-se com o valor arbitrado no douto Acórdão recorrido, relativamente ao montante devido ao lesado a título de indemnização por danos patrimoniais peticionados.   

21. Acresce que, o entendimento proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra no Acórdão Recorrido é de que, nos termos do artigo 17.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, não teria o responsável civil, no caso a ora Recorrente, direito a abater à indemnização que lhe compete pagar o montante que já haja sido pago antes pago ao sinistrado pelo responsável laboral.

22. Pelo que a Recorrente entende que se encontram preenchidos o primeiro e o segundo requisitos para a aplicação do instituto jurídico do enriquecimento sem causa, ou seja, a existência de um enriquecimento e a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem.

23. Por outro lado, também é verdade que o lesado já foi indemnizado pelo dano patrimonial futuro de perda de capacidade de ganho, em sede de responsabilidade por acidente de trabalho, destinado a indemnizar por completo o referido dano.

24. A indemnização que a Recorrente deveria pagar ao Recorrido, inclui nova indemnização pelo dano patrimonial futuro de perda de capacidade de ganho, sem ter sido feita a redução da indemnização já atribuída e liquidada em sede de responsabilidade por acidente de trabalho, pelo que se pode dizer, com toda a propriedade, que estamos perante uma duplicação de indemnização pelo mesmo dano.

25. Ora, atento o que ficou supra explanado, a indemnização tem por função e limite a supressão dos danos sofridos em consequência de determinado evento, não podendo assumir qualquer tipo de feição lucrativa para o credor da obrigação de indemnização.

26. Face ao exposto, entende a ora Recorrente que deve ser descontado da indemnização a fixar, caso se entenda que a mesma é devida pela ora Recorrente, o montante já recebido pelo Recorrido a título de indemnização fixada em sede de AT (acidentes de trabalho).

       II. DO RECURSO ORDINÁRIO DE REVISTA

27. Acresce que, não pode a ora Recorrente concordar com a indemnização atribuída ao Recorrido a título de dano biológico e danos não patrimoniais, mesma porquanto considera a mesma desajustada, por manifestamente excessiva.

28. De facto, a douta sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância fixar a título de indemnização pelos danos não patrimoniais do Autor no montante de €35.000,00 e pelo dano biológico/ défice funcional permanente de integridade físico-psíquica omontante de € 40.000,00.

29. Ora, se a ora Recorrente já não concordava com os montantes fixados em 1.ª instâncias, não pode deixar de discordar dos valores ora atribuídos.

30. Assim, está a Recorrente convicta de que, esteve mal a douta Veneranda Relação ao arbitrar o montante de € 60.000,00 a título de dano biológico e o montante de € 70.000,00 a titulo de danos não patrimoniais, não tendo, no entender da Recorrente, o douto Tribunal a quo feito uma correta interpretação e consequente aplicação do disposto nos artigos 483.º, n.º 1, 487.º, 494.º, 496.º e no n.º 3 do artigo 566.º, todos do Código Civil, desconsiderando as regras da prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das circunstâncias do caso concreto, bem como desconsiderando os critérios utilizados em casos semelhantes pela jurisprudência atual – antes favorecendo, com o devido respeito, um paradigma de justiça subjetiva, abstrata e moralista.

31. Quanto ao montante fixado a título dano biológico, entendeu o douto Tribunal a quo fixar a indemnização devida ao Autor em € 60.000,00.

32. Aqui, e procurando atingir a justiça do caso, têm os tribunais vindo a acolher a solução de a indemnização do lesado por danos futuros dever representar um capital que se extinga ao fim da sua vida ativa e seja suscetível de lhe garantir, durante ela, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho.

33. No tocante a danos futuros deve ponderar-se ainda, como vem salientando o Supremo Tribunal de Justiça, que as tabelas financeiras têm um mero carácter auxiliar, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equidade, que deve ser deduzida a importância que o próprio lesado gastará consigo mesmo durante a sua vida (em média um terço dos proventos auferidos).

34. Destarte, o ressarcimento dos danos futuros depende da sua previsibilidade e determinabilidade - artigo 564, n.º 2 do Código Civil.

35. Os danos futuros previsíveis, a que a lei se reporta, são essencialmente os certos ou suficientemente previsíveis como é o caso, por exemplo, da perda ou diminuição da capacidade produtiva de quem trabalha e, consequentemente, de auferir o rendimento inerente por virtude de lesão corporal.

36. É verdade que o STJ tem entendido que, “Consideram-se reparáveis como danos patrimoniais as consequências danosas resultantes da incapacidade geral permanente (ou dano biológico), ainda que esta incapacidade não tenha tido repercussão directa no exercício da profissão habitual. Considera-se ainda que o aumento da penosidade e esforço pode ser atendido nesse mesmo âmbito (danos patrimoniais) – e não apenas no âmbito dos danos não patrimoniais –, desde que seja provado que tal aumento de penosidade e esforço tem como consequência provável a redução da capacidade genérica de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas.” – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 2028/12.9TBVCT.G1.S1 de 25-05-2017.

37. Posto isto, e não obstante o tribunal no momento de definir o montante da indemnização possa ser orientado por juízos de equidade, tal ponderação deve ser casuística, verificando as circunstâncias do caso, com alguma margem de discricionariedade do julgador, mas sem colidir com os critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adotados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.

38. Neste sentido, e a título de exemplo, encontramos o Acórdão do STJ de 01/07/2003, revista 1739/03, cujo sumário se encontra supracitado no corpo das alegações.

39. De facto, resultou provado que o Autor ficou a padecer de uma incapacidade permanente de 15 pontos, que tinha 30 anos à data do acidente, e que as sequelas do acidente são compatíveis com a atividade profissional que desempenhava à data do acidente, mas implicam esforços suplementares.

40. Assim, este défice diz única e exclusivamente respeito à incapacidade geral (fisiológica ou funcional), ou seja, às tarefas comuns e indiferenciadas da vida corrente e que interessa a todos os indivíduos, independentemente da sua idade ou profissão, dado que o Autor não logrou demonstrar que tivesse ficado impossibilitado de trabalhar.

41. Acresce que, deve ainda atender-se também aos montantes arbitrados em situações com características semelhantes, e até mais graves, à da presente ação.

42. A título se exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 184/04.9TBARC.P2.S1, de 28-03-2012, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Revista n.º 1084/08.9TBBRG-A.G1.S1 - 2.ª Secção, 29-05-2014, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 1364/06.8TBBCL.G1.S2, de 16-06-2016, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 7614/15.2T8GMR.G1.S1, de 29-10-2019, os quais se encontram supracitados no corpo das alegações.

43. Considerando ainda o que dispõe o artigo 8.º do CC, a justiça do caso concreto há de procurar-se também recorrendo a casos de natureza semelhante que já tenham sido apreciados pelos Tribunais.

44. Pelo exposto, deverá o valor atribuído a título de dano biológico ser reduzido para um montante consentâneo com o quadro fáctico apurado, nunca superior a € 20.000,00.

45. Relativamente, aos danos não patrimoniais, fixou o douto Acórdão recorrido tal compensação na quantia de € 70.000,00.

46. A ora Recorrente não pode deixar de se insurgir contra a compensação arbitrada a título de danos não patrimoniais, porquanto a mesma é manifestamente excessiva e extravasa os padrões comuns da nossa jurisprudência.

47. Mais, a indemnização do dano não patrimonial não é uma verdadeira indemnização, pois não coloca o lesado na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse tido lugar, mediante a concessão de bens com valor equivalente ao dos ofendidos em consequência do facto.

48. Trata-se, apenas de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo não patrimonial, não é suscetível de equivalente, e, por isso, possível é apenas uma espécie de reparação, na forma de uma indemnização pecuniária, a determinar, por indicação expressa da lei, segundo juízos de equidade.

49. De facto, julgar segundo a equidade significa que o Tribunal deve atender à necessidade de adequada compensação da vítima sem, com isso, violar o princípio constitucional e legalmente acolhido da proporcionalidade, à luz do qual a restrição, indemnização ou sanção operada deve ser a estritamente necessária (e apenas essa) à salvaguarda dos direitos e/ou interesses ofendidos.

50. O montante da indemnização deve ser fixado equitativamente pelo tribunal (nº 3 do referido art.º 496º), através de adequado e equilibrado critério de justiça material e concreta.

51. Vem sendo sustentado pelo STJ, em matéria de danos não patrimoniais, que a indemnização, ou a compensação, deverá constituir um “lenitivo” para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista; deve ser significativa e equilibrada, sem cair nos extremos, não podendo constituir um enriquecimento abusivo e imoral.

52. Assim, o montante fixado pelo tribunal a quo não se coaduna com tais critérios para ter em consideração aquando da fixação do montante indemnizatório, aliás, como é bom de ver quanto aos montantes arbitrados em situações com características semelhantes, e até mais graves, à presente ação, nos Acórdãos elencados nas presentes alegações de recurso, para onde se remete.

53. Pelo exposto, motiva a alteração da decisão recorrida, por manifesta desadequação face aos danos comprovados e à prática jurisprudencial corrente, devendo a quantia fixada para indemnização por danos não patrimoniais do Autor ser corrigida, devendo a mesma ser reduzida para um valor mais justo e equitativa, e compatível com os montantes que vêm sendo arbitrados pela jurisprudência (supra elencada) em situações equivalentes, entendendo a ora Recorrente que a condenação da ora Recorrente a este título deve ser reduzida para o montante máximo de € 20.000,00.

54. Face ao supra exposto, o montante total fixado pela Veneranda Relação é manifestamente desadequado, por excessivo, para ressarcir o Autor tendo em conta a matéria dada como provada, mostrando-se equilibrado e ajustado de acordo com um juízo de equidade, fixar uma indemnização que em caso algum, exceda o montante total de € 40.000,00, devendo ser revogado o Acórdão proferido e substituído por outro que lhe atribua tal montante, o que desde já se alega e requer para todos os efeitos legais.

55. Dado que, o Acórdão proferido, e salvo o devido respeito, incorre em errada interpretação e/ou aplicação do disposto nos artigos 483.º, n.º 1, 494.º 496.º, 562.º, 563.º, 564.º, e 566.º, todos do Código Civil na medida em que a indemnização arbitrada se tem por excessiva ou desrazoável.

56. E ainda, por toda a ordem de razões já expostas, deverá o douto Acórdão ser revogado no que concerne ao total do montante que a Recorrente foi condenada a título de dano patrimonial futuro, devendo ser descontado o montante recebido pelo Recorrido no âmbito do direito laboral, por violação substantiva consistente em erro de interpretação e aplicação dos artigos 9.º, 562.º e seguintes e 473.º e seguintes, todos do Código Civil, e do artigo 17.º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro”

Pediu, a finalizar, que seja concedido provimento ao presente recurso de revista excepcional.

     A Formação não admitiu a revista excepcional quanto à questão da duplicação da indemnização por acidente de trabalho.

       Cumpre decidir.

   Factos provados:

“1.  No dia 10.1.2014, cerca das 15:00 horas, no cruzamento das Rua Dr. ... e Travessa ..., em ..., ocorreu um acidente de viação.

2. No sentido da Rua da Quinta ...- Rua Dr. ... circulava o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..BC-.. (BC), conduzido por BB.

3. Em sentido oposto circulava o motociclo de matrícula ..-MH-.. (MH) tripulado e pertença do A.

4. O A. circulava na sua mão de trânsito, i. é, na metade direita da Rua Dr. ... atento o seu sentido de marcha, afeta à circulação de veículos automóveis que circulassem naquele sentido.

5. Inopinadamente e sem que ninguém o pudesse prever, designadamente o A., o condutor do BC virou à esquerda atento o seu sentido marcha, para se dirigir para a Travessa ..., sem que previamente tivesse assinalado tal manobra.

6. Iniciando-a muito antes de chegar ao ponto de viragem, por falta de atenção e consideração pela segurança rodoviária.

7. Transpondo a linha longitudinal que divide a rua em duas partes, invadindo a metade esquerda da mesma, que ocupou, considerando o seu sentido de marcha, onde veio a colidir com a frente do lado esquerdo na frente do MH.

8.   Na ocasião do embate e acidente alegados, o dono do BC havia transferido para a R. a responsabilidade civil por danos causados a terceiros, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...96.

9. Como consequência necessária e direta do acidente o A. sofreu várias lesões no seu corpo, designadamente, fratura-luxação da articulação tibiotársica com transposição anterior do tendão tibial posterior e escoriações locais da coxa e joelho do membro inferior esquerdo.

10. Foi operado de urgência no Hospital ... (H...) com redução cruenta, tendão tibial posterior encontrava-se transposto anteriormente através da rotura da sindesmose, tendo sido reduzido in situ, com osteossíntese com placa e parafusos ao maléolo peronial 8B-7P, osteossíntese com dois parafusos ao maléolo tibial e incisões descompressivas na face interna do tornozelo atento o edema extenso e perturbações.

11. Permaneceu internado no serviço de ortopedia até ao dia 16.1.2014.

12.     Depois deambulou com o apoio de 2 canadianas em descarga do membro inferior esquerdo durante cerca de 3 meses.

13. No dia 22.1.2014 por causa de dores na região interna do tornozelo de que padecia há já 3 dias, socorreu-se do serviço de urgência do H....

14. O que voltou a suceder no dia 30.1.2014, por suspeita de trombose venosa profunda (TVP), dor aguda e edema da perna direita.

15. A 19.2.2014 volta àqueles serviços com dor forte no terço distal da perna e maléolo esquerdo e região interna do tornozelo direito.

16. A 10.7.2014 o A. é sujeito à segunda intervenção cirúrgica na Casa de Saúde ..., em ..., para remoção do material de osteossíntese.

17. Pelo que teve de deambular com o apoio de 2 canadianas em descarga do membro inferior esquerdo durante cerca de 2 meses.

18. No dia 5.8.2014 volta novamente ao serviço de urgência do H... apresentando rigidez do tornozelo esquerdo e dor.

19. Em 11.9.2014 o A. é sujeito à terceira operação cirúrgica por via artroscópica ao tornozelo esquerdo na Clínica de

20. Deambulou com o apoio de 2 canadianas no primeiro mês em descarga do membro inferior esquerdo e durante mais cerca de 6 meses com 1 canadiana.

21. Porque as dores e a rigidez se mantinham, em 11.12.2014 o A. recorreu a consulta especializada do pé e tornozelo na Clínica R..., em ....

22. Pela recorrência de dor severa, em desespero de causa, a 13.2.2015 vai à consulta na Clínica ... no ..., do conhecido ortopedista CC, director do Departamento de Ortopedia do Centro Académico Hospitalar da Universidade de ....

23. Dada a existência de "impimgment" anterior e posterior do tornozelo, com alterações degenerativas articulares, o A. é novamente operado pela quarta vez em 21.4.2015 no Hospital ..., onde foi sujeito a artroscopia com tratamento de lesões articulares circunscritas com viscos suplementação concentrada.

24. Depois da qual teve de deambular com o apoio de 2 canadianas em descarga do membro inferior esquerdo durante 5 meses.

25. Tendo-se constatado, na consulta de 13.7.2015 no Hospital ..., o agravamento do quadro clínico, com tendinopatia do Aquiles e dores insuportáveis.

26. No dia 26.8.2015 o A. apresentava mobilidade ainda mais reduzida com marcada alteração degenerativa articular, pelo que lhe foi proposto a artroplastia do tornozelo.

27.   Em consequência do qual, no dia 22.10.2015, é sujeito à quinta intervenção cirúrgica com artroplastia total do tornozelo e alongamento a céu aberto do tendão de Aquiles e tratamento da tendinite, aplicando-se-lhe uma prótese para substituir a articulação.

28. Foi forçado a deambular com o apoio de 2 canadianas em descarga do membro inferior esquerdo durante mais 5 meses, seguido de mais um mês com apenas 1 canadiana.

29. Nos 2 meses seguintes à intervenção foi obrigado a utilizar bota angular, pesando cerca de 2 kg, dia e noite, o que lhe causava desconforto, espasmos e calor insuportável.

30. O A. depois de todas as intervenções cirúrgicas a que foi sujeito, teve de colocar gelo no tornozelo, 3 a 4 vezes ao dia para reduzir o edema durante cerca de 1 mês e meio.

31. A 8.1.2016 o A. apresentava lesão do menisco externo do joelho direito compatível com a sobrecarga desse membro por uso contínuo de canadianas desde o acidente.

32. Em 20.11.2016 apresentava sinovite do joelho direito, com sinais de Rabot e de gonartrose por causa do uso prolongado dos referidos apoios externos de marcha.

33. O que lhe provoca dor no joelho, inflamação, falta de mobilidade e funcionalidade do membro inferior direito.

34. Devido ao desgaste articular, o A. Apresenta dismetria dos membros inferiores com nexo no tornozelo esquerdo.

35. Desde a data do acidente e continuadamente até hoje, nunca mais deixou de tomar medicamentos, para alívio das dores, designadamente Nolotil, Brufen, Exxiv, causando efeitos colaterais indesejáveis e nocivos para a saúde. 3

6. Também desde o acidente e até hoje passou a ter de usar meias de compressão, nos dois pés, para evitar o edema do tornozelo, o que sucederá até ao fim da sua vida.

37. O A. nasceu no dia .../.../1983, pelo que tinha 30 anos de idade à data do acidente.

38. Presentemente e em consequência das lesões sofridas no acidente descrito, o A apresenta as seguintes sequelas:

a) membro inferior esquerdo: joelho sem limitações das mobilidades, com aparente laxidez do ligamento lateral interno, sem sinais de instabilidade antero-posterior, sinais meniscais negativos, cinco cicatrizes de características operatórias não recentes, longitudinais, uma no terço distal da face lateral da perna medindo12cm de comprimento, outra inferiormente a esta, no maléolo lateral, medindo 5cm de comprimento, outra anteriormente à previamente descrita, medindo 5cm de comprimento, outra estendendo-se da face anterior do terço distal da perna à face dorsal do pé (na linha média), medindo 13 cm de comprimento e a última, no maléolo medial medindo 8cm de comprimento; complexo cicatricial nacarado com áreas acastanhadas, na face antero-medial do tornozelo, medindo 8 cm de diâmetro; engrossamento do tornozelo; amiotrofia de 3,5 cm da coxa e da perna (medidos a 15cm dos polos superior e inferior da rótula respetivamente), quando comparados com o membro contra lateral; limitação acentuada da mobilidade da tibiotársica, com dosiflexão 0º; flexão plantar até 20º; inversão limitada; eversão aparentemente simétrica e conservada; pé valgo, com notória instabilidade da tibiotársica, em carga.

39. A data da consolidação médico-legal foi fixada em 20.06.2016.

40. As ditas lesões determinaram ao A um período de internamento/repouso (défice funcional temporário total) de 45 dias.

41. E um período de défice funcional temporário parcial de 848 dias.

42.  As descritas sequelas determinam uma repercussão temporária na atividade profissional total de 870 dias e de repercussão temporária na atividade profissional parcial de 23 dias

43. Foi atribuído ao A um “quantum doloris” de grau 6, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

44. As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual de vendedor, mas implicando esforços suplementares.

45. E foi atribuído ao A um défice funcional permanente da integridade físicopsíquica de 15 pontos percentuais, sendo de admitir a existência de Dano futuro.

46. E um dano estético permanente fixável em grau 4, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

47. Com repercussão permanente nas atividades desportivos e de lazer de 6 pontos percentuais, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

48.   O A necessita de ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares.

49. O A. iniciou-se no motociclismo aos 3 anos de idade, por influência de seu pai, perdendo-se de paixão por tal modalidade.

50.    Aos 11 anos de idade passou a competir nas provas nacionais de Motocross (... e ...).

51. Desde então e até ao acidente aqui discutido, competiu em provas nacionais de Enduro (... e ... 450), ... (...), Pistafechada (...), ... de velocidade (... e ...) e Buggy (DD).

52. Tendo participado em mais de 150 provas federadas, quedando-se como 1º classificado em cerca de 50 competições e dezenas de vezes como 2º, 3º, 4º e 5º classificado.

53. Sagrando-se campeão nacional de Todo-o-terreno e por três vezes campeão nacional de Pista-fechada.

54. No ano que antecedeu o acidente (2013), competiu simultaneamente no Campeonato Nacional de Enduro de ... a 5.3., em ... a 30.3., em ... a 26 e 27.5., no Campeonato Nacional de Todo-o-Terreno em ... a 21.4., no ... em 24.5.20 e do ... em 24.7., que se realizaram respetivamente nos ... de ... e ....

55. Nesse mesmo ano, aliás, como nos anteriores, participou em mais de 30 provas não federadas, onde obtinha prémios pecuniários nunca inferiores a € 200,00, pelo que obtinha créditos, pelo menos, no valor de € 6.000,00 anuais.

56. O A. também praticava BTT (bicicleta todo o terreno), tendo ganho a prova das 6 horas de BTT em ..., que se realizou nos dias 9 e 10.5.2009.

57. Para se manter em boa forma física fazia corrida de manutenção ao amanhecer, três dias por semana e ginásio (no Fitness Gym, em ...) duas vezes semanalmente.

58. Em 2013, como em anos anteriores participou na Expedição a Marrocos e nos fins-de-semana livres, participava em passeios de estrada e de terra com amigos e clientes da B..., Lda..

59. Publicitando a B..., Lda. e outras entidades empresariais, tais como a A..., T..., Ac..., G..., K..., P... e concomitante angariando sempre novos clientes para a sociedade de que é sócio e simultaneamente empregadora.

60. Não fosse todo o cotejo das nefastas consequências físicas e psicológicas que resultaram do acidente, continuaria a disputar as competições nacionais e as provas não federadas, pelo menos, até perfazer os 40 anos de idade e ultrapassada esta, a praticar todas as demais atividades desportivas, pelo simples prazer lúdico e o bem estar que proporciona, como parte essencial de um estilo de vida saudável, que o A. sempre adotou, incluindo a prática de exercício físico na sua rotina diária.

61. Que irremediável e imutavelmente deixou de poder fazer.

62. O veículo que invariavelmente usava no seu dia-a-dia para se fazer transportar, era o motociclo.

63. Encontrando-se a mãe do A. muito doente, fez inscrever nas motas de competição o seu petit nom (EE) e também palavras encorajadoras de perseverança e luta (força mãe), o que ainda hoje mantém, não obstante o seu desaparecimento.

64. O A. sempre figurou a mota como um amuleto de sorte, um objeto libertador, a força inspiradora, a elegância, é tudo, porque "nasc[eu] no meio delas" e "representa a mesma coisa que perguntar a um cego se quer ver".

65. O A. por causa do acidente teve de abandonar a competição federada e não federada e os passeios de mota.

66. O seu sonho, agora desfeito, era fazer o Dakar Rally.

67. Deixou de usar o motociclo nas suas deslocações diárias com a inerente redução da sua liberdade.

68. O que fez por conselho médico e por razões cautelares, não vá ocorrer uma queda acidental que, atingidos os membros inferiores, designadamente o esquerdo, redundaria numa catástrofe.

69. Passou a ter medo de andar de mota, afigurando-se que em todos os cruzamentos algum condutor de veículo automóvel possa desrespeitar as regras estradais.

70. O que lhe provoca revolta, insónias e angústia.

71. Foi como se ao A. lhe fosse abarbatado o coração pelas costas.

72. A participação em todas as referidas competições motorizadas, que exercia de forma regular e o uso quotidiano da mota representavam para o A. um amplo e manifesto espaço de realização e gratificação pessoal.

73. Por essas razões, o A. encontra-se psiquicamente debilitado e abatido, pelo que, frequentemente, manifesta sentimentos de profunda tristeza e desânimo pela vida, chorando frequentemente.

74. Desde os 15 anos de idade até ao acidente, o A. praticava todos os anos esqui na neve, na instância da ... e ....

75. Também se dedicava à prática de esqui aquático, desde os 10 anos e até ao acidente.

76. O A. fazia mergulho em apneia, tendo feito o curso de mergulhador profissional em 2010.

77. Por causa das limitações físicas de que ficou a padecer e da consequente debilitação da massa e tonicidade muscular, encontra-se impossibilitado da prática do esqui na neve e aquático e passou a ter que se equipar para o mergulho dentro de água por causa do peso das botijas de oxigénio e do lastro, o que dissuasor da prática do mesmo.

78. Também em razão de tais sequelas, ficou privado das mais elementares atividades lúdicas, como correr, dançar, passear, sendo mesmo penoso andar e estar de pé, por causa da dor no joelho direito e inchaço, formigueiros e dor na perna esquerda, ficando como se de um "cepo" se tratasse.

79. Depois do acidente sofreu natural angústia em virtude de se aperceber do seu estado físico, representando para o resto da sua vida, que irá ficar com mazelas físicas.

80. O A. durante os sucessivos internamentos, consultas médicas e fisioterapia esteve afastado do convívio diário com familiares e amigos, em ambiente estranho e de sofrimento humano, causando-lhe angústia, tristeza e abalo moral.

81. Nos dias anteriores que precederam as cinco intervenções cirúrgicas, sofreu natural angústia, questionando-se se tudo correria bem com as anestesias e com o resultado das intervenções cirúrgicas.

82. Vive atormentado com o resultado e as dores que irá sofrer com as previsíveis cirurgias a que irá ser submetido.

83. Até ao acidente, o A. era pessoa saudável, alegre, comunicativo, amante da velocidade e das motos, do desporto e da vida ativa, características que perdeu, passando a ser um homem triste, desconcentrado e ansioso, porque se encontra parcialmente incapacitado para o resto dos seus dias.

84. Passou a demonstrar irritabilidade fácil e alterações de humor perante amigos e familiares.

85. O A. sofreu dores severas e padecimentos físicos em razão das lesões traumáticas e das sequelas anátomo-funcionais de que ficou a padecer.

86.   Nunca deixou de sentir dores desde o acidente e até hoje, principalmente nas mudanças do tempo, cada vez instável.

87. Durante cerca de 3 anos deambulou com a ajuda de canadianas o que lhe provocou sofrimento físico.

88. Como foi obrigado a submeter-se a demorados tratamentos de fisioterapia e reabilitação (235 sessões), o que lhe provocou dor física e psíquica.

89. Esses tratamentos são dolorosos e neles gastou muito do seu tempo, cerca de dois anos, que podia usar para trabalhar, competir, passear e divertir-se.

90. A marcha do A. é claudicante à esquerda, i. é., o A. é coxo e nunca mais vai deixar de o ser.

91. Porque perdeu massa muscular, que não mais irá recuperar, a perna esquerda é mais delgada que a direita.

92. O A. tem dez cicatrizes operatórias no tornozelo esquerdo.

93. Passou a ter complexos de inferioridade, porque é coxo, envergonha-se de mostrar as suas pernas e o pé esquerdo, deixando de usar calções e sandálias.

94. Inibindo-o de frequentar piscinas e ir à praia.

95. O A. terá de manter os tratamentos de fisioterapia de manutenção.

96. O A. deslocou-se à clínica P..., Lda., em ..., para consultas médicas, exames e pensos nos dias, 23.1., 27.1., 31.1., 14.2., 28.2., 7.3., 21.3., 22.4., 20.5., 6.6., 24.6., 1.7., 18.7., 25.7 e 26.8., tudo do ano de 2014.

97. Também se deslocou ao Centro Clínico da ..., em ..., para consultas médicas e pensos, nos dias, 14.8., 29.8., 19.9., 29.9., 31.10., 21.11.,19.12., tudo do ano de 2014, 14.1., 15.2., 2.3., 30.3., 4.5., 1.6., 13.7. e 26.8. (tarde) do ano de 2015, 11.1. e 1.2. de 2016.

98. Bem como ao Hospital ... no ..., para consultas, exames médicos e pensos nos dias, 29.4., 13.5., 1.6., 13.7., 26.8. (manhã), 6.11., 27.11., do ano de 2015, 8.1, 11.3. e 18.5. de 2016.

99. Foi consultado na Clínica ..., em ..., nos dias 16.3., 29.3. e 6.6. de 2016.

100. Foi submetido a programa de reabilitação intensivo de fisioterapia e reabilitação desde 18.8.2014 até 13.6.2016 a que corresponderam 235 sessões

101. O A. à data do acidente auferia o salário mensal de 750,00, como contrapartida do seu trabalho como caixeiro de 1ª a favor da sociedade B..., Lda..

102. Sendo também sócio da sua entidade empregadora, que se dedica ao comércio de motociclos, ciclomotores, motos quatro, barcos, karts, peças e acessórios, bem como às suas manutenção e reparação (código acesso certidão permanente: ...45).

103. Aqueles prémios iriam manter-se pelo menos por mais 10 anos (até perfazer 40 anos de idade), uma vez que era expectável e verosímil, que o A. continuasse a participar nestas competições.

104. A R. declarou o MH como perda total.

105. O valor de venda do veículo à data do acidente era de € 1.500,00 e o do salvado de € 430,00, salvados esses que ficaram na posse do A.

106. Correu termos no Tribunal de Trabalho desta Comarca um processo de acidente de trabalho, processo n.º 106/15...., em que o ora A era o ali sinistrado, e onde foi proferida sentença datada de 09.11.2016 em que ficou em 20,2% a IPP que afeta o A e a pensão anual e vitalícia no valor global de € 1.570,25.”

O Direito:

O A. intentou a acção contra a R Seguradora pedindo, com fundamento em acidente de viação de que foi vítima, a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 369.592,34, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

Por sentença, a R. foi condenada, como se viu, a pagar ao A:  € 1.500 a título de indemnização por danos patrimoniais, com juros desde a citação até integral pagamento (a); € 30.000, a titulo de indemnização por danos da mesma natureza, acrescida de juros desde a notificação da sentença (b); € 40.000, a título de indemnização por danos patrimoniais futuros, com juros desde a notificação da sentença (c); € 35.000, a título de indemnização por danos não patrimoniais desde a notificação da sentença (d); € 9.261, a título de indemnização por danos não patrimoniais futuros, acrescida de juros desde a mesma data (e); os encargos  e despesas com tratamentos/intervenções cirúrgicas e fisioterapia(f).

Interpuseram A. e R. recursos de apelação, tendo a apelação da R. sido julgada improcedente e a do A. procedente. Em consequência, a R. foi condenada a pagar ao A.  título de indemnização por danos patrimoniais futuros, a quantia de € 60.000; e a título de indemnização por danos não patrimoniais € 70.000, confirmando a Relação o mais decidido.

Como se disse, a  R. interpôs recurso de revista excepcional, nos termos do art. 672º, nº 1, al a) e c) e nº 2, al. a) e c) do CPC, recurso que circunscreveu à questão da duplicação de indemnizações por danos patrimoniais futuros, em relação à qual  a 1ª instância e a Relação decidiram de modo uniforme, por ambos terem entendido que  “o responsável civil, por acidente de viação não tem o direito de ver abatida a indemnização que lhe compete pagar o montante que já havia sido pago, competindo a este último o direito ao reembolso daquilo que houver pago a este e na medida em que se verificar identidade de danos ressarcidos”.

Porém, e como se assinalou também, a Formação não admitiu a revista excepcional: quer ao abrigo da al. a), por entender que “constitui jurisprudência consolidada que a indemnização por acidente de viação não é acumulável com a emergente de acidente de trabalho sendo antes complementares, daí que só na medida em que uma delas seja superior a outra é que o titular da indemnização tem o direito à diferença, sublinhando-se que no âmbito dos danos patrimoniais com base em perda de remunerações e capacidade aquisitiva no futuro o lesado apenas apenas terá direito a indemnização para lá da já atribuída caso seja provada a existência de danos não previstos na indemonização pelo acidente de trabalho(…); reconhecemos pois que a questão de direito invocada não encerra em si mesmo um relevo que ultrapassa as barreiras do caso concreto não exigindo por isso intervenção neste Supremo Tribunal de Justiça ficando, liminarmente, afastada quanto a este fundamento a admissibilidade excepcional da pretendida interposição”; quer a da al. c), na medida em que  a ré/recorrente não enunciou os aspectos de “identidade factológica que determinam a contradição alegada” com o acórdão fundamento e justifiquem a reclamada excepcionalidade, sendo que não se enxerga, de todo o modo, contradição entre os dois acórdãos.

Como assim, mostra-se arredada a questão de saber se o acórdão deveria ter sido revogado no que concerne ao desconto que não foi feito, do montante recebido pelo recorrido no âmbito do direito laboral, na compensação que irá receber a título de dano patrimonial futuro.

As questões resumem-se; assim; à quantificação dos montantes fixado a título da compensação pelo dano  biológico/ défice funcional permantente de integridade física (danos patrimoniais futuros ) e de compensação por danos não patrimoniais.

Dano biológico (danos patrimoniais futuros):

No que concerne à indemnização por danos patrimoniais futuros, a 1ª instância, ”considerando a idade do autor a data do acidente (30 anos) sendo a idade da reforma aos 66 anos ( mas com capacidade laboral até aos 70) mas também que a experiência da vida média de vida de um homem é de 77 anos e, bem ainda, que a consolidação médico-legal das lesões ocorreu em 20.6.2016 e que a perda da capacidade de ganho está fixada em 15 pontos” considerou “adequada, ajustada e equilibrada” a fixação da quantia de € 40.000 a título de dano patrimonial futuro deccorrente da necessidade de realização de esforços suplementares.

Porém, a Relação, com apelo à esperança média da vida (para além da idade da reforma), à taxa média de inflação e à taxa de rentabilidade do capital, baseadas num juízo de previsibilidade, à gravidade das lesões e suas consequências, à atribuição do grau de incapacidade em pontos (e não em percentagem) que é de livre apreciação, às lesões sofridas pelo Autor (cf. pontos 9) a 47), 90)) que, embora compatíveis com o exercício da actividade de vendedor, implicam esforços suplementares, ao facto de o autor, a quem foi atribuído um défice funcional de 15 pontos percentuais, ter ficado com marcha claudicante à esquerda, sem recuperação, à idade de 30 anos ( à data do acidente), e, por conseguinte, ao longo período de vida activa  (dado que o que se está a valorar é apenas e tão só o dano biológico com repercussão patrimonial, e não a perda de capacidade de trabalho) estimou, em equidade, a compensação do dano em € 60.000,00, actualizado à data do acórdão.

Porfia a recorrente pela fixação da indemnização pelo dano biológico, na vertente patrimonial, num montante não superior a € 20.000,00, com apelo aos critérios jurisprudenciais, tendo em consideração que o autor não ficou, no caso concreto, impossibilitado de trabalhar, mas apenas com sequelas que implicam esforços suplementares no desempenho da sua actividade profissional.

É certo que, no caso, o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado, não lhe determinou qualquer impossibilidade para o trabalho, mas apenas esforços acrescidos na realização da sua actividade profissional. Mas os esforços suplementares não se limitam à realização das actividades profissionais, estendem-se também às actividades da sua vida pessoal, algumas com reflexo económico (como a prática do motociclismo). E estas têm de ser devidamente valoradas, como se enfatiza no Ac. STJ de 6.12.2017, proc. 1509/13.1TVLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt: “O dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, incluindo a frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer atividades ou tarefas de cariz económico, mesmo fora da atividade profissional habitual, bem como os custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expetáveis”; também no Ac. STJ de 28.1.2016, proc. 7793/09.8T2SNT.L1.S1, em www.dgsi.pt: “ O aumento da penosidade e esforço para realizar as tarefas diárias pode ser atendido no âmbito dos danos patrimoniais (e não apenas dos danos não patrimoniais), na medida em que tenha como consequência provável a redução da capacidade de obtenção de proventos no exercício da actividade profissional ou de outras actividades económicas (ver também, da mesma relatora, o Ac. STJ de 25.5.2017, proc. 2028/12.9TBVCT.G1.S1, publicado no mesmo site do IGFEJ e, ainda, o Ac. STJ de 11.12.2012, proc. 40/08.1TBMMV.C1.S1 e o Ac. STJ de 4.6.2015, proc.1166/10.7TBVCD.P1.S1, todos em www.dgsi.pt).

Ora, no caso de dano biológico, “a solução seguida pela jurisprudência do STJ é a de fixar um montante indemnizatório por via da equidade, ao abrigo do disposto no artigo 566º, n.º 3, do CC, em função das circunstâncias concretas de cada caso, segundo os padrões que têm vindo a ser delineados, atentos os graus de gravidade das lesões sofridas e do seu impacto na capacidade económica do lesado, considerando a expectativa de vida activa não confinada à idade-limite para a reforma” (Ac. STJ de 6.12.2017, proc. 1509/13.1TVLSB.L1.S1).

Considerando que há que decidir segundo a equidade, importa ter, ainda, em atenção as indemnizações fixadas na jurisprudência para casos aproximados, constatando-se, no entanto, que as indemnizações têm oscilado com frequência, atentas as particularidades do caso concreto.

Assim, para um lesado que tinha 16 anos e que ficou a padecer de uma IPG (incapacidade permanente geral) de 16%, o Supremo aceitou uma indemnização de € 60.000 (Ac. STJ de 30.5.2019, proc. 576/14.5TBBGC.G1.S1 em www.dgsi.pt); para uma lesada de 12 anos, que ficou afectada do joelho esquerdo e ficou um défice funcional de 8,95 pontos, atribuiu uma indemnização de € 80.000 (Ac. STJ de 28.3.2019, proc 954/13.7TBPMS.C1.S1 , no site do IGFEJ); já para um lesado de 34 anos à data do sinistro, em que lhe tinha sido fixado um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 9 pontos, resultando da factualidade dada como provada que, com elevada probabilidade, as lesões por ele sofridas teriam significativa repercussão negativa sobre o desempenho da profissão de serralheiro cujo exercício exige um elevado nível de força e de destreza físicas ao nível dos membros superiores (atingidos pelas lesões), concluiu-se ser mais justo e adequado o quantum indemnizatório de €50.000,00 fixado na 1ªinstância (Ac. STJ de 24.2.2022.1082/19.7T8SNT.L1.S1, em www.dgsi.pt); porém,, o Ac. STJ de 18.1.2018, proc. n.º 223/15.8T8CBR.C1.S1, que tinha por objecto uma situação em que à lesada, de 22 anos de idade, estudante de enfermagem e com défice funcional permanente de 11%, considerando-se que as sequelas de que ficou a padecer, embora compatíveis com a atividade profissional de enfermagem, implicariam esforços acrescidos, e que apresentava algumas limitações físicas para as atividades quotidianas, foi atribuída uma indemnização de € 55.000,00 a título de dano biológico na sua vertente patrimonial.

Ora, no caso concreto, e reportando-nos a este último caso, se, na situação dos autos, o lesado tinha já 30 anos, a verdade é que ficou a padecer de um défice funcional superior de 15%.  Além disso, o autor sofreu ainda um impacto económico, na medida em que aos rendimentos de caixeiro de 1ª a favor da sociedade B..., Lda., somava, ainda, os réditos da sua actividade desportiva (de motociclista), que se prolongaria até aos 40 anos, o que o privou da possibilidade de ganhar cerca de € 60.000 ao longo de 10 anos (cfr. factos 55 e 60)

   Afigura-se-nos, por isso, ajustada a indemnização fixada pela Relação de € 60.000.

    Danos não patrimoniais:

A 1ª instância fixou a indemnização por danos não patrimoniais em € 35.000, importância que o Tribunal da Relação elevou para € 70.000.

Pretende a recorrente igual redução da indemnização para o montante máximo de € 20.000.

Mas também aqui não se jurídica tal redução.

Com relevo, verifica-se que ficou provado o seguinte:

“37. O A. nasceu no dia .../.../1983, pelo que tinha 30 anos de idade à data do acidente.

38. Presentemente e em consequência das lesões sofridas no acidente descrito, o A apresenta as seguintes sequelas:

a) membro inferior esquerdo: joelho sem limitações das mobilidades, com aparente laxidez do ligamento lateral interno, sem sinais de instabilidade antero-posterior, sinais meniscais negativos, cinco cicatrizes de características operatórias não recentes, longitudinais, uma no terço distal da face lateral da perna medindo12cm de comprimento, outra inferiormente a esta, no maléolo lateral, medindo 5cm de comprimento, outra anteriormente à previamente descrita, medindo 5cm de comprimento, outra estendendo-se da face anterior do terço distal da perna à face dorsal do pé (na linha média), medindo 13 cm de comprimento e a última, no maléolo medial medindo 8cm de comprimento; complexo cicatricial nacarado com áreas acastanhadas, na face antero-medial do tornozelo, medindo 8 cm de diâmetro; engrossamento do tornozelo; amiotrofia de 3,5 cm da coxa e da perna (medidos a 15cm dos polos superior e inferior da rótula respetivamente), quando comparados com o membro contra lateral; limitação acentuada da mobilidade da tibiotársica, com dosiflexão 0º; flexão plantar até 20º; inversão limitada; eversão aparentemente simétrica e conservada; pé valgo, com notória instabilidade da tibiotársica, em carga.

39. A data da consolidação médico-legal foi fixada em 20.06.2016.

40. As ditas lesões determinaram ao A um período de internamento/repouso (défice funcional temporário total) de 45 dias.

41. E um período de défice funcional temporário parcial de 848 dias.

42. As descritas sequelas determinam uma repercussão temporária na atividade profissional total de 870 dias e de repercussão temporária na atividade profissional parcial de 23 dias

43. Foi atribuído ao A um “quantum doloris” de grau 6, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

44. As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual de vendedor, mas implicando esforços suplementares.

45. E foi atribuído ao A um défice funcional permanente da integridade físicopsíquica de 15 pontos percentuais, sendo de admitir a existência de Dano futuro.

46. E um dano estético permanente fixável em grau 4, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

47. Com repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de 6 pontos percentuais, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

48.   O A necessita de ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares.

49. O A. iniciou-se no motociclismo aos 3 anos de idade, por influência de seu pai, perdendo-se de paixão por tal modalidade.

50.     Aos 11 anos de idade passou a competir nas provas nacionais de Motocross (... e ...).

51. Desde então e até ao acidente aqui discutido, competiu em provas nacionais de Enduro (... e ... 450), ... (...), Pistafechada (...), ... de velocidade (... e ...) e Buggy (DD).

52. Tendo participado em mais de 150 provas federadas, quedando-se como 1º classificado em cerca de 50 competições e dezenas de vezes como 2º, 3º, 4º e 5º classificado.

53. Sagrando-se campeão nacional de Todo-o-terreno e por três vezes campeão nacional de Pista-fechada.

54. No ano que antecedeu o acidente (2013), competiu simultaneamente no Campeonato Nacional de Enduro de ... a 5.3., em ... a 30.3., em ... a 26 e 27.5., no Campeonato Nacional de Todo-o-Terreno em ... a 21.4., no ... em 24.5.20 e do ... em 24.7., que se realizaram respetivamente nos ... de ... e ....

55. Nesse mesmo ano, aliás, como nos anteriores, participou em mais de 30 provas não federadas, onde obtinha prémios pecuniários nunca inferiores a € 200,00, pelo que obtinha créditos, pelo menos, no valor de € 6.000,00 anuais.

56. O A. também praticava BTT (bicicleta todo-o-terreno), tendo ganho a prova das 6 horas de BTT em ..., que se realizou nos dias 9 e 10.5.2009.

57. Para se manter em boa forma física fazia corrida de manutenção ao amanhecer, três dias por semana e ginásio (no Fitness Gym, em ...) duas vezes semanalmente.

58. Em 2013, como em anos anteriores participou na Expedição a Marrocos e nos fins-de-semana livres, participava em passeios de estrada e de terra com amigos e clientes da B..., Lda.

60. Não fosse todo o cotejo das nefastas consequências físicas e psicológicas que resultaram do acidente, continuaria a disputar as competições nacionais e as provas não federadas, pelo menos, até perfazer os 40 anos de idade e ultrapassada esta, a praticar todas as demais atividades desportivas, pelo simples prazer lúdico e o bem estar que proporciona, como parte essencial de um estilo de vida saudável, que o A. sempre adotou, incluindo a prática de exercício físico na sua rotina diária.

61. Que irremediável e imutavelmente deixou de poder fazer.

62. O veículo que invariavelmente usava no seu dia-a-dia para se fazer transportar, era o motociclo.

65. O A. por causa do acidente teve de abandonar a competição federada e não federada e os passeios de mota.

66. O seu sonho, agora desfeito, era fazer o Dakar Rally.

67. Deixou de usar o motociclo nas suas deslocações diárias com a inerente redução da sua liberdade.

68. O que fez por conselho médico e por razões cautelares, não vá ocorrer uma queda acidental que, atingidos os membros inferiores, designadamente o esquerdo, redundaria numa catástrofe.

69. Passou a ter medo de andar de mota, afigurando-se que em todos os cruzamentos algum condutor de veículo automóvel possa desrespeitar as regras estradais.

70. O que lhe provoca revolta, insónias e angústia.

71. Foi como se ao A. lhe fosse abarbatado o coração pelas costas.

72. A participação em todas as referidas competições motorizadas, que exercia de forma regular e o uso quotidiano da mota representavam para o A. um amplo e manifesto espaço de realização e gratificação pessoal.

73. Por essas razões, o A. encontra-se psiquicamente debilitado e abatido, pelo que, frequentemente, manifesta sentimentos de profunda tristeza e desânimo pela vida, chorando frequentemente.

74. Desde os 15 anos de idade até ao acidente, o A. praticava todos os anos esqui na neve, na instância da ... e ....

75. Também se dedicava à prática de esqui aquático, desde os 10 anos e até ao acidente.

76. O A. fazia mergulho em apneia, tendo feito o curso de mergulhador profissional em 2010.

77. Por causa das limitações físicas de que ficou a padecer e da consequente debilitação da massa e tonicidade muscular, encontra-se impossibilitado da prática do esqui na neve e aquático e passou a ter que se equipar para o mergulho dentro de água por causa do peso das botijas de oxigénio e do lastro, o que dissuasor da prática do mesmo.

78. Também em razão de tais sequelas, ficou privado das mais elementares atividades lúdicas, como correr, dançar, passear, sendo mesmo penoso andar e estar de pé, por causa da dor no joelho direito e inchaço, formigueiros e dor na perna esquerda, ficando como se de um "cepo" se tratasse.

79. Depois do acidente sofreu natural angústia em virtude de se aperceber do seu estado físico, representando para o resto da sua vida, que irá ficar com mazelas físicas.

80. O A. durante os sucessivos internamentos, consultas médicas e fisioterapia esteve afastado do convívio diário com familiares e amigos, em ambiente estranho e de sofrimento humano, causando-lhe angústia, tristeza e abalo moral.

81. Nos dias anteriores que precederam as cinco intervenções cirúrgicas (…)

82. Vive atormentado com o resultado e as dores que irá sofrer com as previsíveis cirurgias a que irá ser submetido.

83. Até ao acidente, o A. era pessoa saudável, alegre, comunicativo, amante da velocidade e das motos, do desporto e da vida ativa, características que perdeu, passando a ser um homem triste, desconcentrado e ansioso, porque se encontra parcialmente incapacitado para o resto dos seus dias.

84. Passou a demonstrar irritabilidade fácil e alterações de humor perante amigos e familiares.

85. O A. sofreu dores severas e padecimentos físicos em razão das lesões traumáticas e das sequelas anátomo-funcionais de que ficou a padecer.

86.  Nunca deixou de sentir dores desde o acidente e até hoje, principalmente nas mudanças do tempo, cada vez instável.

87. Durante cerca de 3 anos deambulou com a ajuda de canadianas o que lhe provocou sofrimento físico.

88. Como foi obrigado a submeter-se a demorados tratamentos de fisioterapia e reabilitação (235 sessões), o que lhe provocou dor física e psíquica.

89. Esses tratamentos são dolorosos e neles gastou muito do seu tempo, cerca de dois anos, que podia usar para trabalhar, competir, passear e divertir-se.

90. A marcha do A. é claudicante à esquerda, i. é., o A. é coxo e nunca mais vai deixar de o ser.

91. Porque perdeu massa muscular, que não mais irá recuperar, a perna esquerda é mais delgada que a direita.

92. O A. tem dez cicatrizes operatórias no tornozelo esquerdo.

93. Passou a ter complexos de inferioridade, porque é coxo, envergonha-se de mostrar as suas pernas e o pé esquerdo, deixando de usar calções e sandálias.

94. Inibindo-o de frequentar piscinas e ir à praia.

95. O A. terá de manter os tratamentos de fisioterapia de manutenção.

101. O A. à data do acidente auferia o salário mensal de 750,00, como contrapartida do seu trabalho como caixeiro de 1ª a favor da sociedade B..., Lda.

102. Sendo também sócio da sua entidade empregadora, que se dedica ao comércio de motociclos, ciclomotores, motos quatro, barcos, karts, peças e acessórios, bem como às suas manutenção e reparação (código acesso certidão permanente: ...45).”

Em acórdão proferido na revista n.º 1991/15.2T8PTM.E1.S1, fomos confrontados com os seguintes casos: com o do Ac. STJ de 18.10.2018, proc. 3643/13.9TBSTB.E1.S1, que se reportava a uma autora cujas lesões determinaram um período de défice funcional total de 30 dias, um período de défice funcional temporário parcial de 91 dias,  um período de repercussão temporária na actividade profissional total de 121 dias, um quantum doloris fixável no grau 6/7.  um dano estético permanente fixável no grau 5/7, uma repercussão permanente na actividade sexual fixável no grau 4/7 e um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 21,698 pontos, com existência de dano futuro de 5 pontos, à qual (autora) foi atribuída, a título de danos não patrimoniais, a indemnização de 160.000,00€.; com o do Ac. STJ de 14.1.2021, proc. 644/12.8TBCTX.L1.S1, que atribuiu uma indemnização no valor de € 100.00,00  a um lesado, de 32 anos de idade, que, em consequência de um sinistro, teve um sofrimento físico e psíquico avaliável num grau 5 de 7 e sequelas que lhe determinaram um dano estético avaliável num grau 2 de 7, apresentando um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 40 pontos : o do Ac. do STJ de 9.7.2015, proc.  4931/11.4TBVNG.P1. S1, para uma incapacidade de 36 pontos, sinistrado com 58 anos, indemnização de € 60.000,00 a título de dano não patrimonial; e o do Ac. STJ de 16.3.2017, proc. 294/07.0TBPCV.C1.S1,  que para um sinistrado com 19 anos, com uma incapacidade de 41 pontos,  atribuiu uma indemnização de € 100.000  a título de danos não patrimoniais.

E foi com base nestes referenciais jurisprudenciais que, no caso de que nos ocupámos - em que o défice funcional permanente do A. foi fixado em 39 %, o quantum doloris em 5 numa escala de 7, o dano estético relevante  em 3 em 7, as consequências permanentes tidas na sua atividade sexual (fixado em 3 numa escala de 7), na repercussão nas atividades desportivas e de lazer (2 em 7), no relacionamento social com familiares e amigos, a menorização resultante da sua situação de incapacidade para o trabalho, encontrando-se reformado por invalidez, tendo o acidente ocorrido quando o A. tinha apenas 30 anos de idade, a tudo acrescendo a circunstância de o A. continuar a necessitar de medicamentos, consultas e tratamentos no futuro -estimámos que o valor de 85.000 atribuído pela Relação, em equidade, para compensação dos referidos danos não patrimoniais, não se afastava de forma significativa, daqueles que são os montantes habitualmente aplicados pela jurisprudência deste Tribunal em casos aproximados .

Cotejando esse caso com o dos autos , em que os lesados têm a mesma idade., se no primeiro o défice funcional tinha sido de 39%, portanto, mais do dobro do presente (15%), e o impacto tinha sido mais relevante a nível profissional ( na medida em que o ali autor foi reformado por invalidez), verifica-se, no caso vertente, que, em contrapartida o quantum doloris, o dano estético e o de lazer e desporto foram superiores: quanto a este, e com importante impacto psicológico, o autor ficou privado  de continuar a praticar o motociclismo, que praticava com regularidade, participando em diversas provas, incluindo federadas  (das quais retirava, aliás, rendimentos)  bicicleta BTT,  esqui na neve e esqui aquático, ficando, ainda, condicionado na prática de mergulho, que também fazia.

 A tudo acresce a circunstância de ter sido submetido a cinco intervenções cirúrgicas, com um pós-operatório prolongado, com uma repercussão temporária na actividade profissional total de 870 dias, continuar a necessitar de medicamentos, consultas e tratamentos no futuro e a padecer de dores.

Assim, e fazendo um juízo de proporcionalidade, que tem em consideração, por um lado, o défice funcional mais baixo e, por outro, o grau de quantum doloris e o da repercussão em actividades desportivas e de lazer mais elevados, não nos repugna a fixação da indemnização dos danos não patrimoniais em € 70.000.

Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):

“1. Tendo o lesado, com 30 anos à data do acidente e que auferia € 750 mês, ficado com um défice funcional permanente de 15 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro, e tendo ficado privado ainda de réditos que auferia de cerca de €6.000/ ano, pela sua actividade de motociclista, que esperava prolongar por mais 10 anos, justifica-se a fixação da indemnização por danos patrimoniais futuros (dano biológico) em € 60.000 fixada pela Relação;

2.  Tendo sido atribuído ao lesado um quantum doloris de 6 numa escala de 7, um dano estético relevante de 4 em 7 e repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de 6 em 7 pontos - uma vez que, quanto a este índice, ficou privado de continuar a praticar o motociclismo, o que fazia com regularidade, participando em diversas provas, incluindo federadas e, ainda, impossibilitado de praticar desportos que também fazia, como bicicleta BTT, esqui na neve e esqui aquático, tendo ficado, ainda, condicionado no exercício da actividade desportiva de mergulho, que também praticava- a tudo acrescendo a circunstância de ter sido submetido a cinco intervenções cirúrgicas, com um pós-operatório prolongado (com uma  repercussão temporária na actividade profissional total de 870 dias), de continuar a necessitar de medicamentos, consultas e tratamentos no futuro e de continuar padecer de dores,  afigura-se ajustada a indemnização de  € 70.000 por danos não patrimoniais que foi atribuída pela Relação.”

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


*


Lisboa, 8 de Novembro de 2022


António Magalhães (Relator)

Jorge Dias

Manuel Aguiar Pereira