Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
939/14.6T8LOU-H.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
AÇÃO DECLARATIVA
AÇÃO EXECUTIVA
TÍTULO EXECUTIVO
INTERPRETAÇÃO
CASO JULGADO
Data do Acordão: 09/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE E REVOGADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / EFEITOS DA SENTENÇA / RECURSOS / DECISÕES QUE ADMITEM RECURSO.
Doutrina:
- António Castanheira Neves, RLJ 110.º, 1977/78, p. 289-30;
- João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1996, p. 55-57;
- José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 354;
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1976, p. 304;
- Miguel Teixeira de Sousa, O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual), BMJ n.º 325, 1983, p. 168.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 619.º E 629.º, N.º 2, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 05-11-2009, PROCESSO N.º 4800/05.TBAMD-A.S1;
- DE 03-02-2011, PROCESSOS N.º 190-A/1999.E1.S1;
- DE 26-04-2012, PROCESSO N.º 289/10.7TBPTB.G1.S1;
- DE 05-12-2012, PROCESSO N.º 02B3349;
- DE 20-03-2014, PROCESSO N.º 392/10.3TBBRG.G1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 15-01-2013, PROCESSO N.º 1500/03.6TBGRD-B.C1, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
- DE 22-03-2011, PROCESSO N.º 243/06.3TBFND-B.C1;


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

- DE 14-06-2017, PROCESSO N.º 426/11.4TBPTL-A.G1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - É através da interpretação que se obtém o sentido da sentença que é título executivo e o alcance do caso julgado. II - A condenação no pagamento da sanção pecuniária compulsória encontra-se intimamente ligada à condenação do devedor na realização da prestação de facto, na medida em que visa compeli-lo a adotar a conduta devida, até então por si omitida. Tem, outrossim, em vista assegurar a observância da sentença condenatória. III – Tendo os Recorrentes, no requerimento executivo, optado pela prestação por outrem - e não pelos Recorridos -, verifica-se que o requerimento do pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que os Recorridos foram condenados, não encontra respaldo na sentença exequenda. IV - É que a condenação nesse pagamento pressupõe, de acordo com a sentença, a prestação pelos Recorridos e não por outrem à custa destes. V - O caso julgado formou-se nestes precisos termos, de um lado e, de outro, a execução tem de respeitar o título executivo. VI - A sentença exequenda, como decorre da respetiva interpretação, pronunciou-se sobre o pedido respeitante à fixação de uma quantia a título de sanção pecuniária compulsória formulado pelos Recorrentes no pressuposto da intervenção e participação pessoal dos Recorridos, do atraso da realização da prestação pelos Recorridos e não por outrem à custa destes. VII - Pode dizer-se que não se verifica ofensa do caso julgado no que toca ao afastamento do pagamento desta sanção compulsória no período subsequente à data da propositura da ação executiva em que os Recorrentes requerem a realização da prestação por outrem. Enquanto meio de coerção, a sanção pecuniária compulsória deixou então de produzir efeitos. Desapareceu o pressuposto da sanção em apreço e, por isso, não pode continuar a pressionar-se os Recorridos, dada a irrelevância da sua vontade. VIII - Não pode, todavia, afirmar-se o mesmo a propósito da sanção pecuniária compulsória correspondente ao período que medeia entre o termo do prazo judicialmente fixado para a realização da prestação pelos Recorridos e a data da instauração da ação executiva, do requerimento da prestação por outrem. O requerimento da prestação por outrem apenas faz cessar os efeitos da sanção pecuniária compulsória para o futuro, não para o passado.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,

I – Relatório
1. Na ação declarativa de condenação, com processo sumário, que correu termos no então 1.º Juízo do Tribunal Judicial de ..., e na qual foram Autores AA e mulher BB, ora Exequentes, e Réus CC e mulher DD, ora Executados, foram estes condenados, inter alia, a:
“A) Reconhecer que os autores são donos do prédio identificado no art.1º da petição, bem como da água que nele era explorada e represada, conforme descrito nos artigos 7º a 13º da petição;
B) Reconhecer os direitos dos autores e intimados a abster-se de, por qualquer, forma, impedir ou diminuir o seu gozo pelos autores;
C) Repor o prédio dos autores identificado no art.º1º da petição, no estado anterior aos trabalhos de movimentos de terra que nele foram executados pelo réu marido, nomeadamente aliviando a nascente, repondo a água que nela brotava, reconstruindo a poça e nela repondo o tubo e repondo a condução da água, através dele, para o prédio “...”;
D) Executar estes trabalhos no prazo de trinta dias, após trânsito em julgado da sentença condenatória;
E) No pagamento aos Autores na quantia de 2 UC por cada dia de atraso no cumprimento dos trabalhos supra ordenados, para além dos 30 dias acima concedidos contados do trânsito em julgado desta decisão, a título de sanção pecuniária compulsória;
(…)”.
2. Após o trânsito em julgado da referida decisão, os ali Autores AA e mulher BB instauraram execução contra os Réus CC e mulher DD, alegando, no seu requerimento executivo e entre o mais, o seguinte:
“- Que o prazo para a realização dos trabalhos definidos na sentença proferida da acção declarativa terminou no passado dia 7 de Agosto de 2009.
- Contudo e até à data da instauração da execução (09.09.2009), os executados nada realizaram (…).
- (…) declaram, ao abrigo do disposto no art.º 933º, nº1 do CPC optar pela prestação de facto por outrem, por se tratar de facto fungível, requerendo que seja nomeado perito que avalie o custo da prestação (art.º 935º, nº1 do CPC).
 - (…) como os executados nada fizeram, desde 08.08.2009 até à presente data (09.09.2009), devem os executados pagar a quantia de 7.920,00 €, a título de sanção pecuniária compulsória, sendo metade para os exequentes e outra metade para o Estado.
- (…) os executados devem ainda pagar a sanção pecuniária compulsória, à razão de 2 UC por dia, que continuará a vencer-se, desde a presente data até integral cumprimento da prestação de facto, que deverá ser liquidada a final pelo agente de execução, nos termos do artigo 805º, nº3 do CPC. (…)”.


3. O Tribunal de 1.ª instância proferiu o seguinte despacho:
“(…) Além do pedido da prestação de facto, os exequentes também pretendem que os executados lhe paguem a quantia que ficou fixada a título de sanção pecuniária compulsória, na sentença que constitui título executivo nos presentes autos.
Tal sentença condenou os executados ao pagamento de uma sanção de 2 UCs, por cada dia de atraso na execução do facto a que alude a sentença em causa.
A sentença em causa foi uma mera sentença de preceito, dado não ter havido oposição por parte dos réus aqui executados. Foi proferida em Maio de 2009, tendo transitado em julgado em Julho desse ano.

Já passaram mais de 8 anos desde o trânsito em julgado dessa sentença.
A entender-se que este valor é devido desde o prazo consignado na sentença até a data de hoje, a sanção pecuniária em causa, ultrapassaria os 500.000€.
Porém e sem necessidade de buscarmos institutos como a redução dessa cláusula ou o funcionamento da figura do abuso de direito, entendemos que a referida cláusula não é devida a qualquer título, não desrespeitando este Tribunal, com esta decisão, a força do caso julgado.

Com efeito, o art.° 829.° A do C. Civil prevê o seguinte: (…)
Por sua vez a prestação diz-se fungível quando pode ser realizada por pessoa diferente do devedor, sem prejuízo do interesse do credor, e será infungível no caso inverso, ou seja que apenas pode ser realizada pelo devedor.
Conforme decorre desse preceito legal e é jurisprudência unanime nos nossos tribunais superiores, apenas nas prestações de facto infungíveis é que há lugar à condenação e pagamento dessa sanção, não fazendo sentido que tal suceda noutras situações.
E compreende-se que assim seja, pois que consistindo a sanção pecuniária compulsória uma medida coercitiva de caracter compulsório que visa forçar o devedor a cumprir, não faz sentido que essa coercividade seja usada nas situações em que o facto possa ser prestado por terceiro ou até pelo próprio credor que depois pode fazer repercutir esse custo na esfera patrimonial do devedor.
No caso em apreço, estamos perante um facto fungível que pode ser prestado por terceiro, conforme os exequentes reconhecem e pedem no seu requerimento executivo.
Logo, e tendo os exequentes optado pela prestação por outrem, nos termos do art.° 933°, n° 1, do CPC, por entenderem que estavam perante facto fungível, não podem reclamar sanção pecuniária compulsória, pois a mesma, como vimos, ao abrigo do art.° 829°-A, do CC, destina-se apenas a cobrir a hipótese de prestação de facto infungível.
Acresce que esta decisão, conforme referimos, não viola o princípio do caso julgado, pois que no processo declarativo, cuja sentença constitui título executivo, nunca se referiu nem tampouco se apurou se estávamos perante prestação de facto fungível ou infungível, algo que apenas foi aflorado e analisado nestes autos.
Logo, tem de se interpretar tal decisão ao abrigo do preceito legal que suporta a figura da sanção pecuniária compulsória, sendo que apenas na hipótese de estarmos perante uma prestação e facto infungível é que a sanção prevista na referida sentença se tornaria efectiva, algo que não acontece no caso em apreço. Refira-se ainda que caso estivéssemos perante facto infungível entendemos igualmente que a sanção nunca poderia atingir estes valores, havendo lugar à sua redução, nos termos do art.° 811.°, n.°3 e 812.° do C. Civil.

Nesta conformidade e por todo o exposto, este Tribunal decide: (…)
- esclarecer e determinar que na penhora dos bens necessários ao custo da prestação, não se deve ter em conta o valor da sanção pecuniária compulsória, pois que a mesma não é devida, dado estarmos perante prestação de facto fungível. (…).”.
4. Inconformados, os Exequentes interpuseram recurso de apelação.

O Tribunal da Relação do Porto confirmou o despacho apelado, baseando-se, essencialmente, nas seguintes considerações:
“Segundo o disposto nos artigos 933º, nº1, 2ª parte, e 939º, nº 1, do CPC, no âmbito do processo executivo para prestação de facto, “se alguém estiver obrigado a prestar um facto em prazo certo e não cumprir ou quando o prazo para a prestação não esteja determinado no título executivo, o credor pode requerer a prestação por outrem (e a fixação judicial do prazo para o efeito), se o facto for fungível, bem como a indemnização moratória a que tenha direito, ou a indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação.
No entanto, quando se trate de uma prestação de facto infungível, pode, ainda, o credor requerer o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que o devedor tenha sido já condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter no processo executivo, isto é, este tipo de sanção apenas pode ter lugar em caso de obrigação de prestação de facto infungível.
Ou seja, apenas quando se trate de prestação de facto infungível e em que, nos termos do art.º 829º-A do Código Civil, haja sido estabelecida sanção pecuniária compulsória, pode o exequente cumular com o pedido de indemnização compensatória o pedido de obtenção da quantia eventualmente devida a título de sanção compulsória, ou, quando não haja sido estabelecida esse tipo de sanção na acção declarativa, pode o exequente obter, no âmbito da própria execução por facto positivo, a condenação do executado em sanção pecuniária compulsória, sempre que se verifiquem os pressupostos estabelecidos no art.º 829º-A, do Código Civil, facultando-se assim ao exequente uma ampliação (objectiva) do título executivo, no âmbito da própria execução, de modo a sancionar o executado, devedor de prestação de facto infungível”.
5. Os Exequentes, uma vez mais irresignados, interpuseram recurso de revista excecional.
6. Os Recorridos contra-alegaram.

II - Questões a decidir

Tendo a revista sido interposta ao abrigo da norma excecional do art. 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, a única questão[1] a decidir consiste em saber se o acórdão recorrido, ao negar provimento ao recurso de apelação, violou ou não o caso julgado material formado no processo em que foi prolatada a sentença dada à execução.

III – Fundamentação
1. De facto

Relevam os factos mencionados supra.
2. De Direito

Importa, pois, saber se o acórdão recorrido contraria ou não anterior decisão já transitada em julgado, já que esse é o fundamento específico do presente recurso de revista[2].

O art. 619.º, do CPC, estabelece que uma vez transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos arts. 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos arts. 696.º-702.º, do mesmo corpo de normas.

Segundo Manuel de Andrade[3] (…), o caso julgado material consiste “em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão”.

Refere ainda, o mesmo autor, que o “caso julgado material não assenta numa ficção ou presunção absoluta de verdade (…), por força da qual (…) a sentença (…) transforme o falso em verdadeiro. Trata-se antes de que, por uma fundamental exigência de segurança, a lei atribui força vinculativa infrangível ao acto de vontade do juiz, que definiu em dados termos certa relação jurídica e, portanto, os bens (materiais ou morais) nela coenvolvidos. Este caso fica para sempre julgado. Fica assente qual seja, quanto a ele, a vontade concreta da lei (Chiovenda). O bem reconhecido ou negado pela pronuntiatio judicis torna-se incontestável. Verifica-se, portanto, que a finalidade do processo não é apenas a justiça – a realização do direito objetivo ou a atuação dos direitos subjetivos privados correspondentes. É também a segurança – a paz social (Schönke)(…)”.

A doutrina e a jurisprudência têm sido unânimes no reconhecimento de duas dimensões distintas ao caso julgado material: a de exceção e a de autoridade.

Exceção e autoridade de caso julgado da mesma sentença parecem ser duas faces da mesma medalha. Refere-se a exceção quando a eadem quaestio se suscita na ação ulterior como thema decidendum do mesmo processo e fala-se em autoridade de caso julgado quando a eadem quaestio se coloca na ação subsequente como questão de outro tipo (fundamental ou mesmo tão somente instrumental).

Segundo Miguel Teixeira de Sousa[4], os efeitos do caso julgado material projetam-se em processo subsequente necessariamente como exceção, consubstanciando-se a decisão anterior num impedimento à decisão de idêntico objeto posterior, ou como autoridade, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão de distinto objeto posterior. Segundo o mesmo Autor[5], “Quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente; quando a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção do caso julgado”.

De acordo com José Lebre de Freitas[6], “pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito”. Enquanto a exceção é alegada para impedir que seja proferida uma nova decisão, a autoridade é invocada como decisão de um pressuposto de uma nova decisão.

Esta distinção pressupõe a identidade dos objetos processuais na exceção, sendo o objeto da ação anterior repetido na ação subsequente, de um lado, e a diversidade dos objetos processuais na autoridade, surgindo o objeto da primeira ação como pressuposto da apreciação do objeto da segunda. No primeiro caso, deve impedir-se a repetição, porquanto esta iria reproduzir inutilmente a decisão anterior ou decidir diversamente, contradizendo-a.

Delineados os contornos do alcance do caso julgado material, pode dizer-se que, ao contrário do acórdão recorrido, a sentença proferida no processo n.º 2558/08.7TBAMT do extinto 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Amarante transitou em julgado.

Independentemente de a ação declarativa não ter sido contestada pelos Recorridos, afigura-se indiscutível a conclusão de que a sentença dada à execução incidiu sobre o mérito da causa e sobre a relação material controvertida e, como tal, adquiriu força de caso julgado material (art. 619.º, n.º 1, do CPC[7]), sendo, desse modo, posteriormente imodificável.

Nela se definiu, definitivamente, que assistia aos Exequentes o direito a haverem dos Executados a “quantia de 2 UC por cada dia de atraso no cumprimento dos trabalhos supra ordenados, para além dos 30 dias acima concedidos contados do trânsito em julgado desta decisão, a título de sanção pecuniária compulsória”, tendo estes sido condenados a satisfazê-la.  

Todavia, o Tribunal de 1.ª Instância, levando em linha de conta a natureza fungível da prestação de facto exequenda, entendeu que o montante fixado a título de sanção pecuniária compulsória não era devido aos Recorrentes.

O Tribunal da Relação do Porto, por seu turno, apesar de confrontado com a alegação de ofensa do caso julgado formado no processo n.º 2558/08.7TBAMT[8], ancorou-se em considerações respeitantes ao escopo e ao âmbito de aplicação do art. 933.º, n.º 1, in fine, do anterior CPC (correspondente ao art. 868.º, n.º 1, do CPC atualmente em vigor), para manter a decisão apelada, entendendo que a mesma não merecia qualquer censura.

Poderia, assim, à primeira vista, afirmar-se que o Tribunal de 1.ª Instância – diretamente - e o Tribunal da Relação do Porto – indiretamente - acabaram, deste modo, por reapreciar e decidir a relação jurídica controvertida em sentido oposto àquele que fora definido na sentença exequenda, tendo, na prática, procedido à sua revogação no que toca ao pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória.

É precisamente a essa luz que se deve entender a decisão de que a execução não deveria abranger a penhora de bens necessários ao pagamento da quantia fixada a título de sanção pecuniária compulsória. Isto contrariaria o princípio segundo o qual a sentença dada à execução determina os limites e os fins da ação executiva (art. 10.º, n.º 5, do CPC).

Verificar-se-ia, por conseguinte, uma ofensa ao caso julgado material formado na precedente ação declarativa[9], tendo sido indevidamente desconsiderado o efeito negativo e preclusivo do caso julgado material.

A exigência de segurança feita ao Direito é, com efeito, suscetível de conflituar com a exigência de justiça. Em certos casos, na relação de tensão dialética existente entre os dois valores, a segurança prevalece sobre a justiça. Institutos como o do caso julgado, visando colocar um ponto final nos litígios e assegurar a paz jurídica, são, fundamentalmente, inspirados pelo valor da segurança[10].

Porém, há que interpretar a decisão judicial proferida em sede de ação declarativa. Consubstanciando-se a decisão judicial num ato jurídico, aplicam-se-lhe as regras de interpretação estabelecidas para a declaração negocial (arts. 236.º-238.º do Cód. Civil ex vi do art. 295º do mesmo corpo de normas). De acordo com o art. 236.º, n.º 1 do Cód. Civil, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (…)”.

Atendendo à sua natureza e características, considera-se que a interpretação do ato jurídico “decisão judicial” visa “a descoberta do sentido preceptivo que se evidencia no texto do acto processual, a determinação da estatuição nele presente”[11].

Exprimido a decisão judicial “uma injunção aplicativa do direito, a vontade da lei”, no caso concreto, correspondendo ao “resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito objectivo a essa situação”[12], compreende-se que a jurisprudência preconize, maioritariamente, a sua interpretação de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição real do declaratário - a parte ou outro tribunal - possa deduzir do seu contexto[13] ou a necessidade de levar em linha de conta as regras da interpretação da lei (art. 9.º do Cód. Civil)[14].

É, pois, através da interpretação que se obtém o sentido da sentença que é título executivo e o alcance do caso julgado.

A condenação no pagamento da sanção pecuniária compulsória encontra-se intimamente ligada à condenação do devedor na realização da prestação de facto, na medida em que visa compeli-lo a adotar a conduta devida, até então por si omitida. Tem, outrossim, em vista assegurar a observância da sentença condenatória. No caso em apreço, os Recorrentes, no requerimento executivo, optaram pela prestação por outrem - e não pelos Recorridos. Deste modo, verifica-se que o requerimento do pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que os Recorridos foram condenados, não encontra respaldo na sentença exequenda. É que a condenação nesse pagamento pressupõe, de acordo com a sentença, a prestação pelos Recorridos e não por outrem à custa destes. O caso julgado formou-se nestes precisos termos, de um lado e, de outro, a execução tem de respeitar o título executivo. A pretensão da realização da prestação por outrem não é teleologicamente compatível com a pretensão do pagamento da quantia devida como sanção pecuniária compulsória. Os Recorrentes como que renunciaram a este meio de tutela quando requereram a prestação por outrem.

Não se cura, nesta sede, de apreciar o caráter (in)fungível da prestação e a compatibilidade material da condenação no seu comprimento com a medida compulsória em causa. A sede própria para esta discussão era a ação declarativa. Não se reaprecia e nem se descura, pois, o que já foi decidido. O efeito preclusivo das exceções alegáveis na ação declarativa dissolveu-se no efeito geral do caso julgado.

Pode afirmar-se a existência de uma correlação teleológica entre a condenação dos Recorridos no cumprimento da prestação – e a realização da prestação pelos Recorridos e não por outrem - e a sua condenação no pagamento da sanção pecuniária compulsória, porquanto a primeira condiciona e determina a segunda, “fundindo-se em síntese normativa concreta”[15].

Este sentido da sentença resulta igualmente da consideração do disposto art. 829.º-A, n.º 1, do Cód. Civil.

A sentença exequenda, como decorre da respetiva interpretação, pronunciou-se sobre o pedido respeitante à fixação de uma quantia a título de sanção pecuniária compulsória formulado pelos Recorrentes no pressuposto da intervenção e participação pessoal dos Recorridos, do atraso da realização da prestação pelos Recorridos e não por outrem à custa destes.

Não podem, por isso, os Recorrentes, no caso sub judice, obter a cobrança coerciva dos montantes previamente fixados, em sede declarativa, a título de sanção pecuniária compulsória correspondente ao lapso de tempo compreendido entre 9 de setembro de 2009 e a data da realização da prestação de facto.

Em jeito de conclusão, pode dizer-se que não se verifica ofensa do caso julgado no que toca ao afastamento do pagamento desta sanção compulsória no período subsequente a 9 de setembro de 2009: data da propositura da ação executiva em que os Recorrentes requerem a realização da prestação por outrem. Enquanto meio de coerção, a sanção pecuniária compulsória deixou então de produzir efeitos. Desapareceu o pressuposto da sanção em apreço e, por isso, não pode continuar a pressionar-se os Recorridos, dada a irrelevância da sua vontade.

Não pode, todavia, afirmar-se o mesmo a propósito da sanção pecuniária compulsória liquidada no montante de €7.920, correspondente ao período que medeia entre 8 de agosto (termo do prazo judicialmente fixado para a realização da prestação pelos Recorridos e momento a partir do qual a sanção pecuniária compulsória decretada começa a produzir efeitos) e 9 de setembro de 2009 (data da instauração da ação executiva, do requerimento da prestação por outrem). É que, nesta parte, já há ofensa de caso julgado, pois que os Recorrentes aguardavam o cumprimento da prestação pelos Recorridos, ainda não tinham optado pela prestação por outrem, os Recorridos podiam mas não cumpriram a obrigação principal a que estavam vinculados e em cujo cumprimento haviam sido condenados. O requerimento da prestação por outrem apenas faz cessar os efeitos da sanção pecuniária compulsória para o futuro, não para o passado.

IV – Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar o recurso parcialmente procedente e revogar o acórdão recorrido na parte em que desconsidera a necessidade de os Recorridos procederem ao pagamento da sanção pecuniária compulsória liquidada no valor de €7.920.

Custas pelos Recorrentes e pelos Recorridos na proporção do respetivo decaimento.

            Lisboa, 19 de setembro de 2019

            (Maria João Vaz Tomé)

            (António Magalhães)

            (Alexandre Reis)

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[1] Assim, inter alia, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de outubro de 2005 (Fernandes Magalhães), Proc. n.º 05A2599, disponível para consulta em www.dgsi.pt, no qual se lê que “como é sabido quando o recurso se funda em qualquer das excepções contempladas nesta disposição legal [reportando-se ao disposto no artigo 678.º, n.º 2 do Código de Processo Civil então vigente, cuja redacção é semelhante ao preceituado na alínea a) do n.º 2 do artigo 629.º do actual Código de Processo Civil]  o seu objecto fica limitado a esse conhecimento, sendo vedado nele conhecer de quaisquer outras questões”.

[2] Entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de março de 2007 (Salvador da Costa), Proc. n.º 07B595 – disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[3] In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1976, p.304.

[4] In “O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual)”, BMJ n.º 325, 1983, p.168.

[5] In “O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual)”, BMJ n.º 325, 1983, p.171.

[6] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 354.

[7] Não sendo este, manifestamente, um dos casos prevenidos pelo n.º 2 do mesmo preceito.

[8] Cfr. conclusões 8.ª e 12.ª da apelação.

[9] No sentido de que as decisões tomadas na sequente ação executiva podem contender com o caso julgado material formado na ação declarativa da qual emerge o título dado à execução, vide o aresto de 8 de março de 2007, citado supra.
[10] Cfr. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1996, pp.55-57.
[11] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de janeiro de 2013 (Henrique Antunes), Proc. nº 1500/03.6TBGRD-B.C1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de junho de 2017 (Maria João Matos), Proc. n.º 426/11.4TBPTL-A.G1 - disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
[12] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de fevereiro de 2011 (Lopes do Rego), Proc. nº 190-A/1999.E1.S1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de junho de 2017 (Maria João Matos), Proc. n.º 426/11.4TBPTL-A.G1 - disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
[13] Inter alia, cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de dezembro de 2012 (Ferreira Girão), Proc. n.º 02B3349;  Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de novembro de 2009 (Oliveira Rocha), Proc. n.º 4800/05.TBAMD-A.S1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de fevereiro de 2011 (Lopes do Rego), Proc. n.º 190-A/1999.E1.S1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de abril de 2012 (Maria do Prazeres Beleza), Proc. n.º 289/10.7TBPTB.G1.S1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de março de 2014 (Fernandes do Vale), Proc. n.º 392/10.3TBBRG.G1.S1; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de janeiro de 2013 (Henrique Antunes), Proc. n.º 1500/03.6TBGRD-B.C1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de junho de 2017 (Maria João Matos), Proc. n.º 426/11.4TBPTL-A.G1 - disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
[14] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de março de 2011 (Teles Pereira), Proc. n.º 243/06.3TBFND-B.C1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de junho de 2017 (Maria João Matos), Proc. n.º 426/11.4TBPTL-A.G1 - disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.

[15] Cfr. António Castanheira Neves, RLJ 110.º, 1977/78, pp. 289-305.