Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2992/13.0TBFAF-A.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ANALOGIA
MULTA
TAXA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
VALOR DA CAUSA
SUCUMBÊNCIA
Data do Acordão: 03/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / MULTAS E INDEMNIZAÇÃO - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
CUSTAS PROCESSUAIS - MULTAS.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3.ª Edição, 2002, p. 103 e 104; Recursos em Processo Civil - Novo Regime, Almedina, 3.ª Edição, 2010, pp. 58 e 59; Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 51-52; Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2.ª Edição, 2014, pp.46-47.
- Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3.º, Coimbra Editora, 1946, pp.28-30.
- Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina 3.ª Edição, 2002, pp. 103 e 104; Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 8.ª Edição, Abril de 2008, pp. 116, 120-121, nota 217.
- Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, Almedina, 1981, pp. 30 e 31.
- Luso Soares, Processo Civil de Declaração – História . Teoria . Prática, Almedina, 1985, p. 297.
- Salvador da Costa, “Regulamento das Custas Processuais” Anotado e Comentado, Almedina, 4.ª Edição, 2012, pp. 408 e 409.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC), NA VERSÃO ANTERIOR AO DEC.-LEI N.º 303/2007, DE 24-08: - ARTIGOS 3.º A 6.º, 456.º, N.º3, 678.º, N.º4, 754.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 7.º, 542.º, 629.º, N.º2, ALS. B) E C), 643.º, N.º 4, PARTE FINAL, 644.º, N.º2, AL. E), 652.º, N.º 3, 671.º, N.º2.
REGULAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS (RCP), APROVADO PELO DEC.-LEI N.º 34/2008, DE 26-02, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI N.º 7/2012, DE 13-02: - ARTIGOS 10.º, 27.º, N.ºS 1 E 6, 31.º, N.º6.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 24/05/2007, NO PROCESSO 07B1480, DE 05/06/2007, NO PROCESSO N.º 07A1376; E AINDA, DE ALGUM MODO, O ACÓRDÃO DO STJ, DE 22/09/2005, TODOS ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 17/02/2009, PROFERIDO NO PROCESSO 08A3761 JSTJ000, PUBLICADO NA CJSTJ, TOMO I, P. 102 E DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 04-05-2010, PROCESSO 3272/04.8TBVISC.1.S1, IN CJSTJ, TOMO III, P. 63 E TAMBÉM , DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT
-DE 20/11/2014, NO PROCESSO 7382/07.1TBVNG.P1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT

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AUJ, DE 14/05/1996, PUBLICADO NO DR N.º 144/96, SÉRIE II, DE 24/06/1996, E DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃOS DOS TRIBUNAIS DA RELAÇÃO:

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
-DE 20-06-2012, NO PROCESSO N.º 161/08.0TBOFR, EM WWW.DGSI.PT
-DE 10/09/2013, NO PROCESSO N.º 171/10.8TBSAT, EM WWW.DGSI.PT
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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
-DE 26/09/2013, NO PROCESSO N.º 4584/10.7TBBRG-A, EM WWW.DGSI.PT
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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
-DE 29/04/2014, NO PROCESSO N.º 183/12. 7TBOER-A.L2-6, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. Para os efeitos da alínea c) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, só é admissível recurso para o STJ com o fundamento especial ali previsto, quando o mesmo seja vedado por motivo exclusivamente alheio à alçada do tribunal recorrido e, cumulativamente, quando o valor da causa, em termos gerais, o permitisse. 

2. Todavia, o que se discute, na decisão recorrida, é a questão da sua recorribi-lidade irrestrita, em face do bloqueio decorrente do fator condicionante da sucumbência.

3. Nessas circunstâncias, por analogia com a razão subjacente à alínea b) do n.º 2 do art.º 629.º do CPC, o recurso será então admissível, sob pena de inviabilizar a finalidade de uniformização visada pela alínea c) do mesmo normativo.

4. A norma do n.º 6 do art.º 27.º do RCP tem por objetivo introduzir uma regra geral de recorribilidade das decisões de condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória, fora dos casos de litigância de má fé, de modo a colmatar o bloqueio decorrente do fator condicionante da sucumbência.

5. A circunstância de existir esse bloqueio decorrente dos limites legais das multas e penalidades anteriormente fixados e mantidos nos artigos 10.º e 27.º, n.º 1, do RCP, excluídos os casos de litigância de má fé, bem como a previsão, no alínea e) do n.º 2 do art.º 644.º do CPC, do mecanismo de apelação autónoma para as decisões que condenem em multa ou cominem outra sanção processual, apontam no sentido do objetivo referido no ponto precedente.

6. Nessa conformidade, a expressão fora dos casos legalmente admissíveis contida no n.º 6 do art.º 27.º do RCP deve ser interpretada no sentido de deli-mitar os tipos de sanções ali enunciados, de modo a ressalvar daquela previsão normativa os casos de litigância de má fé.

7. Assim, nos termos do n.º 6 do art.º 27.º do RCP, é sempre admissível recurso, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, das decisões que condenem em multa, penalidade ou taxa sancionatória excecional, fora dos casos de litigância de má fé, mas apenas em um grau, por paralelismo com o disposto no n.º 3 do art.º 452.º do CPC.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I – Relatório

1. Na ação de execução sumária em referência com o valor de € 1.770,94, instaurada pela sociedade AA, Lda contra BB, a exequente, notificada de que não existia saldo nas constas bancárias tituladas em nome da executada, requereu, em 02/01/ 2014, ao agente de execução, que, por sua vez, requereu ao juiz do processo, em 10/01/2014, que fosse autorizado o levantamento do sigilo fiscal, de forma a poder averiguar a existência de bens suscetíveis de penhora.

2. Tal requerimento foi indeferido, por despacho de 30/01/2014, com base em “falta de concreto fundamento, indemonstrada que se mostra a necessidade do pretendido acesso”, condenando-se a requerente na multa de ½ UC.

3. Em 08/02/2014, a exequente deduziu novo requerimento ao juiz de execução, reiterando o pedido de levantamento do sigilo fiscal, insistindo em que tal levantamento se justificava porquanto, de acordo com as consultas efetuadas pelo agente de execução, não se encontraram bens da executada suscetíveis de penhora.

4. Sobre tal requerimento, em 28/02/2014, foi proferido o seguinte despacho:

“Considerando que o requerido constitui atribuição do agente de execução e que sobre o mesmo já existiu decisão judicial, verifica-se que a sua manifesta inutilidade, impertinência, e improcedência, pelo que será rejeitado, com a inerente responsabilidade tributária - cf arts. 6.º/1, 130.º, 527.º/1, 719.º/1 e 749.º/1 do Código de Processo Civil (CPC), e 7.º/4 do Regulamento das Custas Processuais (RCP).

Acresce que a exequente, sabendo da manifesta improcedência do requerido, pois não podia desconhecer as incumbências legais do agente de execução, não atuou com a prudência devida, mais pagará taxa sancionatória excecional, atento o valor e a natureza da ação - cf arts. 531." do CPC, e 10.° do RCP.

Pelo exposto:

Rejeito o requerimento em causa, ordenando o seu desentranhamento e a sua eliminação do histórico;

- Custas com duas unidades de conta de taxa de justiça, pelo requerente;

- Mais paga duas unidades de conta de taxa excecional.”

5. Inconformada com tal decisão, a exequente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, mas o mesmo foi rejeitado pelo Mm.º Juiz a quo por considerar que, face ao valor da causa, a decisão era irrecorrível, condenando-se ainda a recorrente na taxa execional de 3 UC, conforme despacho reproduzido a fls.20, datado de 01/04/2014.

6. Desta feita, a exequente reclamou desse despacho para o Tribunal da Relação de Évora, tendo o Exm.º Juiz Relator proferido decisão, em 19/05/2014, conforme fls. 31 a 38, a manter o despacho reclamado.

7. Perante isso, o Ministério Público junto da Relação, na qualidade de parte acessória, reclamou daquela decisão para a conferência, invocando a contradição entre a decisão proferida e vários acórdãos do Tribunal da Relação de Évora nos quais fora admitido recurso de decisões que aplicaram multas ou outras sanções processuais que não excediam metade da alçada.

8. Em 11/09/2014, foi proferido, em conferência, o acórdão de fls. 51 a 59, com um voto de vencido, a julgar improcedente tal reclamação, mantendo o despacho reclamado, com base no seguinte quadro conclusivo:

“1- Da condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional cabe sempre recurso, nos termos do disposto no artigo 27.°, n.º 6, do RCP na sua actual redacção, se tal condenação não assentar em qualquer disposição legal que a preveja, se não for abstratamente enquadrável na previsão de qualquer norma legal.

2 - Fora dessa circunstância excepcional, o recurso só é admissível se estiverem verificados os requisitos gerais de admissibilidade, nomeadamente os que se referem ao valor da causa e da sucumbência.”

9. Por seu turno, o voto de vencido é do seguinte teor:

“Votei vencida, dado ter perfilhado a tese contrária à que fez vencimento neste acórdão, com os fundamentos constantes do Acórdão desta Relação, proferido em 19/06/2014, no processo n.º. 1683/ 04.8TBFAR-A.E1, igualmente proveniente do 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Faro, de que fui relatora e que aqui dou por reproduzidos, no qual aderi à solução defendida nas decisões proferidas nos processos n.ºs 1982/13.8TBFAR-A (Relator Des. Dr. Sílvio Santos) e 3750/11.2TBFAR-A (Relatora Des. Dr.a Alexandra Moura Santos) também deste Tribunal da Relação, bem como nos acórdãos da Relação de Coimbra de 10/09/2013 (proc. n.º 171/ 10.8TBSAT) e da Relação de Guimarães de 26/09/2013 (proc. n.º 4584/10.7 TBBRG-A), acessíveis em www.dgsi.pt e ainda por Salvador da Costa, in "Regulamento das Custas Processuais Anotado”, 5.ª edição, 2013, Almedina, pág. 332.”

10. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora interpôs recurso de revista desse acórdão com fundamento especial, ao abrigo do disposto no art.º 692.º, n.º 2, alínea d), do CPC, a pugnar pela procedência da reclamação, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - O acórdão recorrido e o acórdão fundamento - proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em 19/06/2014, no Proc. n.º 1683/ 04.8TBFAR-A.E1 - encontram-se em contradição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, não cabendo recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal e inexistindo sobre a matéria jurisprudência uniformizada, pelo que se mostram reunidos os pressupostos legalmente exigidos para o recurso previsto no art.º 629.º, n.º 2,  al. d), do NCPC.

2.ª - O disposto no art.º 27.º, n.º 6, do RCP deve ser interpretado no sentido de ser sempre admissível recurso, quer da condenação em multa, quer em taxa sancionatória excepcional, tal como se prevê a admissão de recurso no caso da condenação por má fé, nos termos do art.º 542.º, n.º 3, do NCPC, independentemente do valor da causa e da sucumbência;

3.ª - Na verdade, resulta do disposto no art.º 27.º, n.º 2, do RCP que a multa ou penalidade só pode ascender a uma quantia máxima de 10 UC, ou seja, a um valor máximo de 1.020 euros - sendo, pois, este valor máximo sempre inferior a metade da alçada (2.500 euros). Não pode, pois, defender-se que o recurso da multa, previsto no art.º 644.º, n.º 2, al. e), do NCPC, está sujeito às exigências de valor fixadas no art.º 629.º, n.º 1, do mesmo código, quando afinal o RCP impede expressamente que a multa ascenda ao valor de sucumbência previsto em tal norma.

4.ª - Assim, haverá de atender-se conjugadamente ao disposto ao disposto nos artigos 27.º, n.º 2 e 6, do RCP e aos artigos 629.º, n.º 1, e 644.º, n.º 2, al. e), do NCPC para se obter uma interpretação que tenha em conta a unidade do sistema jurídico, uma vez que se afigura indubitável que o legislador pretendeu manter a possibilidade de recurso das decisões que aplicam multas e manteve no novo CPC a norma do art.º 644.º, n.º 2, al. e), com nova formulação para abranger quer a multa quer outra sanção processual - e tal interpretação não pode deixar de ser a de não sujeitar o recurso de multas e outras sanções às exigências do valor da acção e da sucumbência previstas no art.º 629.º, n.º 1, do NCPC, tal como sucede na litigância por má fé.

5.ª - Não tendo seguido o entendimento supra exposto, violou o douto acórdão recorrido o disposto no art.º 27.º, n.º 6, do RCP e artigos 629.º, n.º 1, e 644.º, n.º 2, al. e), do NCPC, devendo ter interpretado tais normas no sentido constante das conclusões acima enunciadas.

11. Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

        

II – Da admissibilidade do recurso

Antes de mais, importa reter que, ao presente caso, se aplica regime recursal do CPC na sua versão atual.  

A decisão aqui recorrida consiste no acórdão da Relação de Évora que manteve a decisão proferida pelo Exm.º Relator a julgar improcedente a reclamação deduzida, nos termos do art.º 643.º do CPC, contra o despacho do Mm.º Juiz da 1.ª instância que indeferiu o requerimento de interposição de recurso para aquela Relação do despacho transcrito no ponto 4.

De referir que a decisão proferida pelo Exm.º Relator da Relação de Évora sobre aquela reclamação era suscetível de impugnação para a conferência, tal como foi, nos termos conjugados dos artigos 643.º, n.º 4, parte final, e 652.º, n.º 3, do CPC.

Assim, o acórdão aqui recorrido teve por objeto a apreciação de uma decisão interlocutória unicamente sobre a relação processual como é a que respeita à admissibilidade do recurso interposto da decisão da 1.ª instância e que, por sua vez, versava sobre matéria de sanções processuais, de certo modo, sobre questão incidental.

Ora, o n.º 2 do artigo 671.º do CPC preceitua que:

Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:

a) – Nos casos em que o recurso é sempre admissível;

b) – Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

Sucede que o presente recurso se funda numa alegada contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, em 19/06/2014, no Proc. n.º 1683/04.8TBFAR-A.E1, pelo que está, desde logo, afastada hipótese prevista na transcrita alínea b).

Resta saber se o caso é subsumível à hipótese figurada na alínea a) daquele normativo, o mesmo é dizer se o recurso é sempre admissível, seja no caso previsto no n.º 2, alínea c), do artigo 629.º do CPC, seja mesmo ao abrigo de outra disposição especial.

Este último normativo, aliás invocado pelo Recorrente, dispõe que:

Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: 

d) - Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.    

Para efeitos de aplicação deste normativo, a questão que, desde logo, releva é a de saber se do acórdão aqui recorrido não cabe recurso ordinário por motivo estranho à alçada do Tribunal da Relação. Trata-se, pois, de um dos pressupostos de admissibilidade do recurso com o fundamento especial previsto no indicado normativo.

Sucede que, ainda no domínio do CPC, na versão anterior às alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24-08, firmara-se uma orientação jurisprudencial dominante no sentido de que tanto do então n.º 4 do art.º 678.º como do n.º 2 do art.º 754.º resultava implícito só ser admissível recurso para o Supremo, nos casos ali previstos, quando o valor da causa o permitisse, não fosse o motivo estranho à alçada[1].

Segundo Amâncio Ferreira[2], a razão de ser do requisito de admissibilidade de recurso especial ali previsto radica na ideia de que, visando-se com aquela espécie de fundamento de recorribilidade um meio de estabelecer jurisprudência uniformizadora, tal finalidade poderá ainda assim ser lograda nos casos concretos em que o valor da causa ou da sucumbência permitam a interposição de recurso ordinário. Daí que só quando seja vedado o recurso por motivo exclusivamente alheio à alçada é que se justifica então admiti-lo, por via especial, de forma a viabilizar a finalidade de uniformização.        

Mais precisamente, nas palavras daquele Autor:

«Não admitindo o processo recurso ordinário, por motivo respeitante à alçada da Relação (…) aguardar-se-á que um outro processo, onde se debata a mesma questão fundamental de direito, suba ao STJ (…) para então se proceder, se se revelar necessário, ao julgamento ampliado da revista ou do agravo, conducente à prolação de acórdão de fixação de jurisprudência.

Tendo em conta que o preceito que analisamos apenas permite recurso para o STJ, nos termos dos arts. 732.º-A e 732.º-B, das decisões de que não se possa para ele recorrer por motivos estranhos à alçada da Relação, é o referido preceito inaplicável em todas as situações em que o recurso jamais pudesse ser aceite por razão da alçada, mesmo que cumulativamente um outro motivo o impedisse.

Com efeito, a unidade do sistema jurídico determina que, nos casos de relevância da alçada como factor de inadmissibilidade do recurso, este em nenhuma circunstância deve ser admitido, sob pena de a uniformização de jurisprudência ocorrer prioritariamente nas situações em que vedado o recurso ordinário para o STJ, ou seja, naquelas a que não se reconhece dignidade que justifique a intervenção do tribunal de revista.

Assim, das decisões de que só caiba recurso até à Relação, não haverá recurso para o STJ, de harmonia com o disposto no n.º 4 do art.º 678.º, desde que, ex vi do n.º 1 do mesmo artigo, delas não coubesse recurso ordinário por proferidas em causa de valor não superior à alçada da Relação. Terá consequentemente de se aguardar que surja uma causa de valor superior a essa alçada para então se interpor recurso para o STJ, em conformidade com o estabelecido nos artigos 732.º-A e 732.º-B.

Fosse de forma diversa, o legislador não deixaria de referir, na parte inicial do n.º 4 do art.º 678.º, à semelhança do que fez na parte final do n,º 2 do mesmo artigo, que o recurso era sempre admissível, independentemente do valor da causa.        

Esta orientação mantém-se válida em face do atual artigo 629.º, n.º 2, alínea c), do CPC.

Ora, como vimos, tratando-se de um acórdão da Relação que teve por objeto a apreciação de uma decisão interlocutória recaindo unicamente sobre a relação processual, salvo nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, dele nunca cabe revista por motivo estranho à alçada nos termos expostos.

Com efeito, como observa Abrantes Geraldes[3], o motivo da inadmissibilidade de revista de acórdãos da Relação que versem sobre decisões interlocutórias da 1.ª instância em questões de natureza meramente adjetiva repousa na consideração de que a natureza de tais questões não justifica que se vá além do duplo grau de jurisdição, tal “como já ocorria no âmbito do sistema dualista relativamente ao agravo”.

Conclui-se assim que, segundo o n.º 2 do mencionado art.º 629.º, do acórdão aqui recorrido não cabe recurso de revista, nos termos gerais, por motivo estranho à alçada da Relação.  

Todavia, uma vez que o valor da causa é de € 1.770,94, também não seria sequer admissível recurso nos termos gerais, o que, à luz da orientação exposta, afastaria a aplicação do sobredito normativo, havendo que aguardar um caso em que a questão se colocasse no âmbito de um processo com valor superior à alçada do Tribunal da Relação.

Mas poder-se-ia colocar então outro obstáculo, como é o do valor da sucumbência, sendo que, para a generalidade dos casos das multas e outras penalidades pecuniárias processsuais, fora dos casos de litigância de má fé, ante os limites máximos fixados nos artigos 10.º e 27.º, n.º 1, do RCP, fica-se aquém da metade da própria alçada da 1.ª instância, o que inviabiliza o recurso das decisões que condenem em tais sanções.

Acresce que o que se discute, em sede de objeto da presente revista, é precisamente a interpretação da norma do n.º 6 do artigo 27.º do RCP no sentido de saber se ela prescreve uma recorribilidade irrestrita das decisões ali prevista, seja para a Relação, seja para o STJ, obstando àquele bloqueio.

Assim, caso se venha a entender que aquele normativo consagra uma regra de recorribilidade irrestrita, mesmo para o STJ, então estaremos perante uma disposição especial relevante para efeitos de aplicação da exceção prevista na alínea a) do n.º 2 do art.º 671.º do CPC acima transcrita.

Neste caso, parece valer aqui, por analogia, a razão subjacente ao disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 629.º, em que se admite o recurso, independentemente do valor da ação ou da sucumbência, “das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre”.

Na conjugação destas circunstâncias específicas, afigura-se, no caso presente, ser de admitir o recurso de decisão em que se discute a própria recorribilidade irrestrita da mesma. De resto, a não ser assim, estaria de todo inviabilizada, na prática, qualquer hipótese de uniformização quanto ao género de questão em apreço, em que se digladiam as Relações.

 

Tido isso por assente e sabido que sobre a matéria em questão não existe acórdão uniformizador, resta agora aferir a alegada contradição entre aquele acórdão e o acórdão-fundamento, para o que se exige ainda, na esteira da jurisprudência corrente deste Supremo Tribunal[4], a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
i) – a existência de, pelo menos, dois acórdãos da mesma ou diferente Relação em oposição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito fundamental, tendo por objeto idêntico núcleo factual, ali versados;  
ii) – a anterioridade do acórdão-fundamento, já transitado em julgado.
Relativamente ao requisito enunciado em i), importa que a alegada oposição de acórdãos se inscreva no âmbito da mesma legislação, no sentido de que as decisões em confronto tenham convocado um quadro normativo ou regras de conteúdo e alcance substancialmente idênticos, ainda que porventura incluídos em dispositivos legais distintos[5].   
Por sua vez, tal oposição tem de incidir sobre a mesma questão de direito fundamental, o que pressupõe que as decisões em confronto tenham subjacente um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspetiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas[6].
Para tanto, a oposição deve revelar-se frontal nas decisões em equação, que não implícita ou pressuposta, muito embora não se mostre necessária a verificação de uma contradição absoluta, não relevando a argumentação meramente acessória ou lateral (obiter dicta)[7]. Essa oposição só é relevante quando se inscreva no plano das próprias decisões em confronto e não apenas entre uma decisão e a fundamentação de outra, ainda que as respetivas fundamentações sejam pertinentes para ajuizar sobre o alcance do julgado, como, aliás, se considerou no acórdão do STJ, de 17/02/2009, proferido no processo 08A3761 JSTJ000[8].  
Incumbe também ao recorrente, além da indicação da questão de direito tida por essencial, o ónus de juntar cópia, ainda que não certificada, do acórdão-fundamento com nota do respetivo trânsito, nos termos consignados no n.º 2 do artigo 637.º do CPC.  
No caso dos autos, logo no requerimento de interposição de recurso, o Recorrente invocou, como fundamento específico, que o acórdão recorrido está em contradição com o acórdão da mesma Relação proferido no processos n.º 1683/04.8TBFAR-A.E1, de 19/06/2014, transitado em julgado no dia 07/07/2014, conforme certidão junta a fls. 68-78.

Para tanto centrou as respetivas alegações na caracterização de um erro de interpretação do sentido e alcance do disposto no n.º 6 do art.º 27.º do Regulamento das Custas Processuais, no tocante a saber se é sempre admissível recurso da condenação quer em multa quer em taxa sancionatória excecional, à semelhança da admissibilidade de recurso no caso da condenação por má fé, nos termos do art.º 542.º, n.º 3, do CPC, independentemente do valor da causa e da sucumbência.  
Constata-se que o acórdão aqui recorrido julgou improcedente a reclamação deduzida para o Tribunal da Relação de Évora, mantendo o despacho da 1.ª instância que indeferiu o recurso ali interposto, por considerar, em síntese, que:
«1- Da condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional cabe sempre recurso, nos termos do disposto no artigo 27.°, n.° 6, do RCP na sua actual redacção, se tal condenação não assentar em qualquer disposição legal que a preveja, se não for abstractamente enquadrável na previsão de qualquer norma legal.

2 - Fora dessa circunstância excepcional, o recurso só é admissível se estiverem verificados os requisitos gerais de admissibilidade, nomeadamente os que se referem ao valor da causa e da sucumbência.»
Por seu lado, o acórdão-fundamento, pronunciando-se sobre reclamação que versava questão fáctico-jurídica desenhada em moldes idênticos, decidiu admitir o recurso, por se entender, no essencial que:
«Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 644.º, n.º 2, alínea e), do NCPC e 27.º, n.º 6, do RCP, cabe sempre recurso, que pode ser autónomo, das decisões de condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória, independentemente do valor da causa e da sucumbência.»
Do simples cotejo dos acórdãos em confronto colhe-se, sem necessidade de mais considerações, a existência de uma contradição frontal na interpretação do indicado segmento normativo do n.º 6 do artigo 27.º do RCP, o que se repercutiu em decisões de sentido oposto.
Termos que se conclui pela admissão da presente revista com base no invocado fundamento especial.

II – Delimitação do objeto do recurso

Como é sabido, o objeto do recurso, no que aqui releva, é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, e 639.º, n.º 1, do CPC, na atual redação.

Dentro desses parâmetros, tendo em conta o fundamento específico invocado, o objeto da presente revista tem em vista:

(i) – Em primeira linha e nuclearmente, saber se o segmento normativo do n.º 6 do art.º 27.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 34/2008, de 26-02, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 7/2012, de 13-02, que refere “fora dos casos legalmente admissíveis cabe sempre recurso” tem o alcance de admissibilidade de recurso, para os casos ali previstos, independentemente do valor da causa ou da sucumbência ou se, pelo contrário, estará condicionado a estes factores;     

(ii) – E, em conformidade com a solução que seja adotada, se o recurso interposto da decisão da 1.ª instância deve ser admitido.

III – Fundamentação

1. Quanto ao sentido e alcance do n.º 6 do art.º 27.º do RCP

Sob a epígrafe Disposições gerais, o artigo 27.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 34/2008, de 26-02, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 7/2012, de 13-02, e por esta lei republicado, prescreve o seguinte:

1 - Sempre que na lei processual for prevista a condenação em multa ou penalidade de algumas das partes ou outros intervenientes sem que se indique o respetivo montante, este pode ser fixado numa quantia entre 0,5 UC e 5 UC.

2 – Nos casos excecionalmente graves, salvo se for outra a disposição legal, a multa ou penalidade pode ascender a uma quantia de 10 UC.

3 – Nos casos de condenação por litigância de má fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC.

4 – O montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste.

5 – A parte não pode ser simultaneamente condenada, pelo mesmo ato processual, em multa e em taxa sancionatória excecional.

6 - Da condenação em multa, penalidades ou taxa sancionatória excecional fora dos casos legalmente admissíveis cabe sempre recurso, o qual, quando deduzido autonomamente, é apresentado nos 15 dias após a notificação do despacho que condenou a parte em multa penalidade ou taxa.

Porém, importa referir que, na versão originária do RCP constante do Dec.-Lei n.º 34/2008, de 26-02, o artigo acima transcrito não contemplava a disposição ora contida no n.º 3 respeitante aos limites da multa para os casos de litigância de má fé e o teor do atual n.º 6 constava então do n.º 5.

Este n.º 5 era do seguinte teor:

Da condenação em multa, penalidades ou taxa sancionatória excepcional fora dos casos legalmente admissíveis cabe sempre recurso, o qual, quando deduzido autonomamente, é apresentado nos 5 dias após a notificação do despacho que condenou a parte em multa ou penalidade.

Entretanto, o Dec.-Lei n.º 52/2011, de 13-04, prosseguindo nos objetivos de uniformização e simplificação do sistema das custas processuais, iniciadas com o Dec.-Lei n.º 34/2008, alterou o n.º 5 do mencionado art.º 27.º, no sentido de aumentar para 15 dias o prazo de 5 dias para interposição do recurso ali previsto.

Convém atentar também no art.º 10.º do RCP, onde se prescreve que a taxa sancionatória é fixada entre 2 UC e 15 UC.

Como acima se deixou enunciado, a questão suscitada consiste em saber qual o sentido e alcance do segmento normativo «fora dos casos legalmente admissíveis cabe sempre recurso».

A jurisprudência da 1.ª instância e das Relações tem divergido em duas linhas de orientação opostas:

(i) - uma, no sentido de que, nos casos previstos no normativo em foco, é sempre admissível recurso, independentemente do valor da causa ou da sucumbência;
(ii) – outra, adotando o entendimento de que, em tais casos, é admissível recurso nos termos gerais, ou seja, em função do valor da causa ou da sucumbência, salvo nos casos em que a condenação não assentar em qualquer disposição legal que a preveja, havendo então sempre lugar a recurso.

O acórdão aqui recorrido alinhou no segundo entendimento, embora com um voto de vencido a perfilhar a primeira orientação. O acórdão-fundamento adotou a primeira orientação.

Por sua vez, o Recorrente pugna por uma solução na linha da primeira orientação enunciada.

No sentido da primeira orientação, pronunciaram-se, pelo menos, os seguintes os acórdãos da Relação de Coimbra, de 10/09/2013, no processo n.º 171/10.8TBSAT[9] e da Relação de Guimarães, de 26/09/2013, no processo n.º 4584/10.7TBBRG-A[10].

Na linha do segundo entendimento, pronunciaram-se os acórdãos da Relação de Coimbra, de 20-06-2012, no processo n.º 161/08.0TBOFR. C1[11], e da Relação de Lisboa, de 29/04/2014, no processo n.º 183/12. 7TBOER-A.L2-6[12].

Num e noutro sentido, são ainda indicados, nos autos, outros acórdãos das Relações, mas que não se encontram publicados. Não se conhece também qualquer decisão do Supremo Tribunal de Justiça divulgada sobre esta matéria.

Vejamos qual a solução que se afigura mais consentânea com a lei.

Com se colhe da análise da jurisprudência consultada, a interpretação do normativo em foco reveste-se de alguma dificuldade, desde logo, pelo pouco rigor textual da forma como se encontra elaborada.

Assim, segundo os cânones hermenêuticos estabelecidos no art.º 9.º do CC, impõe-se reconstituir o pensamento legislativo a partir da letra da lei (elemento literal), tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (elemento sistemático), o circunstancialismo histórico-social em que a lei foi elaborada (a occasio legis) e as condições específicas em que é aplicada. Com apoio nestes vetores, procurar-se-á indagar a ratio legis (elemento racional ou teleológico), tendo como patamar o mínimo de correspondência verbal com o texto da lei, ainda que imperfeitamente expresso, sob a orientação de que se presume que o legislador consagrou a solução mais acertada e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

 

Ora, sobre o normativo aqui em foco, Salvador da Costa[13], estabelecendo o paralelismo com o prescrito no n.º 3 do art.º 456.º correspondente ao atual 542.º do CPC, segundo o qual, “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé”, opina no sentido:

«(…) de interpretar o envolvente aparente de concurso de normas de harmonia com o princípio da especialidade, com a consequência de limitação daquele … normativo (o n.º 6 do art.º 27.º do RCP) às decisões condenatórias em pena de multa ou taxa sancionatória excecional em situações diversas da litigância de má fé.»       

Nessa linha de raciocínio, acrescenta que:

  «A expressão fora dos casos legalmente admissíveis é desadequada, por que é suscetível de levar a crer, sobretudo no caso da taxa sancionatória excecional, que se reporta às cominações sancionatórias fora das espécies processuais a que alude o proémio do artigo 447.º-B do Código de Processo Civil.

Tendo em conta a letra e o escopo deste normativo, parece que se reporta ao erro de julgamento, seja na seleção dos factos pertinentes, seja na interpretação da lei, de que resulte decisão ilegal de condenação em multa ou taxa sancionatória excecional. Assim, este normativo reporta-se, essencialmente, ao mérito da impugnação por via de recurso e não aos pressupostos relativos à sua admissibilidade.

  O referido recurso também deixa de depender do valor específico do incidente em causa, ou seja, é sempre admissível, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, em paralelismo com o que se prescreve nos artigos 456.º, n.º 3, e 678.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil.

   Nos termos do artigo 10.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, dada a similitude com a situação prevista no n.º 3 do artigo 456.º do Código de Processo Civil, deve aplicar-se aqui, por analogia, o segmento normativo que prevê só ser admitido recurso em um grau.»

Foi fundamentalmente nesta base doutrinária que alinharam os acórdãos proferidos no sentido da orientação de que, nos casos previstos no n.º 6 do art.º 27.º do RCP, é sempre admissível recurso, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, ainda que limitando essa recorribilidade a um só grau de jurisdição.

Por seu turno, os acórdãos em sentido contrário seguem de perto a solução interpretativa encontrada pelo acórdão da Relação de Coimbra, de 20-06-2012, proferido no processo n.º 161/08.0TBOFR.C1, em que se pondera, o seguinte:

«Confessamos desde já que temos grande dificuldade em interpretar a disposição legal aludida, cuja redacção, se bem vemos, não prima pela clareza.

Na tarefa de interpretação que não poderemos deixar de enfrentar haverá que ter bem presentes as regras previstas no art.º 9.º do Cód. Civil. Ou seja, tomando como ponto de partida a letra da lei, que nunca poderá ser totalmente ultrapassada, e ponderando os elementos histórico, sistemático e teleológico, haverá que procurar alcançar o pensamento legislativo, presumindo sempre que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

A dificuldade está em determinar o exacto sentido e alcance da expressão «fora dos casos legalmente admissíveis».

E convocando o entendimento de Salvador da Costa, quando afirma que “a expressão fora dos casos legalmente admissíveis é desadequada porque é suscetível de levar a crer, sobretudo no caso da taxa sancionatória excecional, que se reporta a cominações fora das espécies processuais a que se reporta o proémio do artigo 447º-B do Código de Processo Civil”, concluindo pela admissibilidade de recurso, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, naquele acórdão se prossegue, dizendo:

«Contudo, a ser assim, a ser esse o pensamento legislativo, a expressão «fora dos casos legalmente admissíveis» seria uma completa e pura inutilidade, sem qualquer significado, cuja presença no texto da norma não só nada acrescenta como até atrapalha e confunde. E resultaria contrariada a presunção consagrada no art.º 9.º, n.º 3, do Cód. Civil de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Não nos convence, portanto, com todo o respeito, tal interpretação.

Perante a redacção da norma do n.º 5 do art.º 27.º do RCP, a expressão «fora dos casos legalmente admissíveis» só pode, a nosso ver, referir-se à condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional. E inculca, numa primeira abordagem, que no juízo sobre a admissibilidade do recurso esteja presente um juízo prévio sobre a procedência do mesmo. Ou seja, se a condenação se situa fora dos casos legalmente admissíveis, há lugar a recurso, o qual, em princípio, precisamente porque a condenação se situa fora dos casos legalmente admissíveis, não deixará de obter provimento; e se a condenação não se situa fora dos casos legalmente admissíveis, não há lugar a recurso, mas, se houvesse, o mesmo certamente teria de improceder.

Esta interpretação apresenta-se-nos como pouco razoável, carecida de lógica, e esbarra abertamente na presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (art.º 9.º, n.º 3 do Cód. Civil).

Como habitualmente, “in medio virtus”, devendo a boa interpretação situar-se algures entre as duas soluções extremas atrás referidas.

Com vista a conferir sentido útil à mencionada expressão «fora dos casos legalmente admissíveis», a interpretação que nos parece corresponder ao pensamento legislativo é a de que da condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional cabe sempre recurso se tal condenação não assentar em qualquer disposição legal que a preveja, se não for abstractamente enquadrável na previsão de qualquer norma legal.

Sendo possível situar abstractamente a condenação no âmbito da previsão de qualquer norma legal, só haverá recurso nos termos gerais, ou seja, exceptuados os casos de litigância de má fé, em que é sempre admissível o recurso, se, cumulativamente, o valor da causa ultrapassar a alçada do tribunal de que se recorre e a sucumbência for de valor superior a metade da dita alçada.

Não encontrando a condenação, ainda em termos abstractos, arrimo em qualquer disposição legal que a preconize, o recurso é sempre admissível, independentemente do valor da causa e da sucumbência».

Nessa linha de entendimento, a locução fora dos casos legalmente admissíveis seria interpretada como confinamento da factispecies desenhada no n.º 6 do art.º 27.º do RCP - Da condenação em multa, penalidades ou taxa sancionatória excecional – e não como ressalva dos tipos de sanção ali enunciados ou à respetiva estatuição. Significaria isto que a regra ali estabelecida de recorribilidade irrestrita compreenderia apenas os casos em que a condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória não se enquadre em qualquer norma legal, geral ou especial, que a preveja, o mesmo é dizer, somente os casos de condenações absolutamente ilegais. Daí concluir-se que só será admissível recurso, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, de decisões condenatórias em sanções processuais pecuniárias que sejam absolutamente ilegais. Por sua vez, das decisões condenatórias em sanções processuais legalmente admissíveis, por não se incluírem na previsão do n.º 6 do citado art.º 27.º, caberia recurso nos termos gerais do artigo 629.º, n.º 1, do CPC, sem prejuízo dos casos especiais em que a lei o admita de forma irrestrita.

Estamos, pois, perante dois resultados interpretativos divergentes, de difícil conciliação.

Em face disso, importa, antes de mais, reconduzir a análise ao quadro mais ampla do instituto das medidas processuais cíveis sancionatórias, mormente as de natureza pecuniária, incluindo a sua trajetória histórico-evolutiva, de modo a surpreender, na sua coerência intrínseca, a ratio do normativo em apreço.

Como é sabido, a instância caracteriza-se, esquematicamente, como uma relação jurídico-processual, de natureza pública, complexa quanto ao conteúdo, autónoma da relação material controvertida que tem por objeto, subjetiva e objetivamente estável e progressiva ou dinâmica[14].    

Ora, a dinâmica da instância desenvolve-se na base dos princípios da auto-responsabilidade das parte e da iniciativa subsidiária do juiz[15], como decorre dos artigos 3.º a 6.º do CPC, reforçados hoje pelo princípio da cooperação judiciária proclamado no art.º 7.º do mesmo diploma.

Assim, diversamente das relações jurídicas substantivas, a trave-mestra da instância e do seu impulso repousa na figura do ónus processual associado a preclusões, segundo o qual recai sobre as partes a necessidade de praticaram determinados atos processuais sob pena de sofreram as desvantagens da respetiva omissão.

Mas a par disso, prescrevem-se deveres de conduta laterais para as partes e para intervenientes acidentais (v.g. testemunhas e peritos) colimados ao adequado prosseguimento da ação com vista à justa resolução do litígio. No espectro desses deveres destacam-se, quanto às partes, o dever de probidade ou de boa-fé processual (art.º 8.º do CPC) e o dever de recíproca correção (art.º 9.º do CPC); e ainda quanto às partes e a intervenientes acidentais, o dever de cooperação e de colaboração, designadamente nos termos dos artigos 7.º, 417.º, n.º 1, 429.º, 432.º, 508.º, n.º 4, 526.º, 594.º, 601.º, entre outros, do CPC, e o dever de urbanidade durante a realização dos atos processuais (art.º 150.º, n.º 1, do CPC).   

Posto que a relação jurídico-processual contém a sua própria garantia[16], a violação desses deveres de conduta é suscetível de implicar, além de outras medidas coercitivas, a aplicação de multas ou de outras penalidades pecuniárias pelo juiz do processo, conforme se alcança do preceituado, nomeadamente nos artigos 150.º, n.º 1, 417.º, n.º 2, 430.º, 433.º, 508.º, n.º 4, 531.º, 542.º, n.º 1, do CPC. Em regra, os limites das multas e de outras penalidades pecuniárias aplicáveis constam do Regulamento das Custas Processuais, mormente dos seus artigos 10.º e 27.º.

Sucede que, no domínio do CPC, na versão de 1961, previa-se a aplicação de multas às partes e intervenientes acidentes nos seguintes artigos: 154.º, n.º 4 (contra excessos cometidos durante a realização de atos); 365.º, n.º 1 (às partes, no âmbito do incidente de falsidade); 456.º, n.º 1 (às partes, em caso de litigância de má fé); 508.º, n.º 2, (às partes por falta injustificada à audiência preparatória); 519.º, n.º 2 (às partes e intervenientes acidentais por falta de cooperação); 537.º (às partes e terceiros, por violação do dever de apresentar documentos); 629.º, n.º 3 (às testemunhas, par falta injustificada de comparência a inquirição). Tais disposições mantiveram-se, salvo um ou outro pormenor, nas sucessivas reformas processuais, sendo trasladadas para os normativos acima indicados do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06.

Por sua vez, o Código das Custas Judiciais de 1962, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 44.329, de 08-05, além de disposições sobre o modo de liquidação, pagamento e destino das multas aplicadas, previa no seu artigo 208.º os limites específicos das aplicáveis aos litigantes de má fé e, em geral, os limites das multas nos demais casos não especialmente regulados na lei, limites esses que, por exemplo em 1981, se situavam entre 500$00 e 60.000$00, para os litigantes de má fé, e entre 100$00 e 2.000$00 para os casos restantes.

Com a subsequente alteração introduzida pelo Dec.-Lei n.º 387-D/87, de 29-12, tal moldura passou a sedear-se no respetivo art.º 208.º, com os montantes atualizados de 2 UC a 100 UC, no caso de litigantes de má fé, e de ¼ UC a 5 UC nos outros casos.

Por fim, o CCJ de 1996, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 224-A/96, de 26-11, manteve moldura idêntica no seu art.º 102.º, com os montantes atualizados de 2 UC a 100 UC e de 1 UC a 10 UC, respetivamente.

Nesse contexto legal, segundo o artigo 155.º, n.º 2, e nos termos do art.º 740.º, n.º 2, alínea a), do CPC, na versão de 1961, cabia recurso de agravo, com efeito suspensivo, das decisões da 1.ª e 2.ª instância que condenassem em multa as partes ou outros intervenientes acidentais por excessos cometidos em atos processuais escritos ou orais, disposições essas que se mantiveram nos artigos 154.º, n.º 6, e 740.º, n.º 2, alínea a), com as alterações do CPC introduzidas pelos Dec.-Leis n.º 329-A/95, de 12-12, e n.º 180/96, de 25-09. Também no âmbito destas alterações resultou a inovação do n.º 3 do art.º 456.º a prescrever que “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé”.

Ora, no domínio desse quadro legal, vinha sendo entendimento jurisprudencial corrente de que das decisões de condenação em multa cabia recurso ordinário nos termos gerais do então artigo 678.º, n.º 1, do CPC, ou seja, condicionado ao valor da causa ou da sucumbência, sem prejuízo dos casos especiais previstos no n.º 2 e 3 do mesmo artigo, salvo, como foi dito, nos casos de condenação por litigância de má fé em que era sempre admissível recurso em um grau, conforme o disposto no n.º 3 do art.º 456.º do mesmo Código.

Sobre tal entendimento suscitavam-se, no entanto, algumas interrogações quanto a casos em que não estaria só em causa o valor económico da condenação mas ainda interesses de ordem imaterial inerentes ao juízo de censura, bem como a situações em que tal decisão implicava, para além dos efeitos económicos, consequências lesivas de direitos processuais; ou ainda quando a condenação em multa impusesse o pagamento de quantias consideráveis e desproporcionadas, no plano da sanção aplicável, embora inferiores ao valor da causa ou da sucumbência. 

Discorrendo sobre tais interrogações, Abrantes Geraldes[17] observa o seguinte:

«Ainda assim, as regras de interpretação das leis não são compatíveis com o casuísmo, nem o eventual desacerto de uma concreta solução pode servir para derrubar a regra geral de que o legislador, com fundados motivos, pretendeu estabelecer. Tal como ocorre com outras decisões, não basta a alegação de um eventual erro decisório ou de um resultado materialmente injusto para ancorar a recorribilidade. O sistema convive com uma certa margem de autonomia dos tribunais de categoria inferior, sob pena de, passo a passo, se cair na recorribilidade de todas as decisões, rejeitando-se toda e qualquer restrição ao duplo ou ao triplo grau de jurisdição, inundando os tribunais superiores com querelas sem suficiente relevo e em prejuízo de outros interesses não menos importantes que se pretendem tutelar.

Diga-se ainda que o sistema, na sua complexidade, apresenta outras saídas que atenuam o aparente rigor formal da referida solução. Por um lado, a lei acautela a possibilidade de ser pedida a “reforma” da decisão quanto a custas e multas, nos termos do art.º 669.º, n.º 1, al. b), prevendo-se também no n.º 2 a possibilidade de invocação de eventuais lapsos manifestos. Por outro, as “nulidades” a que se reporta o art.º 668.º, als. b) a e), podem ser arguidas perante o próprio tribunal que proferiu a decisão, nos termos do n.º 4.»

E já no âmbito de vigência desta norma, o mesmo Autor[18] desenvolve as seguintes considerações:

«Em processo cujo valor exceda a alçada do tribunal, será recorrível decisão que obrigue ao pagamento de multa ou taxa de justiça cujo valor seja inferior a metade da alçada do tribunal?

A resposta que se extrai do preceituado no art. 629.°, n.° 1, parece clara no sentido negativo, já que não se distingue essa situação das demais em que a admissibilidade do recurso fica dependente da conjugação entre o valor da alçada e o valor da sucumbência.

Contra uma resposta formal invoca-se, por vezes, que o que está em causa não é tanto o valor puramente económico da condenação, antes interesses de ordem imaterial ou interesses paralelos aos que no processo respectivo estão em discussão. Outras vezes, relativamente ao pagamento de taxa de justiça, pretende-se obter apoio para a recorribilidade não propriamente nos efeitos económicos que a decisão implica, mas nos efeitos processuais decorrentes do seu não acatamento.

É uma tentativa a que subjaz, com frequência, a recusa em aceitar uma solução com a qual o legislador pretendeu libertar os tribunais superiores de questões sem suficiente relevo jurídico, revelando-se insuficientes os argumentos em sentido inverso. A não ser quando a lei estabelece ressalvas, como a prevista para a condenação como litigante de má fé, o simples facto de alguém ser condenado em multa ou responsabilizado pelo pagamento de uma determinada quantia não obsta à aplicação da regra geral.
A questão já foi submetida ao Trib. Constitucional que no Ac. n.º 496/96 deixou expresso o entendimento de que a restrição ao recurso de decisão que aplicou multa processual em função do valor da alçada não padece de inconstitucionalidade.
Por isso, em qualquer dos referidos casos, a recorribilidade da decisão está dependente da verificação do condicionalismo imposto pelo valor do processo ou da sucumbência.
Esta conclusão não é impedida sequer, quanto às multas, pelo art. 644.º, n.º 2, al. e), já que esta norma apenas se limita a prever a admissibilidade de recurso autónomo quando exista a aplicação dessa sanção, sem se comprometer quanto ao pressuposto da recorribilidade em função do valor em causa, questão regulada pelo art. 629.º, n.º 1.»

E, em nota de rodapé (n.º 83), no que respeita à aplicação da regra geral de recorribilidade, destaca que:

«Ainda assim, a questão foi resolvida no sentido afirmativo em relação às decisões de condenação em multa, penalidade ou em taxa sancionatória excepcional, fora dos casos legalmente admissíveis (isto é, fora dos casos em que a lei prevê expressa-mente essa possibilidade). Nos termos do art. 27°, n° 6, do Regulamento das Custas Processuais, de tais decisões cabe sempre recurso»

Pese embora o vigor e a persistência da tese que condiciona a admissibilidade do recurso das decisões em matéria de multas e outras penalidades processuais, ressalvados os casos de litigância de má fé, aos valores da causa ou da sucumbência, não se pode deixar de reconhecer que estes valores se revelam algo inadequados aos interesses subjacentes a tal matéria.

Com efeito, o impacto económico de uma sanção processual pecuniária aplicada e a sua proporcionalidade em relação à gravidade do comportamento ilícito em que se funda, em relação aos visados, pouco ou nada tem a ver com o valor da causa ou com o referencial que com base neste se estabelece a sucumbência. Basta pensar na aplicação de multas às testemunhas ou a outros intervenientes acidentais ou mesmo a partes que beneficiem de apoio judiciário.

Considere-se, por exemplo, quando ainda não tinha sido introduzido a condicionante da sucumbência, a aleatoriedade que residia no facto de, sendo as partes ou até uma testemunha condenadas em multa do mesmo montante por infração com gravidade idêntica em dois processos diferentes, poder a decisão ser recorrível no processo com valor superior à alçada do tribunal recorrido, ao passo que a decisão proferida no processo com valor inferior já não seria recorrível.      

Acresce que com a Reforma Intercalar do Código do Processo Civil pelo Dec.-Lei n.º 242/85, de 09-07, foi introduzido, no respetivo art.º 678.º, n.º 1, o valor da sucumbência referenciado a metade da alçada do tribunal recorrido, como condicionante da recorribilidade, o que se traduzia em que a admissibilidade do recurso das decisões que condenassem em multa, salvo nos casos de litigância de má fé, se passasse a aferir pelo montante da multa aplicada.

Assim, como os montantes máximos das multas, ressalvados os casos de litigância de má fé, se situavam, em regra, em 10 UC, a generalidade de tais decisões ficavam sempre muito aquém de metade da alçada da 1.ª instância, o que ainda se agravou com a subida dos valores das alçadas, donde resultava a sistemática irrecorribilidade de tais decisões.

Foi nessa constatação que Amâncio Ferreira, em 2008, no quadro das alterações ao regime recursal introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24-08, mas sem considerar ainda o novo RCP, advertia para a urgência de uma intervenção legislativa, nos seguintes termos[19]:

«Se não se justificava, como pretendeu a Comissão Revisora do actual CPC (cf. Lopes Navarro, ob. cit. pp. 10 e 81), haver sempre recurso relativo à condenação em multa, qualquer que fosse o motivo da condenação, por na altura se atender apenas ao valor da acção como factor de admissibilidade do recurso, presentemente e após a entrada em vigor do DL n.º 242/85, de 9 de Julho, que igualmente mandou atender para esse efeito ao valor da sucumbência, é imperativo uma intervenção legislativa a determinar que a este último valor se não atenda para a admissibilidade do recurso das decisões que condenem em multa, fora dos casos de litigância de má fé. Enquanto tal não acontecer, e tendo em conta que, no triénio que abrange os anos de 2007, 2008 e 2009, a UC é de montante de € 96,00, somente as condenações superiores a 20 UC, na 1.ª instância, e a 78 UC, na 2.ª instância, seriam passíveis de recurso. Ora, condenações deste tipo, fora dos casos especialmente regulados na lei, são inviáveis, exceptuadas as respeitantes à litigância de má fé, uma vez que os limites legais se encontram estabelecidos entre 1 UC e 10 UC (art.º 102.º, alínea b), do CCJ).»

Sucede que, entretanto foi publicado o Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 34/2008, de 26-02, que teve por objetivo unificar e simplificar todo o regime de custas, independentemente da administrativa, penal ou civil do processo.

Nesse âmbito, foi remodelado o instituto sancionatório respeitante às multas e outras sanções pecuniárias processuais, nos termos já referidos dos artigos 10.º e 27.º daquele diploma, acima transcritos.

No quadro de tal alteração, bem como da subsequentemente operada pela Lei n.º 7/2012, de 13-02, foram tidos por atualizados os limites, quer da taxa sancionatória especial, entre 2 UC e 15 UC (art.º 10.º), quer das multas por litigância de má fé, entre 2 UC e 100 UC, quer ainda das restantes multas e penalidades não especialmente previstas, entre 0,5 UC e 5 UC.

E foi no quadro do referido RCP que surge precisamente a disposição aqui em apreço contida inicialmente no n.º 5 e depois transferida para o n.º 6 do artigo 27.º daquele diploma.

É, pois, neste contexto circunstancial que importa encontrar a razão de ser da inserção daquela disposição sobre a recorribilidade das decisões que condenem em multa, penalidade ou taxa excecional fora dos casos legalmente admissíveis.

Ora, como ficou dito, perante a ambiguidade da expressão fora dos casos legalmente admissíveis, o acórdão da Relação de Coimbra, de 20-06-2012, esforçou-se por encontrar um sentido e alcance lógico daquela na economia desse normativo, tendo concluído que tal locução só poderia referir-se aos casos de condenação em multa ou outras penalidades aplicadas fora dos casos previstos na lei, ou seja, absolutamente ilegais.

No entanto, apesar desta coerência semântica na economia do n.º 6 do art.º 27.º, aquela solução encontra escolhos de tomo, de ordem sistemática, no quadro mais amplo das sanções processuais pecuniárias decorrente tanto dos números 1 a 5 do mesmo normativo como do próprio CPC.

Com efeito, como sustenta o Recorrente, os limites das multas e outras sanções pecuniárias estabelecidos no número 1 do artigo 27.º e no art.º 10.º do RCP, nunca atingem valores máximos ao nível de metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância (€ 2.500,00). Também no CPC, não se encontra fixação de montantes que cheguem sequer a tal patamar.

Daí decorre que, pelo menos no quadro legal vigente, não se descortina uma situação de condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória especial, salvo no caso de litigância de má fé, que fosse suscetível de recurso nos termos gerais. Nem se divisa que o legislador tivesse em vista, proximamente, alterar o quadro daqueles limites.        

Nessas circunstâncias, a admitir a tese assim perfilhada, teríamos de reconhecer que o legislador se teria preocupado, de modo algo esquizofrénico, com a edição de uma norma para situações, na prática marginais, quando o imperativo que se punha era precisamente o de prover sobre a recorribilidade para a generalidade das decisões que condenem em multa ou penalidades pecuniárias processuais, tal como lucidamente foi advertido por Amâncio Ferreira. 

Não se afigura, à luz do n.º 3 do art.º 9.º do CC, segundo o qual se presume que o legislador consagrou a solução mais acertada, e tendo em conta a occasio legis, que tenha sido esse o seu objetivo, tanto mais que não se conhecem sequer litígios sobre tais casos marginais.

Nesta linha, o que nos parece mais razoável é considerar que com a norma do n.º 6 do art.º 27.º do RCP, o legislador pretendeu introduzir uma regra geral de recorribilidade das decisões de condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória, de modo a colmatar o bloqueio provocado pelo fator condicionante da sucumbência. E que a expressão fora dos casos legalmente admissíveis é delimitadora da respetiva previsão normativa no que toca aos tipos de sanções ali enunciados, pretendendo-se, assim, ressalvar dessa previsão os casos já previstos de litigância de má fé, como sustenta Salvador da Costa.

Só neste entendimento se obtém a coerência possível do instituto em referência, seja quanto aos limites das multas estabelecidos nos artigos 10.º e 27.º, n.º 1, do RCP, seja mesmo considerando que o atual art.º 644.º, n.º 2, alínea e) destaca, para efeitos de apelação autónoma, as decisões que condenem em multa ou cominem outra sanção processual.

Mas contra esta solução poderá contrapor-se que, tendo em conta até a política legislativa de restrição de recurso relativamente a decisões de natureza adjetiva, não se justificaria uma recorribilidade irrestrita a todas as decisões que condenem em multa, independentemente do respetivo valor, como sucede, por exemplo, no caso das decisões sobre a reclamação de conta previsto no n.º 6 do art.º 31.º do RCP, em que se admite recurso em um grau, se o montante exceder o valor de 50 UC.

Contra este argumento pode-se dizer, no entanto, que dados os limites fixados na lei para a generalidade das multas entre 0,5 UC e 5 UC ou para a taxa sancionatória excecional entre 2 UC e 15 UC, não se afigura muito praticável o estabelecimento de um limite mínimo de recorribilidade, até porque o eventual gravame da condenação depende em muito das circunstâncias do caso concreto, como, por exemplo a condenação de uma testemunha de baixíssima condição económica, por falta de comparência, em 0,5 UC (€ 51,00), o que pode representar ainda assim um forte impacto.

Por outro lado, convém não ignorar os mecanismos de refreamento, como são a taxa de justiça a pagar pela interposição de recurso ou mesmo a suscetibilidade de condenação por litigância de má fé, pelo próprio tribunal recorrido em caso de abusos manifestos, que podem constituir factores de desincentivo à interposição de recurso no caso de condenações em montantes mais baixos. 

Há, no entanto, um limite que se impõe considerar, por paralelismo quer com as hipóteses de litigância de má fé, nos termos do n.º 3 do art.º do art.º 542.º do CPC, quer com os casos de decisões de reclamação de conta, previstos no n.º 6 do art.º 31.º do RCP, e que consiste em interpretar restritivamente a norma do n.º 6 do art.º 27.º do mesmo Regulamento no sentido de tais decisões só serem recorríveis em um grau, tal como propõe Salvador da Costa.

Aqui chegados, entre uma interpretação minimalista ou até niilista da recorribilidade das decisões que condenem em multa, penalidade ou taxa sancionatória excecional, salvo os casos de litigância de má fé, como a que vem perfilhada no acórdão recorrido, e uma interpretação, de certo modo, maximalista do n.º 6 do artigo 27.º do RCP, como a sustentada no acórdão-fundamento, afigura-se mais curial optar por esta, com a restrição acima indicada, por ser a que melhor condiz com a unidade do sistema jurídico e que melhor radica na occasio legis.    

Em suma, conclui-se que a interpretação mais conforme do n.º 6 do art.º 27.º do RCP é a de que as decisões de condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excecional, fora dos casos de litigância de má fé, são recorríveis em um grau, independentemente do valor da causa ou da sucumbência.

              

2. Quanto à admissão do recurso interposto da decisão da 1.ª instância

Em face da solução perfilhada no ponto precedente, considera-se que, no caso presente, a decisão da 1.ª instância que condenou a exequente em multa e sanção excecional, nos termos previstos nos artigos 531.º do CPC e 10.º do RCP, no montante de € 408,00, é recorrível para o Tribunal da Relação, devendo, nessa medida, o recurso ser admitido, caso satisfaça os demais requisitos de admissibilidade.

V - Decisão 

Pelo exposto, concede-se a revista, decidindo-se:
a) – Declarar que, nos termos do n.º 6 do art.º 27.º do RCP, as decisões de condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excecional, fora dos casos de litigância de má fé, são sempre recorríveis em um grau, independentemente do valor da causa ou da sucumbência;
b) – E, consequentemente, revogar o acórdão recorrido, julgando procedente a reclamação contra o indeferimento do recurso interposto na 1.ª instância e ordenando que o mesmo seja admitido, se não ocorrerem porventura outros fundamentos de inadmissibilidade.
As custas do recurso ficam a cargo da parte vencida a final.


                                        Lisboa, 26 de março de 2015

                                              
Manuel Tomé Soares Gomes
 

                                     Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria 

                                         João Luís Marques Bernardo

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[1] Vide nesse sentido, os acórdãos do STJ, de 24/05/2007, relatado pelo Exm.º Juiz Conselheiro Custódio Montes, no processo 07B1480, de 05/06/2007, relatado pelo Exm.º Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas, no processo n.º 07A1376; e ainda, de algum modo, o acórdão do STJ, de 22/09/2005, relatado pelo Exm.º Conselheiro Pereira da Silva , todos acessíveis na Internet – http://www.dgsi.pt.
[2] Sobre tais razões, vide Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina 3.ª Edição, 2002, pp. 103 e 104.
[3] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3.ª Edição, 2002, p. 103 e 104.
[4] Vide, por todos, o acórdão do STJ, de 20/11/2014, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Granja da Fonseca, no processo 7382/07.1TBVNG.P1.S1, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj. 
[5]  Este propósito, vide Amâncio Ferreira, Manual de Recursos em Processo Civil, Almedina, 8.ª Edição, 2008, p.116; e ainda o AUJ do STJ, de 14/05/1996, publicado no DR n.º 144/96, Série II, de 24/06/1996.   
[6] Vide Amâncio Ferreira, Manual de Recursos em Processo Civil, Almedina, 8.ª Edição, 2008, p.116; e ainda o acórdão do STJ, de 04-05-2010, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Sebastião Póvoas, no processo 3272/04.8TBVISC.1.S1, in CJSTJ, Tomo III, p. 63 e também disponível na Internet http://www.dgsi. pt/jstj
[7] Neste sentido, vide Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2.ª Edição, 2014, pp.46-47.
[8] Acórdão relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Salazar Casanova, publicado na CJSTJ, Tomo I, p. 102 e disponível na Internet http://www.dgsi. pt/jstj.
[9] Acórdão relatado pelo Exm.º Juiz Desembargador Henrique Antunes, acessível na Internet. 
[10] Acórdão relatado pela Exm.ª Juíza Desembargadora Isabel Rocha, acessível na Internet. 
[11] Acórdão relatado pelo Exm.º Juiz Desembargador Artur Dias, acessível na Internet.
[12] Acórdão relatado pelo Exm.ª Juíza Desembargadora Maria de Deus Correia, acessível na Internet. 
[13] Regulamento das Custas Processuais Anotado e Comentado, Almedina, 4.ª Edição, 2012, pp. 408 e 409.
[14] A este propósito, vide, por todos Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3.º, Coimbra Editora, 1946, pp.28ª 30.
[15] Neste sentido, vide Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, Almedina, 1981, pp. 30 e 31. 
[16] Vide Luso Soares, Processo Civil de Declaração – História . Teoria . Prática, Almedina, 1985, p. 297.
[17] In Recursos em Processo Civil - Novo Regime, Almedina, 3.ª Edição, 2010, pp. 58 e 59.
[18] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, págs. 51-52.
[19] In Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 8.ª Edição, Abril de 2008, pp. 120-121, nota 217.