Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1181/21.5YRLSB-A.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA
DECISÃO JUDICIAL
DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
ESCRITURA PÚBLICA
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA E ORDENADO O PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. No processo especial de revisão de sentença estrangeira devemos atribuir um sentido amplo ao termo decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, e considerar aqui abrangidos quer as decisões dos tribunais, quer as decisões de entidades administrativas, caso a lei do país de origem atribua relevância jurídica à referida entidade e considere admissível essa forma de dissolução do casamento, e que essa decisão se mostre conforme aos requisitos do artigo 980.º do Código de Processo Civil.

II. O reconhecimento de decisão estrangeira de divórcio por mútuo consentimento cometido a autoridade administrativa deve ser sujeito ao regime de revisão e confirmação de sentença estrangeira quando tiver os mesmos efeitos que uma decisão judicial, porque, em última instância o que importa não é a natureza do órgão que profere a decisão mas os efeitos que ela produz segundo o Direito do Estado de origem.

III. Da certidão da Escritura Pública de Divórcio Direto Consensual verifica-se uma efetiva decisão homologatória do tabelião, que, após as declarações dos cônjuges de não pretender mais a convivência conjugal, atesta a verificação dos requisitos legais do divórcio à luz da lei brasileira, e declara o divórcio entre as partes, o que também se mostra conforme com a já referida legislação do Brasil.

IV. Sendo o nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras um sistema de delibação, em que ocorre tão só uma revisão meramente formal, na medida em que o tribunal se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa, verificando-se que estamos perante uma verdadeira sentença, porquanto constitutiva de direitos, a extinção do vínculo conjugal, e mostrando-se conforme com os requisitos do artigo 980.º do Código de Processo Civil, impõe-se a sua confirmação judicial.  

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA (de nacionalidade portuguesa) instaurou contra BB (cidadã de nacionalidade brasileira), uma ação especial de revisão de sentença estrangeira, pedindo que seja revista e confirmada a decisão que decretou o divórcio do requerente e da Requerida, por Escritura Pública de Divórcio Consensual lavrada em 17 de fevereiro de 2012, no Cartório do Registro Civil e Tabelionato de Notas do Município de ..., Comarca ..., ..., na República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 1571°, inciso IV, do Código Civil Brasileiro, do artigo 733.° do Código de Processo Civil brasileiro e do artigo 226, parágrafo 6.º, da Constituição Federal do Brasil.

2. Citada, a Requerida não deduziu oposição.

3. Observado o disposto no artigo 982.°, n.º 1, do Código de Processo Civil, tanto o Ministério Público como o Requerente apresentaram Alegações, nas quais sustentam, em resumo, inexistirem dúvidas quanto à autenticidade do documento de que consta a sentença a rever, não se vislumbrar a ausência de qualquer dos requisitos aludidos nas alíneas b) a e) do artigo 980.º do Código de Processo Civil de 2013 (cuja verificação, aliás, se presume, nos termos do artigo 984.º do mesmo diploma) e ser a decisão confirmanda conforme aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português, estando, portanto, reunidos todos os pressupostos necessários à confirmação da sentença revidenda.

4. Por Acórdão datado de 13/01/2022, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, confirmar a decisão singular do Juiz Desembargador Relator que:

a) julgou inepta a petição inicial, por falta de causa de pedir (art. 186.º, n.º 2, al. a), do CPC de 2013), no que concerne ao pedido de revisão e confirmação da Escritura Pública de Divórcio Consensual lavrada em 17 de Fevereiro de 2012, no Cartório do Registro Civil e Tabelionato de Notas do Município de ..., Comarca ..., ..., na República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 1571.º, inciso IV, do Código Civil Brasileiro, do artigo 733.º do Código de Processo Civil brasileiro e do artigo 226.º, parágrafo 6.º, da Constituição Federal do Brasil, na qual ambos os outorgantes declararam, de comum acordo, que, pela presente escritura, ficava dissolvido o vínculo conjugal entre eles existente, passando os outorgantes a ter o estado civil de divorciados e, consequentemente, ficando extintos todos os deveres do casamento;

b) e, consequentemente, indeferiu a petição inicial (nos termos do n.º 1 do art. 590.º do actual CPC), declarar nulo todo o processo (nos termos do n.º 1 do cit. art. 186.º do mesmo diploma) e extinta a instância.

5. Inconformado com esta decisão, o Requerente interpôs o presente recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

26. O Recorrente apresentou Acção de Revisão para confirmação de Escritura Pública de Divórcio lavrada por Notário no Brasil;

27. o Exmo. Juiz Desembargador Relator, de forma sumária, julgou inepta a petição inicial por falta de causa de pedir, ao argumento que a Escritura Pública de Divórcio Consensual lavrada por Notário no Brasil não representa uma “decisão” para os fins previstos no art. 978º do CPC, e, por conseguinte, indeferiu a petição inicial, declarando nulo todo o processo e extinguindo a instância;

28. o Recorrente, irresignado, reclamou para a conferência, sem, contudo, obter êxito, eis que o Tribunal a quo manteve a decisão sumária do Relator reeditando os mesmos fundamentos;

29. neste contexto, restou ao Recorrente manejar o presente recurso de revista a este Augusto Tribunal, sustentando que a Escritura Pública de Divórcio apresentada tem força semelhante a de decisões judiciais que decretam o divórcio, uma vez que foi proferida por entidade brasileira legalmente competente para o efeito, estando abarcada no sentido do termo “decisão” contido no art. 978º do CPC, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal, notadamente para fins de comunicação aos serviços registais.

30. Sendo assim, o presente recurso tem por objetivo a reforma do acórdão em crise para que seja julgado procedente o pedido de revisão e confirmação da Escritura Pública de Divórcio do Recorrente e, dessa forma, tenha eficácia perante o ordenamento jurídico interno, o que permitirá ao Recorrente ter seu estado civil regularizado perante o estado português.

E conclui pela procedência do recurso.

8. Não houve contra-alegações.

9. Cumpre apreciar e decidir.


II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelo Requerente/ora Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à seguinte questão:

em saber se a escritura pública de divórcio consensual, lavrada em 17 de fevereiro de 2012, no Cartório do Registro Civil e Tabelionato de Notas do Município de ..., Comarca ..., ..., na República Federativa do Brasil, cuja revisão e conformação é peticionada pelo Requerente, contém uma decisão administrativa ou judicial sobre direitos privados, que possa ser apreciada ou revista para que tenha eficácia em Portugal, nos termos do disposto no artigo 978.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.


III. Fundamentação

1. Factos provados:

1.1. O Requerente e a Requerida contraíram entre si casamento civil, no dia 16 de dezembro de 1994, em ..., ..., República Federativa do Brasil (cfr. a certidão de assento de casamento junta a fls. 5 e 5-v).

1.2. Por Escritura Pública de Divórcio Consensual lavrada em 17 de fevereiro de 2012, no Cartório do Registro Civil e Tabelionato de Notas do Município de .... Comarca ..., ..., na República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 1571.º, inciso IV, do Código Civil Brasileiro, do artigo 733.º do Código de Processo Civil brasileiro e do artigo 226.º, parágrafo 6.º, da Constituição Federal do Brasil, ambos os outorgantes [o ora Requerente e a ora Requerida] declararam, de comum acordo, que, pela presente escritura, ficava dissolvido o vínculo conjugal entre eles existente, passando os outorgantes a ter o estado civil de divorciados e, consequentemente, ficando extintos todos os deveres do casamento, (cf. o documento [certidão da escritura pública de divórcio consensual] junto à petição inicial como documento n.º 3, a fls. 7-8).

3. Apreciação

Seguindo de perto os ensinamentos de Alberto dos Reis, in Processos Especiais, vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, p.141, escreveu-se no Acórdão do STJ de 12/07/2011 (Revista n.º 987/10.5YRLSB.S1), “O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras inspira-se basicamente no chamado sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal. O que significa que o tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz a certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa. Ou seja, desde que o tribunal nacional se certifique de que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa.”.

É este o entendimento seguido neste Supremo Tribunal, conforme se comprova nos mais recentes Acórdãos datados de 2/07/2020 (Revista n.º 224/18.4YRGMR.S1), de 2/12/2020 (Revista n.º 1289/19.7YRLSB.S1) e de 23/03/2021 (Revista n.º 2652/19.9YRLSB.S1).

O Acórdão recorrido fundou a sua decisão no seguinte: Porém, no caso dos autos, o divórcio por mútuo consentimento que se pretende seja reconhecido por esta Relação, através de processo de revisão e confirmação regulado nos artigos 978.º e segs. do actual CPC, não foi decretado por nenhum tribunal estrangeiro, nem sequer por qualquer autoridade administrativa ou religiosa a quem, porventura, a ordem jurídica brasileira tivesse conferido poderes de autoridade para decretar a dissolução, por divórcio, dos casamentos.

Efectivamente, neste caso, a dissolução do casamento celebrado entre o Requerente e a ora Requerida promana das declarações negociais de vontade emitidas pelos próprios cônjuges no contexto duma escritura pública celebrada num cartório notarial. segundo o ritualismo estabelecido pelo artigo 733.º do actual Código de Processo Civil brasileiro[1], em que o notário se limita a certificar que os outorgantes declararam perante si que, pela presente escritura, ficava dissolvido o vínculo conjugal entre eles existente, passando os outorgantes a ter o estado civil de divorciados e, consequentemente, ficando extintos todos os deveres do casamento, (cfr. o documento [certidão da escritura pública de divórcio consensual] junto à petição inicial como documento n.º 3, a fls. 7-8).

Neste quadro, irreleva que, segundo o direito Brasileiro, os Notários ou tabeliães sejam, a par dos registradores, considerados agentes públicos, ou seja, particulares que recebem, por delegação do listado, a incumbência da execução de determinada atividade, obra ou serviço público e o realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e sob a permanente fiscalização do delegante. De todo o modo, não é o Notário ou tabelião brasileiro (que lavra a escritura pública de divórcio consensual) quem declara a dissolução do casamento; são os cônjuges outorgantes que se auto-divorciam, dissolvendo, eles próprios, o vínculo conjugal entre eles existente.

O Notário-tabelião brasileiro mais não faz do que certificar as declarações negociais de vontade emitidas pelos outorgantes, através das quais eles dissolvem o seu casamento e decidem que passam a ter o estado civil de divorciados. Trata-se dum divórcio privado, operado pelos próprios cônjuges outorgantes da escritura pública de divórcio, na qual o papel do Notário/Tabelião é, tão só, o de dar fé pública àquelas declarações negociais de vontade.

Assim sendo, inexiste, no caso em apreço, uma decisão, judicial, administrativa ou religiosa, passível de ser submetida ao processo especial de revisão e confirmação regulado nos artigos 978.º e segs. do CPC de 2013.

A ausência de qualquer decisão, seja de natureza judicial, seja doutra qualquer natureza (administrativa ou religiosa), passível de formar caso julgado e, portanto, susceptível de ser revista e confirmada por esta Relação, no quadro do processo especial cuja tramitação está prevista nos citt. arts. 978.º e segs. do CPC de 2013, implica a inexistência de causa de pedir.

Na verdade, «a acção de revisão de sentença estrangeira é uma acção de simples apreciação destinada a verificar se a sentença estrangeira está em condições de produzir efeitos como acto jurisdicional na ordem jurídica portuguesa»[2][3].

Por isso, se não existe qualquer decisão estrangeira, seja ela judicial, administrativa ou religiosa, em condições de produzir efeitos como acto jurisdicional na ordem jurídica portuguesa, falta, pura e simplesmente, a causa de pedir.

Ora - como se sabe -, a falta de causa de pedir constitui causa de ineptidão da petição inicial, nos termos do art. 186.º, n.º 2, al. a), do CPC de 2013, acarretando a nulidade de todo o processo (n.º 1 do mesmo art. 186.º), a qual conduz à absolvição do réu da instância, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.º 2, e 577.º, al. b), todos do citado CPC de 2013 e é causa de indeferimento liminar da petição (devido à ocorrência duma excepção dilatória insuprível), nos termos do art. 590.º, n.º 1, do mesmo Código.

Entendeu o Acórdão recorrido que a petição inicial era inepta, porquanto não foi apresentada qualquer decisão estrangeira, judicial, administrativa ou religiosa, que possa ser considerada ato jurisdicional a fim de ser judicialmente confirmada através do presente processo especial.

O termo decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, previsto no artigo 978.º do Código de Processo Civil, deve ser entendido num sentido amplo, a fim de abranger as decisões que sejam proferidas quer por autoridades judiciais, quer por autoridades administrativas, conforme decidido nos seguintes Acórdãos do STJ de 29/09/2020 (Revista n.º190/18.6YRGMR.S1); de 9/05/2019 (Revista n.º 828/18.5YRLSB-A.S1), de 28/02/2019 (Revista n.º 106/18.0YRCBR.S1); de 22/05/2013 (Revista n.º 687/12.1YRLSB.S1); de 25/06/2013 (Revista n.º 623/12.5YRLSB.S1); de 12/07/2005 (Revista n.º 1880/05).

Conforme se mostra decidido nestes arestos dos STJ, os quais demonstram a posição aqui prevalente, no processo especial de revisão de sentença estrangeira devemos atribuir um sentido amplo ao termo decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, e considerar aqui abrangidos quer as decisões dos tribunais, quer as decisões de entidades administrativas, caso a lei do país de origem atribua relevância jurídica à referida entidade e considere admissível essa forma de dissolução do casamento, e que essa decisão se mostre conforme aos requisitos do artigo 980.º do Código de Processo Civil.

Também no Código de Processo Civil Anotado, de António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, em comentário ao artigo 978.º, se escreve, quanto a esta matéria: Nos diversos preceitos que regulam este processo especial de revisão, na identificação do seu objeto, tanto se utiliza o termo “decisão” como “sentença”. Essa distinção evidencia, desde logo, que o âmbito objetivo do processo especial não se limita exclusivamente às típicas “sentenças” emanadas de tribunais, nos moldes consagrados no nosso ordenamento jurídico. Não pode ignorar-se que outros ordenamentos preveem formas diversas de resolução de litígios ou de tutela de interesses juridicamente relevantes (STJ 29-3-11, 214/09[4]). Diversidade que também entre nós está prevista no DL n.º 272/01, de 13-10, relativamente à regulação de interesses a cargo do Min. Público ou das conservatórias do registo civil, com especial destaque para o decretamento do divórcio por mútuo consentimento (arts. 12.º e 14.º).

(…)

Já relativamente à escritura pública prevista no atual art. 733.º do CPC do Brasil, através da qual se pode realizar a separação consensual dos cônjuges, e a prevista no art. 1580.º do Cód. Civil Brasileiro, que permite que, decorrido um ano a partir da separação, se opere a conversão em divórcio, considerou-se que constituem documentos que têm força igual à das sentenças, uma vez que são emitidas pela entidade brasileira legalmente competente para o efeito (STJ 25-06-13, 623/12, STJ 12-07-2005, 05B1880 e RL 30-06-09, 344/09).

Também Luís de Lima Pinheiro (In Regime Interno de Reconhecimento de Decisões Judiciais Estrangeiras, publicado in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 61, vol. II, Abril de 2001, pp. 591-594, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7B7bd770a8-e20e-43d9-918d-7a981c5ae1a6%7D.pdf.), a propósito do divórcio por mútuo consentimento, entende que o reconhecimento de decisão estrangeira de divórcio por mútuo consentimento cometido a autoridade administrativa deve ser sujeito ao regime de revisão e confirmação de sentença estrangeira quando tiver os mesmos efeitos que uma decisão judicial, porque, em última instância o que importa não é a natureza do órgão que profere a decisão mas os efeitos que ela produz segundo o Direito do Estado de origem.

Os arts. 731.º a 733.º do Código de Processo Civil do Brasil (texto integral disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.) estipulam o seguinte:

Art. 731. A homologação do divórcio ou da separação consensuais, observados os requisitos legais, poderá ser requerida em petição assinada por ambos os cônjuges, da qual constarão:

I - as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns;

II - as disposições relativas à pensão alimentícia entre os cônjuges;

III - o acordo relativo à guarda dos filhos incapazes e ao regime de visitas; e

IV - o valor da contribuição para criar e educar os filhos.

Parágrafo único. Se os cônjuges não acordarem sobre a partilha dos bens, far-se-á esta depois de homologado o divórcio, na forma estabelecida nos arts. 647 a 658.

Art. 732. As disposições relativas ao processo de homologação judicial de divórcio ou de separação consensuais aplicam-se, no que couber, ao processo de homologação da extinção consensual de união estável.

Art. 733. O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731.

§ 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registo, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.

§ 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.

Por outro lado, o art. 1571.º do Código Civil do Brasil (texto integral disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.) preceitua o seguinte:

Art. 1571. A sociedade conjugal termina:

I - pela morte de um dos cônjuges;

II - pela nulidade ou anulação do casamento;

III - pela separação judicial;

V - pelo divórcio.

§ 1º O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente.

Tal qual já decidido por este STJ, em situações idênticas de divórcio consensual através de escritura pública ou outro meio alternativo de resolução de litígio, é admissível a confirmação de decisões de decretamento de divórcio, por entidades administrativas ou jurisdicionais, como no presente caso, como sejam os já citados acórdãos de 25/06/2013 (Revista n.º 623/12.5YRLSB.S1), e de 22/05/2013 (Revista n.º 687/12.1YRLSB.S1), (em ambos escritura pública de separação consensual de cônjuges, na qual passado um ano é convertível em divórcio, provenientes do Brasil, que foram confirmadas); de 29/09/2020 (Revista n.º 190/18.6YRGMR.S1), e de 12/07/2005 (Revista n.º 1880/05, (em ambas, divórcio decretado por Conservatória do Registo Civil da Ucrânia, comprovado através de certidão dessa mesma entidade, também confirmada).

Tal qual decidido no já citado Acórdão do STJ de 25/06/2013 (Revista n.º 623/12.5YRLSB.S1), que trata de situação similar à dos presentes autos, escritura pública de entidade administrativa brasileira competente para divórcio, neste aresto escreveu-se o seguinte:

Para estas situações em que a autoridade administrativa estrangeira decreta o divórcio, desde há muito que se sedimentou a interpretação jurisprudencial no sentido de que a decisão de uma autoridade administrativa estrangeira sobre direitos privados deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 1094º, n.º 1 do Código de Processo Civil, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal.

A questão é que a Relação não reconheceu que a escritura pública dos autos, embora seja um acto administrativo, tenha o carácter de decisão.

Segundo o douto acórdão recorrido, a intervenção da autoridade pública não tem qualquer força constitutiva em relação à dissolução do casamento, sendo bastante a declaração dos cônjuges pela forma legalmente adequada para a produção desse efeito.

Tal como se considerou no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 22/05/2013 (REVISTA 687/12.1YRLSB.S1), abordando um caso idêntico ao dos autos, “a interpretação do acórdão sob recurso do que seja uma decisão da autoridade administrativa estrangeira peca por demasiado restritiva”.

“O que interessa para a ordem jurídica portuguesa é mais o conteúdo do acto administrativo, ou seja, o modo como regula os ditos interesses privados”.

“Do ponto de vista formal apenas releva que o acto administrativo provenha efectivamente duma autoridade administrativa”.

“Se não ofende a ordem pública portuguesa, quanto à maneira como regulou esses interesses privados e provém duma autoridade administrativa, estão preenchidos os requisitos para a confirmação do seu conteúdo”.

“Não releva, portanto, o modo ou a via como se chegou à produção desse acto, ou seja, se através duma emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo acto, ainda que de carácter meramente homologatório, ou se de maneira mais «contratual» apenas através das declarações dos outorgantes. Por outras palavras, basta que se trate de um acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido (cfr. artigo 1º da Convenção de Haia Sobre o Reconhecimento dos Divórcios e Separação de Pessoas, de 1/06/1970)”.

Acresce que se, assim não fosse, “estava-se a denegar a força do dito acto, como idóneo para produzir os seus efeitos, como se de sentença fosse. Ou seja, estava-se a denegar a competência da entidade que o produziu, quando é certo que a competência para o acto, como é de jurisprudência, é definida pela lei nacional dessa entidade”, além de que, continua o citado acórdão, “esta natureza meramente contratual da escritura não resulta dos seus termos”.

“Os outorgantes não declaram a dissolução do vínculo conjugal. Pedem-na e o Tabelião – notário – não se limita a testar as suas declarações, declara (decide) a dissolução, depois de verificados e preenchidos os requisitos legais”.

“Estamos, pois, perante uma decisão homologatória, logo constitutiva do divórcio”.

A referida escritura pode, por isso, servir de base á presente revisão.

No caso presente, da certidão da Escritura Pública de Divórcio Direto Consensual, junta com a petição inicial, resulta exatamente o mesmo teor que é referido no citado acórdão do STJ. Ou seja, verifica-se uma efetiva decisão homologatória do tabelião, que, após as declarações dos cônjuges de não pretender mais a convivência conjugal, atesta a verificação dos requisitos legais do divórcio à luz da lei brasileira, e declara o divórcio entre as partes, o que também se mostra conforme com a já referida legislação do Brasil.

Ora, sendo o nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras um sistema de delibação, em que ocorre tão só uma revisão meramente formal, na medida em que o tribunal se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa, verificando-se que estamos perante uma verdadeira sentença, porquanto constitutiva de direitos, a extinção do vínculo conjugal, e mostrando-se conforme com os requisitos do artigo 980.º do Código de Processo Civil, impõe-se a sua confirmação judicial.

 Não podemos acompanhar o Acórdão recorrido no sentido em que a petição inicial é inepta porquanto não requerida a revisão e confirmação de uma sentença estrangeira, pois, conforme demonstrado, a decisão revidenda é constitutiva de direitos porque extingue o vínculo conjugal entre os cônjuges, através da declaração do tabelião e verificação da conformidade com a lei brasileira, ainda que de forma desjudicializada, tal qual também é permitido em Portugal.

Em face do exposto, verifica-se que a petição inicial não é inepta por falta de causa de pedir, pois, ao contrário do decidido no Acórdão recorrido, existe uma decisão que é suscetível de ser revista e confirmada.

Deste modo, o recurso tem de proceder, revogando-se o Acórdão recorrido e determinando-se o prosseguimento dos autos.

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em conceder a revista, e, consequentemente, em revogar o Acórdão recorrido, determinando-se o prosseguimento dos autos.

Sem custas.

Lisboa, 7 de junho de 2022


Pedro de Lima Gonçalves (relator)

Maria João Vaz Tomé

António Magalhães

_____

[1] Nos termos do qual: «O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731º».
[2] LUÍS DE LIMA PINHEIRO in “Regime Interno de Reconhecimento de Decisões Judiciais Estrangeiras” cit., loc. cit., p. 595.
[3] Cfr., no mesmo sentido, ALBERTO DOS REIS in ob. e vol. citt., p. 204.
[4] Texto integral disponível em
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2bbbe86f3594aa9c80257863005826ab?OpenDocument.