Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | JÚLIO GOMES | ||
Descritores: | PRÉDIO URBANO PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL REGISTO PREDIAL INSCRIÇÃO ARRENDATÁRIO DIREITO DE PREFERÊNCIA | ||
Data do Acordão: | 03/03/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO / ARRENDAMENTO URBANO / DIREITO DE PREFERÊNCIA. DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO - REGISTO PREDIAL. | ||
Doutrina: | - AGOSTINHO CARDOSO GUEDES, O Exercício do Direito de Preferência, Publicações Universidade Católica, Porto, 2006, p. 185. - J. DE SEABRA LOPES, Direito dos Registos e do Notariado, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009, (pp. 366-367). - J. OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito de Preferência do Arrendatário, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles, III Volume, Direito do Arrendamento Urbano, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 249 e seguintes., p. 254, - JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Arrendamentos Comerciais, 2ª Ed., Almedina, Coimbra, 1991, p. 204, - JORGE DE SEABRA MAGALHÃES, A Identidade Registral do Prédio in Estudos de Registo Predial, Almedina, Coimbra, 1986, pp. 61 e ss., pp. 64-65, | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1091.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 2/4/1981, COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA DE 1981, TOMO II, PÁGS. 103 E SEGUINTES; DE 04/07/1995; DE 04/02/2014. -*- ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: -DE 16/9/1991; DE 19/03/2002. | ||
Sumário : | I - Na falta de definição legal do conceito de “prédio urbano”, deve dar-se prevalência à verdade material sobre a registral, sobretudo no domínio da identidade e composição do mesmo, que não está sequer abrangido pela presunção – ilidível – que resulta do registo. II - A circunstância de determinada moradia – o locado – se encontrar inscrita, no registo predial, sob o mesmo número e conjuntamente com outras, não obsta a que seja considerada “prédio urbano” – nomeadamente, para efeitos de exercício do direito de preferência do arrendatário -, se for dotada de autonomia física, social e económica. | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º210/12.8TBGMR-D.G1 1. Relatório AA, requerente nos autos de Insolvência n.º210/12.8TBGMR, do 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães, em que é requerida Massa Insolvente de BB, veio interpor recurso de apelação da decisão proferida nos autos em 10/11/2013, relativa ao requerimento de 24/10/2013, apresentado pelo recorrente, na qualidade de arrendatário habitacional e que indeferiu o mesmo, tratando-se de requerimento em que AA, na qualidade de arrendatário do prédio urbano inscrito na matriz sob o art. 451 da freguesia de …, concelho …, descrito na conservatória do registo predial competente sob o nº …, solicitou ao Tribunal determinasse a autonomização deste prédio dos restantes três que compõem a verba nº 2 do auto de apreensão de bens, justificando o pedido no eventual exercício do direito de preferência na compra de tal prédio. - A fls. 183 dos autos pronunciou-se o Sr. Administrador da Insolvência sobre a razão da formação de uma verba composta por quatro artigos, tendo esclarecido que o factor determinante foi a descrição unitária feita na conservatória do registo predial tendo por objecto os quatro prédios e a operação de loteamento que a separação jurídica dos prédios importava, com os custos inerentes, ditou a venda conjunta. - Compulsados os autos [fls.3, apenso A)] verifica-se que a verba nº 2 do auto de apreensão é composta por quatro prédios (arts. 451, 452, 557 e 548) descritos sob o mesmo número (nº …) na conservatória do registo predial competente. - No apenso de liquidação, apenso c), verifica-se que quatro prédios (arts. 451, 452, 557 e 548) descritos sob o mesmo número (nº …) na conservatória do registo predial competente, formaram o lote 1), sendo objeto de venda por meio de negociação particular, mediante a apresentação de propostas em carta fechada O recurso veio a ser admitido como recurso de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo. Nas alegações de recurso que apresentou, o apelante formulou as seguintes conclusões: 1 - O ora recorrente requereu - depois de infrutiferamente ter feito o mesmo ante o Administrador da Insolvência - que, com vista a permitir-lhe o eventual exercício do seu direito de preferência na venda judicial do prédio urbano de que é arrendatário há mais de 10 anos, fosse determinado ao referido Administrador da Insolvência que procedesse à discriminação e autonomização em 4 verbas separadas e distintas dos quatro prédios urbanos que fora decidido agrupar numa mesma e única verba, o "lote 1" no valor global de 22.150,OO€, anunciado para venda por 18.827,50€. 2 - O requerimento foi indeferido através de douto despacho, de que ora se recorre, no qual, coonestando-se a anterior decisão do Administrador da Insolvência, se argumenta que a formação de um único lote com os 4 prédios urbanos, apesar de distintos e autónomos, é a única correcta e conveniente por os 4 prédios corresponderem a uma "descrição unitária feita na Conservatória do Registo Predial" e porque a separação e autonomização dos 4 prédios destintos exigir uma prévia operação de loteamento com os custos inerentes, que a Massa Insolvente não quer suportar, pelo que o recorrente, querendo, só poderá exercer o seu direito de preferência na venda conjunta dos 4 prédios, e não, apenas em relação àquele de que é arrendatário. 3 - O despacho recorrido não pode, porém, manter-se na ordem jurídica porque, para além de ser nulo, não tem qualquer suporte legal, nem razão de ser, sequer por razões económicas ou de conveniência da massa insolvente. 4 - Tal despacho é nulo porque o Tribunal o fundamenta no facto de pretensamente a divisão em 4 prédios distintos não ser possível por existir uma única descrição na Conservatória e por implicar uma prévia operação de loteamento - razão esta ultima invocada pelo Administrador da Insolvência, sem qualquer razão, e, ainda assim contrariada expressamente pelo recorrente pelo que não poderá ter-se, como teve, como assente, para além de o proferido despacho não ter curado de justificar legalmente a exigência de loteamento - cfr. art. 615° n.l , alínea b) e 615° n.1, alínea d) do Código de Processo Civil (ausência de fundamento de direito e pronuncia sobre questão que, por não assente, o tribunal não podia conhecer). 5 - Por outro lado, nenhuma das razões invocadas para impedir a formação de 4 vendas distintas, como se requereu, tem o mínimo de subsistência ou fundamento já que: a) Tendo o arrendatário direito de preferência na compra e venda "do local arrendado há mais de três anos" (art.1 091 ° n. ° 1, alínea a) do Código Civil) nem tem o direito de preferir em mais do que esse local, nem o dever de o fazer, a menos que se desse o caso, não invocado, nem invocável, (há 4 arrendatários distintos, um de cada prédio, e da divisão só pode resultar beneficio para a Massa Insolvente) previsto pelo art. 417° n. °1 do Código Civil; b) O senhorio - agora a Massa Insolvente - tem o dever de transmitir ao arrendatário o projecto de venda daquele "local arrendado", pois, se não o fizer, o arrendatário pode, e tem o direito de exercer a preferência depois da venda, nos termos do art.1410° do Código Civil, direito que existe ainda que os vários prédios tivessem um único artigo matricial, o que não é sequer o caso, e uma "mesma descrição predial", contra o que foi, embora sem justificação alguma, decidido (cfr. os Acórdão da Relação de Lisboa de 17/12/1998, in CoI. Jurisp. XXIII, V, pág.131, e os aí citados, da mesma Relação de 30/04/1996 in CoI. Jurisp. XXI, II, pág.132 e do Supremo Tribunal de Justiça de 13/07/1997 in BMJH 464, 525). c) Por último, tendo o conjunto dos 4 prédios cuja autonomização se requereu - e concretamente o prédio arrendado ao recorrente - sido construídos e inscritos na matriz no ano de 1945,ou seja, antes da publicação do Decreto-Lei n.º 289/73 de 6 de Junho, que estabeleceu pela primeira vez no nosso ordenamento, o regime jurídico dos loteamentos urbanos, a exigência de loteamento para a divisão dos prédios, não lhes é aplicável, podendo o prédio ser vendido sem dependência de qualquer processo de loteamento, como se tem entendido unanimemente quer pela jurisprudência (acórdãos citados atrás) quer pelos serviços de registo e notariado (cfr. quanto a estes os pareceres homologados pela Director Geral dos Serviços de Registos e Notariado - de 10/04/1992 e 27/04/2007 citados no texto supra). O Tribunal da Relação julgou improcedente a apelação e manteve a decisão recorrida, afirmando que “no caso em apreço, os quatro prédios em referência, têm autonomia registral (arts. 451, 452, 557 e 548), mas já não predial, encontrando-se descritos sob um mesmo número (nº …) na Conservatória do Registo Predial competente, formando uma só unidade jurídica”. Inconformado, o Autor veio recorrer, sustentando que as distintas moradias eram prédios com autonomia predial, mas não registral e que nem sequer era necessário o loteamento por os prédios existirem autonomamente antes da publicação do Decreto-Lei n.º 289/73, concluindo com o pedido da revogação do Acórdão recorrido, e sua substituição por decisão que defira o inicialmente requerido pelo Autor e ordene ao Administrador da Insolvência a discriminação e autonomização dos 4 prédios como acto prévio à venda. AA, arrendatário do prédio urbano inscrito na matriz sob o art. … da freguesia de S. …, concelho de …, descrito na conservatória do registo predial competente sob o nº …, solicitou ao Tribunal determinasse a autonomização deste prédio dos restantes três que compõem a verba nº 2 do auto de apreensão de bens, justificando o pedido no eventual exercício do direito de preferência na compra de tal prédio. O Sr. Administrador da Insolvência pronunciou-se sobre a razão da formação de uma verba composta por quatro artigos, tendo esclarecido que o factor determinante foi a descrição unitária feita na conservatória do registo predial tendo por objecto os quatro prédios e a operação de loteamento que a separação jurídica dos prédios importava, com os custos inerentes, ditou a venda conjunta. A verba nº 2 do auto de apreensão é composta por quatro prédios (arts. 451, 452, 557 e 548) descritos sob o mesmo número (nº …) na conservatória do registo predial competente (fls.3, apenso A)). No apenso de liquidação (apenso c), verifica-se que quatro prédios (arts. 451, 452, 557 e 548) descritos sob o mesmo número (nº …) na conservatória do registo predial competente, formaram o lote 1), sendo objecto de venda por meio de negociação particular, mediante a apresentação de propostas em carta fechada. b) De direito O presente litígio versa sobre o direito de preferência do arrendatário, previsto no artigo 1091.º do Código Civil, e, mais precisamente, sobre o objecto sobre o qual incide esse direito de preferência (que, nas palavras da lei é o local arrendado). O Acórdão recorrido aderiu ao entendimento, dominante na jurisprudência e sustentado por uma parte da doutrina[1], de que, tratando-se de prédio indiviso, o direito de preferência do arrendatário poderá ser exercido sobre a totalidade do prédio ou, melhor, “terá” mesmo que ser exercido sobre a totalidade do prédio, porquanto não poderia exercer-se relativamente a parte não juridicamente autonomizada do prédio. Simplesmente, existe uma questão prévia, a saber, se estamos no caso vertente perante um único prédio indiviso ou se não poderemos e deveremos já falar de quatro prédios, todos incluídos no mesmo lote pelo administrador de insolvência, sendo que um deles é, precisamente, a moradia tomada de arrendamento pelo Autor. Com efeito, embora o “prédio” venha registado sob um mesmo número, a sua descrição refere a existência de “quatro moradas de casas, com terrenos de logradouro e quintal, duas de rés-do-chão e área coberta de 70m2 cada uma e duas com a área coberta de 70m2, a dependência – 16m2 e o quintal 212m2, norte, nascente, sul e poente propriedade do …”, sendo que cada moradia tem o seu próprio número matricial. No número matricial respeitante à morada tomada de arrendamento pelo Autor, o número 451.º, faz-se, aliás, expressa menção de que se trata de um prédio “Susc. de Utiliz. Independente” e não deixa de ser pertinente observar que a sua autonomia física foi expressamente reconhecida pelo Administrador da Insolvência no fax enviado ao ora Autor a 23 de outubro de 2013, em que se pode ler que “os lotes 1 e 2 possuem, no mesmo prédio, fracções que, não obstante se encontrarem fisicamente autónomas, em termos registrais não o são”. Em suma, o argumento esgrimido, tanto pelo Administrador da Insolvência, como pelas Instâncias recorridas, para concluir que a morada tomada de arrendamento pelo Autor não é um prédio, nomeadamente para efeitos do exercício do seu direito de preferência é a circunstância de estar incluída com outras moradias no mesmo número no registo predial. Entendemos, contudo, que este argumento não é determinante. Aliás, não só há quem sustente que o conceito de prédio na lei civil substantiva e na lei registral não coincidem[2], e quem atribua grande relevo à existência de números matriciais distintos[3], como nos parece, sobretudo, que deve dar-se prevalência à verdade material sobre a registral, mormente num domínio (o da identidade e composição do prédio) que não parece sequer ser abrangido pela presunção, de resto ilidível, que resulta do registo. Afigura-se-nos, pois, que permanecem inteiramente atuais[4] as palavras do Tribunal da Relação do Porto no seu douto Acórdão de 16 de Setembro de 1991[5] [6], em cujo sumário se pode ler que “como a lei não fornece a definição de prédio urbano, os seus limites hão-de ser fixados por um critério económico, físico e natural, que terá de preferir a outros de efeitos mais restritivos”, acrescentando-se que “tratando-se de duas moradias, de construção geminada, que são independentes, autónomas e distintas é lícito concluir que cada uma dessas casas forma uma unidade económica e física, constituindo prédios distintos”. Ainda nas palavras do mesmo Acórdão “há que atender ao critério físico (natural) da coisa e à função que o dono lhe atribui, e ainda às correspondentes utilidades que ela produz; a descrição predial tem por finalidade a identificação física, económica e fiscal dos prédios, mas a presunção que resulta do registo é ilidível por prova em contrário; com base no registo predial, não se pode, assim, afirmar que determinado prédio tem esta ou aquela constituição, mas apenas que, em relação a ele ocorre certa situação jurídica”. Tendo não apenas autonomia física, como também autonomia social e económica, por destinação do dono, a moradia tomada de arrendamento pelo Autor, e por ele habitada há anos, poderá ser objecto do exercício do seu direito de preferência, solução, de resto, mais conforme com uma interpretação teleológica do direito de preferência do arrendatário, o qual visa facilitar a aquisição da propriedade do arrendado pelos inquilinos[7] [8]. Decisão: Procede o recurso, revoga-se o Acórdão recorrido e, à luz do pedido apresentado pelo Autor, defere-se o seu requerimento, devendo notificar-se o Administrador da Insolvência para proceder à discriminação e autonomização doa quatro prédios, (verbas 1 a 4 do “Lote 1”), como acto prévio à venda. Custas por conta do Réu. Lisboa, 3 de Março de 2015
Júlio Gomes (Relator) Nuno Cameira Salreta Pereira
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