Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1011/20.5T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: CONTA BANCÁRIA
INTERMEDIÁRIO FINANCEIRO
INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA
VALORES MOBILIÁRIOS
MANDATO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A abertura de conta não deve ser tomada como um simples contrato bancário, a ordenar entre diversos outros contratos dessa natureza: ela opera como um acto nuclear cujo conteúdo constitui, na prática, o tronco comum dos diversos actos bancários subsequentes: com ela, inicia-se entre as partes outorgantes uma relação complexa e que envolve a prática de novos negócios jurídicos.  É com referência a este contrato, complementado com a lei e os usos, que os negócios celebrados posteriormente ganham sentido num todo global.

II. A assunção das funções de custódia, por banda do Intermediário financeiro, depende da celebração desse contrato com os titulares desses valores.

III. O contrato de registo e depósito de valores mobiliários – que se não confunde com outros tipos de contratos como, por exemplo, o contrato de depósito bancário – é um contrato pelo qual o intermediário financeiro se obriga, a título principal, a registar ou a manter em depósito determinados valores mobiliários – obrigando-se também, em princípio, a título acessório, a prestar os serviços relativos aos direitos que são inerentes aos valores mobiliários registados ou depositados.

IV. Em tal contrato, podemos encontrar duas modalidades distintas: depósito de simples custódia –  que consiste na simples guarda dos instrumentos financeiros depositados e na cobrança dos respectivos rendimentos –  e depósito de administração – aqui, o intermediário vincula-se a uma obrigação de administração dos valores depositados.

V. Em princípio, as inscrições de movimentos a débito ou a crédito têm uma eficácia meramente declarativa das operações que representam, pelo que o crédito representado pelo saldo contabilístico não corresponde, frequentemente, ao crédito real resultante das operações efectivamente realizadas, mas ainda não escrituradas.

VI. Como tal, a natureza causal de todas as inscrições contabilísticas permite concluir que o simples registo em conta de determinada movimentação não confere, por si só, um direito de crédito ao reembolso das quantias registadas e justifica a correção de erros ou lapsos no lançamento contabilístico de movimentos a crédito ou a débito.

VII. Tendo o Autor subscrito uma “obrigação Araras Finance BV” (entidade emitente), sendo depositário da mesma o Deutsche Bank que era também o Agente Pagador Principal – sendo o Agente Distribuidor e Agente de Cálculo de emissão a Orey Mangement Cayman – , ficando o banco réu apenas com a custódia da mesma (depósito de simples custódia – guarda do instrumento financeiro depositado e cobrança dos respectivos rendimentos), é licito ao banco,  ao aperceber-se que a entidade emitente não procedera ao seu pagamento, fazer o estorno do crédito do valor da obrigação que, no mesmo dia,  havia feito na conta do Autor à data da sua maturidade.

VIII. É que, a referida inscrição contabilística – declarativa e não constitutiva de direitos –  foi realizada com a expectativa de que o pagamento pelo emitente ocorreria de forma simultânea ou pelo menos temporalmente próxima; não tendo este pagamento ocorrido, justifica-se a actuação do banco que podia, como acabou por fazer, anular ou corrigir o respectivo movimento escritural, de modo que a respectiva conta bancária representasse a relação de depósito.

IX. Ou seja, tendo a inscrição contabilística precedido a operação real esperada – o que ocorreu por força dos procedimentos internos do banco – e não tendo a operação real subjacente chegado a concretizar-se, tal inscrição não poderia permanecer (não podendo, como tal, o Autor arrogar-se titular do direito de crédito correspondente ao valor inscrito na conta), sob pena de se colocar em causa a função representativa da conta bancária.

X. Com efeito, à data da maturidade (vencimento) era a entidade emitente (Araras Finance BV) a única entidade adstrita à obrigação de pagamento convencionada, tendo o banco actuado, apenas e só, na veste de entidade de custódia.

XI. Sendo que o movimento de estorno realizado pelo banco não consubstancia uma obrigação inserida em relação de mandato (artº 1157º Código Civil), nem se está perante cumprimento de obrigação alheia, na convicção de se estar obrigado a cumpri-la (478.º do CC).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível



I – RELATÓRIO


AA e BB instauraram acção declarativa de processo comum contra BANCO BPI., S.A.

Pedem a condenação o Réu a:

a) Restituir aos AA. a quantia de €98.477,13, a título de incumprimento contratual, acrescida de juros de mora vencidos (no montante de € 1.586,43 até à data de entrada da ação) e vincendos à taxa legal aplicável desde a data da movimentação ilícita (29.11.2019), até integral pagamento;

b) Pagar aos AA. uma indemnização de valor correspondente aos custos suportados e a suportar com a defesa dos seus direitos, incluindo honorários de advogados relativos a assessoria jurídica extrajudicial e ao patrocínio da presente ação, a liquidar no decurso da ação ou em futuro incidente de liquidação nos termos da alínea b), do n.º 1 do artigo 556.º, do CPC;

c) Pagar aos AA. uma indemnização pelos danos morais sofridos em consequência do incumprimento contratual, a fixar de acordo com juízos de equidade, mas de montante não inferior a €20.000,00, (sendo €15.000,00 pelos danos sofridos pelo A. AA e €5.000,00 pelos danos incorridos pela A. BB) acrescido de juros de mora vincendos à taxa legal aplicável desde a citação até integral pagamento.


Causa de pedir:

Responsabilidade civil do Réu (danos patrimoniais e não patrimoniais) por incumprimento do contrato de abertura de conta relativo à Conta Valor BPI com o n.º ...01 da qual os Autores são cotitulares, pelo débito ilícito da quantia de €98.477,13 que ali foi creditada em cumprimento do reembolso de 1 Obrigação Araras Finance BV, com o ISIN ...29, custodiada no Réu.


O Réu contestou, alegando, em suma, que o movimento a crédito da quantia de €98.477,13 na conta dos Autores foi um processamento antecipado baseado num erro operacional, pelo que foi feito outro movimento a débito, com estorno do valor, sendo tal procedimento legítimo ao abrigo da cláusula 8 das Condições Gerais de Abertura de Conta.

Assim, não se encontram verificados os requisitos da responsabilidade civil, não incorrendo na obrigação de indemnizar os Autores, devendo a ação ser julgada improcedente.


Foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu o Réu de todos os pedidos.


Os Autores Apelaram, pugnando pela revogação da sentença, vindo a Relação de Évora, ema acordão, a proferir a seguinte

“IV- DECISÃO

Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente:

Revogam a sentença recorrida quanto à absolvição do Réu do pedido formulado na alínea c) do petitório, condenando-o, outrossim, a pagar ao Autor AA a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais;

No demais, confirmam a sentença recorrida.”.


De novo inconformados, os AA apresentaram recurso de revista (normal e, subsidiariamente, excepcional), apresentando alegações que rematam com as seguintes


CONCLUSÕES:

O presente recurso tem por objeto o Acórdão do Tribunal a quo, proferido em 30.06.2022, na parte em que julgou integralmente improcedente o pedido de restituição aos Recorrentes da quantia de € 98.477,13 (noventa e oito mil e quatrocentos e setenta e sete euros e treze cêntimos), a título de incumprimento contratual, acrescida de juros de mora vencidos (no montante de € 1.586,43 até à data de entrada da ação)e vincendos à taxa legal aplicável desde a data da movimentação ilícita (29.11.2019), até integral pagamento.


Contrariamente ao que vinha sustentado pelo Tribunal de Primeira Instância e que constituiu o fundamento para julgar a ação totalmente improcedente, o Tribunal a quo, através do Acórdão de que se recorre, considerou que o crédito da quantia de € 98.477,13 na conta dos Recorrentes, no dia 29 de novembro de 2019, não se tratou de qualquer erro operacional do Recorrido, pelo que o “estorno” nunca poderia ser realizado ao abrigo das Condições Gerais do Contrato de Abertura de Conta.


C. Tendo afastado expressamente a existência de um erro de procedimento no pagamento daquela quantia e afastado expressamente a aplicabilidade das Condições Gerais do Contrato de Abertura de Conta, o Tribunal a quo decidiu julgar improcedente o pedido de restituição da quantia de € 98.477,13, porém com fundamentação essencialmente diferente daquela que vinha aduzida pelo Tribunal da Primeira Instância:

(a) Quanto ao movimento de crédito, o Tribunal a quo considerou que não resultou de qualquer erro operacional, tendo o Recorrido atuado de acordo com os procedimentos internos que o mesmo adotou para pagamento de valores mobiliários; e

(b) Quanto ao fundamento para realização do movimento de débito na conta dos Recorrentes, o Tribunal a quo considerou que “o estorno do valor depositado enquadra-se no âmbito das funções a cargo do depositário. A regra da boa fé, em gera, prevista no artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil, impõe tal entendimento. Esse mesmo princípio também é inerente às funções do intermediário financeiro como decorre do n.º 2 do artigo 304.º do CVM”.


D. É desse entendimento do Tribunal a quo quanto (a) à qualificação jurídica (ou ausência de qualificação jurídica) do movimento de crédito e (b) à regularidade do referido movimento de débito que os Recorrentes discordam e que constitui objeto do presente recurso.


E. Apesar de ter confirmado a decisão do Tribunal da Primeira Instância quanto à improcedência do pedido de restituição da quantia de € 98.477,13, o Tribunal a quo sustentou a sua decisão em fundamentação essencialmente diferente, tendo, inclusivamente, aditado factualidade ao acervo de factos provados, pelo que não se verifica uma situação de “dupla conforme” e, face ao valor do pedido e à sucumbência, estão verificados todos os pressupostos para interposição de recurso de revista (cfr. artigo 671.º, n.ºs 1 e 3 do CPC).


F. Conforme resultou provado nos autos, o Recorrido implementou um procedimento  interno de pagamento de valores mobiliários que “desvirtua” as obrigações típicas de um contrato de depósito.


G. E fê-lo de forma consciente e intencional, optando por realizar pagamentos com os seus próprios fundos, ainda antes de ter recebido os fundos correspondentes da Entidade Emitente através do circuito de valores mobiliários dado como provado no ponto 2.1.25 dos factos provados: «2.1.25. O circuito dos valores mobiliários faz-se do seguinte modo: O Banco BPI recebe da “Euroclear”, que por sua vez recebe do Deutshe Bank, que por sua vez recebe da entidade emitente» (cfr. ponto 2.1.25 dos Factos Provados).


H. Resulta também da matéria de facto dada como provada que a data de vencimento/pagamento da Obrigação ArarasFinanceBV, como ISIN ...29, ocorreu, efetivamente, a 29 de novembro de 2019, data em que o Recorrido procedeu ao crédito da quantia de € 98.477,13 na conta dos Recorrentes – o que significa que o referido pagamento correspondeu, efetivamente, ao reembolso daquela Obrigação.


Com efeito, e conforme resulta da factualidade aditada pelo Tribunal a quo ao acervo de factos provados, o Recorrido tinha parametrizado no seu sistema a informação transmitida pela Entidade Emitente relativamente à Obrigação Araras Finance BV, com o ISIN ...29, sendo que foi com base nessa informação que o Recorrido procedeu aopagamento aos Recorrentes da quantia de € 98.477,13, a título de reembolso da referida Obrigação.


J. Ou seja, as informações veiculadas pela Entidade Emitente no ciclo de vida do valor mobiliário (seja as que se encontram definidas na ficha técnica, seja as alterações  posteriormente comunicadas) constituem uma ordem de pagamento, até indicação em contrário.


K. Assim, o pagamento da quantia de € 98.477,13, realizado pelo Recorrido aos Recorrentes em 29.11.2019, apenas poderá reconduzir-se às seguintes qualificações jurídicas: (i) cumprimento de uma obrigação por terceiro no âmbito de uma relação de mandato, próprio ou impróprio, no âmbito de uma relação de custódia (artigo 767.º do CC); (ii) cumprimento de uma obrigação por terceiro interessado ou não no cumprimento (artigo 767.º do CC); ou (iii) cumprimento de uma obrigação alheia na convicção de estar obrigado a cumpri-la (478.º do CC).


L. Dos factos provados resulta que o Recorrido pagou aos Recorrentes cumprindo as instruções previamente recebidas da Entidade Emitente via cadeia de custódia de pagamento e registadas no seu sistema informático, optando, de acordo com os seus procedimentos internos, por não aguardar pelo prévio recebimento dos fundos, pelo que temos um pagamento por conta da Entidade Emitente no âmbito de uma relação de mandato, próprio ou impróprio, no âmbito da relação de custódia.


M. Esta antecipação de fundos efetuada no âmbito de uma relação de custódia faz, naturalmente, correr por conta do custodiante local (Recorrido) o risco da não obtenção dos fundos correspondentes através da referida cadeia de pagamentos.


N. O Recorrido reembolsou a Obrigação subscrita em cumprimento de indicações recebidas da Entidade Emitente via “cadeia de custódia/pagamentos”, pelo que o pagamento feito pelo Recorrido aosRecorrentesse tratou, juridicamente, de um pagamento por conta da Entidade Emitente.


O. O artigo 767.º do CC vem admitir, em termos amplíssimos, que qualquer terceiro – interessado ou não no cumprimento da obrigação – realize a prestação, desde que esta  substituição não prejudique o credor ou não tenha sido expressamente afastada por acordo com ele.


P. Ao realizar aquele pagamento aos Recorrentes, o Recorrido fez extinguir a obrigação da Entidade Emitente perante os Recorrentes, porquanto, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 767.º do CC, a realização da prestação debitória por terceiro (Recorrido) tem eficácia liberatória do devedor (Entidade Emitente) perante o credor (Recorrentes), não havendo, pois, lugar à repetição daquilo que foi prestado, pelo que o “estorno” efetuado pelo Recorrido é ilegal.


Q. Caso se entenda que o Recorrido pagou aosRecorrentesfora de qualquer relação de mandato (próprio ou impróprio) com a Entidade Emitente, sabendo que não era uma obrigação sua, mas tendo-o feito com animus solvendi debiti alieni, isto é, com intenção de cumprir uma obrigação alheia, tal atuação subsume-se, também, ao regime previsto no artigo 767.º do CC.


R. Como decorre expressamente da lei e a jurisprudência confirma, sendo a prestação fungível – que é o caso – o terceiro pode efetuá-la com ou sem interesse no cumprimento da obrigação alheia (cfr. Acs. do STJ de 28.01.2015 e de 19.05.2015 e da RL de 18.09.2007, todos disponíveis em www.dgsi.pt).


S. Por hipótese, o Recorrido poderá ter implementado nos seus procedimentos internos o reembolso automático dos valores mobiliários por uma questão de conveniência e celeridade no processo de pagamentos.


T. Neste caso, tem igualmente aplicação o regime do artigo 767.º do CC, sendo, pois, idêntica a conclusão de que o pagamento realizado pelo Recorrido extinguiu a obrigação da Entidade Emitente, não havendo lugar à repetição, nos termos do artigo 767.º do CC, pelo que o “estorno” efetuado pelo Recorrido é ilegal.


U. Subsidiariamente, caso se entenda que o Recorrido (terceiro) realizou a prestação sem o referido animus solvendi debiti alieni, ou seja, sem intenção de cumprir uma obrigação alheia, na convicção errada de estar obrigado à realização da mesma, deve o referido pagamento ser tido como pagamento indevido, ao qual será aplicável o regime do artigo 478.º do CC.


V. O referido preceito versa sobre a hipótese de o Recorrido ter cumprido uma obrigação alheia efetivamente existente, tendo plena consciência de que a mesma é alheia, mas acreditando erradamente estar obrigado para com o devedor a cumpri-la.


W. Tal situação parece ser de afastar, uma vez que o Recorrido, em conformidade com os seus procedimentos internos nesta matéria, aceitou correr o risco de pagar por conta da Entidade Emitente, sem que, na data do cumprimento da obrigação de reembolso, tivesse recebido previamente os respetivos fundos através da cadeia de intermediação e custódia, ou seja, efetuou uma prestação mesmo sabendo que não estava obrigado a cumpri-la, pois ainda não tinha recebido os fundos através dessa cadeia.


X. Não obstante, caso se entenda que o pagamento efetuado pelo Recorrido se subsume à previsão do artigo 478.º do CC, uma vez que é manifesto que o credor (Recorrentes) desconhecia o erro do Recorrido, nunca poderia este ter repetido a prestação contra os Recorrentes, isto é, ter efetuado o “estorno”, pelo que o mesmo é ilegal.


Y. Assim, independentemente da qualificação jurídica atribuída ao pagamento realizado pelo Recorrido, dúvidas não restam de que, por um lado, o referido pagamento extinguiu a obrigação da Entidade Emitente perante os Recorrentes e, por outro lado, não há lugar à repetição do mesmo contra os Recorrentes.


Z. É, pois, manifesto que o Tribunal a quo incorreu em violação de lei substantiva, nos termos do disposto no n. º 1 do artigo 674.º do CPC, na modalidade de erro na determinação da norma aplicável à matéria de facto relevante, no que respeita ao pagamento da quantia de € 98.477,13 efetuado pelo Recorrido na conta dos Recorrentes, em 29 de novembro de 2019.


AA. No que ao “estorno” efetuado pelo Recorrido respeita, o Tribunal a quo, ainda que sem o qualificar em termos técnico-jurídicos, enquadrou-o “no âmbito das funções a cargo do depositário” e concluiu que tal entendimento se impõe pela “regra da boa-fé, em geral, prevista no artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil”, princípio esse que “também é inerente às funções do intermediário financeiro como decorre do n.º 2 do artigo 304.º do CVM” (cfr. Acórdão proferido pelo Tribunal a quo).


BB. Não se vislumbra como é que um princípio geral pode derrogar por completo o regime do cumprimento por terceiro previsto, designadamente, nos artigos 767.º e 478.º, ambos do CC, porquanto, ao efetuar o movimento de débito (“estorno”) na conta dos Recorrentes, o Recorrido violou diretamente o regime previsto no artigo 767.º do CC (e 478.º do CC, caso se entenda) no que respeita à repetição da prestação feita por terceiro, pelo que o entendimento do  tribunal a quo quanto à regularidade do movimento de débito na conta dos Recorrentes é um entendimento contra legem.


CC. Apesar de o Recorrido ser uma entidade bancária e ter ao seu dispor os meios técnicos necessários para efetuar movimentos de crédito e débito nas contas dos seus clientes, tal disponibilidade de meios não pode, naturalmente, redundar em situações de clara violação da lei, como é presente caso.


DD. E é justamente por ser ilegal que o Recorrido tentou sustentar o “estorno” na Cláusula 8.9 das Condições Gerais associadas à abertura de conta (Conta Valor), cuja aplicação ao caso em apreço o Tribunal a quo rejeitou, e bem: “não se pode considerar que o débito da quantia antes creditada tem respaldo nas condições gerais do contrato” (cfr. Acórdão proferido pelo Tribunal a quo).


EE. Recorde-se que foi o Recorrido quem, deliberada e conscientemente, optou por implementar um procedimento interno de pagamento de valores mobiliários (dos quais é mero custodiante) que assenta numa antecipação de fundos próprios (ou seja, ainda antes de ter recebido os fundos por parte do Euroclear), pelo que a eventual falta de pagamento do referido valor mobiliário pela Entidade Emitente é um risco que foi ponderado e assumido de forma calculada pelo Recorrido.


FF. Nessa medida, tendo resultado provado nos autos que o Recorrido atuou nos exatos moldes por si implementados e não em circunstâncias excecionais ou em que tenha ficado inadvertidamente colocado, não há que atender, como pretende o Tribunal a quo, ao “circunstancialismo que determinou a atuação do Réu”, nem chamar à colação o princípio geral da boa-fé.


GG. Face ao exposto, impõe-se concluir que o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo enferma, também por este motivo, de erro na determinação da norma aplicável à matéria de facto relevante no que respeita ao “estorno” da quantia de € 98.477,13 efetuado pelo Recorrido na conta dos Recorrentes, em 29.11.2019.


HH. A revista excecional é interposta subsidiariamente, pois o primeiro pressuposto de admissibilidade da mesma é a verificação da situação de “dupla conforme”, consagrada no n.º 3 do artigo 671.º do CPC, que, conforme devidamente demonstrado supra, não se verifica no caso em apreço.


II. No entanto, caso se entenda que o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância – no que não se concede – do referido Acórdão sempre caberá recurso de revista excecional, nos termos da alínea a), do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.


JJ. No caso em apreço está em causa uma questão cuja apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, pela sua “relevância jurídica” é “claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.


KK. Trata-se de uma questão que, por implicar um considerável grau de complexidade ao nível das operações lógicas e jurídicas e por deter a faculdade de se repetir, nos seus traços teóricos, num número indeterminado de situações futuras, assume “relevância jurídica”.


LL. Além disso, a admissão do presente recurso é “claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, tendo em conta que as instâncias furtaram-se a qualificar juridicamente o pagamento realizado pelo Recorrido aos Recorrentes, o que é revelador da necessidade de se proceder ao enquadramento jurídico dos pagamentos realizados nestas circunstâncias.


MM. Caso assim não se entenda, caberá sempre recurso de revista excecional, na medida em que estamos perante a situação descrita na alínea c), do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.


NN. A não aplicação pelo Tribunal a quo da regra geral prevista no n.º 1 do artigo 767.º do CC ao caso sub judice é refutada pelo Acórdão deste Venerando Tribunal, de 12.09.2013, disponível em www.dgsi.pt, de acordo com o seguinte excerto: “Não se verificando tal interesse no  cumprimento, não ocorre a transmissão (a não ser que se trate de sub-rogação convencional, onde a vontade do credor ou do devedor, devidamente manifestada, supre a eventual falta de interesse), caindo-se na regra geral do Art.º 767º, n.º 1 do C.C., segundo o qual, a prestação pode ser feita tanto pelo devedor como por terceiro, interessado ou não no cumprimento da obrigação” (negrito e sublinhado nossos).


OO. Considerando que no Acórdão acima citado – já transitado em julgado – encontramos posição totalmente antagónica à perfilhada pelo Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, relativamente à mesma questão de direito, conclui-se pela admissibilidade da revista excecional, também ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, o que, subsidiariamente, se requer.


Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado integralmente procedente e, em consequência, determinar-se a revogação do Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, na parte em que confirmou a Sentença recorrida quanto à alínea a) do petitório, e a sua substituição por outro que condene o Recorrido a pagar aos Recorrentes a quantia de € 98.477,13 (noventa e oito mil e quatrocentos e setenta e sete euros e treze cêntimos), a título de incumprimento contratual, acrescida de juros de mora vencidos (no montante de € 1.586,43 até à data de entrada da ação) e vincendos à taxa legal aplicável desde a data da movimentação ilícita (29.11.2019), até integral pagamento.


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O Réu contra-alegou, pugnando pela improcedência da revista, com a confirmação da decisão recorrida.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO


A revista (normal) é admissível. É que, como referem os AA no ponto 6. das suas alegações,  tendo o presente recurso “por objeto o Acórdão do Tribunal a quo, proferido em 30.06.2022, na parte em que julgou integralmente improcedente o pedido de restituição aos Recorrentes da quantia de € 98.477,13 (noventa e oito mil e quatrocentos e setenta e sete euros e treze cêntimos), a título de incumprimento contratual, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos”, tendo em conta que a fundamentação vertida em ambas as instâncias é essencialmente diferente, não há lugar a dupla conforme, ut artº 671º, nº3 do CPC.

Com efeito, dispõe o n.º 3, do art. 671.º do CPC, que não é admissível recurso de revista “normal” sempre que o tribunal da Relação confirme a sentença da 1.ª instância, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente.

No caso em análise, os recorrentes colocam em crise a decisão proferida pelo tribunal da Relação de Évora, na parte em que o mesmo confirmou a absolvição do réu dos pedidos formulados em a) e b), supra mencionados.

Ora, a jurisprudência claramente maioritária do STJ, propugna o entendimento de que, sempre que a parte dispositiva da decisão contenha segmentos decisórios distintos e autónomos, a dupla conforme deve ser aferida em função de cada um desses segmentos individualmente considerados, de modo que apreciar se a Relação confirmou apenas parte dos diversos segmentos decisórios.

Nas palavras do acórdão do STJ, de 13-05-2021 (proc. n.º 10157/16.3T8LRS.L1.S1, Relatado pelo aqui relator[1]: “I. Havendo diversos segmentos decisórios (uns favoráveis, outros não), distintos e autónomos, o conceito de dupla conforme terá de se aferir, separadamente, relativamente a cada um deles. II. Assim, só não há dupla conforme (havendo revista normal nessa parte) no segmento em que a Relação não confirme a decisão da 1ª inst. (ou confirme mas com fundamentação essencialmente diferente) (…)” (em idêntico sentido, vejam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ de 10-05-2021[2], 6-04-2021[3], 12-01-2021[4], 21-05-2020[5] e 23-05-2019[6]).

Veja-se que este entendimento veio a ser consolidado no recente AUJ proferido no âmbito do processo n.º 545/13.2TBLSD.P1.S1-A, em 20-09-2022, que, muito embora não tenha aplicação ao caso concreto, não deixa de sedimentar uma posição claramente maioritária deste STJ, no sentido da admissibilidade da segmentação das decisões.

Transpondo as considerações supra ao caso ajuizado, importa salientar que, no que concerne ao pedido de condenação do réu no pagamento da quantia de € 98 477,13, verifica-se inteira autonomia face ao segmento decisório que veio a ser revogado pelo tribunal da Relação e que os recorrentes não colocam em crise.

Dito isto, importa, então, aferir se o tribunal da Relação, para além de ter confirmado, na integra, tal segmento decisório, o fez com recurso a uma fundamentação essencialmente idêntica.

Neste âmbito, o STJ tem entendido, de forma reiterada, que para afirmar a existência de fundamentação essencialmente diferente não basta que se constante uma qualquer modificação ou alteração da fundamentação, sendo antes indispensável que ocorra uma diversidade estrutural e diametralmente diferente no plano da subsunção do enquadramento normativo da mesma matéria litigiosa. Assim, apenas deixa de se verificar uma situação de dupla conforme “quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada” – acórdão do STJ de 17-11-2021[7] (Reclamação n.º 22990/16.1T8PRT-B.P1-A.S1, Rel. Oliveira Abreu, disponível em www.dgsi.pt).


Ora, como é bom de ver, a Relação, em sequência da impugnação da decisão da matéria de facto, aditou a matéria factual ao acervo dos factos provados, matéria factual essa que teve marcante influência na fundamentação da decisão de mérito da Relação: se, por um lado, a 1ª Instância entendeu que o estorno da quantia de € 98.477.13 tinha abrigo nas Condições Gerais juntas aos autos pelo Recorrido (aludindo à existência de uma situação de “erro”/“lapso”), já a Relação entendeu que não se estava perante qualquer situação de erro/lapso no processamento do crédito da quantia de € 98.477,13 na conta dos Recorrentes, assim afastando a aplicação daquelas Condições Gerais. Mas mais: se é certo que a Relação também concluiu pela licitude do estorno realizado pelo Recorrido, fê-lo, no entanto, estribando-se em fundamentação completamente diferente, na medida em que trouxe à colação o princípio geral da boa-fé ínsito no artigo 762.º, n.º 2 do Código Civil, considerando que a conduta do Recorrido tem suporte nesse princípio.

 

Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).

Assim, muito embora exista uma convergência decisória quanto à inexistência de um dever de reembolso, o que é certo é que o juízo quanto à licitude/ilicitude da conduta imputada ao réu assentou em enquadramentos jurídicos autónomos, tendo o acórdão recorrido um carácter inovatório face à sentença da 1.ª instância.

É quanto basta para afastar a verificação de uma situação de dupla conformidade decisória obstativa da admissibilidade de recurso “normal” de revista.


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões são:
    • Da qualificação do contrato celebrado entre recorrentes e recorrido;
    • Da (i)licitude do movimento de débito (“estorno” – realizado pelo banco Recorrido em 29 de Novembro de 2019, na conta dos Recorrentes).

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III – FUNDAMENTAÇÃO


III. 1. FACTOS PROVADOS

Factualidade provada (após impugnação em recurso da decisão da matéria de facto):

2.1.1. Os AA são clientes do Banco BPI, balcão de ..., desde 1989.

2.1.2. Em 1989, os AA abriram junto do Banco BPI, a Conta de Depósito de Valores com o nº ...01 (conta valor) e celebraram para o efeito, o correspondente Contrato de Abertura de Conta.

2.1.3. Como é prática do sector bancário, os AA limitaram-se a assinar o referido contrato que foi exclusivamente elaborado pelo BPI, subscrevendo as condições gerais sem qualquer negociação prévia individual e, bem assim, sem que tivesse ou pudessem ter tido qualquer influência no seu conteúdo.

2.1.4. Em 2012, por recomendação de CC, gestor de conta, funcionário da Orey Financial, Instituição de Crédito S.A., que lhe apresentou o produto como sendo seguro e adequado para o seu perfil de risco, o A. AA, subscreveu 1 obrigação Araras Finance BV, com o ISIN ...29, com o valor nominal de €100.000,00, e com data de maturidade de 30 de Novembro de 2016.

2.1.5. De acordo com o resumo das condições deste instrumento financeiro, o emitente foi Araras Finance BV, o banco depositário da emissão foi o Deutsche Bank que era também o Agente Pagador Principal, sendo a denominação de €100.000,00, e o montante de investimento mínimo inicial também de €100.000,00 [Vide doc. de fls. 23]

2.1.6. Ainda de acordo com o referido resumo, o Agente Distribuidor e Agente de Cálculo de emissão foi a Orey Mangement Cayman. [Vide doc. de fls. 23]

2.1.7. A obrigação em causa era de “cupão zero” pelo que não pagava juros periódicos. [Vide doc. de fls. 23]

2.1.8. A data inicial de maturidade - 30 de Novembro de 2016 - foi posteriormente modificada, em assembleia de obrigacionistas, para o dia 30 de Novembro de 2019.

2.1.9. De acordo com a convenção do “Convenção do Dia Útil Seguinte Modificado”, quando a data de pagamento não seja um Dia Útil de Liquidação, esse pagamento será ajustado para o Dia útil de Liquidação imediatamente seguinte, excepto se o primeiro dia útil imediatamente seguinte pertencer ao mês seguinte, caso em que deverá ser considerado o Dia útil imediatamente anterior,

2.1.10. Assim, tendo o dia 30 de Novembro de 2019, correspondido a um dia não útil (sábado) e o primeiro dia útil seguinte pertencer ao mês seguinte ( 2 de Dezembro de 2019 - 2ª Feira) pelo que o pagamento foi antecipado para o dia 29 de Novembro de 2019 (sexta-feira).

2.1.11. No dia 28 de Novembro de 2019, encontrava-se depositada na conta dos AA junto do BPI, a obrigação obrigação Araras Finance BV, com o ISIN ...29, com o valor nominal de €100.000,00, de que o Banco BPI era custodiante.

2.1.12. No dia 29 de Novembro de 2019, o BPI, ora Réu, creditou na conta dos Autores, com o número ...01, a quantia de €98.477,13, com a mesma data/valor e com a descrição “Operações com títulos Araras BV-CZ-19”, tendo a referida conta ficado, em consequência, com um saldo positivo de €105.794,31 [Vide Extrato junto a fls. 24 a 26]

2.1.13. Após o crédito da referida quantia, o Autor AA, procedeu a cinco operações de pagamento com a descrição “pagamento serviços internet” e ao levantamento de numerário numa Caixa Automática, ficando a conta com um saldo de €105.144,24 [Vide Extrato junto a fls. 24 a 26]

2.1.14. Realizou ainda operações em bolsa tendo adquirido acções (Altri GPS e The Navigator Company) no valor global de €31.700,00 [Vide Extrato junto a fls. 24 a 26]

2.1.15. Com data de valor de 29 de Novembro de 2019, ao Banco BPI, ora Réu, debitou a conta dos Autores pela quantia de €98.477,13, com a descrição “Operações com títulos Araras BV-CZ-19”. [Vide Extrato junto a fls. 24 a 26]

2.1.16. Em consequência desse débito a conta dos Autores ficou com um saldo negativo de € 25.053,48, tendo o Réu debitado juros, que veio a repor mais tarde. [Vide Extrato junto a fls. 24 a 26]

2.1.17. No Extrato junto a fls. 24 a 26, consta, ainda, no campo “Obrigações” e relativamente ao instrumento Araras BV-CZ-19-30-11-2019, o movimento “Substituição de Títulos”, com data de movimento e data valor de 29.11.2019, com a quantidade/montante 100.000,000 e valor aplicado 100.000,00 e com um saldo atual de 100.000,00 [Vide Extrato junto a fls. 24 a 26]

2.1.18. (…) e 44.000.0000 da Soc. Comercial Orey Antunes com o valor aplicado de 44.000,00 e saldo actual de 40.964,00 [Vide Extrato junto a fls. 24 a 26]

2.1.19. Os AA não autorizaram o débito da quantia de € 98.477,13, nem autorizaram ou ordenaram a aquisição ou subscrição de quaisquer obrigações ou substituição de títulos,

2.1.20. Em 4 de Dezembro de 2019 o Autor AA, apresentou uma reclamação aos Réu, interpelando-o para restituir a quantia debitada e bem assim, para não serem cobrados juros pelo descoberto gerado pelo débito da referida quantia. [Vide doc. de fls. 28]

2.1.21. Em 26 de Dezembro de 2019, o Réu, foi, ainda, interpelado pelo mandatário dos Autores para restituir a quantia de € 98.,447,13 [Vide doc. de fls 27]

2.1.22. No dia 10 de Janeiro de 2020, foi apresentada, em representação do Autor AA, uma reclamação junto do Banco de Portugal, através do Portal do Cliente Bancário, a qual à data de entrada da acção se encontrava a aguardar análise e resposta, tenho o BPI já sido interpelado para prestar informação ao Banco de Portugal.

2.1.23. Já depois da apresentação da referida reclamação junto do Banco de Portugal, o BPI enviou carta ao Autor datada de 10 de Fevereiro de 2020, mas recebida a 19 de Fevereiro, na qual, além do mais refere:

“(..) Em resposta ao assunto exposto esclarecemos que a emitente OREY, em, Processo Especial de Revitalização (PER) não pagou a amortização do cupão ARARAS BV-CZ- 30.11.2019 -XS071211282 que estava prevista para o dia 30 de Novembro de 2019, pelo que o Banco procedeu ao estorno da quantia que antecipou e que seria devida pelo emitente.

Informamos ainda que, ao abrigo do disposto na cláusula 8.9 das Condições Gerais de Abertura de Conta, o titular expressamente reconhece ao Banco o direito de estornar quaisquer movimentos efectuados, nomeadamente em caso de erro ou lapso e, ainda, nas demais circunstâncias em que tal estorno se justifique, sendo o estorno efectuado com data-valor igual à do movimento original. Aproveitamos para comunicar que o Banco procedeu ao estorno dos juros devidos da conta de depósitos à ordem e respectivo imposto de selo, no total de 20,50 euros, relativos aos dias 3 e 4 de dezembro de 2019. Mais informamos que não se verificou comunicação ao Banco de Portugal relativa ao descoberto registado na conta de depósitos à ordem de V. Exa. Nas datas referidas” [Vide doc. de fls. 28]

2.1.24. Na “Declaração IRS - Registo de Valores Mobiliários” emitido pelo Banco BPI, em 20.01.2020., da Autora BB, referente ao ano de 2019, consta, além do mais, uma subscrição/aquisição e o reembolso de 1 obrigação Araras BV-CZ-30.11.2019, com o saldo a zero em 31.12.2019. [Vide docs. de fls.29 e 29v]

2.1.25. O circuito dos valores mobiliários faz do seguinte modo:

O Banco BPI recebe da “Euroclear”, que por sua vez recebe do Deutshe Bank, que por sua vez recebe da entidade emitente.

2.1.26. Em consequência do débito efectuado na Conta, o Autor AA sentiu-se frustrado e revoltado, face à ausência de informações por parte do BPI e por todo tempo que despendeu junto do BPI para obtenção das mesmas.

2.1.27. Em virtude da conduta do Banco BPI, o Autor AA deixou de praticar e retirar prazer de algumas actividades que apreciava, tais como pequenos trabalhos de horticultura e de criação de animais que se viu forçado a vender.

2.1.28. O Autor AA sofre de hipertensão e em virtude da conduta do Banco BPI, o seu estado de saúde agravou-se consideravelmente, tendo passado a sofrer de episódios frequentes de tensão arterial descontrolada, fruto da ansiedade e a sofrer tonturas que determinou, além do mais, e necessidade de realização de consultas médicas e medicação com ansiolíticos. [Vide docs de fls.61v a 68]

2.1.29. (..) e passou a sentir-se frequentemente deprimido e triste, tendo entrado em quadro de depressão. [Vide doc. de fls.67v e 68]

2.1.30. O Autor AA tem um perfil de investidor em produtos financeiros de risco. [Vide extracto de fls. 25]

2.1.31. Em 11 de Dezembro de 2019, o Autor AA, a fim de apresentar reclamação de créditos no PER da Sociedade Comercial Orey Antunes S.A., solicitou ao Banco BPI, declaração em como na sua conta de títulos se encontrava depositadas obrigações no valor de €44.000,00 [Vide doc. de fls. 53 e extracto de fls. 25]

2.1.32. Em 13 de Dezembro de 2019, e a fim de participar em Assembleia Geral, o Autor AA, identificando o título Araras BV, solicitou ao Banco BPI declaração urgente em como era portador de 100.000 obrigações daquele produto. [Vide doc. de fls. 54]

2.2.33. (aditado pela Relação): «O Banco BPI parametriza os seus sistemas informáticos introduzindo a informação da data e valor de reembolso definida na ficha técnica do valor mobiliário e posteriores atualizações comunicadas pela Entidade Emitente, recebidas pelo BPI através da Euroclear.

Na ausência de informação em contrário, o Banco BPI, durante o processamento noturno da data parametrizada no seu sistema para o reembolso do valor mobiliário, procede ao crédito nas contas dos seus clientes, de forma automática e com recurso a fundos próprios, da quantia correspondente ao reembolso do valor mobiliário e só depois recebe os fundos correspondentes por parte dos seus custodiantes. No dia 29 de novembro de 2019, a informação que existia no mercado era que a Obrigação Araras Finance BV, com o ISIN ...29 iria ser paga, não havia nenhuma informação de que a Entidade Emitente iria incumprir e, por esse motivo, o Banco BPI procedeu ao crédito da quantia de €98.477,13 na conta dos Apelantes, de acordo com a informação que tinha parametrizada nos seus sistemas, nos termos referidos no ponto 2.1.12 dos factos provados.

Durante do dia 29-11-2019, o BPI através da Euroclear foi informado que o pagamento não iria ser efetuado porque a Euroclear não o tinha recebido do Deutsche Bank, que, por sua vez, não o recebeu da Emitente, pelo procedeu em conformidade com o dado como provado no ponto 2.1.15 dos factos provados».


2.2. Factos não provados

2.2.1. O Banco BPI recebeu fundos do Deutsche Bank para reembolso da obrigação. ARARAS BV-CZ- 30.11.2019 - XS071211282

2.2.2. O Banco BPI recebeu instrução do Deutsche Bank para proceder ao reembolso da obrigação ARARAS BV-CZ- 30.11.2019 - XS071211282.2.2.3.  

2.2.3. O pagamento do reembolso ao reembolso da obrigação ARARAS BV-CZ- 30.11.2019 -XS071211282., pelo Banco BPI, foi feita por conta do Deutsche Bank.

2.2.4.   O Autor AA já tinha assumido compromissos perante terceiros que implicavam a utilização de parte da quantia que lhe foi debitada.


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO


Analisemos, então, as questões suscitadas na revista: da qualificação do contrato celebrado entre recorrentes e recorrido e da (i)licitude do movimento de débito (“estorno” – realizado pelo banco Recorrido em 29 de Novembro de 2019, na conta dos AA/Recorrentes).


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Parece que dúvidas não haverá no que tange à qualificação jurídica do contrato celebrado entre os recorrentes e o banco recorrido propugnada pelas instâncias – com a qual os recorrentes, de resto, se conformam (cfr. ponto 34 da alegação de recurso “Não se questiona a qualificação jurídica do contrato celebrado entre os Recorrentes e o Recorrido feita pelo Tribunal a quo.”).

Efectivamente, tendo por referência a factualidade dada como provada, resulta evidente que entre os recorrentes e o recorrido foi celebrado, desde logo e em primeira mão, um contrato de abertura de conta que marca, como é consabido, o início da relação jurídica bancária e no seio do qual todos os demais negócios jurídicos bancários se inscreveram. Como explica MENEZES CORDEIRO, “abertura de conta é um contrato celebrado entre o banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos relativos a diversas práticas bancárias. Trata-se do contrato que marca o início de uma relação bancária complexa e duradoura, fixando as margens fundamentais em que ela se irá desenrolar. A abertura de conta não deve ser tomada como um simples contrato bancário, a ordenar entre diversos outros contratos dessa natureza: ela opera como um acto nuclear cujo conteúdo constitui, na prática, o tronco comum dos diversos actos bancários subsequentes[8].

Com a abertura da conta inicia‑se entre as partes outorgantes uma relação complexa, tendencialmente prolongada no tempo, e que envolve a prática de novos negócios jurídicos. 


Várias tentativas foram sendo feitas pela doutrina ao longo do tempo para enquadrar esta relação complexa que assim é estabelecida, desde o recurso às cláusulas contratuais gerais até à figura do contrato promessa, passando mesmo pela descaracterização dos negócios jurídicos subsequentes, encarados como meras instruções dadas pelos clientes ao banqueiro [9].

Menezes Cordeiro [10] enquadra toda a relação que se estabelece entre cliente e banqueiro através do contrato de abertura de conta — é com referência a este contrato, complementado com a lei e os usos, que os negócios celebrados posteriormente ganham sentido num todo global.

Como dito, procurando vislumbrar a verdadeira natureza jurídica desta complexa relação, várias tentativas foram ensaiadas.  Neste âmbito, destacamos a figura do “contrato bancário geral”, que, basicamente, procura reconduzir toda a relação entre o bancário e o seu cliente a um contrato unitário, potenciador de vários contratos.  Seria, deste modo, uma espécie de contrato de angariação de negócios, um contrato promessa ou um contrato normativo[11].

Contudo, a exacta natureza desta figura nunca foi muito bem apurada pela doutrina, notando‑se algumas dificuldades de articulação entre o contrato bancário geral e os diversos contratos bancários singulares celebrados, sucumbindo face à inexistência de um dever geral de contratar entre as partes, que continuariam a dispor de plena autonomia e liberdade contratual.

Aliás, atomisticamente, era duvidoso que o “contrato bancário geral” constituísse um verdadeiro contrato, como produto do encontro das vontades dirigido à celebração de novos contratos.

Assim, superando esta figura, surge a doutrina da relação legal, na tentativa de dogmaticamente procurar um fundamento para a afirmação de um conjunto de deveres recíprocos, em que assentaria a responsabilidade dos contraentes, tutelando, deste modo, a confiança dos mesmos, concebendo‑se, pois, ao lado de certos deveres primários, outros de cuidado e protecção, com fundamento ético último na boa fé.

Porém, estas construções, embora não despiciendas e com fortes conexões com os dados empíricos, parecem não resolver todos os problemas que se colocam no âmbito do relacionamento bancário, donde, em termos mais pragmáticos, se adere ao entendimento segundo o qual o traço fundamental nesta relação consiste na circunstância de ambos os contraentes conservarem plena liberdade de aprofundamento ou intensificação, por via da celebração de novos contratos[12].


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Como dito, a abertura de conta constitui o tronco comum dos diversos actos bancários subsequentes, com ela se iniciando entre as partes outorgantes uma relação complexa e que envolve a prática de novos negócios jurídicos. 


Ora – e com particular relevo no caso sub judice – , entre os tais novos negócios que a relação complexa de abertura de conta envolve, temos o contrato de registo e depósito (de valores mobiliários) que se encontra previsto no art. 291.º, al. a), do CVM.

Este contrato para registo e depósito de valores mobiliários[13] é um negócio jurídico de intermediação financeira[14] com regime legal típico no Código de Valores Mobiliários, e integra, entre outros, os elementos típicos do contrato de mandato comercial[15] (vide números 2 e 4 do art. 343 e art. 68.º, ambos do CÓD.VM, conjugados com o art. 1157.º do CC) e do contrato de depósito[16] (artigos 1185.º e ss. CC).

Este tipo contratual é definido por MARIA REBELO PEREIRA[17] como “um contrato, pelo qual o intermediário financeiro, se obriga, a título principal, a registar ou a manter em depósito determinados valores mobiliários, obrigando-se também, em princípio, a título acessório, “(...) a prestar os serviços relativos aos direitos que são inerentes aos valores mobiliários registados ou depositados.»”, sendo que, no âmbito do referido contrato, o “intermediário financeiro [se] obriga a:

• praticar actos jurídicos principais e acessórios por conta de outrem; e a

• guardar uma determinada coisa móvel ou manter o registo de direitos, restituindo-a, ou transferindo-os, com os seus frutos, quando a coisa ou o direito forem exigidos pelo titular.”.


Ao abrigo do art. 16.º do Regulamento da CMVM n. 14/2000, o intermediário que assume as funções de controlo[18], nos termos do art. 63.º do Cód.VM e do art. 6.º do mencionado Regulamento, é simultaneamente a única entidade de custódia, assumindo por esta via, e, com as devidas adaptações, as obrigações previstas no n.º 3 do art. 7.º do Regulamento da CMVM n.º 14/2000, nomeadamente, de abertura e movimentação das contas individualizadas, de controlo e correcção de irregularidades dos valores mobiliários junto de si inscritos. O cumprimento destas disposições regulamentares, nomeadamente a assunção das funções de custódia, depende da celebração de um contrato para registo e depósito de valores mobiliários com os titulares desses valores.


É importante salientar – com particular reflexo no presente caso – que este contrato de registo e depósito não se pode confundir, nomeadamente, com o (mero) contrato de depósito bancário.

Assim, DD[19], referido que “o contrato para registo e depósito encontra-se regulado pelo art. 291º, al. a) e art. 343º do CVM, está sujeito à forma escrita quando os titulares dos instrumentos financeiros são investidores não qualificados e não deve ser confundido com outros tipos de contratos como por exemplo, o contrato de depósito bancário.”.


No referido contrato de depósito, podemos, porém, encontrar duas modalidades distintas: “depósito de simples custódia e depósito de administração. O primeiro consiste na simples guarda dos instrumentos financeiros depositados e na cobrança dos respetivos rendimentos – art. 405º CCom. e art. 1187º, al. c) do CC. Existe assim uma obrigatoriedade do intermediário em manter o registo e depósito dos instrumentos e valores por conta do titular até este último, exigir a sua restituição. O intermediário está ainda obrigado a prestar um conjunto de serviços com vista à conservação e frutificação dos instrumentos financeiros. Quanto ao segundo, o depósito de administração, o intermediário vincula-se a uma obrigação de administração dos valores depositados ou seja, para além do depósito, o intermediário pode por exemplo, subscrever e adquirir novos instrumentos financeiros, gerir a tesouraria e garantias, entre outros.”[20].

Explicando ENGRÁCIA ANTUNES[21] que no “depósito de simples custódia”, (…) o intermediário financeiro obriga-se fundamentalmente a manter o registo e o depósito dos instrumentos e valores por conta do titular, restituindo-os logo que este assim o exija (obrigação essa que se concretiza fundamentalmente na prática do conjunto de actos referidos nos arts. 68.º e 85.º do CVM, v.g., lançamento a crédito ou a débito dos instrumentos adquiridos ou alienados), bem assim como a prestar um conjunto mínimo de serviços relativos à conservação e frutificação corrente daqueles.” – destaque nosso.


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Regressando aos factos, está assente que:

Os AA, clientes do Banco BPI, abriram, em 1989, junto do Banco BPI, a Conta de Depósito de Valores com o nº ...01 (conta valor) e celebraram para o efeito, o correspondente Contrato de Abertura de Conta.

Em 2012, o A. AA, subscreveu 1 obrigação Araras Finance BV – obrigação de “cupão zero” (pelo que não pagava juros periódicos)com o ISIN ...29, com o valor nominal de €100.000,00, e com data de maturidade de 30 de Novembro de 2016, posteriormente modificada, em assembleia de obrigacionistas, para o dia 30 de Novembro de 2019.

O emitente da aludida obrigação foi Araras Finance BV, o banco depositário da emissão foi o Deutsche Bank que era também o Agente Pagador Principal, sendo o Agente Distribuidor e Agente de Cálculo de emissão a Orey Mangement Cayman.

De acordo com a convenção do “Convenção do Dia Útil Seguinte Modificado”, tendo o dia 30 de Novembro de 2019 correspondido a um dia não útil (sábado) e o primeiro dia útil seguinte pertencer ao mês seguinte (2 de Dezembro de 2019 – 2ª Feira), o pagamento foi antecipado para o dia 29 de Novembro de 2019 (sexta-feira).

No dia 28 de Novembro de 2019, encontrava-se depositada na conta dos AA junto do BPI, a obrigação Araras Finance BV, com o ISIN ...29, com o valor nominal de €100.000,00, de que o Banco BPI era custodiante.

No dia 29 de Novembro de 2019, o BPI, ora Réu, creditou na conta dos Autores, com o número ...01, a quantia de €98.477,13, com a mesma data/valor e com a descrição “Operações com títulos Araras BV-CZ-19”, tendo a referida conta ficado, em consequência, com um saldo positivo de €105.794,31.

Porém, na mesma data – 29 de Novembro de 2019 – , o Banco BPI, ora Réu, debitou a conta dos Autores pela quantia de €98.477,13, com a descrição “Operações com títulos Araras BV-CZ-19”.

Em 4 de Dezembro de 2019 o Autor AA, apresentou uma reclamação aos Réu, interpelando-o para restituir a quantia debitada e bem assim, para não serem cobrados juros pelo descoberto gerado pelo débito da referida quantia.

O BPI enviou carta ao Autor datada de 10 de Fevereiro de 2020, mas recebida a 19 de Fevereiro, na qual, além do mais refere:

“(..) Em resposta ao assunto exposto esclarecemos que a emitente OREY, em Processo Especial de Revitalização (PER) não pagou a amortização do cupão ARARAS BV-CZ- 30.11.2019 – XS071211282 que estava prevista para o dia 30 de Novembro de 2019, pelo que o Banco procedeu ao estorno da quantia que antecipou e que seria devida pelo emitente.

Informamos ainda que, ao abrigo do disposto na cláusula 8.9 das Condições Gerais de Abertura de Conta, o titular expressamente reconhece ao Banco o direito de estornar quaisquer movimentos efectuados, nomeadamente em caso de erro ou lapso e, ainda, nas demais circunstâncias em que tal estorno se justifique, sendo o estorno efectuado com data-valor igual à do movimento original.

Aproveitamos para comunicar que o Banco procedeu ao estorno dos juros devidos da conta de depósitos à ordem e respectivo imposto de selo, no total de 20,50 euros, relativos aos dias 3 e 4 de dezembro de 2019. Mais informamos que não se verificou comunicação ao Banco de Portugal relativa ao descoberto registado na conta de depósitos à ordem de V. Exa. Nas datas referidas”.

“O circuito dos valores mobiliários faz do seguinte modo:

O Banco BPI recebe da “Euroclear”, que por sua vez recebe do Deutshe Bank, que por sua vez recebe da entidade emitente.” (Araras Finance BV).

2.1.33 «O Banco BPI parametriza os seus sistemas informáticos introduzindo a informação da data e valor de reembolso definida na ficha técnica do valor mobiliário e posteriores atualizações comunicadas pela Entidade Emitente, recebidas pelo BPI através da Euroclear.

2.1.34. Na ausência de informação em contrário, o Banco BPI, durante o processamento noturno da data parametrizada no seu sistema para o reembolso do valor mobiliário, procede ao crédito nas contas dos seus clientes, de forma automática e com recurso a fundos próprios, da quantia correspondente ao reembolso do valor mobiliário e só depois recebe os fundos correspondentes por parte dos seus custodiantes.

2.1.35. No dia 29 de novembro de 2019, a informação que existia no mercado era que a Obrigação Araras Finance BV, com o ISIN ...29 iria ser paga, não havia nenhuma informação de que a Entidade Emitente iria incumprir e, por esse motivo, o Banco BPI procedeu ao crédito da quantia de €98.477,13 na conta dos Apelantes, de acordo com a informação que tinha parametrizada nos seus sistemas, nos termos referidos no ponto 2.1.12 dos factos provados.

2.1.36. Durante do dia 29-11-2019, o BPI através da Euroclear foi informado que o pagamento não iria ser efetuado porque a Euroclear não o tinha recebido do Deutsche Bank, que, por sua vez, não o recebeu da Emitente, pelo que procedeu em conformidade com o dado como provado no ponto 2.1.15 dos factos provados» (debitou na conta dos AA pela quantia de €98.477,13, com a descrição “operações com títulos Araras BV-CZ-19”)[22].


Temos, assim, que, no quadro da relação jurídica bancária existente entre os recorrentes e o recorrido – nascida com o contrato de abertura de conta – foi aberta a Conta de Depósito de Valores, na qual veio a ser inscrita a obrigação “cupão zero” subscrita pelo recorrente AA.

Explicando A. BARRETO MENEZES CORDEIRO[23] que nas obrigações de cupão zero “os investidores são compensados com emissões abaixo do valor nominal ou com o pagamento, à data da sua maturidade, de um prémio de reembolso, ou seja, acima do respetivo valor nominal”.


Subsequentemente à abertura de conta, o Autor AA, ao subscrever, em 2012, 1 obrigação Araras Finance BV – obrigação de “cupão zero”, levou a cabo com o banco Réu um (mero) contrato de simples custódia (de simples guarda do instrumento financeiro depositado e na cobrança dos respetivos rendimentos).


É certo que – tendo por referência os factos provados 2.1.4 a 2.1.10 – a referida obrigação deveria ser paga na data da sua maturidade, de acordo com o circuito que resultou demonstrado em 2.1.36., ou seja, entidade emitente-Deutsche Bank-Euroclear-BPI-investidor, o que não sucedeu.

Porém, parece evidente que era a entidade emitente (Araras Finance BV) a única entidade adstrita à obrigação de pagamento convencionada, tendo o banco recorrido actuado, apenas e só, na veste de entidade de custódia.

É assim manifesto, como os próprios recorrentes reconhecem, que não era o banco recorrido que estava obrigado ao reembolso do capital e que este apenas procedeu ao movimento a crédito na conta bancária dos recorrentes na firme convicção de que o valor correspondente seria liquidado pela entidade emitente nos termos supra explanados.


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Como enquadrar, então, o movimento de estorno realizado pelo banco BPI?


Para os recorrentes, tal “pagamento” apenas pode ser enquadrado numa das seguintes três opções: (i) cumprimento de uma obrigação por terceiro no âmbito de uma relação de mandato, próprio ou impróprio, no âmbito de uma relação de custódia (artigo 767.º do CC); (ii) cumprimento de uma obrigação por terceiro interessado ou não no cumprimento (artigo 767.º do CC); ou (iii) cumprimento de uma obrigação alheia na convicção de estar obrigado a cumpri-la (478.º do CC).

Não parece que os factos se enquadrem em qualquer destas 3 hipóteses.


Com efeito, a especificidade da actividade bancária impõe que tenhamos em consideração as regras e usos que regem a atividade bancária, não sendo viável enquadrar a atuação do banco recorrido na figura tradicional do pagamento de dívida alheia ou mesmo da figura do enriquecimento sem causa.

Na verdade, como explica FERNANDO CONCEIÇÃO NUNES, a conta bancária “trata-se do registo, organizado numa base pessoal, cronológico e sintético, das operações de entrega e reembolso de fundos, constitutivas, modificativas ou extintivas do crédito unitário ao reembolso. (…)”, tendo a relação de conta “por objecto o registo das operações constitutivas, modificativas ou extintivas daquele direito de crédito[24]. Ora, as inscrições de movimentos a débito ou a crédito não assumem todos a mesma natureza, podendo ser declarativas ou constitutivas. Como explica Fernando Conceição Ribeiro “em princípio, as inscrições (movimentos), a crédito ou a débito, têm uma eficácia meramente declarativa das operações que representam, havendo uma nítida distinção entre cada operação e o movimento escritural a que dá origem, e que normalmente lhe é posterior. (…). As inscrições serão constitutivas se envolverem “a extinção de dívidas pelo mecanismo do crédito ou débito em conta. O carácter constitutivo (das operações subjacentes de recepção ou reembolso de fundos) advém-lhes de o depositário ser devedor ou credor da dívida que se extingue”.

Há, assim, uma clara distinção entre as inscrições e as operações subjacentes que justificam as primeiras. É desta função representativa da conta que se retira que “a) O movimento escritural deve ser posterior ou, quando muito, coincidente com a operação real por ele representada, havendo geralmente um lapso de tempo, ainda que muito breve, entre ambos, consoante o tipo de operação em causa e o modo e suporte tecnológico da sua realização. Sucede, por isso, que o crédito representado pelo saldo contabilístico não corresponde, frequentemente, ao crédito real resultante das operações efectivamente realizadas, mas ainda não escrituradas.

O princípio da precedência da operação sofre, contudo, algumas excepções derivadas da técnica bancária utilizada. Com efeito, o lançamento contabilístico é, por vezes, anterior à concretização da operação, ficando a sua eficácia, entretanto, suspensa. Se a operação se frustrar, o lançamento é anulado (ou estornado, na técnica contabilística).

b) Os vícios da inexistência, invalidade ou ineficácia da operação real afectam o respectivo movimento escritural, de modo que este deve ser anulado ou corrigido em conformidade.

c) O movimento escritural deve reflectir fielmente a operação real por ele representada, devendo qualquer erro ser corrigido por iniciativa de quem para tal tiver legitimidade.

d) Todos os movimentos escriturais são causais, não havendo, por isso, movimentos abstractos. A causa é constituída pela operação real que cada movimento visa representar.”[25].


A natureza causal de todas as inscrições contabilísticas permite concluir que o simples registo em conta de determinada movimentação não confere, por si só, um direito de crédito ao reembolso das quantias registadas e justifica a correção de erros ou lapsos no lançamento contabilístico de movimentos a crédito ou a débito.


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No caso que nos ocupa, a inscrição contabilística precedeu a operação real esperada, o que ocorreu por força dos procedimentos internos do banco. Sucede que, não tendo a operação real subjacente chegado a concretizar-se, tal inscrição não poderia permanecer, sob pena de se colocar em causa a função representativa da conta bancária.

A inexistência da operação real subjacente autorizava, assim, que o banco procedesse nos termos em que acabou por proceder, não podendo os recorrentes prevalecer-se de tal circunstância para se arrogarem titulares do direito de crédito correspondente ao valor inscrito na conta.

De facto, a referida inscrição contabilística foi realizada com a expectativa de que o pagamento pelo emitente ocorreria de forma simultânea ou pelo menos temporalmente próxima; não tendo este pagamento ocorrido, justifica-se a actuação do banco que podia, como acabou por fazer, anular ou corrigir o respectivo movimento escritural, de modo que a respectiva conta bancária representasse a relação de depósito.

O que sucedeu nos autos foi que o banco recorrido quis antecipar a inscrição contabilística relativa à operação real que se encontrava prevista para dia 29-11-2019. Tratou-se, assim, de uma inscrição declarativa e não constitutiva de direitos.


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Nada nos factos provados consente a visão defendida pelos recorrentes, inexistindo quaisquer elementos que permitam concluir no sentido de que o banco recorrido actuou no exercício de um contrato de mandato [definido no artº 1157.º do Código Civil como o contrato pelo qual uma das partes (mandatário) se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra (mandante)]. Como dito, o Autor, na sequência do prévio contrato de abertura de conta, estabeleceu com o banco Réu uma relação contratual de simples custódia (de guarda do instrumento financeiro depositado e cobrança dos respetivos rendimentos).


Como também parece evidente que o banco recorrido não pretendeu pagar uma dívida alheia (não há o mínimo indício probatório – bem pelo contrário – no sentido de que o banco réu tenha pretendido, com o referido estorno, liberar quem quer que fosse do pagamento da quantia investida pelo Autor na Obrigação, maxime a sua entidade emitente).

Como ensina Antunes Varela, a assunção de dívida (ut artº 595º do CC) – que opera uma mudança na pessoa do devedor, mas sem que haja alteração do conteúdo e identidade da obrigação assumida pelo primitivo devedor – é a operação pela qual um terceiro — assuntor — se obriga perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem [26]

O que, apoditicamente, não ocorreu no caso sub judice.


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E, como é evidente, a conduta do banco Réu (ao fazer o estorno) não viola qualquer direito ou expectativa jurídica digna de tutela de que fossem titulares os ora recorrentes – a expectativa destes era, naturalmente, que a entidade emitente da obrigação a pagasse na data da maturidade, que não outrem. Foram os Recorrentes (e só eles) que assumiram o risco inerente ao produto que subscreveram, bem sabendo que não era o banco réu o responsável pelo pagamento, mas, sim, a entidade emitente.

Sendo assim, há que concluir que os recorrentes não podiam, razoavelmente, contar com o pagamento do valor em dívida por parte do banco réu.

Isso mesmo ressalta do disposto no artº 236º do Código Civil, que assumiu a designada teoria da impressão do destinatário, em matéria de interpretação e integração da declaração negocial, segundo a qual a declaração negocial deve ser entendida, não com um sentido objectivo, mas precisamente com o sentido que lhe atribuiria um declaratário razoável colocado na posição concreta do declaratário efectivo.  Toma-se‑, portanto, este declaratário nas condições reais em que ele se encontrava e finge‑se depois ser ele uma pessoa razoável, isto é, medianamente instruída, diligente e sagaz, quer no tocante à pesquisa das circunstâncias atendíveis, quer relativamente ao critério a utilizar na apreciação dessas circunstâncias.

Efectivamente, tendo o Autor AA “um perfil de investidor em produtos financeiros de risco” (ponto 2.1.30 dos factos provados – cfr., ainda, extracto de fls 25), é claro que nas condições em que tal inscrição contabilística ocorreu, qualquer declaratário normal colocado na posição dos autores assumiria que tal movimento a crédito tinha subjacente o pagamento pelo verdadeiro devedor – a entidade emitente –, o que, como vimos, não sucedeu.


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Razão tem, assim, o acórdão recorrido, quando escreve: “o Banco Réu nenhuma relação mantém com a entidade Emitente ou com o Agente Principal Pagador, donde o argumento que o Réu atuou por conta ou sob as instruções da(s) mesma(s), não tem qualquer apoio na realidade apurada.

A interação do Banco Réu é com a Euroclear.

No mais, seguem-se os procedimentos normalizados e instituídos na instituição bancária ré para processar este tipo de produto financeiro, enquanto entidade depositária.

O facto de ter adiantado o valor do reembolso não obnubila o facto das suas obrigações serem apenas as decorrentes da modalidade de depósito de simples custódia. Não contraiu qualquer obrigação de garantia perante os Autores de, em determinada circunstância, mormente se a Emitente não procedesse ao reembolso na data da maturidade, assegurar esse reembolso.

Ou seja, quem assumiu o risco associado a este produto financeiro foram os Autores e não o Réu, que apenas assumiu perante os Autores as funções e obrigações de um depositário.

A tese dos Autores, a vingar, transferia para o Banco Réu, mero depositário e custodiante do valor mobiliário, o risco associado à subscrição do produto, sem que houvesse qualquer negócio jurídico que sustente tal obrigação, nem qualquer contrapartida associada a essa assunção de risco.

Nestes termos, conclui-se que o Banco Réu nenhuma obrigação tem de restituir aos Autores a quantia referente ao reembolso da obrigação.”.


Não podemos, de facto, deixar de se concordar.

É que, ao contrário do que pretendem fazer crer os Autores/Recorrentes, ao Banco Réu não cumpre “realizar pagamentos” de obrigações alheias. O que lhe cabe, sim, é operacionalizar o crédito à conta dos titulares dessas obrigações. Como tal, é de todo inaceitável a tese de que o crédito feito pelo Banco à conta dos Autores, pese embora se ter revelado injustificado face à falta de pagamento das obrigações, substitui o próprio pagamento pela entidade emitente, assim se transferindo para o Banco o inerente risco, e, dessa forma, se libertando definitivamente os titulares das obrigações – no caso, os Autores – desses mesmo risco/prejuízo.


Em suma: inexistindo causa para tal inscrição contabilística (do movimento a crédito da quantia que veio, depois, a ser estornada), a actuação do banco réu está perfeitamente justificada, inexistindo qualquer situação de confiança a tutelar.

Daí que se tenha de concluir pela licitude da conduta do banco Réu, assim se mantendo acórdão recorrido.


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IV. DECISÃO 

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.

Custas da revista a cargo dos Autores/Recorrentes.


Lisboa, 19 de Janeiro de 2023


Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Ana Paula Lobo (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

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[1] Texto disponível em www.dgsi.pt.

[2] Revista n.º 4679/19.1T8CBR-C.C1.S1 - 6.ª Secção; Relator: Ricardo Costa, com texto disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d6b4f33f158505c9802586d2002eb33e?OpenDocument

[3] Revista n.º 2908/18.8T8PNF.P1.S1 - 1.ª Secção; Relatora: Fátima Gomes, com texto disponível em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/351a2187ab7ca721802586d3003d3dbf?OpenDocument

[4] Revista n.º 1141/18.3T8PVZ.P1-A.S1 - 1.ª Secção; Relator: Fernando Samões, com texto disponível em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/af50e0e0dae9afa380258671005e4af7?OpenDocument

[5] Revista n.º 289/12.2TVPRT.P1.S1 - 7.ª Secção; Relator: Ilídio Sacarrão Martins, com texto disponível em PDF (anexo).

[6] Revista n.º 2222/11.0TBVCT.G1.S1 - 7.ª Secção; Relator: Hélder Almeida, com texto disponível em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/053ad54facf6336c80258403005fc3d6?OpenDocument

[7] Acessível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e7b68c2795912ec380258790005d0896?OpenDocument;

[8] Manual de Direito Bancário, Almedina, 3.ª edição, 2006, p. 411.

[9]- Cfr. a minuciosa análise efectuada no Acórdão da Relação do Porto de 13/11/2000, in www.dgsi.pt, n.º convencional: JTRP00029895.

[10]- In “O Contrato Bancário Geral”, in Estudos de Direito Bancário, Coimbra editora, 1999.

[11] Cfr. MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Bancário, 2.ª ed., Almedina, 2001, p. 371 e ss.

[12] MENEZES CORDEIRO, ob cit., pp 371 ss.

[13] Valores mobiliários objecto de controlo em sistema centralizado ou em intermediário financeiro.

[14] Quanto aos contratos de intermediação financeira no Código dos Valores Mobiliários vide RUI PINTO DUARTE, “Contratos de Intermediação no Código dos Valores Mobiliários”, in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 7, 2000, pág. 351- 372.

[15] Quanto ao regime jurídico do mandato vide MANUEL JANUÁRIO GOMES:

– “Contrato de Mandato Comercial - Questões de Tipologia e Regime, in AA.VV As Operações Comerciais. Trabalhos Apresentados na Disciplina de Direito Comercial do Curso de Mestrado de 1983/84 da Faculdade de Direito de Lisboa, Sob a Orientação do Prof. Doutor OLIVEIRA ASCENSÃO, Almedina, Coimbra, 1988, pág. 465-564;

– Em Tema de Revogação do Mandato Civil, Almedina, Coimbra, 1989; e

“Contrato de Mandato”, in AA.VV Direito das Obrigações – Contratos em Especial 3.º Vol., 1991, pág. 263 – 408.

[16]No depósito de títulos, o cliente entrega determinados valores mobiliários ao banco, ficando este obrigado à sua guarda e restituição. A este desenho negocial – típico do depósito e com consagração legal – acresce, normalmente, para o banco, uma obrigação de administração dos títulos, por conta do cliente, consubstanciando-se deste modo uma obrigação típica do mandato. Deparamo-nos, então, com o chamado depósito de títulos em administração.

A evolução recente tem evidenciado o decréscimo de importância desta figura, mercê da conhecida tendência para a desmaterialização ou desincorporação, a qual naturalmente coloca em crise a ideia de guarda dos títulos.” Cit: CARLOS LACERDA BARATA, “Contrato de Depósito Bancário”, in, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, II Volme Direito Bancário, Almedina, 2002, pág. 7-66.

Em especial quanto ao depósito bancário, legislação comercial e legislação civil cfr. CARLOS LACERDA BARATA, “Contrato de Depósito Bancário”,obra cit. pág. 20-25.

[17] Contratos De Registo E Depósito De Valores Mobiliários, conceito e regime, pp. 322 e ss.

[18] Nos termos do n.º 1 do art. 2.º do Regulamento da CMVM n.º 14/2000 são participantes nos diferentes sistemas, para além das entidades referidas no n.º 2 do mesmo preceito, as entidades de custódia e as entidades de controlo.

Nos termos do art. 6/ n.º 1 do Regulamento da CMVM n.º 14/2000, são entidades de controlo:

• as entidades gestoras de sistemas centralizados de valores mobiliários; e

• os intermediários financeiros que exerçam as funções a que se refere o n.º 1 do art. 63.º Cód.VM.

[19] Investidores e Intermediários: Diferentes Contratos De Intermediação Financeira, Diferentes Deveres?, Porto, 2014, pp. 30 e ss.

[20] PEDRO COSTA, ob e loc. cits.

[21] Os Contratos de Intermediação Financeira, Boletim da FDUL, Coimbra, 2009, pp. 308 e ss.

[22] Estes factos 2.1.33.a 2.1.3.6. (a negrito) foram aditados pela Relação.

[23] Manual de Direito dos Valores Mobiliários, Almedina, 2017, p. 1662.

[24] Depósito e Conta, In Estudos em Homenagem ao Dr. Inocêncio Galvão Telles, II, 2002, pp. 78 e ss.

[25] FERNANDO CONCEIÇÃO NUNES, cit., p. 83 – destaque nosso.

[26]- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 7.ª ed, 361.