Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
336/18.4T8OER.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: TUTELA DA PERSONALIDADE
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO À IMAGEM
DIREITO A RESERVA SOBRE A INTIMIDADE
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
PROTECÇÃO DA CRIANÇA
PROTEÇÃO DA CRIANÇA
ORDEM PÚBLICA
Data do Acordão: 05/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / TRIBUNAL / COMPETÊNCIA INTERNA / COMPETÊNCIA EM RAZÃO DO TERRITÓRIO – PROCESSO EM GERAL / INSTÂNCIA / EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA.
Doutrina:
- António Bentes de Oliveira, Trabalho de menores em espetáculos e publicidade, Questões Laborais, 2000, 16, p. 191 e 94;
- Benedita Mac Crorie, Os limites da renúncia a direitos fundamentais nas relações entre particulares, Coimbra, Almedina, 2013, p. 229 e ss.;
- Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, 4.ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, p. 208 e 210;
- Elsa Vaz de Sequeira, Anotação ao artigo 335.º do Código Civil, AAVV, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, p. 790 e 793;
- Francisco Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, p. 307;
- Günter Dürig, Der Grundrechtssatz von Menscherwürde – Entwurf eines praktikablen Wertsystems der Grundrechet aus Art. 1 Abs. 1 in Verbindung mit Art. 19 Abs. II des Grundgesetez, in: Archiv des öffentlichen Rechts, 1956, p. 125, 152-153;
- João Paulo Remédio Marques, Alguns aspectos processuais da tutela da personalidade humana na revisão do processo civil de 2012, Revista da Ordem dos Advogados, 2012, vols. II / III, p. 656;
- José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º - Artigos 1.º a 361.º, Coimbra, Almedina, 2018, 4.ª edição, p. 40;
- Júlio Vieira Gomes, Direito do Trabalho, Volume I – Relações individuais de trabalho, Coimbra, Coimbra Editora 2007, p. 455-456;
- M. Kitman, On Television, 2009, apud Scott J. Weiland / Kaitlyn Dunbar, What’s real about reality television?, in: Journal of Mass Communication & Journalism, 2016, 6 (3), p. 1-2 (tradução, a partir do inglês, da exclusiva responsabilidade da presente relatora);
- Manuel Carneiro da Frada, A Ordem Pública no Direito dos Contratos, Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, p. 83, 91;
- Maria de Fátima Ribeiro, Anotação ao artigo 70.º do Código Civil, AAVV, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, p. 174;
- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, O processo especial de tutela da personalidade, no Código de Processo Civil de 2013, Jurismat, Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes, Portimão, 2014, n.º 5, p. 64, 68, 69, 70, 72, 77 e 79;
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, 2.ª edição, 2007, p. 121
- Nuno Manuel Pinto Oliveira, O Direito geral de personalidade e a 'solução do dissentimento – Ensaio sobre um caso de 'constitucionalização do Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 105 e ss.;
- Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil – Sumários desenvolvidos para uso dos alunos do 2.º ano (1.ª turma) do Curso Jurídico de 1980/1981, Coimbra, Centelha, 1981, p. 180, 183 ; Les Droits de L'Homme dans le Droit Civil Portugais, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1973, 49 (1), p. 11, 14-15;
- Paulo Mota Pinto, A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra, Coimbra Editora: 2001, p. 527 e ss. ; Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos de personalidade no Direito português, Ingo Wolfgang Sarlet e José Luís Bolzan de Morais, A Constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000, p. 61;
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, Coimbra, 2015, 8.ª edição, p. 46;
- Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra, Almedina, 2018, p. 770, 772, 773;
- Tiago Soares da Fonseca, Da tutela judicial civil dos direitos de personalidade – Um olhar sobre a jurisprudência, Revista da Ordem dos Advogados, 2006, vol. I, p. 231 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 81.º, N.º 1 E 280.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 27-03-2014, PROCESSO N.º 555/2002.E2.S1;
- DE 14-07-2016, PROCESSO N.º 3446/14.3TBSXL.L1.S1;
- DE 11-04-2019, PROCESSO N.º 2758/15.3T8BCL.G1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 27-10-2010, PROCESSO N.º 18645/10.9T2SNT.L1-2, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

- DE 25-06-2015, PROCESSO N.º 789/13.7TMSTB-B.E1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. O direito à imagem e o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada e os outros direitos de personalidade são concretizações da dignidade da pessoa humana, que é um valor intangível e indisponível.

II. Se são admissíveis, por princípio, limitações aos direitos de personalidade, já não o são aquelas que atinjam / toquem o limite da dignidade da pessoa humana, por violarem o princípio da ordem pública.

III. Através do conceito indeterminado de “ordem pública”, o Direito protege os valores e princípios do ordenamento que são inderrogáveis por serem base da coexistência social e garantes de um bem público.

IV. A instrumentalização das pessoas e, em particular, das crianças é contrária à ordem pública, pois ofende o valor da dignidade humana.

V. Num contexto deste tipo, a limitação dos direitos de personalidade por via do consentimento é absolutamente irrelevante como causa de exclusão da ilicitude da lesão (cfr. artigos 81.º, n.º 1, e 280.º, n.º 2, do CC).

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO



1. O Ministério Público (MP), em representação dos menores:

- AA,

- BB,

- CC,

- DD,

- EE, e

- FF,

instaurou acção especial para tutela da personalidade, contra:

- GG, S.A.;

- HH, S.L., Sucursal Portugal;

- II e JJ (pais de AA);

- KK e LL (pais de CC e BB); e

- MM, NN (pais de FF) e ainda OO (pai de DD e EE;

Formulando os seguintes pedidos:

1.° - Relativamente aos programas n°s 1 e 2, já exibidos em 14 e em 21 de Janeiro de 2018, respectivamente, deverá a GG, sem a oposição dos demais requeridos, ser condenada a:

i - Retirar o acesso a qualquer conteúdo dos referidos programas, bem como quaisquer outras retransmissões do mesmo sendo o acesso bloqueado em todos os meios onde os conteúdos possam estar ou vir a ser colocados acessíveis (incluindo nomeadamente sítios internet, redes sociais, canais que disponibilizem streaming de vídeo como o youtube e afins), por forma a não ser consultado pelo público;

ii. A garantir que não há qualquer conteúdo do referido programa acessível ao público, em qualquer meio de comunicação de entidades com as quais tem relações de grupo;

iii.  A fazer valer os seus direitos de propriedade junto de quaisquer entidades, também em qualquer meio de comunicação, para que o acesso a quaisquer conteúdos dos programas referidos que tenham sido colocados acessíveis sejam imediatamente bloqueados por essas entidades (vg. redes sociais, canais que disponibilizem streaming de vídeo como o youtube e afins).

2.º - Relativamente ao programa n.° 3, já filmado e a exibir no próximo dia 28 de Janeiro, respeitante aos requerentes DD, EE, e FF, deverá a GG, sem oposição dos demais, ser condenada:

iv- A não exibir o programa;

Ou, caso assim se entenda mais adequado:

v. A sua exibição deverá ficar expressamente condicionada à utilização de filtros de imagem e de voz que permitam, de modo inequívoco, evitar que as crianças e jovens sejam susceptíveis de serem identificados;

3.° - Relativamente a cada um dos segmentos condenatórios, pede-se que, nos termos do n° 4, do art° 879°, do Código de Processo Civil, seja aplicada e fixada sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no montante de 15.000,00€ (quinze mil euros).

4.º - E que, a final, a decisão provisória requerida seja convertida em definitiva e que vincule as requeridas GG e HH a que todos os eventuais e futuros programas do mesmo formato apenas possam ser exibidos nos moldes que o Tribunal venha a determinar.

Alegou, em síntese, que a HH (HH) a pedido da GG, produziu e realizou uma obra de televisão com o título "PP", com formato de um reality show, que de acordo com a publicidade respectiva visa mostrar ao público como impor a disciplina e regras às crianças, com a intervenção de uma psicóloga, terapeuta ou educadora que ajuda os progenitores a estabelecerem regras e limites e a melhorarem a comunicação entre todos, com vista a criar uma dinâmica familiar mais saudável.

Para formalizar a participação no programa a HH entregava aos pais das crianças um documento intitulado "acordo de participação", que os pais se limitam a assinar e mediante o qual adquire os direitos de imagem e propriedade intelectual dos pais das crianças, que por sua vez lhos cedem, mediante o pagamento de uma contrapartida de 1.000€. Mais disponibiliza a HH urna "autorização para a utilização do direito à imagem", da qual decorre que configura uma "limitação da reserva sobre a intimidade da minha vida privada", sendo que no caso das crianças e jovens, a mesma autorização é dada a assinar aos pais, enquanto seus representantes legais e nos termos e para os fins do art° 124°, do Cód. Civil, acrescentando-se que "o retratado foi consultado sobre a sua participação no programa, não tendo expressado qualquer objecção", o que, porém, não ocorreu com as crianças e jovens.

No mês de Janeiro de 2018, na emissão televisiva e online, a GG começou a publicitar a exibição do primeiro episódio do programa, com os seguintes slogans: "A PP enfrenta o furacão QQ! Uma criança que em determinados momentos, quando é contrariada, é um diabinho; uma criança sem limites; a PP é chamada porque a II perdeu o controlo da educação da filha".

No dia … …. .2018 foi exibido o primeiro episódio pela GG, incluindo programação de suporte publicitário, entre as 21h30m e as 22h45m, em que a QQ, de ... anos de idade, viu exibida a sua vida privada e íntima, desde as suas rotinas de casa de banho, onde surge vestida de pijama, depois com partes do corpo à vista, a fazer birras na hora de ir para a cama, deitada na sua cama, é vista a ser batida pela mãe, através de palmadas disciplinadoras, é exibida a chorar, vendo-se ainda a QQ a agredir a mãe; nesse episódio não foi utilizado qualquer filtro para disfarçar a sua identidade, nem a da mãe, nem a da avó materna, além de ser identificada a casa onde a família mora, em …, foi também revelada a empresa onde a mãe trabalha; no decurso do episódio, a QQ é apelidada de criança tirana, chantagista, desobediente, dependente.

No programa do dia 21 de Janeiro, referente aos menores BB e CC, e ainda no âmbito do excerto publicitário, o BB surge visualizado sem qualquer filtro, no chão, a fazer birra e depois, despido, e a tomar banho; esse episódio obteve um share de 26%, cerca de um milhão duzentos e cinquenta mil espectadores. Nesse episódio, o BB, de … anos, surge a fazer birras, descontrolado, a tentar pontapear a mãe, a gritar, a chorar, a comer, a deitar-se no seu quarto, a sofrer castigos de permanência num determinado local da habitação, de acordo com orientações da pessoa que figura no papel de "PP". A CC, que surge a discutir com a mãe, em gritaria, a insultá-la, a negar-se a fazer tarefas domésticas, a bater com as portas, e também em pijama, no seu quarto de dormir. Neste episódio, o BB é apresentado como uma criança problemática, que protagoniza birras violentas, insulta a mãe, puxando-lhe os cabelos, chegando a tentar pontapeá-la, aparecendo a tomar banho a contragosto, e aparecendo de pé, na banheira, apenas com uma toalha na cabeça; é também visto a espernear enquanto lhe é vestido o pijama, a recursar-se a comer a sopa de legumes, a arrastar-se pelo chão de uma das divisões da casa, recusando-se a ir para o "cantinho da pausa", uma das estratégias da PP para lidar com a sua birra.

O episódio n.º 3, que seria transmitido no dia … de … de 2018, já se encontra realizado e filmado, pronto a exibir, respeitante aos requerentes DD, EE e FF, que o avô das crianças visualizou o anúncio tendo ficado surpreendido, reportou e queixou-se à Comissão Nacional de Crianças e Jovens em risco.

Em consequência da exibição do programa n.° 1 foi instaurado pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de … processo de promoção e protecção em benefício da QQ, no âmbito do qual foi determinada a aplicação de medida de apoio junto dos pais, vindo estes a manifestar junto daquela CPCJ arrependimento face à exposição pública a que sujeitaram a sua filha, e de entre os compromissos assumidos consta a limitação quanto ao exercício das responsabilidades parentais no que se refere à cedência do direito de imagem da QQ.

Foram igualmente instaurados processos de promoção e protecção junto das CPCJ das áreas de residência dos demais menores.

Que o programa constitui um reality show que viola o direito à imagem, reserva da vida privada e da sua intimidade dos menores.

A exibição pública de um programa desta natureza, e neste formato, evidencia receio evidente quanto à restrição desmedida dos direitos daquelas crianças e jovens, através da divulgação televisiva dos seus comportamentos e exposição em público de dimensões da vida íntima de menores de idade com consequências imprevisíveis e de enorme possibilidade nefastas a médio/longo prazo.

O programa constitui um espectáculo gratuito, sem qualquer benefício para o desenvolvimento presente e futuro dos menores.

Que atenta a incapacidade para o exercício de direitos, serão os legais representantes dos menores que os exercem. Porém, o carácter pessoal dos direitos de personalidade suscitam dúvidas sobre a extensão do poder dos representantes decidir sobre tais vertentes. O consentimento para a limitação dos direitos de personalidade das crianças e jovens não foi validamente prestado porquanto a sua vontade não foi efectivamente auscultada, nem respeitada.


2. A pedido do MP, o Tribunal proferiu a seguinte decisão provisória:

"Pelo exposto e decidindo, em conformidade com o disposto no 879°, n.° 5, alínea b) do Código de Processo Civil, decide-se, provisoriamente, determinar que a Requerida GG, SA., na exibição do episódio do programa "PP" em que participam os menores DD, EE e FF e que está programado ser emitido no próximo dia … de …, utilize filtros de imagem e de voz, quer dos menores, quer dos seus progenitores, quer de quaisquer outras pessoas que intervenham ou participem no programa e que, por vínculo familiar ou outro com os menores, permitam identificá-los.

Fixa-se em E 15.000,00, o valor da sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento da providência decretada ou de incumprimento dessa providência. Nada mais se decidindo provisoriamente. (...)".


3. Marcada audiência final, frustrada a conciliação, foram apresentadas contestações.

3.1. A ré GG contestou.

Em síntese, pugna pela falta de capacidade judiciária dos menores por irregularidade de representação do MP; pela inadmissibilidade do quarto pedido deduzido pelo MP, por respeitar a quem não é parte na acção e ser relativa a casos incertos e futuros e, se se interpretar o art° 878° do CPC como permitindo o decretamento de providências relativas a situações futuras, redundaria numa interpretação contrária à Constituição, por violação dos art° 2°, 110° e 111° da CRP; defende a inexistência de uma situação de perigo para os menores; impugna os factos alegados na petição inicial. O programa é um reality doc, que visa documentar de modo o mais fiel e natural possível o quotidiano familiar dos participantes e as mudanças verificadas com as técnicas e regras propostas, contribuindo para melhorar o relacionamento entre pais e filhos.

O programa não constitui uma violação dos direitos de personalidade, porque teve por base uma autorização dos respectivos pais dos menores e, não foi posta em causa a licitude dessa autorização; além disso, as crianças manifestaram vontade de participar no programa e, é admissível a autolimitação dos direitos à reserva de intimidade da vida privada.

Interpretar o art° 124° do CC no sentido de não caber aos pais a decisão de permitir que os filhos participem num programa de televisão com intuitos pedagógicos, violaria o art° 36° n° 5 da CRP.

Do mesmo modo, interpretar as normas dos art°s 70°, 79° e 80° do CC no sentido de impedir uma estação televisiva de transmitir imagens de menores após autorização expressa dos pais seria materialmente inconstitucional, por violação dos ai-Cs 37° nos 1 e 2 e 38° n° 1 do CRP.

3.2. A ré HH contestou.

Em síntese,

Sustenta a existência de consentimento para a captação e utilização da imagem e voz e da sua utilização no programa;

Defende a ausência de natureza humilhante dos comportamentos retratados;

A ausência de indução ao bullying;

A ilegitimidade de intervenção das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens;

A legalidade do consentimento dos Pais orientada pelo superior interesse da criança;

A ausência de crianças em risco;

A impossibilidade do último pedido;

A ilegitimidade da HH perante os pedidos.

3.3. Os réus MM e NN contestaram.

Em síntese, declaram não se opor ao pedido do MP.

Comunicaram à GG e à HH que revogavam o consentimento que anteriormente haviam dado.

3.4. O réu JJ apresentou contestação.

Em síntese, diz que acreditou na palavra da mãe da menor QQ de que se tratava apenas de um programa com teor educacional e por isso, assinou a declaração de consentimento de participação da filha no programa, sem ter tido acesso ao real conteúdo do programa.

Ao assistir aos spots do episódio ficou chocado não revendo a sua filha naqueles actos, tendo tentado, por todos os meios, impedir a transmissão do episódio respeitante à sua filha por não concordar com o teor do mesmo; deslocou-se às instalações da GG a fim de evitar a transmissão do programa ou, caso assim não fosse possível, visualizar as imagens do programa antes da estreia, nessa altura foi informado que, além de não poder visualizar as imagens da sua própria filha antes da estreia, nada poderia fazer para impedir a transmissão do programa na data prevista, a saber, dia 14 de Janeiro de 2018. Como consequência da exibição do programa, a CPCJ instaurou também contra o requerido, um processo de promoção e protecção em benefício da menor QQ, tendo-lhe sido determinada a aplicação de medidas de apoio.


4. Foi realizada audiência final em várias sessões.

Foram interpostos diversos recursos que subiram em separado sobre recusa e admissão de meios de prova.


5. Foi proferida sentença, com a seguinte decisão:

"1 - Julga-se improcedente, porque manifestamente inviável, o quarto pedido deduzido pelo Ministério Público, dele absolvendo, as requeridas,

2 - Altera-se a decisão provisória, quanto ao episódio n° 3, concluindo pela ausência de ameaça ilícita à personalidade dos menores no mesmo retratados, revogando, em consequência, a sua proibição de exibição ou condicionada a colocação de filtros,

3 - Julgam-se procedentes os pedidos quanto aos episódios n°s 1 e 2, e, em consequência, condenam-se as requeridas GG e HH, a uma de duas medidas:

a) Retirar o acesso a qualquer conteúdo dos referidos programas n°s 1 e 2, bem como quaisquer outras retransmissões do mesmo sendo o acesso bloqueado em todos os meios onde os conteúdos possam estar ou vir a ser colocados acessíveis (incluindo nomeadamente sítios internet, redes sociais, canais que disponibilizem streaming de vídeo como o youtube e afins), por forma a não ser consultado pelo público;

b) Garantir que não há qualquer conteúdo do referido programa acessível ao público, em qualquer meio de comunicação de entidades com as quais tem relações de grupo,.

c) A fazer valer os seus direitos de propriedade junto de quaisquer entidades, também em qualquer meio de comunicação, para que o acesso a quaisquer conteúdos dos programas referidos que tenham sido colocados acessíveis sejam imediatamente bloqueados por essas entidades (v.g. redes sociais, canais que disponibilizem streaming de vídeo como o youtube e afins), ou,

d) A retirada dos teasers/promos, com o conteúdo que actualmente apresentam, em quaisquer sites onde se possam encontrar disponíveis para acesso e, ainda,

e) A colocação de filtros de imagem e de voz — nas crianças e familiar e que com as mesmas interagem nos episódios 1 e 2,

4 - Ainda, nos termos do n° 4, do art° 879°, do Código de Processo Civil, mantém-se a decisão provisória quanto ao arbitramento de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no cumprimento do decidido, no montante de 15.000,00e (quinze mil euros)".


6. Inconformados com esta sentença, apelaram o MP, a GG e a HH para o Tribunal da Relação de Lisboa.

6.1. O MP invocava nulidades da sentença, impugnava parcialmente a decisão sobre a matéria de facto e pedia a revogação (parcial) da sentença e sua substituição por outra em que se condenasse a GG e a HH nos termos peticionados para os episódios futuros, se reconhecesse a ameaça aos direitos de personalidade das crianças retratadas no 3° episódio e mantivesse a decisão provisória, convertendo-a em definitiva.

6.2. A GG pedia a declaração de nulidade da sentença, por excesso de pronúncia. Pedia ainda que se reconhecesse a incapacidade judiciária dos requerentes ou a ilegitimidade do MP para instaurar esta acção e a revogação da sentença e a sua substituição por outra que julgasse a acção totalmente improcedente.

6.3. A HH peticionava a revogação da sentença e a sua substituição por decisão que a absolvesse totalmente do pedido.


7. Em 11.12.2018 proferiu o Tribunal da Relação de Lisboa Douto Acórdão (fls. 951 e s.), com a seguinte decisão:

Em face do exposto, acordam na 6a secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em:

a) Jugar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência:

i) - Indeferir as nulidades da sentença invocadas;

ii) - Revoga-se parcialmente o ponto 63 dos Factos Provados, que passa a ter a seguinte redacção:

"A II, mãe da QQ e a KK, mãe do BB e da CC ficaram satisfeitas com o resultado obtido da participação nos programas em que intervieram".

iii) - Improcedem as demais pretensões de alteração da matéria de facto.

iv) - Determina-se que as rés não possam exibir ou por qualquer modo divulgar o episódio 3, sem que, previamente, comuniquem e solicitem autorização, e a obtenham, de participação dos menores no programa à CPCJ competente.

v) - Determina-se que a participação de menores em futuros episódios, independentemente de quem venham a ser, fique dependente da prévia comunicação e autorização da CPCJ a solicitar pelas rés.

b) - Julga-se totalmente improcedente o recurso interposto pela ré GG.

c) - Julga-se totalmente improcedente o recurso interposto pela ré HH.


Custas, com taxa de justiça nos termos da Tabela I-C:

i) - No recurso interposto pelo Ministério Público, na proporção de 3/10 para o Ministério Público (de cujo pagamento está isento) e de 7/10 para as rés GG e HH;

ii) - No recurso interposto pela GG, totalmente a cargo desta;

iii) - No recurso interposto pela HH, totalmente a cargo desta”.


8. Inconformados vêm a HH e a GG interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça.

8.1. A HH pede que o recurso seja julgado procedente, revogando-se a decisão da condenação das requeridas e substituindo-a por outra que julgue a acção totalmente improcedente.

São as seguintes as seguintes conclusões das suas alegações (fls. 1037 e s.):

“1.§. O presente Recurso de Apelação vem interposto do Acórdão proferido nos presentes autos no dia 11 de Dezembro de 2018, porquanto, salvo o devido respeito, tendo em os argumentos aduzidos no presente recurso, não pode a aqui Recorrente concordar com a condenação de que foi alvo.

2.§. O acórdão de que ora se recorre, foi proferido em resposta aos recursos apresentados a propósito da sentença proferida em 1ª instância no âmbito de ação especial de tutela da personalidade,

3.§. Nestes termos, e em concordância com o que foi entendido tanto pelo Tribunal a quo, como pelo Tribunal de 1ª instância, a viabilidade da presente ação depende da “verificação de uma ameaça directa e ilícita à personalidade física ou moral de ser humano”,

4.§. Tendo a mesma de ser ilícita e direta, sob pena de improceder qualquer ação intentada ao seu abrigo,

5.§. Face ao teor da decisão proferida, o Tribunal a quo entendeu que essa ameaça ilícita e direta existia, por violação de norma injuntiva, entendimento com o qual a ora Recorrente não pode, salvo o devido respeito concordar.

Da não aplicabilidade da Lei 105/2009, de 14/09

6.§. Sendo que, o decretamento das providências previstas nos artigos 878º e seguintes do CPC, depende da verificação da existência de uma ameaça ilícita e direta aos direitos de personalidade do requerente,

7.§. De modo a fundamentar a sua decisão, o Tribunal a quo, teve de demonstrar que a participação dos requerentes (menores) no programa “PP” consubstanciava uma ameaça ilícita e direta aos seus direitos de personalidade.

8.§. Todavia, ao invés de discutir e demonstrar, substantivamente, em que medida a participação dos menores no programa em causa constituía uma ameaça aos seus direitos de personalidade,

9.§. O Tribunal a quo, veio decidir que a simples participação dos menores no mencionado programa era ilícita,

10.§. Invocando para o efeito, o disposto entre os artigos 2.º e 11.º da Lei 105/2009, de 14/09, afirmando, que para ser lícita a participação dos menores no mencionado programa televisivo, dependia de acordo/autorização da CPCJ, territorialmente competente, que não existindo, tornava ilegal a participação dos menores no programa.

11.§. Ora, salvo melhor opinião, não é admissível o recurso ao mencionado diploma legal para transformar a participação dos menores no programa televisivo em facto ilegal, já que,

12.§. O diploma em causa, nomeadamente entre os seus artigos 2.º e 11.º, visa regular a “Participação de menor em actividade de natureza cultural, artística ou publicitária, a que se refere o artigo 81º do Código do Trabalho”, conforme dispõe a alínea a) do seu artigo 1.

13.§. Sendo, manifesto que o diploma em causa visa regular matérias de natureza laboral relacionadas com a “Participação de menor[es] em actividade de natureza cultural, artística ou publicitária”, sob pena de ser inútil a menção ao artigo 81.º do Código do Trabalho.

14.§. Deste modo, para justificar o recurso ao mencionado diploma legal o Tribunal a quo teria de ter demonstrado dois requisitos:

i. A natureza laboral da participação dos menores no programa televisivo “PP”; e, concomitantemente,

ii. Que a participação no programa televisivo “PP” consubstancia a participação em atividade de natureza cultural, artística ou publicitária.

15.§. O que salvo melhor opinião, o Tribunal a quo não fez.

16.§. O artigo 11º do Código do Trabalho define Contrato de Trabalho como “aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outras pessoas, no âmbito da sua organização e sob a autoridade destas”.

17.§. O entendimento do Tribunal a quo carece da demonstração de que a participação dos menores consubstanciava uma atividade de natureza laboral, prestada sob a autoridade das requeridas.

18.§. O que seria impossível, já que, da análise dos factos dados como provados, e da sua consequente subsunção ao direito, é impossível demonstrar a existência de qualquer relação laboral entre os requerentes e as requeridas,

19.§. Dado que, a participação dos menores no programa não consubstancia qualquer atividade/prestação de natureza laboral.

20.§. Pois, o que esteve em causa foi apenas a cedência de direitos de imagem, bem como a consequente limitação ao direito de reserva sobre a intimidade da vida privada, na medida do estritamente necessário à produção do programa televisivo.

21.§. Não consubstanciando, por isso, a participação dos menores no programa qualquer atividade de natureza laboral, inexistindo, do mesmo modo, qualquer contrato de trabalho

22.§. Todavia, ainda que se entendesse que a aplicabilidade da Lei 105/2009, de 14/09 não depende da verificação da existência de uma relação de natureza laboral entre o menor e o eventual empregador, o que não se concede,

23.§. A verdade é que a ratio legis do diploma em causa, implica que os menores tenham pelo menos de cumprir uma tarefa ou prestar um serviço,

24.§. O que implica que, mesmo que se entendesse que essa obrigação surgisse fora do contexto de uma relação laboral, i.e. no âmbito de um Contrato de Prestação de Serviços, essa obrigação não deixaria de ser de facere, ou seja, implicaria uma atividade positiva por parte dos menores.

25.§. Acresce ainda que, salvo melhor opinião, a participação, dos menores, no programa televisivo “PP” não se pode confundir a participação em atividade de natureza cultural, artística ou publicitária,

26.§. Desde logo, porque o programa não tem natureza cultural, artística ou publicitária, tendo, sim, o formato de documentário da realidade (ponto 14º dos factos provados), cujo objetivo é retratar o quotidiano dos menores, tão fielmente quanto possível,

27.§. Nesta medida, os menores não atuam enquanto personagens, não seguem indicações, nem se socorrem de qualquer guião previamente elaborado, limitando-se tão somente a viver as suas vidas, o que por si, não se compara com uma atividade de natureza cultural, artística ou publicitária, já que estas envolveriam sempre uma prestação artística por parte dos menores, que não se confundiria com eles próprios,

28.§. Prestação essa que consubstanciaria o conteúdo do próprio Espetáculo.

29.§. Nem sendo de admitir que o simples facto de o retrato dos menores ser transmitido mediante um formato televisivo que lhe atribui essa natureza.

30.§. Aliás, se assim fosse, e seguindo o entendimento do Tribunal a quo, com o qual não podemos concordar, a título de exemplo, seriamos obrigados a concluir que uma qualquer reportagem televisiva, que envolvesse a participação de menores, teria de ser visto como uma atividade de natureza cultural, artística ou publicitária, com a consequente necessidade de recurso às disposições do diploma legal invocado,

31.§. Independentemente desta aparição implicar qualquer prestação (artística ou não) por parte do menor.
32.§. Acresce que, esta linha de argumentação não havia em momento algum sido discutida nos autos, o que implicou que à ora Recorrente não foi dado o respetivo direito ao contraditório, numa clara violação dos princípios de Direito.

33.§. Nesta medida, e salvo melhor entendimento, deve-se entender que, o Tribunal a quo errou quando concluiu que a Lei 105/2009, de 14/09 era aplicável ao caso sub judice, para estabelecer como ilegal a participação dos menores no programa televisivo “PP”.

34.§. Ficando, consequentemente, demonstrado que a legalidade da participação dos menores no programa não dependia do recurso ao mencionado diploma legal,

35.§. Não se podendo dai concluir que o consentimento prestado pelos representantes legais dos menores em sua representação era ilegal.

36.§. Deixando assim, segundo o entendimento do Tribunal a quo, de existir um acto ilícito que justifique o decretamento das providências requeridas.

37.§. Do mesmo modo, deve ser alterada a decisão do Tribunal a quo, nos seus pontos a): iv) e v), na medida em que, tendo-se demonstrado a não aplicabilidade do diploma legal, inexiste qualquer obrigação de comunicar, ou obter autorização das CPCJ competentes, para a participação de menores em programas televisivos, quando essa participação não consubstanciar uma prestação laboral.

Do erro na interpretação dos requisitos legais de viabilidade da ação ora em causa

38.§. Sendo que, o Tribunal a quo utilizou o não recurso à Lei 105/2009, de 14/09 para justificar a ilegalidade da participação dos Requerentes no programa, justificando desse modo a sua decisão final, entendimento que como se viu não deve ser admitido,

39.§. A verdade é que o Tribunal de 1ª instância, apresentou linha de argumentação diferente com a qual, salvo o devido respeito, a ora Recorrente não pode, também, em consciência concordar,

40.§. Na qual se afirma que a mera verificação de “risco plausível” seria o suficiente para considerar devidamente fundamentados/preenchidos os requisitos legais de viabilidade da ação ora em causa.

41.§. Nesta medida, podemos inferir da fundamentação do Tribunal de 1ª instância, a defesa de que o programa é violador dos direitos de imagem, porque a imagem dos menores retratados no primeiro e segundo episódios é acompanhada de adjetivações que no seu entender são “objetivamente negativas”,

42.§. Ora, salvo melhor entendimento, as expressões usadas no programa e repercutidas na sentença de que se recorreu, não são, como parece querer fazer crer o Tribunal de 1ª instância, negativas,

43.§. Como teve o de Tribunal 1ª instância oportunidade de observar a utilização destas expressões não se repercutiu, em qualquer dano para os menores participantes no programa, antes pelo contrário, não sendo plausível, como vimos, que o venham a ser,

44.§. Pelo que, a sua consideração como ameaças ilícitas e diretas aos direitos de personalidade destes menores, salvo melhor entendimento, é no mínimo exagerada.

45.§. Continua o Tribunal 1ª instância a sua fundamentação invocando que as situações retratadas nos episódios 1 e 2, máxime os comportamentos observados, conformam situações humilhantes e prejudiciais para o bem estar físico e psicológico das crianças e jovens naquela sede retratados,

46.§. Contudo tal ideia não tem qualquer fundamento, já que, uma birra ou um choro de uma criança não constitui uma situação humilhante, porquanto, tal comportamento é típico para a idade, não corresponde, nem constitui, qualquer tipo de patologia, e corresponde a facto com o qual a maioria das famílias parentais da sociedade portuguesa se revê.

47.§. Deste modo, face à sua normalidade, não se pode considerar que os comportamentos exibidos no programa pelas crianças e jovens, possam ser tidos como humilhantes ou estigmatizantes, não podendo por isso fundamentar a decisão a que chegou o Tribunal a quo.

48.§. Por outras palavras, por definição um comportamento de normalidade, presente comummente no espaço público, não pode ser considerado humilhante, só pelo simples facto de desse comportamento em programa televisivo, já que, não é o meio que qualifica a humilhação.

49.§. Como ponto fulcral da decisão que viria a tomar, o Tribunal de 1ª Instância referia que "Na apreciação em causa, e passe o pleonasmo, não podemos correr riscos - melhor não podemos deixar margem para a existência de riscos, e para tal não podemos entrar na argumentação de “pesagem” contraposição de mais risco/menos risco que vale a pena correr.”

50.§. O que implica dizer, trazendo a discussão para os requisitos do tipo legal contido no artigo 878º do CPC, que qualquer ação ou omissão que acarrete um plausível, ainda que diminuto, risco de afetar os direitos de personalidade de um ser humano,

51.§. Constitui, na terminologia da lei, uma “ameaça ilícita”, o que, salvo o devido respeito, não pode colher, não só porque, como é consabido, toda e qualquer ação ou omissão acarreta um risco, assim como uma possibilidade de benefício.

52.§. Ora, negando à partida qualquer ação que acarrete risco, tal implica ficarem vedados igualmente todos os benefícios que daí possam resultar.

53.§. Acresce que, um “razoável risco”, na terminologia utilizada pelo Tribunal 1ª Instância, não pode ser considerado como relevante, para efeitos de aplicação das providências permitidas pelo tipo de ação prevista nos artigos 878º e seguintes do CPC, já que, salvo melhor entendimento,

54.§. Para considerar que um risco é relevante para ser subsumido ao conceito de “ameaça ilícita e direta”, há que conhecer, qual o prejuízo concreto para o direito que se pretende proteger, qual a sua dimensão, qual a sua probabilidade de ocorrência e ainda em que medida está ou não na esfera dos titulares dos direitos ou seus representantes, a possibilidade de pretender “arriscar” face aos benefícios que dali possam advir.

55.§. Ora em lugar algum da sentença proferida em 1ª instância, ou no julgamento, foram avaliados quais os riscos concretos associados à participação dos menores no programa ou qual a probabilidade destes se converterem em verdadeiros prejuízos.

56.§. Pelo que, ficou por analisar a existência de um risco relevante que permitisse as conclusões atingidas pelo Tribunal de 1ª instância, ficando, deste modo, prejudicada a decisão final no que concerne à condenação da ora Recorrente.

Da validade dos consentimentos prestados pelos pais em representação dos filhos menores

57.§. De acordo com o prescrito no artigo 122º do Código Civil (CCiv) “É menor quem não tiver ainda completado dezoito anos de idade” e do artigo 123º do mesmo diploma, sob a epígrafe “Incapacidade dos menores” que “Salvo disposição em contrário, os menores carecem de capacidade para o exercício de direitos.”

58.§. Sendo essa incapacidade, nos termos do artigo 124º do mesmo código, “suprida pelo poder paternal e, subsidiariamente pela tutela, conforme se dispõe nos lugares respetivos”.

59.§. Deste modo e nos casos que aqui nos trazem a incapacidade de exercício de direitos dos menores em causa deve ser suprida pelos seus progenitores, conforme resulta do disposto no artigo 1881º, sob a epígrafe “Poder de Representação”, igualmente do CCiv.

60.§. É comummente aceite que no exercício das responsabilidades parentais, nomeadamente no exercício do “Poder de representação”, os pais se devem orientar com apoio no superior interesse da criança, i.e. procurando acautelar os melhores interesses dos seus filhos.

61.§. Deste modo, parece ser de aceitar que, face à incapacidade geral de exercício dos seus direitos, os menores gozam de direitos de personalidade (como é deles exemplo o direito à imagem e à reserva sobre a intimidade da vida privada) e que não sendo capazes dos exercer individualmente, carecem da intervenção dos seus progenitores para deles fazerem uso,

62.§. Sob pena, de se considerar que, não os podendo exercer, os menores não tem aqueles direitos.

63.§. O exercício daqueles direitos, implica a possibilidade de os limitar, isto é, de não os tornar absolutos, sob pena, de se assim não fosse de se tratarem de obrigações e não de direitos.

64.§. Nesta medida, deveram poder, os menores, na terminologia do Código Civil, permitir a exposição, reprodução e lançamento no comércio da sua imagem, desde que em tal consintam, bem como, nos mesmos moldes, permitir a exposição de determinados aspetos da sua intimidade.

65.§. Não podendo os menores, como se viu, consentir nessa participação, sem intermediação dos seus pais, estes prestarão o seu consentimento em representação dos filhos.

66.§. No presente caso este consentimento, foi dado, tendo em linha de conta, como era seu dever, o superior interesse da criança, tendo como objetivo o melhoramento do seu bem estar familiar, bem como o melhoramento geral da qualidade e perspetivas de vida das crianças e jovens retratados.

67.§. Nestes moldes, face ao enquadramento supra e face o até aqui exposto, não se pode dizer que exista um conflito de interesses entre os Requerentes e as ações executadas em representação pelos seus pais, sendo, por isso, válidos os consentimentos prestados em representação dos filhos.

Da inexistente colisão de direitos fundamentais

68.§. A aqui Recorrente, não põe de forma alguma em questão que no caso de colisão de direitos fundamentais de liberdade de imprensa e de personalidade, deverão em regra os segundos prevalecer, todavia a colisão desses direitos no caso sub judice, é meramente aparente.

69.§. As imagens transmitidas não são passíveis de ser interpretadas como violadoras dos direitos das crianças, nem indutoras de qualquer situação de perigo, nos termos até agora sufragados,

70.§. Todavia, ainda que se equacionasse um eventual conflito de direitos, o que não se concede,

71.§. Isto é, admitir que existe um conflito entre direitos fundamentais, leia-se direitos fundamentais de personalidade (à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada) e de liberdade de expressão/programação,

72.§. É pacífico que os direitos de personalidade podem ser objeto de restrição com base no seu livre exercício e na promoção das diversas finalidades substantivas que lhes estão subjacentes, as quais devem ser consideradas no processo de ponderação, precludindo um excessivo efeito inibitório

73.§. Assim, banir a exibição dos programas já exibidos, sem que, como se demonstrou, exista efetivamente qualquer perigo ou risco iminente dos direitos das crianças,

74.§. Consubstanciaria uma séria limitação ao direito de programação e in limine ao direito fundamental de liberdade de expressão, abrindo-se o precedente para futuras ingerências censurais por parte do poder público.

Da impossibilidade de procedência do 4º pedido do Ministério Público

75.§. Por fim, contra a decisão de improcedência do que havia sido o seu quarto pedido em sede de Petição Inicial, o Ministério Público alegou que “nos termos dos n.ºs 4 e 5, do artigo 879.º do Código de Processo Civil [o Tribunal a quo], estava habilitado a determinar o comportamento concreto a que as requeridas GG e HH ficariam sujeitas [na produção de futuros episódios], conforme fosse mais conveniente às circunstâncias do caso”

76.§. Em virtude de, no seu entendimento, “o que efetivamente se discute é a proteção de Crianças e Jovens, menores de idade, que no âmbito do formato do programa televisivo denominado PP, possam ser alvo de ameaças ilícitas aos seus direitos de personalidade”

77.§. Defendendo, incompreensivelmente, que aquele entendimento “permitiria concluir, fora dos quadros tradicionais da legitimidade ativa e passiva nas ações declarativas, e fundamentalmente estando no domínio de uma ação especial de tutela de personalidade de seres humanos, aceitar como válido que o comportamento adequado e concreto a adotar para futuros programas da PP por parte da GG e HH respeitassem os direitos de personalidade das crianças e jovens, menores de idade, que vissem a sua imagem e privacidade colocadas em perigo de ameaça ilícita”

78.§. Para concluir que “em determinadas situações, perfeitamente enquadráveis e identificáveis, é lícito ao Tribunal, mesmo não se mostrando identificado o concreto ser humano alvo de ameaça, determinar comportamentos adequados a evitar a prática de novos factos ilícitos idênticos e de similar conteúdo”

79.§. Argumentação que o Tribunal a quo acatou, afirmando, “mais vale prevenir que remediar”.

80.§. Sendo de ressalvar, que o Tribunal a quo entende, salvo melhor entendimento, erradamente, que a eventual violação dos direitos de personalidade dos menores, decorre não do ato em si, mas do facto de não se recorrer a formalismos decorrentes de lei laboral.

81.§. Aproveitando-se de um subterfúgio, que como vimos não é, na opinião da ora Recorrente, aplicável ao caso concreto, para exercer um poder que se traduz numa verdadeira Censura Prévia, independente de factos concretos.

82.§. Ora, salvo melhor entendimento, entende a aqui Requerida, que andou bem o Tribunal de 1ªa Instância, quando decidiu pela improcedência do quarto pedido formulado em sede de petição inicial, já que o quarto pedido do Ministério Público era manifestamente inviável e como tal destinado à improcedência, por duas ordens de razão:

83.§. Uma primeira formal relacionada com a legitimidade processual do peticionado, pois se a intentou a ação em representação das crianças e jovens identificados, não possui, de facto, legitimidade para que o Tribunal, a final, vincule as Requeridas GG e HH a que todos os eventuais e futuros programas do mesmo formato apenas possam ser exibidos nos moldes que o Tribunal venha a determinar.”, porquanto para este concreto pedido, inexiste identificada criança ou jovem que o Ministério Público esteja a representar.

84.§. E uma segunda material, relacionada com o conteúdo possível da própria ação especial de tutela da personalidade: A concreta caracterização, da presente acção, impõe que o julgador realize uma apreciação concreta, dirigida a pessoa relativamente à qual se verifique a ameaça ilícita à personalidade física ou moral, ora, é de todo impossível, realizar uma apreciação de verificação de ameaça ilícita aos direitos de personalidade de pessoa, se a pessoa em si é desconhecida, bem como as acções praticadas que se reputam ilícitas e ameaçam aqueles direitos. Também, desconhecendo as concretas acções ilícitas e bem assim o sujeito, pessoa, objecto das mesmas, torna-se impossível determinar o comportamento concreto a que o agente (da acção ilícita) fica sujeito.

Toda a tramitação e pressupostos da presente acção apontam, estão, intrinsecamente ligados à identificação de um concreto sujeito, objecto da acção ilícita, e à apreciação concreta, casuística, dessa mesma acção ilícita.

85.§. Assim, ainda que por mero exercício académico se admitisse que, no presente caso existiu alguma “ameaça ilícita e direta à personalidade física ou moral” dos Requerentes, o que não se concede, é obvio que o presente tipo de ação permite apenas que o Tribunal decrete providências “concretamente adequadas” ao caso controvertido, e nunca providências relativas a outros casos ou a situações futuras, aliás,

86.§. Para além do referido pelo Tribunal a quo, a verdade é que nenhum tipo de ação comportaria um pedido desta magnitude, já que, o quarto pedido feito pelo Ministério Público implicaria que o Tribunal a quo, enquanto detentor do poder judicial, se arrogasse igualmente do poder legislativo, que escusado seria dizer, lhe está constitucionalmente vedado.

87.§. Razão pela qual, o quarto pedido foi corretamente julgado como manifestamente improcedente em 1º Instância.

88.§. Não podendo ser apreciada judicialmente a aplicabilidade de uma lei ou de determinados requisitos a uma determinada situação, sem conhecimento dos factos concretos que lhe são subjacentes.


8.2. A GG pede, por sua vez, que o seu recurso seja julgado procedente, revogando-se a decisão da condenação das requeridas e substituindo-a por outra que julgue a acção totalmente improcedente.

São as seguintes as seguintes conclusões das suas alegações (fls. 1067 e s.):


A.     O teor do acórdão objecto do presente recurso caracteriza-se por uma profunda desconexão entre os factos e a solução jurídica adoptada, assentando num raciocínio abstracto, desligado do caso concreto e produzido à total revelia da factualidade provada nos autos.

B.   Ao invés de partir da factualidade e das questões concretas suscitadas no caso, para depois formular conclusões, o Tribunal a quo começa por formular conclusões, que, por seu turno, se traduzem em considerações abstractas, totalmente desprovidas de relação com o caso, além de infundadas. Perfilha, por outro lado, o Tribunal a quo, critérios que autónoma e de modo arbitrário constrói.

C.    As decisões judiciais não são - não podem ser - mera expressão do raciocínio, convicção pessoal ou emoção do decisor. O decidido não pode ser mero reflexo do que o decisor acha ou pessoalmente entende.

D.    Muito menos se pode (ainda que com boa intenção) contorcer e forçar as regras jurídicas vigentes, procurando-se retirar delas o que não contêm, até se obter a decisão que se prefigurou como sendo aquela a adoptar, sob pena de o Estado de Direito ceder o passo ao arbítrio.

As ideias contidas nestes pontos representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 1.º a 34.º das presentes alegações.

E.    O entendimento no sentido de que a limitação quantitativa e qualitativa constante do n.º 1 do artigo 609.º do Código de Processo Civil, nos termos do qual: “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir” não se aplica no âmbito do processo especial para tutela da personalidade representa a) leitura não consentida do artigo 879.º do Código de Processo Civil, bem como interpretação b) contrária à evolução histórica do regime jurídico vigente e c) insusceptível de se sustentar nas referências doutrinais em que o acórdão objecto de recurso assenta.

F.     O que legalmente se consagra no artigo 879.º, n.º 4 do Código de Processo Civil é que, na decisão final, se deve determinar, de modo concreto, o comportamento a que o requerido fica sujeito. Tanto é completamente distinto de afirmar que o Tribunal pode determinar medida diferente daquela que foi peticionada pelo Requerente.

G.   Estas são ideias totalmente diferentes e inconfundíveis, de nenhum modo se podendo identificar (nem confundir) a segunda com a primeira.

H. Improcede, assim, a primeira conclusão abstractamente estabelecida pelo Tribunal a quo.

As ideias contidas nestes pontos representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 35.º a 61.º das presentes alegações

I. As decisões proferidas no processo em análise não podem assentar em juízos de mera verosimilhança sobre a probabilidade séria de lesão eminente, dado que está em causa uma acção principal e autónoma, e, assim (ao contrário do que sucede com os procedimentos cautelares), um processo cujas decisões não serão objecto de revisão numa acção posterior.

J. Importa, nesta medida, que se forme convicção segura (e não mera verosimilhança) quanto à probabilidade séria de lesão eminente.

K. Carece, nesta medida, de fundamento a segunda conclusão abstractamente estabelecida pelo Tribunal a quo.

As ideias contidas nestes pontos representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 62.º a 73.º das presentes alegações.

L. O consentimento prestado pelos pais constitui causa de exclusão da ilicitude de actos que contendam com o direito à imagem e reserva da vida privada dos menores.

M. Só sob esta perspectiva se afigura aceitável a terceira conclusão abstractamente estabelecida pelo Tribunal a quo.

As ideias contidas neste ponto representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 74.º a 79.º das presentes alegações.

N. Para que se conclua ser ilícita uma limitação voluntária de direitos de personalidade, é necessário que a ofensa de lei injuntiva, dos bons costumes ou da ordem pública se concretize em factos e que estes sejam objecto de prova positiva.

O. Só sob este ponto de vista se revela sustentável a quarta conclusão abstractamente definida pelo Tribunal a quo, sendo certo que (como adiante melhor se explicitará) tais pressupostos não se verificam no caso em apreço.

As ideias contidas nos dois pontos anteriores representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 80.º a 84.º das presentes alegações.

P. Atenta a ausência de capacidade de exercício de direitos dos menores, revela-se juridicamente insustentável, à luz do direito vigente, defender (ao contrário do que resulta da quinta conclusão) que possa incumbir aos menores o poder de, mediante prestação de consentimento, excluirem a ilicitude de actos relativos ao seu direito à imagem e reserva da vida privada.

Q. Ficou, em todo o caso, provado, no ponto 48 do elenco da matéria de facto, que “Pelo menos a menor QQ, com ... anos de idade, e os menores BB, com ... anos, e CC, com ..., foram informados sobre o programa em causa e sobre a sua participação no mesmo, tendo estado presentes na reunião que teve lugar nas suas casas, entre a produtora HH e os seus progenitores, tendo a CC, dado o seu consentimento verbal, para a participação no programa”.

As ideias contidas no ponto anterior representam conclusão reforçada do que, no essencial, se expôs nos artigos 85.º a 93.º das presentes alegações.

R. A lei n.º 105/2009, de 15 de Setembro não encontra aplicação no caso em apreço, dado que esta regulamenta o artigo 81.º do Código do Trabalho, criando regime jurídico específico para hipóteses em que os menores intervêm como trabalhadores, o que não se verifica no caso em apreço.

S. Resulta, claramente, do facto provado 14 que está em causa «“um documentário da realidade/reality doc”, porque documenta a realidade», que não um espectáculo em que o menor desempenhe actividade laboral.

T. Não se aplica, consequentemente, no caso em apreço, o requisito relativo à formulação de pedido de autorização à CPCJ.

U. A sexta conclusão abstractamente definida pelo Tribunal a quo revela-se, nesta medida, errónea.

V. O problema da aplicabilidade ou não da referida lei ao caso em análise nunca antes tinha sido suscitado, nem debatido entre as partes. Porque assim, o facto de o Tribunal a quo ter proferido decisão sobre tal tema, sem previamente ter ouvido as partes, representa ofensa da garantia constante do artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.

W. Tanto gera, igualmente, nulidade do acórdão ora objecto de recurso, como decorre do previsto na parte final da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

As ideias contidas nos pontos anteriores representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 94.º a 116.º das presentes alegações.

X. A violação de norma imperativa não é causa necessária de nulidade. Também a anulabilidade e a ineficácia, por exemplo, podem decorrer da ofensa de normas imperativas.

Y. O consentimento paterno e (quando aplicável) o pedido de autorização a solicitar à CPCJ são actos juridicamente distintos, situados em planos também diversos, que impendem sobre sujeitos jurídicos diferentes (pelos pais e pela entidade promotora do espectáculo, respectivamente).

Z. O consentimento obedece a critérios de validade próprios, relativos aos sujeitos que o prestam e ao teor do objecto do consentimento, não estando, naturalmente, dependente de circunstância que não esteja ao alcance destes sujeitos controlar (como o seria a formulação de pedido de autorização por outro ente jurídico - a entidade promotora).

AA. A autonomia de ambos os actos revela-se também no facto de o consentimento paterno ser sempre necessário, mesmo nos casos em que o pedido de autorização seja exigível e ainda que tal autorização seja concedida.

BB. Carece, nessa medida, de fundamento jurídico, revelando-se insustentável, a sétima conclusão enunciada pelo Tribunal a quo.

As ideias contidas nos pontos anteriores representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 117.º a 132.º das presentes alegações.

CC. O Tribunal a quo reportou-se, na oitava conclusão por si abstractamente definida, ao artigo 1889.º, n.º 1, a) do Código Civil.

DD. Tal tema nunca antes havia sido invocado em juízo, nem debatido entre as partes, representando, assim, a pronúncia do Tribunal a quo sobre ele uma decisão surpresa, geradora de nulidade do acórdão proferido, como decorre do previsto no artigo 615.º, n.º 1, d) do Código de Processo Civil.

EE. A ofensa de tal norma, quando ocorra, é causa de anulabilidade (cf. Artigo 1893.º do Código Civil), sendo certo que este é um tipo de invalidade que carece ser invocado, dado tratar-se de uma invalidade não susceptível de conhecimento oficioso (cf. artigo 287.º, n.º 1 do Código Civil), portanto, tal matéria susceptível de ser objecto de conhecimento pelo Tribunal. O facto de o Tribunal a quo se ter pronunciado sobre tal matéria representa, assim, também por este motivo, causa de nulidade do acórdão, pois que o Tribunal se pronunciou sobre questão de que não podia tomar conhecimento (cf. artigo 615.º, n.º 1, d) do Código de Processo Civil, in fine).

GG. Tal norma (artigo1893.º do Código Civil) não encontra, em todo o caso, aplicação no presente caso, dado que não está em causa a alienação nem a oneração de bens dos menores, nunca tendo sido também alegados, nem provados, factos concretizadores de tal alienação ou oneração.

As ideias contidas nos pontos anteriores representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 133.º a 145.º das presentes alegações.

HH. No presente caso, de nenhum modo foram alegados e provados factos consubstanciadores da existência de conflito entre os interesses dos pais e os interesses dos menores, tendo, ao invés, ficado demonstrada a inexistência de tal conflito (cf. pontos 55, 56, 57, 59, 62 e 63 do elenco de factos provados).

II. Improcede, assim, a oitava conclusão abstractamente estabelecida pelo Tribunal a quo.

JJ. As normas invocadas pelo Tribunal a quo (artigos 1893.º, n.º 3 e 1920.º do Código Civil, 3.º, n.º 1, a) e 5.º, n.º 1, c) da Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro e artigo 23.º do Código de Processo Civil) para sustentar que o Ministério Público beneficia de poder de representação dos menores revelam-se insusceptíveis de permitir a extracção dessa inferência, dado que: não foi invocada qualquer anulabilidade, nem requerida qualquer anulação; não está em causa qualquer problema de má administração do património do menor e o caso em análise não se reconduz a hipótese em que não exista ou em que tenha deixado de existir representação legal do incapaz.

KK. Razão por que improcede a nona conclusão abstractamente definida pelo Tribunal a quo.

As ideias contidas nos pontos anteriores representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 146.º a 172.º das presentes alegações.

LL. Para efeitos de decisão sobre o problema da nulidade do acórdão recorrido (determinada pelo facto de o Tribunal de 1.ª instância se ter pronunciado e decidido sobre matéria que não havia sido suscitada) , o Tribunal ora recorrido limitou-se a transcrever as terceira, quarta, sexta e sétima conclusões que previamente havia exposto de forma abstracta (isto é, desligada do caso), adicionando-lhes tão só o seguinte: “Acrescente-se que nos termos gerais do artº 286º do CC, a nulidade do contrato ou do acto jurídico é de conhecimento oficioso. Portanto, sem necessidade de outros considerandos, resta concluir que não se verifica a nulidade invocada”.

MM. Perante a total inexistência de relação entre as considerações abstractas constantes das conclusões e os dados do caso (não se verificando qualquer subsunção dos factos concretos às normas), não se pode dizer que tenha havido julgamento em sentido próprio, pois que o julgamento pressupõe, precisamente, a aplicação das normas ao fragmento de realidade (concretizado em factos) em que a particularidade do caso se traduz.

NN. Tanto consubstancia omissão material de pronúncia, geradora da nulidade processual prevista na parte final da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civ

OO. Ainda que não se verificasse tal omissão de pronúncia, sempre se verificaria falta de fundamentação, pois que esta se traduz na exposição do raciocínio justificativo da decisão proferida, com a necessária enunciação da interpretação normativa adoptada em relação com os concretos dados do caso. Circunstância geradora da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

PP. Acresce que sempre o facto de a nulidade ser matéria de conhecimento oficioso não retiraria o dever de o Tribunal de 1.ª instância previamente ouvir as partes sobre tal tema, antes de proferir decisão, sob pena de ofensa do princípio do contraditório na dimensão prevista no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil e consequente nulidade decisória, em conformidade com o consagrado na parte final da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil. Matéria também de conhecimento oficioso e sobre a qual o Tribunal a quo igualmente não se pronunciou

As ideias contidas nos pontos anteriores representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 173.º a 188.º das presentes alegações.

QQ. O Tribunal a quo não se pronunciou sobre três dos fundamentos com base nos quais a Recorrente impugnou os pontos 65.º, 66.º e 67.º da matéria de facto, o que representa causa de nulidade da decisão, como decorre do previsto no artigo 615.º, n.º 1, d), parte final do Código de Processo Civil.

A ideia contida nos pontos anteriores representa conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 189.º a 193.º das presentes alegações.

RR. No que diz respeito ao único fundamento de impugnação desses pontos da matéria de facto (invocados pela Recorrente) a que o Tribunal a quo se reporta, esse Tribunal nada disse. Optou por responder ao lado, declarando que não tem de haver identidade entre as expressões das partes e as expressões do tribunal, quando a Recorrente nunca sustentou que tal identidade tivesse de existir.

SS. Assim, sobre a questão efectivamente suscitada, o Tribunal não se pronunciou, muito menos de forma clara e concreta, razão por que a decisão em causa padece de nulidade, em virtude de o tribunal não ter tomado efectivo conhecimento de questões que devia apreciar, nem ter concretamente especificado os fundamentos que justificam tal decisão (cf. alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil).

As ideias contidas nos pontos anteriores representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 194.º a 200.º das presentes alegações.

TT. Na sequência da alegação, formulada pela Recorrente, no sentido da inadmissibilidade da prova, materialmente pericial, produzida por sujeitos intervenientes como testemunhas, o Tribunal a quo pronunciou-se no sentido da improcedência da mesma alegação, justificando a admissibilidade de tal meio de prova na circunstância de uma mesma pessoa poder reunir, simultaneamente, a qualidade de perita e de testemunha.

UU. Nunca, porém, a Recorrente questionou que uma mesma pessoa pudesse ser simultaneamente testemunha e perita. Não foi esse problema que trouxe a debate.

VV. O que a Recorrente arguiu foi que (independentemente da circunstância de o perito ser também testemunha ou não) não podem deixar de ser observadas as essenciais garantias que a lei prevê em matéria de prova pericial. A título de exemplo, não podem deixar de se cumprir as normas que garantem que o perito beneficia das qualificações adequadas para as funções periciais que exerce; que asseguram que o objecto da perícia é bem delimitado e definido em quesitos; que definem que o perito presta juramento; que contemplam que, para resposta ao quesitado, o perito analisará os concretos objectos, locais ou pessoas a que os mesmos quesitos se reportam, bem como as normas que determinam que há apresentação de relatório pericial susceptível de ser esclarecido oralmente em audiência, que salvaguardam a possibilidade de segunda perícia.

WW. Ora, no caso em apreço as referidas garantias não foram observadas, não tendo, designadamente, nenhum dos depoentes, analisado os concretos menores, limitando-se a fazer afirmações genéricas, não precedidas de qualquer contacto com as crianças em causa, assim não podendo perceber quais os reais reflexos, positivos ou negativos, que a participação no programa possa ter tido nas suas vidas.

XX. Tal ausência de decisão, pelo Tribunal a quo, sobre as questões efectivamente suscitadas pela Recorrente gera nulidade decisória por omissão de pronúncia quanto ao que foi efectivamente alegado pela Recorrente ou, quando assim se não entendesse, nulidade decisória por ausência de efectiva fundamentação da decisão proferida (cf. artigo 615.º, n.º 1, alíneas a) e d) do Código de Processo Civil).

YY. De notar que o que está em causa não é a correcção ou não da apreciação pelo Tribunal a quo do fruto da prova produzida. Antes uma questão prévia – a da própria admissibilidade da prova produzida sem respeito pelas normas legais (processuais) previsoras de garantias essenciais para que a informação transmitida ao Tribunal assuma carácter fidedigno e, por isso, susceptível de ser convocada para efeitos de decisão.

ZZ. A norma constante do artigo 607.º, n.º 5, do CPC, interpretada no sentido de que o tribunal pode dar como provados factos para cuja apreciação são necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem (informação pericial, de acordo com o artigo 388.º do CC) com fundamento em prova testemunhal, prescindindo portanto das garantias legalmente impostas quanto à prova pericial (artigos 467.º a 489.º do CPC) é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 2.º, 3.º, 13.º e 20.º, n.º 4, todos da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que se deixa desde já arguida para todos os efeitos legais.

As ideias contidas nos pontos anteriores representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 201.º a 214.º das presentes alegações.

AAA. O Tribunal a quo não invoca qualquer base legal para a afirmação que faz, no sentido de que a impugnação motivada não pode ser objecto de decisão probatória.

BBB. Afigura-se inadmissível e violador do direito à prova que quem impugna de forma motivada, apresentando uma outra versão dos factos, não tenha direito a que o Tribunal declare que foi essa a realidade ocorrida, caso (o contestante) logre provar essa versão dos factos.

CCC. O teor dos pontos 31 e 32 não obsta a que tenha havido uma selecção de imagens, designadamente de forma a minorar a exposição e a excluir algumas das imagens captadas, pelo que tal raciocínio não constitui fundamento jurídico válido para considerar impossível a formulação de um juízo positivo de prova quanto ao facto de que a produção tenha feito trabalho de edição das imagens de modo a não transmitir as de foro mais íntimo ou de forma a moderar a exposição.

DDD. As duas irregularidades que acabam de se sublinhar não respeitam à apreciação ou julgamento da matéria de facto em causa. Concernem, diferentemente, à errada aplicação que o tribunal faz da lei de processo, bem como ao raciocínio errado e incoerente que adopta quando estabelece relação entre os diferentes pontos da matéria de facto provada.

As ideias contidas nos pontos anteriores representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 215.º a 225.º das presentes alegações.

EEE. Aos diversos argumentos invocados pela Recorrente, no recurso de apelação, como fundamento para a sua alegação de que o Ministério Público não beneficia de poder representativo dos menores, respondeu o Tribunal a quo com mera remissão para as conclusões n.ºs 5, 6, 7, 8 e 9, que, anteriormente, havia, de modo absolutamente abstracto e erróneo, estabelecido.

FFF. Pura remissão a que fez suceder tão só a seguinte declaração: “Por conseguinte e sem necessidade de outros considerandos, improcede a pretensão da recorrente GG referida em a)” (itálico nosso)

GGG. Tanto consubstancia nulidade decisória por omissão de pronúncia quanto ao que foi efectivamente alegado pela Recorrente ou, quando assim se não entendesse, nulidade decisória por ausência de efectiva fundamentação da decisão proferida (cf. artigo 615.º, n.º 1, alíneas a) e d) do Código de Processo Civil).

As ideias contidas nos pontos anteriores representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 226.º a 231.º das presentes alegações.

HHH. Carece de fundamento a decisão proferida pelo Tribunal a quo no sentido de que o consentimento prestado pelos pais dos menores é nulo e de que, consequentemente, a decisão quanto aos episódios n.ºs 1 e 2 não deve ser revogada.

III. Tal consentimento é válido, como decorre do que acima se expôs quanto à sexta conclusão.

JJJ. Atenta a circunstância de Tribunal a quo se ter limitado a, também quanto a esta parte da decisão, formular notas gerais e abstractas, de nenhum modo subsumindo as mencionadas conclusões ao caso concreto, não existe verdadeira (muito menos cabal) decisão e fundamentação sobre o ponto em análise, pelo que tal decisão padece também de nulidade por omissão de pronúncia quanto ao que foi efectivamente alegado pela Recorrente ou, quando assim se não entendesse, nulidade decisória por ausência de efectiva fundamentação da decisão proferida (cf. artigo 615.º, n.º 1, alíneas a) e d) do Código de Processo Civil).

KKK. Deve, em qualquer circunstância, entender-se que a alegada fundamentação não corresponde aos parâmetros legais, bem como que a pronúncia do Tribunal a quo deve ser substituída por uma outra que, adequada e em termos jurisdicionalmente conformes, responda à alegação da Recorrente.

As ideias contidas nos pontos anteriores representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 232.º a 242.º das presentes alegações.

LLL. Por outro lado, a decisão do Tribunal a quo quanto ao episódio 3 – determinando que as Rés não pudessem exibir ou por qualquer modo divulgar o episódio 3, sem que, previamente, comuniquem e solicitem autorização de participação dos menores no programa à CPCJ competente – afigura-se manifestamente errónea.

MMM. Em primeiro lugar, e como acima se expôs, porque a Lei n.º 105/2009, de 14 de Setembro não é aplicável ao caso, não sendo por isso exigível a formulação de pedido de autorização à CPCJ, como parece entender o Tribunal a quo.

NNN. Em segundo lugar, porque incorre em erro o Tribunal a quo ao fazer depender a validade do consentimento paterno da formulação de pedido de autorização à CPCJ pela entidade promotora. Mesmo nos casos em que esta exigência deva ser respeitada o que não acontece neste caso - nunca a não realização de tal pedido pela entidade promotora geraria a nulidade do consentimento paterno, não só porque este é sempre necessário, como sobretudo por serem actos autónomos e cujas condições de validade (que não incluem a existência recíproca) são próprias e independentes, de forma que a inexistência de um não provoca a nulidade do outro.

OOO. Em terceiro lugar, é também manifesta a violação do princípio do pedido (inteiramente aplicável aos presentes autos) ínsita na decisão quanto a este episódio, já que o Tribunal a quo condena as Rés em algo distinto do que havia sido pedido – nulidade que desde já se invoca, em conformidade com o consagrado no artigo 615.º, n.º 1, e) do Código de Processo Civil.

PPP. Mas mais! Não se limitando à condenação em algo distinto do que havia sido pedido, o Tribunal a quo alterou, sem qualquer base factual para tanto, as próprias bases da decisão proferida em primeira instância ( e não apenas a concreta providência decretada pelo Tribunal de base), referindo, quanto à declaração proferida pelo Tribunal de 1.ª instância sobre a verificação de “ausência de ameaça ilícita à personalidade dos menores”, que é incorrecta por desnecessária a referência à ausência de ameaça ilícita à personalidade dos menores.

QQQ. O Tribunal a quo afirma que aquela referência é incorrecta por desnecessária, declarando, simplesmente que ocorreu violação dos direitos dos menores, após mero sinal gráfico de dois pontos. Esta conclusão, no entanto, não teve por base qualquer facto ou – mais grave ainda – qualquer elemento probatório concreto.

RRR. O Tribunal a quo confunde, isso sim, a ofensa da personalidade com a validade do consentimento e a necessidade de autorização (nas hipóteses em que esta seja necessária, onde o presente caso se não insere).

SSS. Proferiu, assim, uma decisão com base numa dedução inquinada por uma incorrecta intersecção de planos distintos: um plano é o das consequências do acto ao nível do desenvolvimento da personalidade (prejudicando-a ou não) dos menores; outro radicalmente distinto, é o da validade ou não do consentimento prestado pelos progenitores e outro ainda, para esta decisão, deverá a mesma revogada.

As ideias contidas nos pontos anteriores representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 243.º a 282.º das presentes alegações.

TTT. A decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto aos episódios futuros – cujos intervenientes são indefinidos – é, também ela, incompreensível. O Tribunal a quo decide, quanto a estes episódios, que “o tribunal pode determinar medida preventiva dessa futura – a manter-se o modo de actuação e o formato do programa – violação dos direitos de personalidade dos menores, independentemente de quem venham a ser: “mais vale prevenir do que remediar”, reportando-se então a duas dimensões: o modo de actuação e o formato do programa.

UUU. Diga-se, quanto ao formato do programa, que não pode o Tribunal a quo referir, sem mais, que este ofende os direitos de personalidade dos menores, independentemente de quem estes sejam, já que se trata de um tipo de programa em que há exibição da imagem e de situações integradoras de reserva e intimidade da vida privada.

VVV. É que, se por um lado a violação de direitos de personalidade não se verifica, nem quanto a menores, nem quanto a quaisquer outros sujeitos jurídicos – desde que o sujeito consinta em tal exibição, as limitações do direito à imagem e reserva da vida privada não implicam, per se, prejuízo para o sujeito titular desses direitos, já que podem até gerar benefícios para tal sujeito ou assumir carácter neutro, não produzindo consequências negativas, nem positivas. Tudo dependerá, claro está, do tipo de exibição, do concreto sujeito em causa e do contexto em que este se enquadra: por isso mesmo o Tribunal de 1.ª instância pôde concluir que o episódio 3, com o mesmo formato dos episódios anteriores, não representa qualquer ofensa para os direitos dos menores.

WWW. Esta avaliação, no entanto, não é possível no caso concreto, dado que os sujeitos dos episódios futuros não se encontram determinados, incorrendo por isso em erro a decisão de que ora se recorre.

XXX. Por outro lado, o Tribunal a quo reporta-se à “actuação das rés quanto à angariação de menores para participarem em episódios futuros do programa, sem observarem a exigência de comunicação e pedido de autorização para essa participação à CPCJ”.

YYY. Independentemente da conotação que o Tribunal a quo confere à (pretensa) angariação de menores pela Recorrente, que, como supra ficou exposto, não corresponde à realidade pelo simples facto de esta não ser, sequer, entidade promotora (a quem caberia formular tal pedido, se aplicável) e de tal não se encontrar provado nos autos,

ZZZ. Diga-se, quanto ao entendimento do Tribunal a quo, e mais uma vez, que em qualquer caso, a não formulação de pedido de autorização à CPCJ geraria a nulidade do consentimento, já que aquela não depende da existência do consentimento paterno, mas sobretudo porque a validade ou invalidade destes depende, somente, de pressupostos relacionados com os sujeitos jurídicos autores desses actos, bem como da observância ou não das regras jurídicas relativas a esses mesmos actos, inexistindo aqui qualquer relação de causalidade entre a formulação ou não de pedido de autorização e a validade ou invalidade do consentimento paterno, como acima se expôs.

AAAA. Por fim, e porventura, mais flagrante, o Tribunal a quo fundamenta o decidido por remissão para a sabedoria popular, sustentando a sua decisão no provérbio “Mais vale prevenir que remediar”, invertendo os princípios distribuidores do ónus da prova em processo civil, de acordo com os quais o Tribunal só pode proferir decisão condenatória, caso o Autor logre alegar e provar as condições da acção. Não, portanto, que, na dúvida, mais vale condenar que absolver.

BBBB. Quando o Autor alegue factos constitutivos do seu direito, mas não os logre provar, na dúvida, deverá o Tribunal decidir contra o Autor, absolvendo o Réu do pedido (cf. artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil).

CCCC.    No processo, os Autores não lograram, nem sequer alegar (muito menos provar) factos representativos da possível produção de prejuízos para a personalidade dos menores, decorrente da exibição de episódios futuros – veja-se, aliás, os pontos 47, 51, 52, 59, 63, 72, 73, 74 e 76 do elenco de factos provados que em absoluto contrariam a alegada necessidade de remédio.

DDDD. Apesar de a esta falta de alegação acrescer, naturalmente, a falta de prova (por inexistência de factos a provar), o Tribunal a quo convoca, como regra de decisão em caso de dúvida, critério popular de decisão, em manifesta violação do critério jurídico que no caso caberia: se dúvida houvesse sobre factos alegados (que o não foram), os factos constitutivos deveriam ter sido considerados não provados – razão pela qual é esta decisão insustentável.

As ideias contidas nos pontos anteriores representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 283.º a 348.º das presentes alegações.

EEEE. A norma constante do artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que o Tribunal pode conhecer de matéria de Direito, suscitada a título oficioso, sem primeiramente dar às partes a possibilidade de quanto à mesma exercerem o contraditório é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação do princípio do Estado de Direito e do direito de acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos artigos 2.º e 20.º da Constituição, bem como do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, inconstitucionalidade e ofensa dos direitos humanos que se deixam arguidas para todos os efeitos legais.

FFFF. As normas constantes das alíneas b), c) e d) do artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, interpretadas no sentido de que o Tribunal pode decidir mediante invocação de argumentos de natureza abstracta, não estabelecendo relação de tais fundamentos teóricos com os factos concretos do caso, sem que tanto represente nulidade da decisão por omissão de pronúncia ou por falta ou obscuridade da fundamentação é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação do princípio do Estado de Direito e do direito de acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos artigos 2.º e 20.º da Constituição, bem como do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, inconstitucionalidade e ofensa dos direitos humanos que se deixam arguidas para todos os efeitos legais.

GGGG. A norma constante da alínea d) do artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que o Tribunal pode se pode furtar à decisão sobre concretas e expressas questões invocadas pela parte, pronunciando-se sobre questão diversa ou em absoluto omitindo pronúncia, sem que tanto represente nulidade da decisão por omissão de pronúncia é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação do princípio do Estado de Direito e do direito de acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos artigos 2.º e 20.º da Constituição, bem como do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, inconstitucionalidade e ofensa dos direitos humanos que se deixam arguidas para todos os efeitos legais.

HHHH. As normas constantes dos artigos 2.º a 11.º da Lei n.º 105/2009, de 15 de Setembro, interpretadas no sentido de que os menores apenas podem participar em programas de televisão após pedido e concessão de autorização pela CPCJ são, nessa interpretação, materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade e da separação de poderes, consagrados, respectivamente, nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 110.º e 111.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o que se deixa invocado para todos os efeitos legais.

IIII. As normas constantes dos artigos 878.º e 879.º do Código de Processo Civil, interpretadas no sentido de que o Tribunal pode decretar providências e decisões relativas a situações futuras e desconhecidas é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional por violação dos artigos 2.º, 110.º e 111.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o que se deixa invocado para todos os efeitos legais

As ideias contidas nos pontos anteriores representam conclusão do que, no essencial, se expôs nos artigos 349.º a 360.º das presentes alegações”.

8.3. O MP apresentou contra-alegações (fls. 1116 e s.), pedindo que os recursos de revista apresentados pela GG e pela HH sejam julgados totalmente improcedentes, assim se mantendo o Douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.

 Formula as seguintes conclusões:

“A. Os recursos apresentados pela GG e pela HH caracterizam-se, em larga medida, por continuarem a evidenciar uma clara atuação de desvio do centro de atenção deste processo, que versa sobre a proteção da imagem e direitos dos menores, sendo que, mais uma vez, as Recorrentes demonstram o papel secundário que atribuem aos direitos dos Autores aqui em apreciação, antes dando primazia à informação que pretendem alcançar com a mediatização do assunto visado pelo programa.

B. E assim, prosseguem, (...) nas doutas palavras do Tribunal da Relação de Lisboa (acórdão de 29/5/2018), na inversão de valores desta pirâmide criada entre o direito das crianças à proteção da sua imagem, o direito dos telespectadores à informação/recreação e o dever que as Recorrentes entendem deter para procederem à transmissão desse mesmo conteúdo informativo, os primeiros são deixados sem garantias, legitimando as Recorrentes a sua atuação na prossecução dos segundo e terceiro vértices desta questão.

C. O Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa em revista, além de Douto, revela elevada sensibilidade jurídica e materializa equilíbrio, sabedoria e sensatez na busca de uma solução global perfeitamente adequada ao conteúdo de um programa televisivo que mais não é, no formato que foi exibido publicamente, do que um espetáculo produzido em manifesto prejuízo das Crianças, os Autores nesta ação especial de tutela da personalidade.

D. No domínio de uma ação especial de tutela da personalidade humana, ao contrário daquilo que é a manifestação e vinculação tradicional ao princípio do pedido, ao Tribunal é lícito, nos termos do n.° 4 do artigo 879. °, do Código de Processo Civil, decidir de modo diferente àquilo que foi inicialmente requerido.

E. Compreende-se que o legislador tenha deixado abertura quanto à possibilidade de ser o Tribunal a decretar o comportamento que melhor se adequa ao caso concreto, pois a ser de outra forma acreditamos que ficaria significativamente desvirtuado o processo especial em apreço, atentas as características das situações litigiosas que invocam a sua intervenção.

F. Na efetiva e eficaz tutela da personalidade, a Lei Fundamental impõe ao legislador a criação (ou adaptação) de procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade. Essa imposição legiferante, obriga o legislador a criar novos processos ou a adaptar os processos existentes de forma a institucionalizar uma via judiciária preferente e sumária, ou, nos termos constitucionais, célere e prioritária, indispensável à proteção em tempo útil dos direitos, liberdades e garantias[...][Trata-se de]impor a formatação de alguns processos (quanto a prazos, tipos de sentença, execução) de forma a conseguir uma panóplia de ações ou recursos adequados à tutela efetiva de direitos, liberdades e garantias.

G. Daí que não ocorram as inconstitucionalidades ou muito menos quaisquer violações ao artigo 6. °, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, tal como, mais uma vez, vêm invocadas.

H. A Douta decisão judicial aqui colocada em crise não fez tal como era pretendido pelas Recorrentes, tábua rasa daquilo que é uma clara manifestação do princípio da oportunidade e da conveniência mantido pelo legislador com a reforma de 2013, na solução consagrada nos n.°s 4 e 5, do artigo 879. °, do Código de Processo Civil.

I. É profundamente errada a afirmação de que no direito vigente os menores não beneficiam de nenhuma previsão para assumirem a capacidade de exercício dos seus direitos - tal afirmação é hoje destituída de sentido - veja-se os exemplos das denominadas Maioridades Especiais/Antecipadas -, e ignora os princípios da audição e de participação efetiva nas decisões que lhes digam diretamente respeito.

J. A invocação e utilização da Lei n. ° 105/2009, de 14 de setembro, pela Relação, não consubstanciam, nos autos, qualquer nulidade, designadamente por violação do princípio do contraditório;

K. O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito" - cf. artigo 5.°, n.° 3, do Código de Processo Civil O que implica que as partes têm sempre de contar com diversa qualificação jurídica por ser seu dever conhecer a não vinculação do julgador nessa área. E nem se diga que estamos perante uma decisão-surpresa, na medida em que não ocorreu qualquer alteração da causa de pedir e dos factos associados à resolução do caso concreto por referência à subsunção jurídica efetuada.

L. A questão associada à natureza laboral ou não da atividade realizada pelos Autores no programa televisivo não tem aqui qualquer interesse. Estamos efetivamente perante um espetáculo, e além disso, como é óbvio nunca os Autores, Crianças com idade inferior a 16 anos, teriam capacidade para celebrar um contrato de trabalho.

M. A este propósito, de estarmos perante um efetivo Espetáculo, nunca será demais recordar a factualidade assente nestes autos, tal como consta narrado no artigo 12. °: "Programa relativamente ao qual a Requerida "GG" já exibiu os episódios n°s 1 e 2, nos dias … e … de Janeiro de 2018, respetivamente, entre as 21hS0m e as 22h45m, tendo obtido um share de audiência de cerca de 25% e 27%, respetivamente, equivalente a um milhão e duzentos e cinquenta mil espectadores, quanto ao episódio n°2. "

N. Espetáculo cujo conteúdo se baseia, na sua essência, na exibição gratuita das emoções e das fragilidades de crianças que são estimuladas a exibir as suas fraquezas na intimidade, na sua desprotegida reserva e privacidade.

O. O Douto Acórdão resolve a particular questão da natureza laboral ou de prestação de serviços quando afirmo "tenha-se ainda presente que a participação de menor em espetáculos e outras atividades de natureza cultural, artística ou publicitária não deve ser qualificada como trabalho subordinado, por faltarem elementos essenciais do contrato de trabalho, nomeadamente a sujeição dos menores aos poderes laborais" (cf. pág. 115 do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa).

P. A violação de norma jurídica imperativa comina o vício da nulidade, pelo que figurando o consentimento prestado para a cedência da imagem através da participação dos Autores no programa no contrato celebrado, também o consentimento não pode deixar de padecer do mesmo vício jurídico.

Q. Existe propriedade e adequação na invocação do artigo 1889. °, n.° 1, alínea a), do Código Civil. Na verdade, a celebração do contrato de cedência de imagem implicou o pagamento de uma contrapartida monetária. Tratou-se, pois, de uma alienação dos direitos patrimoniais de imagem relativos aos Autores.

R. Tal como já foi reconhecido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, "a proteção devida aos menores ali identificados e que, nos presentes autos, está a ser legitimamente assegurada e protegida pelo Ministério Público";

S. E assim sucede acolhendo a perspetiva global assinalada na primeira instância e devidamente confirmada pela Relação, tudo numa interpretação conforme à unidade do sistema, ou seja, o Superior interesse destas crianças, reclama a intervenção do Estado, e nos Tribunais, em representação dos incapazes, essa cabe ao Ministério Público.

T. Além de que, o caráter pessoal dos direitos de personalidade não pode estar na total disponibilidade dos representantes legais dos menores quando justamente são eles também os responsáveis pela sua violação.

U. O artigo 23. ° n.° 1 do Código de Processo Civil, em conjugação com a interpretação face à unidade do sistema de proteção dos direitos de personalidade das crianças e jovens, legitima a atuação do Ministério Público.

V. Os factos dados como assentes em 65, 66 e 67, da sentença, efetivamente, mostram-se narrados de forma parcialmente diferente da que foram alegados pelos Autores, no entanto, a dimensão factual relacionada com os riscos e as respetivas consequências, em si mesmos, na sua essencialidade, são os mesmos e estão neles contidos. Além de que o recurso de revista não pode, por impossibilidade de conhecimento por parte do Supremo Tribunal de Justiça, permitir que a pretexto de um qualquer vício, se procure novamente o julgamento dos factos.

W. O núcleo essencial da presente ação visa a prova da verificação de ameaças para a personalidade de crianças através de um programa televisivo. E essa prova não é, nem pode ser, de natureza pericial!

X. Confundir prova de um potencial e concreto dano futuro com a prova de factos concretos, que se observam pela visualização de programas televisivos, é desvirtuar aquilo que constitui a causa de pedir desta ação.

Y. Quando alguém, menor de idade, fica vinculado, para a vida, a que a sua imagem, a sua privacidade em criança, possa ser exibida em qualquer suporte televisivo ou de internet, é possível aceitar a prova dos factos narrados em 65, 66 e 67, na perspetiva futura da verificação de razoáveis riscos para a sua intimidade, privacidade, para a sua personalidade.

Z. Além de violar norma imperativa conforme julgado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, os Autores continuam a entender que a celebração deste concreto "Acordo de participação" e "Autorização para a utilização do direito à imagem", com o conteúdo tal qual é descrito nos factos 20, 21, 24 e 25 da sentença, é nulo justamente porque configura uma limitação voluntária de direitos de personalidade de crianças contrária à ordem pública.

AA. Estamos perante um verdadeiro contrato de adesão, de alienação de imagens e de momentos da vida privada de crianças com uma extensão temporal ilimitada e de alcance visualizador mundial.

BB. Os factos provados referentes aos spots promocionais e aos episódios demonstram que o que é exibido não são apenas e só meras birras.

CC. Mas, mesmo que assim fosse - e não é - as crianças teriam o direito a que as suas alegadas meras birras não fossem vistas por um milhão de pessoas e que essas mesmas birras não ficassem disponíveis indefinidamente no tempo e pelo mundo inteiro, através de um simples acesso on-line.

DD. A postura assumida pela HH é, no mínimo, reveladora do reconhecimento que os interesses de um público ávido de espetáculo com a vida privada dos outros, sedento de um voyeurismo doentio, na procura incessante de mais audiências, valem substancialmente mais do que a reserva da vida privada de crianças.

EE. Para a verificação da ameaça aos direitos de personalidade conforme a melhor interpretação a conferir aos n.°s 1 dos artigos 70. ° do Código Civil e 878. °, do Código de Processo Civil, bastará que ela se verifique seja qual for a intensidade com que é praticada.

FF. O mesmo sucedendo com a melhor interpretação a conferir à cláusula geral de tutela da personalidade humana, no sentido de potenciar o seu livre desenvolvimento, em constante mutação, conforme o disposto no artigo 70. °, do Código Civil, que determina que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

CG. Ao que ainda acrescerá a tutela do direito à reserva da vida privada, onde se integra a "projeção vital" do direito à inviolabilidade pessoal.

HH. Assim, de acordo com disposto nos artigos 70. °, n.° 1 e 79. °, do Código Civil e do mesmo modo o artigo 878. °, n. ° 1, do Código de Processo Civil, toda e qualquer ameaça ou violação ilícita e direta à personalidade física e moral de ser humano, não está dependente do grau de intensidade e do grau de violência do modo como os direitos de personalidade são ameaçados ou atingidos, bastando-se a sua concreta verificação”.

O processo foi, assim, distribuído à presente relatora em 14.05.2019.

Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC)[1].

Note-se, relativamente às conclusões formuladas, em particular, pela recorrente GG, que elas não cumprem rigorosamente o disposto no artigo 639.º, n.º 1, do CPC. De facto, conclusões que se estendem por pontos dando mais do que três voltas ao alfabeto criam um obstáculo (adicional) ao julgador, em nada contribuindo para a boa administração da justiça e não sendo, em princípio, admissíveis. A solução adequada seria, porventura, a de convidar a recorrente a observar os requisitos legais, ou seja, a reformular, sintetizando-as, as conclusões das alegações. Atendendo, no entanto, ao carácter do presente recurso (urgente) (cfr. artigos 880.º, n.º 1, e 638.º, n.º 1, 2.ª parte do CPC) e, principalmente, à natureza dos interesses aqui em causa, considerou-se preferível ultrapassar directamente as dificuldades.

Distinguindo entre os problemas e os argumentos / fundamentos das soluções defendidas pelos recorrentes (que não deixarão de ser considerados sempre que se justificar), as questões a decidir são, em síntese, as seguintes:

A) No recurso interposto pela HH.

1.ª ) se a decisão de decretamento da necessidade de consentimento da CPCJ deve ser revogada, designadamente por inaplicabilidade da Lei n.º 105/2009, de 14.09;

2.ª) se o processo especial de tutela da personalidade deve improceder por falta de verificação dos respectivos pressupostos; e

3.º) se o 4.º pedido, respeitante aos eventuais programas futuros, deve improceder, designadamente por falta de legitimidade processual do MP e por impossibilidade de avaliação em concreto da situação e de decretamento das medidas concretamente adequadas.

B) No recurso interposto pela GG

1.ª) se o processo especial de tutela da personalidade deve improceder por falta de verificação dos respectivos pressupostos;

2.ª) se a decisão de decretamento da necessidade de consentimento da CPCJ deve ser revogada, designadamente por inaplicabilidade da Lei n.º 105/2009, de 14.09;

3.º) se a decisão respeitante aos eventuais programas futuros deve ser revogada, por impossibilidade de avaliação em concreto da situação e de decretamento das medidas concretamente adequadas;

3.ª) se o Acórdão recorrido enferma de nulidades, designadamente de:

a) nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, porquanto a aplicação ao caso da Lei 105/2009, de 14.09, constitui decisão surpresa e viola o princípio do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, não tendo sido discutida antes e não tendo sido dada às partes o poder de se pronunciarem sobre a sua aplicação;

b) nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, porquanto, na fundamentação do Acórdão, se faz referência ao artigo 1889.º, n.º 1, al. a), do CC, sem que o tema alguma vez tenha sido invocado em juízo nem debatido entre as partes, constituindo decisão surpresa;

c) nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, por falta de fundamentação sobre a invocada decisão de pronúncia excessiva do Tribunal de 1.ª instância sobre matéria que não havia sido suscitada; subsidiariamente, nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, por falta de fundamentação da decisão; e, em subsidiariedade de 2.º grau, nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, porquanto é surpreendente a decisão da nulidade do consentimento dada pelos progenitores em virtude de o contrato por via do qual se concedeu o consentimento ser nulo e as partes não foram ouvidas quanto à "nulidade do contrato";

d) nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, por falta de pronúncia sobre três dos fundamentos para a impugnação, pela apelante, da decisão da matéria de facto dos pontos 65.º, 66.º e 67.º, e, subsidiariamente, por falta de pronúncia sobre a questão suscitada;

e) nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, als. b) e d), do CPC, por falta de apreciação dos argumentos que a apelante usou para sustentar a não representação dos menores pelo Ministério Público e mera remissão para as conclusões 5.ª, 6.ª, 7.ª, 8.º e 9.ª; e

f) nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. e), do CPC, por violação do princípio do pedido, quanto á proibição de exibição do episódio 3; e

4.ª) se o Tribunal recorrido incorreu em inconstitucionalidades bem como em ofensa dos direitos humanos, mais precisamente:

a) inconstitucionalidade material por violação dos artigos 2.º, 3.º, 13.º e 20.º da CRP, ao interpretar o disposto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC no sentido de que o tribunal pode dar como provados factos para cuja apreciação são necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem (informação pericial, de acordo com o artigo 388.º do CC) com fundamento em prova testemunhal, prescindindo, portanto, das garantias legalmente impostas quanto à prova pericial (artigos 467.º a 489.º do CPC);

b) inconstitucionalidade material por violação dos artigos 2.º e 20.º da CRP (violação do princípio do Estado de Direito e do direito de acesso ao direito e do princípio da tutela jurisdicional efectiva) e ofensa dos direitos humanos por violação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (violação do direito a um processo equitativo), ao interpretar o disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC no sentido de que o Tribunal pode conhecer de matéria de Direito, suscitada a título oficioso, sem primeiramente dar às partes a possibilidade de quanto à mesma exercerem o contraditório;

c) inconstitucionalidade material por violação dos artigos 2.º e 20.º da CRP (violação do princípio do Estado de Direito e do direito de acesso ao direito e do princípio da tutela jurisdicional efectiva) e ofensa dos direitos humanos por violação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (violação do direito a um processo equitativo), ao interpretar o disposto nas als. b), c) e d) do artigo 615.º, n.º 1, do CPC no sentido de que o Tribunal pode decidir mediante invocação de argumentos de natureza abstracta, não estabelecendo relação de tais fundamentos teóricos com os factos concretos do caso, sem que tanto represente nulidade da decisão por omissão de pronúncia ou por falta ou obscuridade da fundamentação;

d) inconstitucionalidade material por violação dos artigos 2.º e 20.º da CRP (violação do princípio do Estado de Direito e do direito de acesso ao direito e do princípio da tutela jurisdicional efectiva) e ofensa dos direitos humanos por violação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (violação do direito a um processo equitativo), ao interpretar o disposto na al. d) do artigo 615.º, n.º 1 do CPC no sentido de que o Tribunal pode se pode furtar à decisão sobre concretas e expressas questões invocadas pela parte, pronunciando-se sobre questão diversa ou em absoluto omitindo pronúncia, sem que tanto represente nulidade da decisão por omissão de pronúncia;

e) inconstitucionalidade material por violação dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 110.º e 111.º, n.º 1, da CRP (violação do princípio da proporcionalidade e da separação de poderes), ao interpretar o disposto nos artigos 2.º a 11.º da Lei n.º 105/2009, de 14.09, no sentido de que os menores apenas podem participar em programas de televisão após pedido e concessão de autorização pela CPCJ; e

f) inconstitucionalidade material por violação dos artigos 2.º, 110.º e 111.º, n.º 1, da CRP, ao interpretar o disposto nos artigos 878.º e 879.º do CPC no sentido de que o Tribunal pode decretar providências e decisões relativas a situações futuras e desconhecidas.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos dados como provados, na sequência da apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto levada a cabo pelo Tribunal a quo[2]:

1. QQ nasceu em … . … .2010, e é filha de II e de JJ.

2. BB nasceu em … … .2012 e é filho de KK e LL.

3. CC nasceu em … …. .2004 e é filha de KK e LL.

4. DD nasceu em … …. .2011 e é filho de MM e OO.

5. EE nasceu em … . … .2009 e é filho de MM e OO.

6. FF nasceu em … . … .2016 e é filha de MM e de NN.

7. No âmbito da sua actividade comercial, enquanto estação de televisão, a Requerida "GG" divulga conteúdos e programas que previamente contrata a produtoras.

8. A requerida HH desenvolve a actividade de produção de programas de televisão em função de contratos celebrados com estações de televisão.

9. As Requeridas GG e HH acordaram na encomenda da primeira à segunda, que aceitou, a produção e realização de uma obra de televisão com o título genérico "PP".

10. O programa em causa foi originariamente criado em Inglaterra em …, tendo sido transmitido no canal público "…", e adaptado em outros Países, pelo menos, outros 22, entre os quais, Espanha, Brasil, França, Estados Unidos da América.

11. No Reino Unido foi exibido durante cinco temporadas, no espaço de quatro a cinco anos, e nos EUA, foi exibido durante oito épocas, entre 2005 e 2013, e com cerca de 700 episódios produzidos e exibidos em todo o mundo.

12. Programa relativamente ao qual a Requerida "GG" já exibiu os episódios n°s 1 e 2, nos dias … e … de Janeiro de 2018, respectivamente, entre as 21h30m e as 22h45m, tendo obtido um share de audiência de cerca de 25% e 27%, respectivamente, equivalente a um milhão e duzentos e cinquenta mil espectadores, quanto ao episódio n°2.

13. De acordo com a Requerida "GG" na divulgação que transmite, a ideia deste programa, é mostrar ao público como impor a disciplina e regras às crianças.

14. O formato do programa, segundo a requerida GG, denomina-se um "documentário da realidade/reality doc", porque documenta a realidade.

15. Para os fins indicados em 13., uma "…"- a qual pode ser uma psicóloga, "coacher", terapeuta, ou educadora - varia de país para país a formação de base da mesma e a sua denominação - ajuda os progenitores a estabelecerem regras e limites e a melhorarem a comunicação entre todos, com vista a criar uma dinâmica familiar mais saudável.

16. O lema genérico apresentado pela Requerida "GG", quer na televisão, quer na internet, "é o de ajudar as famílias portuguesas a ser mais felizes!".

17. Objectivo que visa estender-se a todas as famílias que se encontram a assistir ao programa de televisão, difundido quer pelo canal de televisão, quer através de sítios internet, redes sociais, canais que disponibilizem streaming de vídeo como o youtube e afins.

18. No âmbito da actividade de angariação de pessoas ("casting") que pudessem ser seleccionados para participar no programa, era apresentado, pela Requerida HH o seguinte texto:

"Venho por este meio em representação da produtora de televisão HH pedir o vosso apoio num projecto feito por famílias e dirigido às famílias. Com efeito gostaríamos de poder contar com a vossa instituição na sinalização de famílias interessadas (com mais do que uma criança) em participar neste programa de enorme importância social para que posteriormente as possamos conhecer. De modo a facilitar e transmitir uma melhor compreensão do âmbito do programa, seguem as linhas fundamentais de divulgação:

Falta-lhe energia para acompanhar os seus filhos?

Os seus filhos tiram-lhe o sono?

Têm sempre resposta na ponta da língua?

Conseguem deixar pai e mãe com os cabelos de pé?

As birras dos seus filhos dão-lhe vontade de fugir?

Tem em casa adolescentes que estão zangados com o mundo?

Já não sabe o que fazer para recuperar a paz?

Revê-se nalguns destes dilemas? Então temos o desafio perfeito para si e para a sua família...

A HH está a preparar um novo projeto e está à procura de famílias: das pequenas às numerosas, passando pelas da cidade e do campo, as monoparentais, as tradicionais ou até novas famílias.

Famílias que discutem e que fazem as pazes, que riem e que choram, que se divertem e se zangam. Todas cabem neste novo formato, que promete surpreender.

Em cada episódio, a nossa especialista em educação, responde ao apelo e uma família.

O objetivo deste programa é dar às famílias portuguesas ferramentas que precisam para recuperar a harmonia familiar, sendo a solução perfeita para pais e mães desejoso de ter aqueles momentos de tranquilidade que já viveram".

19. Os menores QQ, BB, CC, DD, EE e FF, e os seus progenitores, II, KK e LL, MM e NN, foram seleccionados para participar na primeira série de oito episódios do programa.

20. Para formalizar a participação no programa, a HH disponibilizou aos progenitores, aqui requeridos, um documento intitulado "acordo de participação", cujo conteúdo e clausulado se encontrava previamente predefinido pela mesma, bastando aos progenitores preencher os dados da identificação e assinar.

21. O denominado "acordo de participação" estabelece a aquisição por parte da HH dos direitos de imagem e propriedade intelectual dos pais das crianças, que por sua vez os cedem, mediante o pagamento de uma contrapartida de €1.000,00 (mil euros) por acordo celebrado, pagos em dinheiro ou mediante a entrega de cartão "…", o qual permitia aquisições nas lojas aderentes, até ao limite dos mil euros.

22. O acordo prevê e estabelece que o período de gravações para a exibição de um episódio da série "PP" implica oito a dez dias de disponibilidade.

23. A participação no programa pela Requerida II e por Ana Paula Mateus, foi formalizada através do documento denominado de "Acordo de Participação", cujas cópias se encontram juntas aos autos, em suporte físico, a fls. 88 verso a 91 verso, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

24. É disponibilizado aos participantes no programa o documento denominado "Autorização para a utilização do direito à imagem", onde consta, além do mais, que a utilização do direito à imagem é "sem qualquer limitação temporal ou territorial na difusão televisiva e comunicação pública do Programa e/ou promoção do mesmo", bem como que autorizam a HH a "incluir a gravação no programa e a fazer a sua posterior exploração, através de reprodução, distribuição, comunicação pública (incluindo a televisão) disponibilizado por qualquer meio de transmissão incluindo streaming ou download. (...) todas as autorizações concedidas são para todo o mundo e para o prazo máximo permitido por lei. (..) Esta autorização também se estende a quaisquer outras pessoas ou entidades que sejam autorizadas, directa ou indirectamente pela HH a utilizar e /ou difundir todo ou parte do Programa", bem como que a autorização concedida configura (...) uma limitação da reserva sobre a intimidade da minha vida privada", cujas cópias se encontram juntas aos autos, em suporte físico, a fls. 70 a 84 e que aqui se dá por integralmente reproduzidos.

25. No caso das crianças e jovens, a referida autorização é dada a assinar aos pais, enquanto seus representantes legais, nos termos e para os efeitos do disposto no art° 124° do Código Civil, acrescentando a HH que "(...) o retratado foi consultado sobre a sua participação no programa, não tendo expressado qualquer objecção".

26. Na publicidade que antecede a exibição do episódio n° 1, ouve-se uma voz em off a dizer que: "pela primeira vez a PP enfrenta o furacão QQ", e "com apenas … anos é ela quem manda em casa", a mãe já não sabe como dominar a tormenta em que se tornou o seu dia-a-dia", "a PP é chamada porque a mãe perdeu o controlo da educação da filha", e ouve-se a mãe da QQ, II dizer que "quando a filha é contrariada, pode-se dizer que se transforma numa verdadeira diabinha".

27. Na publicidade que antecede a exibição do episódio n° 2, ouve-se voz em off a dizer: "quando uma família é refém de um pequeno ditador", reportando-se ao menor BB.

28. Ainda, foram exibidos teasers -publicidade - dos episódios 1, 2 e 3, onde se salienta que a educação dos filhos é responsabilidade dos pais, mas que estes não estão sozinhos, mencionam-se os problemas das famílias com crianças desobedientes, pais sem autoridade, famílias em apuros, e além de visualização de algumas cenas de conflitos das crianças, mas também alguns momentos de tranquilidade e ternura, designadamente no episódio 1, onde se vê a menor QQ ao colo da mãe e a ser beijada pela mesma.

29. Noutro teaser, vê-se a PP a identificar os problemas das famílias: birras, desobediências, uso excessivo de tecnologias, dizendo (reportando-se às famílias "em apuros") para estabelecer as regras, cumprir o que promete, e seguir os conselhos da PP.

30. Quanto ao teaser/promo do episódio 1, ouve-se a voz em off dizer que a QQ é um "pesadelo dentro de casa" e que a II (mãe) desespera, birras a toda a hora, indisciplina, violência, "claramente quem manda aqui é a filha", "esta família enfrenta o caos".

31. Nos teasers do episódio 2, nos mesmos além de exibidas as birras do BB e da CC, também se visualizam as actividades propostas pela PP com a CC e o apelo dos pais para encontrarem harmonia familiar.

32. No dia … de Janeiro de 2018, entre as 21h30m e as 22h45m, foi exibido o primeiro episódio da "PP" com o conteúdo que consta dos suportes (pen e vídeo) juntos aos autos, designadamente:

"Vemos a mãe, e também a avó, a contar quais as dificuldades no comportamento da filha/neta, que identificam como não as sabendo resolver, lidar com elas, e com base nas quais a mãe pede a ajuda à "PP", e vamos vendo imagens que ilustram esses mesmos comportamentos; segue-se a apresentação da "PP", a qual passa a mensagem de que não são as crianças que devem ser responsabilizadas pelos seus comportamentos, mas sim os seus pais, e que devem existir regras, diálogos e muito amor para que uma família seja equilibrada;

A "PP" fala com a mãe sobre a filha, QQ, dizendo que gostou muito da mesma mas que ela tem atitudes de "tirana" para com a mãe;

No dia seguinte, chega a PP a casa da QQ.

A mãe da QQ tenta que esta arrume brinquedos, sem sucesso. A mãe da QQ explica que, desde muito pequena, esta funcionava na base da chantagem, e vê-se a mãe a aplicar a mesma para que a filha proceda à arrumação de brinquedo.

A PP explica que a chantagem não é uma boa técnica porque a criança à segunda ou terceira vez já não vai aderir à mesma.

Vê-se a QQ em cima da cama (seu quarto) a vestir-se, e encontrando-se desnudada da cintura para baixo, foi feita a aplicação de filtro sobre essa parte do corpo.

Vê-se a QQ a dar uma palmada na perna da mãe, quando sentada ao colo da mãe, que a está a pentear.

Vê-se a QQ a choramingar e a pedir para ir para o quarto, bem como a QQ enervada, a choramingar, a recusar-se ir para o banho, e depois, já no banho, a visualização apenas das costas da mãe ao pé da cabine de duche a dar banho à QQ; sai com a mesma embrulhada em toalha, onde apenas se vê os joelhos e pernas abaixo do joelho; a seguir vê-se a QQ a adormecer ao lado da mãe a ver televisão; e a mãe a levá-la ao colo para o quarto; a QQ acorda quando chega ao quarto, e começa a choramingar e a pedir para voltar a ver televisão, a mãe perante a atitude da filha dá-lhe duas palmadas que se percebe não serem fortes, de forma a dissuadir a QQ, tendo esta ripostado igualmente. A QQ pede colo à mãe. Em toda a situação, o quarto está na penumbra, pois era hora da QQ ir dormir. A QQ consegue fazer com que a mãe a leve para o seu quarto.

Após breve intervalo, a PP fala com a mãe e avó da QQ, a fim de lhes apresentar o ponto da situação, o que entende estar errado na dinâmica familiar e o que deverá ser adoptado com vista à correcção.

Para ilustrar as situações a corrigir, a PP mostra as imagens gravadas, sobre as situações a corrigir, e dá a sua indicação sobre a situação, quanto ao que está errado, concluindo que não há respeito e regras, e que as regras são necessárias para o bem da QQ. A PP diz que sobre a QQ "ela vai-se tornar numa tirana", se não lhe forem impostas regras. A própria mãe desabafa que são palavras muito fortes para chamar à filha, uma criança com … anos de idade, mas que é verdade.

A PP fala sobre a punição fisica, no sentido de que a mesma não faz a criança interiorizar a regra, só resolvendo a situação no momento, concluindo que a palmada deve ser sempre evitada, porque humilha a criança, diminui a auto-estima.

Fala sobre as atitudes da avó para com a neta e a desautorização que a mesma faz sobre a educação que a mãe tenta transmitir à QQ.

Após a identificação dos problemas, propõe como corrigir os mesmos.

Numa terceira parte, vemos a PP a introduzir na família as técnicas para ajudar nos comportamentos da QQ, como o estabelecimento de rotinas, que sendo executadas também pela QQ, com colocação de imans no frigorifico identificativas do que a QQ deve fazer, e do que não deve fazer. É explicado à QQ que por cada quadro completo de tarefas, recebe dois "smiles", que irão para uma caixa em forma de ursinho, a qual, quando completa, dá direito a que a QQ receba uma recompensa da mãe.

É também explicado à QQ se não cumprir uma regra a mãe dá um aviso de que se não cumprir a regra, terá de ir para o "banquinho da pausa", e que como tem … anos, fica sete minutos no mesmo. O banco encontra-se colocado nas escadas, canto de patamar das mesmas. Ainda, que quando sair do banco, tem de dar um beijinho à mãe e pedir-lhe desculpa.

A QQ ao ouvir a explicação, dá um beijinho na mão da mãe.

É também explicado que cada vez que tome banho, sem birras, é colocado um íman de um sapinho num quadro colocado na casa-de-banho e quando não o faz, a colocação de uma cruz.

A PP dá um pijama de presente à QQ, que fica muito feliz e o veste por cima de roupa que já tinha vestida.

Após, vê-se a QQ a pôr a mesa, e a jantar com a mãe a conseguir comer a sopa sozinha, no que é elogiada pela mãe.

A QQ vestiu o pijama sozinha e lavou os dentes.

Porém, na hora de ir deitar, QQ não obedece à mãe, esta faz o aviso e coloca-a no "banquinho da pausa". A QQ chora, agarrada à mãe dizendo que não quer ir para o banco. A QQ quando é deixada sozinha no banco, aproveita e sai e corre para o quarto. A mãe vai buscar a QQ e a PP ao lado, tentam falar com a criança, que a choramingar chama ambas de estúpidas, a mãe diz que ela é mal educada, a QQ diz à PP que ela não manda nela, retorquindo aquela que manda a mãe. A QQ volta a ser colocada, pela mãe, no banco. Volta a sair e dá uma palmada na mãe, quando esta está de costas. A mãe volta a ir buscar a QQ ao quarto e a colocá-la no banco, a qual fica a chorar enquanto permanece os sete minutos no banco.

A PP conforta a mãe, que chora, ambas sentadas no sofá da sala, no R/C, e depois na cozinha, enquanto decorrem os sete minutos e a QQ vai choramingando no "banquinho da pausa".

Após os sete minutos, a QQ dá o beijinho à mãe e vai deitar-se. Ao aconchegar a filha na cama, a mãe diz que adora a filha e esta também retribui. No dia seguinte, a PP regressa e vê-se a QQ a cumprir as tarefas. Novo plano, desta vez só com a PP e a mãe e a avó da QQ, as questões da rigidez da filha e a desautorização da avó. A PP frisa que a avó não deve desautorizar a filha na educação da neta.

Nova sequência, em casa da QQ, e vê-se a mesma a colaborar nas tarefas. Porém, ao almoço a QQ ao não colaborar na tarefa de pôr a mesa, a mãe coloca-o no banco da pausa, e a QQ dá palmada à mãe quando esta vira costas. A mãe vai buscar a QQ para o banco, e a mesma choraminga mas ficou no banco sete minutos. No final dá o beijinho à mãe e pede-lhe desculpa, com ar apaziguado.

Passados alguns dias, vêem-se planos de segundos da QQ nas suas rotinas, a colaborar mais com a mãe.

Na última parte, joga-se o jogo da confiança em espaço exterior. A mãe conclui que a experiência fez a QQ mudar".

33. No dia 21 de Janeiro de 2018, entre as 21h30m e as 22h45m, foi exibido o segundo episódio da "PP" com o conteúdo que consta dos suportes (pen e vídeo) junto aos autos, designadamente:

"Vêem-se os menores BB, de … anos, e CC, de … anos, sobretudo o BB, na sua casa, a gritar, dar pontapés e a chamar estúpidos no decorrer das tentativas de realização de rotinas quotidianas, com a sua mãe, e a jovem CC, a chamar "parvalhona" à mãe, e a exasperar-se à mesa na refeição.

A mãe fala sobre os filhos, na primeira parte do episódio, vê-se o BB a gritar à mesa, a espernear para ir para o banho e bem assim a recusar-se a sair de manhã da sua cama, do seu quarto, o qual partilha com a sua irmã, com a mãe a tentar puxá-lo para fora da cama. A parte em que a mãe tenta que ele vá para o banho, corta-se quando a mãe vai tirar-lhe a parte de baixo do pijama. Vê-se o BB na hora da refeição, a deixar-se cair para o chão, bem como o BB com a irmã, esta a não conseguir que o mesmo colabore em tarefas, e a discutirem, o BB a atirar-se para cima da irmã e esta a dar-lhe um pequeno empurrão, de volta para a cama, sendo as imagens alternadas com o pai a falar sobre a situação.

Depois das imagens que identificam as situações que levaram os pais a querer participar no programa, ternos a apresentação da PP nos mesmos moldes do episódio n° 1.

A PP chega a casa e conhece as crianças. A mãe tenta levar o BB para o banho, no que o mesmo recusa, porque quer continuar a ver a televisão, levando a que a mãe vá levando empurrado o BB para o banho, sempre com este a espernear e a gritar, e já na casa de banho, vai despindo o filho, contrariado, que se encontra no chão, sobre o tapete, vendo-se o BB com o tronco despido, a cena é intercalada com colocação de imagem da PP a descrever a situação, e vendo-se ainda o BB deitado no tapete da casa de banho, numa imagem a preto e branco.

Após, vêm-se de costas a mãe e a irmã do BB a darem-lhe banho. O menor nunca é visualizado no banho, vendo-se apenas por alguns momentos a cabeça e um pouco do pescoço do menor. A criança contrariada no banho, vai gritando "és estúpida". No final, vê-se o BB ao colo da mãe e enrolado numa toalha, vendo-se apenas um pouco das pernas do BB e a PP ajuda a retirar a mão deste do cabelo da mãe. Apenas quando a mãe sai da casa de banho se vê por breves momentos, parte do tronco nú do BB.

Quando o pai chega a casa consegue vestir o BB mas recusa-se a contar ao pai o que sucedeu na casa de banho. A mãe conta ao pai o que se passou. A mãe diz ao BB que fica de castigo sem ver televisão dois dias. O pai veste o roupão ao filho e diz-lhe que se se portar bem ao jantar a mãe reduz o castigo. A PP identifica o problema de falta de sintonia de pai e mãe das crianças como sendo prejudicial ao exercício da sua parentalidade.

No jantar, vê-se o BB a dar uma "cuspidela" quando lhe é dada urna colher de sopa, no sentido da sua rejeição.

Na segunda fase, a PP fala com os pais sobre os problemas que identificou nas rotinas da família.

Para tanto vai mostrando imagens aos pais e é chamada a atenção à mãe sobre o seu tom de voz, e por também gritar.

A PP chama a atenção aos pais de que a agressividade não é a solução. Numa terceira parte, a PP chega a casa e explica primeiro que os pais devem registar num quadro as rotinas, com partilha de tarefas entre o pai e a mãe, as rotinas são apresentadas aos filhos, e quanto ao BB é proposto o mesmo método de cumprimento de tarefas, e quando não realizadas, as consequências são o "tapete da pausa"(com o logotipo da PP), por cinco minutos, dado ter cinco anos, e no final tem que pedir desculpa e dar um beijinho aos pais.

Na parte seguinte, e direccionada à CC, a "PP" dá uma máquina fotográfica para tirar fotografias à sua família, a PP fala com a CC, sobre ser amiga e paciente com o irmão, e saber respeitar os pais, e de seguida a CC afixa as fotografias que tirou à família no quarto ao pé da sua cama.

Na parte seguinte, e no dia seguinte, retorna a PP, as crianças começam a colaborar na implementação das rotinas, a CC recusa-se a aspirar, e vai para o quarto, espaço de estudo, varanda fechada contígua ao quarto, partilhado com o irmão, e a PP aconselha a mãe a dar-lhe uns minutos para se acalmar.

A PP passado algum tempo, vai falar com a menor CC sobre a situação, em tom pausado, calmo, ouvindo ainda o que a menor lhe diz, CC vai choramingando, mas nunca é mostrado o seu rosto, só de costas.

Quando o BB não obedece a uma tarefa, e de pois de o ter avisado, a mãe leva-o para o "tapete da pausa", no que se revelou impossível, perante a constante recusa gesticulada do menor, vindo este a tentar dar dois pontapés na cabeça da mãe, porque sentado no chão com a mãe reclinada sobre si, levando a que a PP para evitar mais situações de agressividade, chamasse o pai, para acalmar o BB.

O BB acabou por sentar-se por ele próprio no tapete e ficou no mesmo os cinco minutos estipulados.

Vê-se ainda o pai a falar calmamente com o filho.

O BB pede desculpa e abraça a mãe.

A PP inventiva a CC a escrever urna carta à mãe sobre aquilo que gostaria de dizer à mãe. A jovem adere bem à proposta.

No dia seguinte a PP leva a família a passear, e propõe ao pai e ao filho fazerem uma experiencia no "Science4you" e a mãe a filha a irem passear e a CC entregar a carta que escreveu à mãe. A CC fala com a mãe e emociona-se, dizendo-lhe, essencialmente, que gostaria que a mãe lhe desse mais liberdade, para fazer mais coisas com as suas amigas. A CC feliz diz que há muito tempo não sentia um carinho da mãe.

A CC sente que a ciência é um tema de aproximação com o seu irmão.

No dia seguinte, a PP retorna à casa, a mãe diz que as coisas estão a correr muito bem, melhor do que pensava no início, e vêem-se trocas intensas carinho entre a mãe e a filha, a mãe diz que se sente muito feliz. Vêem-se as crianças a colaborar nas rotinas e a CC a dizer que as rotinas estão muito melhor, e o BB a dizer que a mãe já não precisa de gritar "porque me porto bem".

Vê-se o BB, na cozinha, a reconhecer que num dia não se portou bem. Duas semanas depois, a PP vê-se no exterior, no jardim zoológico, com a família, para estarem juntos, dizendo-lhes que está muito orgulhosa de todos, e o pai emociona-se ao dizê-lo".

34. Foi igualmente produzido, e encontrava-se pronto para ser exibido no dia … de Janeiro de 2018, o terceiro episódio, no qual intervieram os menores DD, com … anos de idade, EE, com … anos de idade, e FF, com um … de idade, nos termos decorrentes do vídeo do episódio n°3, com trilha sonora, junto aos autos pela requerida GG, designadamente:

"Apresentação da família, EE … anos, DD, …, FF, …, MM, mãe, NN, pai da FF, actual companheiro da mãe MM, visualiza-se a família em actividades exteriores de lazer — praia (surf), skate park.

A mãe explica que os filhos são muito parecidos fisicamente mas muito diferentes em feitio e que ou estão a brincar muito bem um com o outro ou se "pegam por tudo e mais alguma coisa".

Os pais falam sobre as características de cada filho, salientando que os interesses são diferentes (EE prefere o surf) e que o DD, o qual prefere o Skateboard, é urna criança com maturidade acima da média para a idade dele (6 anos).

Paralelamente às imagens da mãe e do seu companheiro sobre os problemas que sentem com o EE e o DD, vão sendo passadas imagens em vários locais — da casa, no veículo automóvel, na praia - onde por breves segundos se vêm os irmãos a desentenderem-se sobre algum assunto ou o EE aborrecido a choramingar e a reclamar sobre alguma situação.

Segunda parte, vê-se a PP a chegar a casa da família, onde é apresentada à mesma, na sala.

A seguir a família (e a PP) saem para um skate park. A mãe e a PP vão falando sobre o EE, e as imagens vão sendo intercaladas com outras do EE e do DD a praticar skate no parque. Vê-se o EE a trocar argumentos com a mãe e o companheiro desta sobre o facto de não gostar de andar de Skate e do irmão não se empenhar no surf, actividade que ele gosta. A PP fala que o EE está sempre zangado, que salta mais à vista e que quando é contrariado ameaça com birra ou faz a mesma. Ouve-se o EE dizer no veículo que os pais "mentiram" (ao não irem almoçar em restaurante).

Já em casa, a família prepara a refeição do almoço, o EE irritado vai "resmungando"

Os irmãos vão lavar as mãos para o almoço e irritam-se um com o outro, e o EE dá um pequeno pontapé no pé e perna do irmão.

A PP analisa que o EE pensa que os pais permitem ao DD determinadas situações, comportamentos, que a ele não lhe permitem.

A PP volta no dia seguinte e começa por dizer que têm uma "família linda".

Vai mostrando imagens dizendo que os irmãos têm mais tempo com o NN, e que a mãe não divide o seu tempo com os três filhos, mas mais com a FF.

A mãe não aceita bem o que ouve sobre a repartição do tempo com os seus filhos.

A PP chama a atenção de que o EE está a precisar da atenção privilegiada da mãe, que não lida bem com a frustração.

A PP explica que é necessário atitude mais assertiva, de autoridade, não autoritário, do NN com o EE.

Na terceira parte, a PP identifica quais os pontos nos quais têm de melhorar — colaborar nas tarefas. Também indica para a Mãe ter um tempo privilegiado para o DD e outro para o BB.

Indica também regras para os filhos e são colocados imanes com os comportamentos correctos/regras no frigorifico. Cada um recebe uma peça de um puzzle à medida que cumprem as regras, podendo depois escolher uma recompensa, quando o puzzle fica completo.

É apresentado o "banquinho da pausa", que está na sala. Explicado que quando termina, dão um beijinho, e pedem desculpa.

Se são os dois irmãos a portar-se mal, vão os dois para o banquinho, existindo dois bancos.

A PP fala sobre as discussões acerca das actividades de lazer. Apresenta um cubo com os rostos de cada membro da família, a fim de ajudar a determinar quem decide qual a actividade que vão praticar, quando há desacordo.

A PP regressa no dia seguinte. E sugere actividade do EE com a mãe, e os dois no quarto vêm no computador fotografias do EE em bébé, no que este fica contente. A mãe coloca autocolantes com adjectivos positivos para o EE, porque a PP indicou que o mesmo tinha pouca auto-estima. O EE declara que gostou muito do momento a sós com a mãe. Subsequentemente, vêm-se os irmãos a jogar snooker, e na sala de estar, a PP explica o reforço positivo, o elogio quando executa uma tarefa. Os filhos vão brincando na sala, sem atritos, enquanto a mãe a PP falam. Numa fase subsequente, à hora da refeição, num restaurante, a PP questiona o facto de levarem brinquedos, livros, para a mesa da refeição.

Quando a mãe diz ao EE que terá de fazer os trabalhos de casa nessa tarde, o mesmo contesta e diz que não os quer fazer naquele dia. A mãe avisa que se não obedecer, terá de ir para o banco do castigo.

No regresso a casa, quando a mãe questiona o EE, que se encontra na sala de estar com o irmão, o mesmo acata e faz os mesmos.

Num momento seguinte, quando a mãe desfia a família para fazerem um jogo em família, os filhos não querem. O EE por contestar, foi avisado sobre o banco da pausa, colocado numa zona mais reservada da sala, o mesmo foi para o banco e ficou lá oito minutos. Quando terminou reconhecer que tinha desobedecido à mãe, pediu desculpa e deu um beijinho à mãe.

E foram todos para a sala jogar em família.

Depois vão os rapazes com o NN fazer um bolo na cozinha, e os dois envolvem-se sem conflito na tarefa.

No dia seguinte, na sala de estar, vêm-se os filhos a obedecerem ao indicado pela mãe, quanto a arrumação, por a mesa, e decidem a actividade de lazer recorrendo ao cubo para desempatar, indo à pesca, porque todos gostavam. A actividade correu bem, e a PP deixa a família.

Passados alguns dias, a PP regressa, e vêem-se os rapazes com a família nos espaços de lazer da casa.

A mãe vai almoçar num restaurante só com o EE, e este está feliz com a situação.

A PP regressa e fala com a mãe e o companheiro, e ambos concluem que tudo está melhor.

Ambos os filhos dizem que gostaram de ter a PP em casa e que vão ter saudades. O programa termina".

35. Em consequência da exibição do programa n.° 1, foi instaurado pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de … processo de promoção e protecção em benefício de QQ, no âmbito do qual foi determinada a aplicação da medida de apoio junto dos pais, e de entre os compromissos assumidos consta a limitação quanto ao exercício das responsabilidades parentais no que se refere à cedência do direito de imagem da QQ — documento de fls 97/98, cujo teor integral se dá por reproduzido.

36. No que concerne ao arrependimento, quanto à participação da filha no programa, clarificou a mãe, a aqui requerida II, que o mesmo (arrependimento) se circunscreveu apenas ao facto de não ter tomado consciência de estar a praticar um acto ilícito, quanto à exposição da filha no programa, "porquanto não se arrependeu, nem arrepende, de ter participado, com a sua filha, no programa".

37. A Requerida "GG" foi advertida pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de … da pendência do processo de promoção e protecção a favor da QQ e, consequentemente, para retirar de exibição os conteúdos gravados do primeiro episódio da série, tendo declarado não reconhecer legitimidade à Comissão para a interpelação, conforme documento cuja se encontra junta aos autos, em suporte fisico, a fls. 85 verso e 86, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

38. Em consequência da exibição do programa n.° 2, foi instaurado pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) processo de promoção e protecção em benefício dos menores BB e CC, da área da sua residência, o qual deu origem a acção de promoção e protecção a favor destes menores (fls 302 e 303), devido ao facto de os pais mão terem consentido na intervenção da CPCJ.

39. Em consequência da notícia de que haviam participado no programa, foi instaurado pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens processo de promoção e protecção em benefício dos menores EE e DD, da área da sua residência, tendo o processo transitado para o Tribunal face à recusa em prestar o consentimento por parte dos progenitores — fls 296.

40. Em Março de 2016, a Comissão de Ética da Ordem dos Psicólogos Portugueses, emitiu o parecer, sobre a alegada prática de psicologia nos media", cuja cópia se encontra junta aos autos, em suporte fisico, a fls. 99 a 101, que aqui se dá por integralmente reproduzido, nos termos do qual: "Este parecer não visa arbitrar nenhuma questão concreta, mas apenas pronunciar-se sobre algumas questões genéricas tidas como relevantes para a boa prática da psicologia. Dada a natureza da intervenção psicológica, a sua aparição no espaço mediático não é adequada, devendo limitar-se a considerações genéricas e não adaptadas a casos particulares"... "A exposição pública de clientes não pode, de forma alguma, ser considerada no melhor interesse destes; O espaço público mediático não pode ser considerado como um setting adequado para a intervenção psicológica" "Deve ficar claro que a intervenção psicológica não deve ser associada a programas onde se exponham publicamente casos particulares. Qualquer profissional de psicologia que intervenha neste contexto deve explicitar que não está a levar a cabo qualquer tipo de intervenção psicológica".

41. Ainda, a Ordem dos Psicólogos, em Janeiro de 2018, emitiu o Parecer da OPP sobre "O Impacto da Exposição de Crianças e Jovens em Programas com Formato de Reality Show", nos termos do qual aborda a falta de consentimento informado, a violação da privacidade, a exploração de uma imagem negativa da criança, o sofrimento psicológico, a interferência na relação com os outros, as repercussões na audiência e no público, concluindo que: "Resta claro que, não existindo evidência científica que suporte como sendo positiva a exploração de crianças e jovens em programas de reality show e, pelo contrário, existindo riscos associados a essa exposição, a OPP considera que é lógico que tal exposição não deva ocorrer" — fls 153 a 157, cujo teor integral se dá por reproduzido.

42. A Ordem dos Advogados, através da Comissão dos Direitos Humanos emitiu o parecer, de 22.1.2018, cuja cópia se encontra junta aos autos, em suporte físico, a fls. 102 que aqui se dá por integralmente reproduzido, nos termos do qual refere que "...representa uma violação desproporcionada dos direitos de personalidade dos menores, em especial, do seu direito à reserva da intimidade da vida privada; ... o receio evidente é que a restrição desmedida dos direitos daqueles menores, através da divulgação televisiva dos seus comportamentos, venha ainda a transformar as crianças em vítimas de incompreensão e segregação social nos seus ambientes sociais de eleição".

43. A Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens alertou publicamente para o "elevado risco" do programa porquanto "viola os direitos das crianças, designadamente o direito à sua imagem, à reserva da sua vida privada e à sua intimidade".

44. O Instituto de apoio à Criança e da UNICEF apontaram para as violações dos direitos das crianças como o direito à imagem, reserva da vida privada e intimidade dos menores envolvidos.

45. A personagem da PP, nos episódios n°s 1, 2 e 3, é desempenhada por RR, a qual é licenciada em …., tendo concluído o Mestrado em … e, ainda, o Doutoramento em …., nas faculdades de Psicologia de … e de ….

46. RR, no programa PP, é apelidada de educadora "…".

47. A disponibilidade exigida pela HH para a gravação do programa "PP" não implica qualquer alteração ou prejuízo para as rotinas das crianças, uma vez que as filmagens ocorrem fora do horário escolar.

48. Pelo menos a menor QQ, com … anos de idade, e os menores BB, com … anos, e …., com …, foram informados sobre o programa em causa e sobre a sua participação no mesmo, tendo estado presentes na reunião que teve lugar nas suas casas, entre a produtora HH e os seus progenitores, tendo a CC, dado o seu consentimento verbal, para a participação no programa.

49. As estratégias apresentadas pela PP são replicadas do formato internacional do programa, para o qual existe uma denominada "bíblia" de procedimentos.

50. As estratégias apresentadas pela PP, para a correcção dos comportamentos das crianças, conhecidas como "banquinho da pausa", "token", "reforço positivo", são técnicas comportamentais, aprendidas dos educadores, pedagogos, mas também se utilizam em psicologia e são utilizadas cm ambiente escolar.

51. Nenhuma das crianças que participaram nos episódios já emitidos — concretamente, a QQ, o BB e a CC — foram alvo de qualquer tipo de bullying, discriminação ou segregação na escola ou no seu ambiente familiar após a exibição do programa.

52. Tendo as referidas crianças sido bem recebidas e acolhidas nas escolas que frequentam.

53. No processo de identificação e selecção das famílias em causa, os responsáveis parentais foram aconselhados a ver online episódios do mesmo, nomeadamente no endereço www.youtube.com, onde se encontram disponíveis vários exemplos (e.g., de episódios no formato inglês, norte-americano e brasileiro).

54. Por orientação da "Bíblia" dos procedimentos do formato internacional do programa, existe uma equipa de pesquisa, que se informa sobre os problemas que são identificados pelos pais de cada criança, excluindo a referida equipa crianças que possam apresentar qualquer patologia, diagnóstico psicológico ou psiquiátrico, ou crianças de algum modo referenciadas ou em risco.

55. É feito um acompanhamento durante e depois das gravações e emissão do programa, através de contactos, sempre que tal se revele necessário.

56. Tendo a produção do programa ao dispor das crianças e dos pais, se necessário, uma psicóloga, identificada como SS.

57. A qual também dava parecer sobre as famílias que se candidatavam, de modo a evitar a participação de crianças que pudessem ter problemas clínicos ou psicológicos de qualquer índole, e, ainda, a poder dar acompanhamento, se necessário, às crianças e pais, no final do programa, caso tal se revelasse necessário

58. No programa, a "PP" aconselha os pais de acordo com as questões que vão sendo apresentadas, não fazendo qualquer tipo de diagnóstico ou aconselhamento psicológico nas gravações.

59. As regras sugeridas pela "PP" incluem a adopção de bons comportamentos nas relações familiares, sendo excluídos e desaconselhados quaisquer comportamentos que acarretem qualquer tipo de violência.

60. É realizado um período de observação, que dura 3 (três) a 4 (quatro) dias, e que pretende captar, a rotina e os comportamentos familiares.

61. A estrutura do formato passa por:

a) um teaser, gravado antes da "PP" chegar, e no qual podem ser aproveitadas gravações do período de observação;

b) um genérico, que consiste na apresentação da família, gravado antes da chegada da "PP";

c) uma entrevista geral da família, também gravada antes da chegada da "PP";

d) a chegada da "PP", em que são filmados vários planos da "PP" enquanto a mesma se dirige à cada da família e bate à porta;

e) a observação do comportamento das crianças e pais pela "PP" durante um dia, sendo o objectivo a observação de todos os aspectos da rotina diária da família, incluindo as horas das refeições, de ir para a cama e tomar banho e, bem assim, as regras e métodos de disciplina. Nesta fase, a "PP" tem uma intervenção passiva, não prestando nenhum conselho nem se envolvendo;

f) uma reunião familiar, apenas com os pais da criança. O objectivo desta reunião é a "PP" confrontar os pais e manifestar-se acerca dos comportamentos observados no dia anterior;

g) o início da supervisão da "PP", fase em que as novas regras e rotinas são entregues e em que a "PP" começa a lidar com os problemas da família, procurando contribuir para a reorganização do dia-a-dia e explicando as regras básicas a aplicar. Nesta fase, são explicadas cada uma das regras às crianças;

h) vivência com as novas regras e rotinas, que se consideram colocadas em prática a partir do momento em que são anunciadas e que são filmadas no quotidiano familiar;

i) a continuação dos ensinamentos, fase em que a "PP" dá alguns trabalhos de casa aos participantes do programa, que são previamente acordados entre esta e os pais. O objectivo é que cada membro da família tenha uma tarefa que possa pôr em prática durante a semana em que a "PP" está ausente;

j) a família sem a "PP", fase que corresponde à segunda semana e em que se capta o comportamento familiar, de modo a perceber se os conselhos e tarefas dadas pela "PP" estão a ser postos em prática, quer pelos pais, quer pelas crianças;

k) o regresso da "PP", sendo gravada a chegada e a reacção das crianças ao regresso da "PP";

l) uma reunião familiar, em que participam apenas os pais das crianças e que incide sobre a semana passada sem a "PP";

m) novas técnicas ou ajustes, fase em que se procede ao ajustamento ou reforço das técnicas anteriormente aconselhadas ou ao aconselhamento de novas regras com métodos mais avançados;

n) despedida da "PP", envolvendo todos os membros da família e, após o afastamento, a reação e expectativas da "PP" quanto ao desenrolar do processo. São também captadas reacções da família já dentro de casa.

62. O objectivo de todos os requeridos pais foi o de contribuir para melhorar o relacionamento dos mesmos com os seus filhos, ajudando-os a estabelecer regras e limites e melhorando a comunicação entre todos.

63. A II, mãe da QQ e a KK, mãe do BB e da CC ficaram satisfeitas com o resultado obtido da participação nos programas em que intervieram[3].

64. Decorre das observações feitas pelo Committee on the Rights of the Child das Nações Unidas que a aparição de crianças em reality shows televisivos pode constituir uma ingerência ilícita na sua privacidade (cf. p. 104 do documento n.° 11 junto com a Petição Inicial).

65. A exposição em público de dimensões da vida íntima dos menores retratados nos episódios 1 e 2 apresenta razoáveis riscos, da verificação de consequências negativas, no desenvolvimento da sua personalidade, a médio e longo prazo.

66. Bem como razoáveis riscos, a médio e longo prazo, quanto às consequências no ambiente escolar e na própria relação com a família, quanto à compreensão e aceitação da decisão dos pais de exporem num programa de televisão o seu ambiente familiar e problemas existentes no mesmo.

67. E, ainda, razoáveis riscos de verificação de fenómenos de bullying, a médio e longo prazo.

68. Foram obtidas, as seguintes autorizações/consentimentos e assinaturas, quanto ao episódio n°1:

- II, mãe, autorização mediante a assinatura do documento particular intitulado "Autorização para utilização de Direito de Imagem", assinado pela própria no dia 7 de Dezembro de 2017;

- TT, avó, autorização mediante a assinatura do documento particular intitulado "Autorização para utilização de Direito de Imagem", assinado pela própria no dia 7 de Dezembro de 2017;

- AA, menor, autorização mediante a assinatura do documento particular intitulado "Autorização para utilização de Direito de Imagem", assinado pelos seus legais representantes, a mãe II e o pai JJ, em sua representação, no dia 7 de Dezembro de 2017;

69. No caso da Família UU, participante no segundo episódio a utilização da imagem e voz:

- KK, mãe, autorização mediante a assinatura do documento particular intitulado "Autorização para utilização de Direito de Imagem", assinado pela própria no dia 14 de Dezembro de 2017;

- LL, pai, autorização mediante a assinatura do documento particular intitulado "Autorização para utilização de Direito de Imagem", assinado pelo próprio no dia 14 de Dezembro de 2017:

- CC, menor, filha, autorização, mediante a assinatura do documento particular intitulado "Autorização para utilização de Direito de Imagem", assinado pelos seus legais representantes, a mãe KK e o pai LL, em sua representação no dia 14 de Dezembro de 2017;

- BB, menor, filho, autorização mediante a assinatura do documento particular intitulado "Autorização para utilização de Direito de Imagem", assinado pelos seus legais representantes, a mãe KK e o pai LL, em sua representação, no dia 14 de Dezembro de 2017;

70. No caso da Família VV/G…, participante no terceiro episódio, que seria transmitido no dia … de Janeiro de 2018, a utilização da imagem e voz:

- MM, mãe, autorização mediante a assinatura do documento particular intitulado "Autorização para utilização de Direito de Imagem", assinado pela própria no dia 11 de Dezembro de 2017;

- NN, pai (da menor FF), autorização mediante a assinatura do documento particular intitulado "Autorização para utilização de Direito de Imagem", assinado pelo próprio no dia 11 de Dezembro de 2017;

- EE, menor, filho, autorização mediante a assinatura do documento particular intitulado "Autorização para utilização de Direito de Imagem", assinado pelos seus legais representantes, a Mãe MM e o Pai OO, em sua representação no dia 1 de Dezembro de 2017;

- DD, menor, filho, autorização, mediante a assinatura do documento particular intitulado "Autorização para utilização de Direito de Imagem", assinado pelos seus legais representantes, a Mãe MM e o Pai OO, em sua representação no dia 1 de Dezembro de 2017; - FF, menor, filha, autorização mediante a assinatura do documento particular intitulado "Autorização para utilização de Direito de Imagem", assinado pelos seus legais representantes, a Mãe MM e o Pai NN, em sua representação, no dia 1 de Dezembro de 2017.

71. A HH produziu o programa, devendo neste caso "produção" ser entendida como a realização de obra videográfica, incluído todos os meios técnicos e humanos necessários até à fixação desta em determinado suporte.

72. Informação pedagógica referente a BB, de fls 346, aqui dada por inteiramente reproduzida, e da qual resulta que o mesmo não apresentou qualquer situação anómala no que respeita ao seu desenvolvimento emocional, social e restantes áreas de desenvolvimento global, avaliadas em contexto de jardim de infância.

73. Informação escolar referente a AA, de fls 350, aqui dada por inteiramente reproduzida e da qual resulta que: "...que esta aluna tem revelado sempre um bom desempenho, com Muito Bom aproveitamento nas áreas disciplinares do currículo escolar. É uma aluna com bom comportamento, cumpridora, assídua, pontual, atenta e esforçada, com boas capacidades de aprendizagem, tendo uma boa relação com os seus pares, professores bem como com os restantes funcionários da escola. Não se verificou qualquer mudança no comportamento e aproveitamento após a exibição do programa em que a aluna participou".

74. Informação escolar referente a CC, de fls 356, 395/396, cujo teor integral se dá por reproduzido, e da qual decorre que: "...é assídua, pontual, cumpridora dos seus deveres escolares, ... apresenta um bom desempenho escolar. No final do 1° período foi proposta para o quadro de Honra por reunir os critérios neles estabelecidos. A aluna voluntaria-se e participa em vários projectos e concursos escolares, quer culturais, quer desportivos. Em todas as actividades onde se participa fá-la com gosto e elevado sentido de responsabilidade. Na sala de aula é bastante participativa e é oportuna em colocar as suas dúvidas. Encontra-se bem integrada na turma, respeita os colegas e disponibiliza-se sempre a ajudá-los. Relaciona-se bem com os adultos, abordando professores e funcionários com o devido respeito. (...) A CC sempre revelou este perfil, pelo que não se registaram quaisquer alterações no decurso do presente ano lectivo".

75. Por decisão transitada em julgado em 9.4.2018, e por referência ao processo de promoção e protecção, foi proferida sentença homologando o acordo de promoção e protecção em benefício dos menores BB e CC, concretamente a medida de apoio prevista pelo art° 39° da LPCJP, até ao final do ano lectivo de 2017/2018, entre as quais não expor os filhos a situações de devassa da sua vida privada — fls 516.

76. Quanto aos menores EE, DD, os autos de processo de promoção c protecção n° 42/18.0T8MFR, foram os mesmos arquivados, sem aplicação de medida, em audição dos pais e das crianças, por se concluir dos elementos de prova recolhidas que as crianças não estavam em perigo — fls 520 dos autos.

77. Em 07 de Dezembro de 2017, a progenitora e a avó materna da QQ assinaram, sem autorização ou conhecimento do requerido, o acordo de participação, e apenas aquando da assinatura do acordo de participação, a progenitora enviou um e-mail ao requerido com o documento que consistia numa declaração de onde este autorizava a participação da filha no programa.

78. Tendo sido informado pela mãe da menor que se tratava de um programa com uma vertente educacional com acompanhamento de uma psicóloga, tendo então acabado por assinar a referida declaração,

79. JJ, pai da menor AA, procedeu à notificação judicial avulsa das requeridas GG, S.A. e HH, S.L. - Sucursal em Portugal, onde declara, de forma expressa, o não consentimento nem autorização para a utilização de imagem e voz da sua filha, QQ, captadas aquando da participação da menor no programa PP, produzido por HH. TV Portugal e apresentado em território português pelo canal televisivo GG e revoga toda e qualquer eventual autorização e/ou consentimento para a utilização, por parte das requeridas da imagem e voz da menor QQ, tendo, para esse efeito, dado um prazo de 24 (vinte e quatro) horas, após a receção da notificação judicial avulsa, para que as requeridas suspendessem, apagassem, eliminassem, retirassem ou impedissem qualquer acto tendente à reprodução, exibição, difusão, divulgação, distribuição, transmissão ou utilização da imagem e voz da menor QQ, em todo território nacional e no exterior, por qualquer forma ou para qualquer propósito, por qualquer suporte conhecido ou desconhecido até à data, no todo ou em parte, nos termos já acima referenciados, e vindo as mesmas a serem notificadas em 08 de Fevereiro de 2018.

80. Em 25 de Janeiro de 2018, a Requerida MM e o pai dos menores EE e DD comunicaram formalmente essa sua posição tanto à Requerida GG, S.A. como à Requerida HH, S. L. - Sucursal em Portugal, tendo tais comunicações sido enviadas (e recebidas) ainda antes de ser conhecida dos Requeridos a existência da presente acção.

81. Teor integral da Deliberação da ERC/2018/93, de fls 530 a 536, aqui dadas por reproduzidas, nos termos da qual, se delibera recomendar à operadora GG que em futuros programas envolvendo a participação de menores:

1 - Ao obter o consentimento parental ou tutelar para a participação de menores em programas televisivos, descreva de forma detalhada e compreensível o teor de tais programas e os riscos, físicos, psíquicos e sociais associados, facultando de igual modo a informação de que tal consentimento é, nos termos da lei, a todo o tempo revogável;

2 - Ainda que obtido o consentimento, parental ou tutelar para a utilização da imagem dos menores e para a exposição da sua privacidade, assegure, em qualquer circunstância, que a exposição mediática das crianças preserve os aspectos invioláveis da sua intimidade e não se centre nos seus comportamentos problemáticos, de modo a não promover uma auto representação assente nos seus traços mais vulneráveis e eventualmente a sua estigmatização social. Desse modo, a ocultação dos elementos identitários da criança ou o alargamento da sua representação televisiva a aspectos da vida não ligados exclusivamente ao seu contexto familiar e/ou que possam dar uma imagem de si mais positiva e equilibrada, poderão ser suficientes para salvaguardar os direitos e valores em causa.

3 - Promova a informação, antes e após a exibição de cada programa, de que os processos pedagógicos propugnados não constituem método universal para as situações de conflitualidade familiar, sensibilizando os espectadores para diferentes formas de abordar o processo educativo e salientando a necessidade de recorrer ao acompanhamento especializado, adaptado a cada caso.

E são os seguintes os factos que dados como não provados:

6 - Petição Inicial:

- LI, linhas 3 e 4, da petição inicial, e quando relacionado com os menores em causa nos presentes autos, intervenientes nos episódios 1, 2 e 3, do programa, e por referência à actualidade.

- LIII, quando perspectivado na actualidade;

- LIV, quando perspectivado na actualidade;

- LV, 5, 6 e 7 linhas, LVI, linhas 3 e 4, da petição inicial, e quando relacionado com os menores em causa nos presentes autos, intervenientes nos episódios 1, 2 e 3, do programa, quanto actualidade, momento presente, definido este como o período de tempo que decorreu entre a exibição do programa e a realização do julgamento.

B) - Das contestações das requeridas GG e HH:

- A produção faz um trabalho de edição das imagens, tendo o cuidado de seleccionar momentos e imagens que não demonstrem de forma invasiva as rotinas familiares ou momentos de particular fragilidade — quanto aos episódios 1 e 2.

- (...) as Requeridas GG e HH, a produção leva a cabo um trabalho de edição das imagens, tendo o cuidado de seleccionar momentos e imagens que não demonstrem de forma invasiva as rotinas familiares ou momentos de particular privacidade.



O DIREITO

Sendo dois os grupos de alegações, um dos quais particularmente extenso, e, portanto, numerosos os problemas a apreciar, ordenar-se-ão as questões, não de forma cronológica (de acordo a ordem em que aparecem formuladas em cada um dos recursos), mas segundo a sua precedência lógica, começando, desde logo, por apreciar aquelas que são susceptíveis de prejudicar / afectar a apreciação das demais, ou seja, as nulidades do Acórdão recorrido invocadas pela ré / recorrente GG.


1. Das alegadas nulidades do Acórdão recorrido

Diga-se, antes de mais, que, em 14.03.2019, o Douto Tribunal recorrido se pronunciou, em Conferência, sobre todas e cada uma destas nulidades, tendo concluído que elas não se verificavam (fls 1173 e s.).


1.1. Da nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, porquanto a aplicação ao caso da Lei 105/2009, de 14.09, constitui decisão surpresa e viola o princípio do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, não tendo sido discutida antes e não tendo sido dada às partes o poder de se pronunciarem sobre a sua aplicação

Considerou o Tribunal a quo que esta nulidade não se verificava.

Não pondo em causa que o artigo 3.º, n.º 3, do CPC impõe “o dever o juiz facultar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre questões que tenha de decidir de modo surpreendente; isto é, sobre casos e acerca de questões em que as partes não poderiam, de todo, contar com aquela decisão”, o Tribunal advertiu para que “esse dever do juiz de 'audição complementar' e correspondente direito das partes, não é absoluto: está, desde logo, limitado quer pela letra da lei, quer pelo seu espírito[4], o que significava que nem toda a alteração do enquadramento legal dado pelas partes concita o dever de audição das partes ao abrigo daquela norma. Acrescia que, de acordo com o artigo 5.º, n.º 3, do CPC, consagrando o brocardo latino iura novit curia, “o tribunal não está sujeito às alegações das partes no que toca à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Ora, o entendimento vertido no acórdão que culminou com a consideração da ilicitude do 'consentimento' dado pelos pais dos menores, limitativo dos respectivos direitos de personalidade, limitou-se a efectivar a indagação da norma jurídica aplicável e na concretização dessa aplicação.

Sendo desnecessário acrescentar muita coisa aos argumentos já aduzidos pelo Tribunal a quo (a que se adere plenamente), confirma-se que a nulidade não se verifica e deixa-se só uma referência (paradigmática) ao Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 11.04.2019, onde se diz que “no âmbito de cada questão […] suscitada, não está o tribunal sujeito ao enquadramento normativo convocado pelas partes, competindo-lhe antes indagar, interpretar e aplicar as normas de direito que considere pertinentes e adequadas à resolução do litígio, como decorre, de forma lapidar, do disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC. Nem do ónus que recai sobre o recorrente, nos termos do artigo 639.º, n.º 2, do mesmo Código, de indicar as normas jurídicas tidas por violadas ou por aplicáveis resulta a vinculação do tribunal de recurso a tal indicação, mantendo a latitude de qualificação jurídica traçada no citado artigo 5.º, n.º 3[5].

Saliente-se, por último, que o funcionamento das regras e dos princípios delimitadores dos poderes de cognição do tribunal no processo especial de tutela da personalidade, como, aliás, em todos os processos de jurisdição contenciosa, deve ser entendido sem excessiva rigidez, à luz do princípio da prevalência do fundo sobre a forma[6].


1.2. Da nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, porquanto, na fundamentação do Acórdão, se faz referência ao artigo 1889.º, n.º 1, al. a), do CC, sem que o tema alguma vez tenha sido invocado em juízo nem debatido entre as partes, constituindo decisão surpresa

Concluiu o Tribunal a quo que tão-pouco se verificava esta nulidade, por duas ordens de razões: primeiro, porque não havia sido proferida qualquer decisão com fundamento na aplicação do artigo 1889.º, n.º 1, al. a), do CC; segundo, porque a norma tinha sido apenas aflorada no ponto 3.4. da fundamentação do Acórdão – e aflorada apenas para realçar a questão da limitação dos poderes de representação dos progenitores e a legitimidade do Ministério Público para representar menores quando ocorra situação de conflito de interesses destes com os progenitores.

Refere-se, de facto, a certa altura, o Tribunal recorrido ao disposto no artigo 1889.º, n.º 1, al. a), do CC (que estabelece que a alienação de bens do menor pelos pais carece de autorização do tribunal).

Fá-lo, contudo, apenas para assinalar outra limitação aos poderes dos progenitores, isto é, sem prejuízo da limitação anteriormente anunciada, que, essa sim, é determinante para a decisão.

Teve, aliás, o Tribunal recorrido o cuidado de sublinhar que fazia aquela referência “independentemente daquela conclusão”, ou seja, independentemente da conclusão de que “[a] participação de menores em Espectáculos está sujeita a comunicação e pedido de autorização, nos termos dos art°s 2° a 11° da Lei 105/2009, de 15/09, e depende de prévio acordo da CPCJ (…) e sendo nulo o consentimento dado pelos progenitores, a limitação ao direito à imagem e à reserva sobre a intimidade da vida privada dos menores, ao participarem nos programas, é ilícita (…)”.

Recorde-se que a decisão do Tribunal recorrido foi a de que a participação dos menores no programa está dependente de comunicação prévia e de autorização da CPCJ.

Não existe, em conclusão, ao contrário do alegado pela recorrente, decisão surpresa, nem, consequentemente, nulidade.


1.3. Da nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, por falta de fundamentação sobre a invocada decisão de pronúncia excessiva do Tribunal de 1.ª instância sobre matéria que não havia sido suscitada; subsidiariamente, nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, por falta de fundamentação da decisão; e, em subsidiariedade de 2.º grau, nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, porquanto é surpreendente a decisão da nulidade do consentimento dada pelos progenitores em virtude de o contrato por via do qual se concedeu o consentimento ser nulo e as partes não foram ouvidas quanto à "nulidade do contrato"

Deu o Tribunal recorrido por inexistente qualquer destas nulidades.

Segundo ele, a questão da nulidade da sentença por excesso de pronúncia havia, sim, sido apreciada, decidida no ponto 4.B).1 do acórdão (a fls 125 e verso). Também havia aí sido suficientemente fundamentada, decaindo, deste modo, a invocação de nulidade por falta de fundamentação. E quando à nulidade subsidiária de 2° grau, esclareceu o Tribunal que não pode confundir-se a questão a decidir com os argumentos utilizados. A referência final à nulidade do contrato celebrado entre os progenitores e a HH havia sido invocada como argumento; não tinha tido apreciação e decisão autónoma como questão principal ou sequer como questão prejudicial.

À argumentação expendida pelo Tribunal recorrido, que se faz argumentação do presente Acórdão, acrescenta-se, em reforço dela, que tal corresponde à posição que vem sustentando este Supremo Tribunal de Justiça. Como se afirma no Acórdão deste Tribunal de 11.04.2019 (já referido) “[t]em sido correntemente entendido que o conceito de “questão” compreende as pretensões ou exceções em causa, incluindo as pretensões recursórias, integradas como são pelo efeito prático-jurídico pretendido e o respetivo fundamento. Nessa medida, não constituem “questão” os argumentos ou as linhas de raciocínio desenvolvidas na apreciação dessas questões[7]. Desta orientação é outro exemplo o Acordão de 27.03.2014, em que se diz que “[p]ara efeitos de nulidade de sentença/acórdão há que não confundir 'questões' com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes nos seus articulados, e aos quais o tribunal não tem obrigação de dar resposta especificada ou individualizada, sem como isso incorrer em omissão de pronúncia[8].


1.4. Da nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, por falta de pronúncia sobre três dos fundamentos para a impugnação, pela apelante, da decisão da matéria de facto dos pontos 65.º, 66.º e 67.º, e, subsidiariamente, por falta de pronúncia sobre a questão suscitada

Também neste ponto o Tribunal da Relação de Lisboa recusou que existisse nulidade. Em primeiro lugar, porque, mais uma vez, não podem confundir-se questões a resolver com razões ou argumentos invocados (o tribunal não tem de se pronunciar sobre todos os argumentos invocados). Em segundo lugar, porque a questão havia sido analisada e decidida no ponto 5.B)-1 (i) do Acórdão (fls. 129 a 131).

Ora, olhando para o Acórdão recorrido, rapidamente se verifica que o Tribunal a quo se pronunciou, sim, sobre a impugnação dos pontos 65.º, 66.º e 67.º e as razões apresentadas para o efeito [cfr. ponto 5.B)-1 (i) do Acórdão]. O Tribunal a quo não só identificou claramente a questão como lhe dedicou um tratamento autónomo e até consideravelmente extenso, concluindo, primeiro, “[a]ssim, entendemos que não tem razão a GG ao pretender que os pontos 65, 66 e 67 dos factos provados não têm correspondência com a alegação do Ministério Público e, depois, “[a]ssim, em conclusão, não vislumbramos fundamento para eliminar do elenco dos factos provados os pontos 65, 66 e 67”.

O facto de o Tribunal recorrido ter verificado / concluído que os pontos 65.º, 66.º e 67.º deviam manter-se, não tendo respondido ou não tendo dado uma resposta individualizada a todos e cada um dos argumentos aduzidos em sentido contrário pela recorrente em nada afecta a validade desta decisão. Como é do conhecimento geral, o tribunal não tem a obrigação de se pronunciar sobre argumentos mas apenas sobre questões. Repete-se, a este propósito, a referência aos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.04.2019 e de 27.03.2014 (identificados no ponto anterior).

A invocação de nulidade não pode, pois, proceder.


1.5. Da nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, als. b) e d), do CPC, por falta de apreciação dos argumentos que a apelante usou para sustentar a não representação dos menores pelo Ministério Público e mera remissão para as conclusões 5.ª, 6.ª, 7.ª, 8.º e 9.ª

Também aqui, como disse o Tribunal recorrido, a questão foi apreciada no ponto 6-B).1 (fls 140 verso a 141 verso do Acórdão) e a respectiva decisão cabalmente fundamentada, pelo que não existe a alegada nulidade.

Analisando o (longo mas bem sistematizado) Acórdão recorrido, verifica-se, mais uma vez, que não assiste razão à recorrente quando invoca esta falta de pronúncia, rectius: falta de especificação dos fundamentos que justificavam a decisão [cfr. artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC] e falta de pronúncia sobre questão que devia ser apreciada [cfr. artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC].

O Tribunal recorrido identificou claramente a questão da (alegada) falta de capacidade dos menores, por irregular representação pelo MP, ou da ilegitimidade do MP para a acção e tratou-a com autonomia face às demais. Não tinha – repete-se – o Tribunal obrigação de se pronunciar sobre (todos os) argumentos mas sim, apenas, a obrigação de apreciar e decidir, fundamentadamente, a questão.

Ora, como se pode confirmar pela leitura do excerto do Acórdão atrás identificado, esta obrigação foi cumprida. O Tribunal analisou a pretensão da recorrente GG, decidiu que ela improcedia e justificou a sua decisão. A justificação foi feita através de reprodução de – e não, diga-se, de remissão para – determinadas conclusões. Mas isso não importa: as conclusões foram atingidas pelo Tribunal discorrendo a propósito do caso que lhe competia decidir. É quanto basta para considerar-se justificada / fundamentada a decisão e não se verificar a alegada nulidade.


1.6. Da nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. e), do CPC, por violação do princípio do pedido, quanto à proibição de exibição do episódio 3

Tal como aconteceu com as anteriores questões, refutou o Tribunal a existência de tal nulidade. Existia, sim, no seu entender, uma discordância da ré / recorrente com a decisão do tribunal de conhecer dessa questão, sendo a questão em causa uma questão de mérito do recurso.

Comentando os poderes de cognição do tribunal no processo especial de tutela de personalidade, admite Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, que “da conjugação entre o nº 2 do artigo 70º do Código Civil (a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer providências adequadas às circunstâncias do caso) com o nº 4 do artigo 879º do Código de Processo Civil (o tribunal determina o comportamento concreto a que o requerido fica sujeito), se possa concluir no sentido de que se mantém o afastamento do princípio de que o tribunal está limitado qualitativa e quantitativamente pelo pedido formulado (nº 1 do artigo 609º do Código de Processo Civil), devendo continuar a determinar-se, na decisão, segundo a conveniência e a oportunidade. Mas – acrescenta – a verdade é que o intérprete tem de atribuir um significado consistente à deslocação do processo para a jurisdição contenciosa; e um dos objectivos poderá ter sido, precisamente, o de obrigar a interpretar o nº 2 do artigo 70º do Código Civil e o nº 4 do artigo 879º do Código de Processo Civil à luz da limitação ao pedido e à legalidade estrita (artigo 4º do Código Civil e 607º, nº 3, do Código de Processo Civil)[9].

Sucede que o pedido de não exibição do programa 3 constava, expressamente, do petitório (2.º - iv), pelo que não se verifica condenação das rés em algo distinto do que havia sido pedido. Confirma-se, pois, a conclusão de inexistência da nulidade invocada.


Esclarecido que não há nulidades do Acórdão recorrido pode, então, passar-se às questões jurídicas em sentido próprio, formuladas nos dois recursos e que, no fundamental, são coincidentes, com uma observação prévia.


Nota prévia: do alcance deste recurso de revista

Confrontando o processo especial de tutela de personalidade com o seu antecessor (o processo especial de tutela da personalidade, do nome e da correspondência confidencial, regulado nos artigos 1474.º e 1475.º do anterior CPC), refere Maria dos Prazeres Pizarro Beleza que “[a] restrição [do recurso de revista] deixa de valer, naturalmente; o que não significa que a fiscalização que o Supremo Tribunal de Justiça pode exercer sobre o critério de conveniência e oportunidade do mérito da decisão de que se interpõe recurso de revista tenha a mesma amplitude que o controlo de legalidade [10].

Quer isto dizer que o carácter especial do processo acarreta, em qualquer caso, especialidades quanto ao alcance do recurso de revista. Qualificando-se agora o processo especial de tutela de personalidade como um processo de jurisdição contenciosa, é admissível recurso de revista, como, aliás, decorre expressamente do artigo 888.º, n.º 1, do CPC. Sucede, no entanto, que, como se disse atrás, no âmbito deste processo, o tribunal pode e deve, dentro de limites, decidir sobre as medidas segundo a conveniência e a oportunidade[11].

Ora, conhecendo o Supremo Tribunal de Justiça apenas de questões de direito (cfr. artigo 682.º do CPC), não são tais ponderações de pura conveniência ou oportunidade susceptíveis de sindicância. É justamente por envolverem decisões proferidas segundo critérios de conveniência e oportunidade, e não segundo critérios de legalidade estrita, que se justifica que os processos de jurisdição voluntária não admitam recurso para o STJ[12].

Isto não prejudica, contudo, a possibilidade de apreciar os pressupostos (processuais ou substantivos) da decisão e ainda, no que toca às medidas concretamente decretadas, a interpretação e a aplicação dos critérios legais que estão na base do seu decretamento pelo Tribunal.

2. Da verificação dos pressupostos do processo especial de tutela da personalidade

Alegam a recorrente HH e também a recorrente GG que não se verificam os pressupostos do processo especial de tutela da personalidade, em particular, a ameaça e a ofensa directa e ilícita à personalidade física ou moral do ser humano, exigidas pelo artigo 878.º do CPC para efeitos de decretamento das providências concretamente adequadas.

2.1. Enquadramento da questão

Determina o artigo 878.º do CPC que “[p]ode ser requerido o decretamento das providências concretamente adequadas a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e directa à personalidade física ou moral do ser humano ou a atenuar, ou a fazer cessar, os efeitos da ofensa já cometida”.

Sobre este processo especial e os seus pressupostos há que fazer algumas observações prévias.

Antes de mais, a sua função é a tutela genérica e ampla dos direitos de personalidade, em correlação com o disposto no artigo 70.º do CC.

O artigo 70.º do CC contém uma norma / cláusula de tutela geral da personalidade e preceitua, no seu n.º 1, que “[a] lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral” e, no seu n.º 2, que “[i]ndependentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias de cada caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”.

Os direitos (especiais) abrangidos são, entre outros, o direito à memória da pessoa falecida (artigo 71.º do CC), o direito ao nome e ao pseudónimo (artigos 72.º e 74.º do CC), o direito à confidencialidade (cfr. artigos 75.º a 77.º do CC) e – com especial relevância para o caso dos autos – o direito à imagem (artigo 79.º do CC) e o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada (artigo 80.º do CC). Porém, dado que consagra uma cláusula geral, a norma permite conceder tutela a bens pessoais não tipificados (“protegendo aspectos da personalidade cuja lesão ou ameaça de violação só com a evolução dos tempos assumam um significado ilícito[13]) [14].

O pedido apresentado no âmbito do (inovador[15]) processo especial de tutela da personalidade “tanto pode cumprir uma função preventiva de cariz inibitório [] como uma função repressiva de cariz repristinatório[16].

Na modalidade de acção inibitória / preventiva / ex ante acolhida na 1.ª parte do artigo 878.º do CPC, o autor requer tutela perante efeitos futuros de evento ilícito ainda não esgotado ou que irá ocorrer, deduzindo pedido de condenação do réu na abstenção de violação do direito de personalidade, tendo como causa de pedir a titularidade deste direito e a existência do perigo da sua violação pelo réu ou, mais precisamente, a “ameaça ilícita e direta à personalidade física ou moral de ser humano”.

Na modalidade de acção repristinatória / ex post, acolhida na 2.ª parte do artigo 878.º do CPC, o autor requer tutela para efeitos presentes (ou, por maioria de razão, para efeitos passados), deduzindo pedido de condenação do réu na remoção da ofensa e na reposição da situação anterior, sendo a causa de pedir a titularidade do mesmo direito e a ilicitude da ofensa já cometida pelo réu[17].

Deve evitar-se confundir o processo especial de tutela da personalidade na modalidade de acção inibitória com o procedimento cautelar[18], podendo dizer-se que este é um meio preventivo do perigo de dano e aquele é uma verdadeira acção (definitiva e autónoma) preventiva do perigo de ilícito. Mais precisamente, são duas as características que distinguem a acção inibitória do procedimento cautelar. Em primeiro lugar, o perigo de ilícito não tem de ser iminente, bastando a ameaça ou a possibilidade de ocorrência de ilícito futuro (primeira ocorrência ou continuação). Em segundo lugar – e com particular relevância para o caso dos autos – , a causa de pedir não integra factos de perigo de dano mas sim factos de perigo de ilícito, sendo possível dizer que “o perigo de dano que possa advir do cometimento do ilícito é absolutamente irrelevante em sede inibitória e, muito menos, o receio de dano culposamente causado pelo réu: a tutela inibitória apenas se atem ao ato potencial em si mesmo, independentemente de culpa do réu []. Por outras palavras: se um procedimento cautelar é um meio preventivo do perigo de dano, a acção inibitória é uma verdadeira ação preventiva do perigo de ilícito” [19] [20].

O Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2016 sintetiza bem algumas das ideias coligidas até aqui: “[a] garantia cível dos direitos de personalidade não se limita ao dever de indemnizar os lesados depois de preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, pelo risco ou por factos lícitos. A tutela cível dos direitos de personalidade abrange, nos termos do n.º 2 do art. 70.º do CC, as providências adequadas às circunstâncias do caso, destinadas a evitar a consumação da ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa já verificada. Esta tutela pode, assim, ser preventiva, em caso de ofensa não consumada destes direitos, e atenuante, nas situações em que já se deu a consumação da ofensa ou o início dessa consumação, destinando-se a atenuar, dentro do possível, os seus efeitos. Estas providências podem ser cumuladas umas com as outras e com o pedido indemnizatório, ou ser requeridas no processo especial regulado nos artigos 878.º e seguintes do CPC. O termo «ameaça» usado na lei não tem o sentido de ato ou efeito de ameaçar, mas um significado amplo que abrange quer a iminência de ameaça, quer a ofensa em curso, qualquer que seja a intenção do agente (cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, 2.ª edição, 2007, p. 121). As providências atenuantes têm, também, por finalidade, eliminar ou minorar os efeitos de ofensa já realizada, podendo, em simultâneo, funcionar como medidas preventivas de futuras lesões, quando se trate de factos continuados[21].

Depois desta exposição sobre o processo especial de tutela da personalidade, pode concluir-se a acção em apreciação neste recurso se desdobra nas duas modalidades. Trata-se de uma acção repristinatória no que respeita aos episódios 1 e 2 (já exibidos) e de uma acção inibitória no que respeita ao episódio 3 (já gravado mas não exibido) bem como aos eventuais episódios futuros. No primeiro caso, o pressuposto é a “ofensa [ilícita e directa à personalidade] já cometida”; no segundo, o pressuposto é a “ameaça ilícita e directa à personalidade”.

2.1. Da ilicitude da ameaça / ofensa à personalidade e da irrelevância do consentimento

Apesar de ser discutível a opção de atribuir à lei processual civil a função de definir este tipo de pressupostos[22], o artigo 878.º do CPC determina que o processo especial de tutela da personalidade pressupõe uma ameaça ou uma ofensa e que tal ameaça ou ofensa seja, em qualquer dos casos, directa e, sobretudo, ilícita. É necessário ver se, no caso presente, este pressuposto está e, em que termos, preenchido.

É visível que os direitos cuja ofensa directa está aqui em causa são, essencialmente, o direito à imagem e o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, que, no ordenamento jurídico português, se integram nos direitos de personalidade.

Como é do conhecimento geral, os direitos de personalidade (cfr. arts. 70.º e s. do CC) são direitos gerais (de que todos os sujeitos gozam[23]), absolutos (que se impõem ao respeito de todos os outros), “incindindo sobre os vários modos de ser físicos ou morais da sua personalidade”[24].

Em particular, o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, regulado no artigo 80.º do CC, visa resguardar os factos respeitantes à vida pessoal e familiar dos sujeitos, impedir que eles sejam objecto de informação ou de conhecimento público. Neste contexto, qualquer forma de publicidade é, por si só, lesiva, i.e., mesmo quando os factos não sejam susceptíveis de apreciação desfavorável pelos outros.

Quanto ao direito à imagem, regulado no artigo 79.º do CC, ele é normalmente considerado mera concretização do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada. Por força dele, o retrato de uma pessoa não pode, em regra, ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio a não ser que ela dê o seu consentimento. Existe, porém, um limite à divulgação da imagem, que importa (portanto, um limite ao alcance deste consentimento): quando disso advenha prejuízo para a honra, a reputação ou o simples decoro.

O carácter inalienável e irrenunciável dos direitos de personalidade não impede, de facto, a sua limitação através do consentimento do lesado, admitindo-se, no artigo 81.º do CC, com carácter geral, a limitação voluntária dos direitos de personalidade. Podem, assim, as pessoas renunciar ou restringir os seus direitos de personalidade por via do consentimento, ficando com isso impedidas de invocar, depois, a ilicitude das lesões respectivas, numa espécie de concretização do brocardo volenti non fit injuria.

É preciso não perder de vista, todavia, que esta possibilidade de limitação voluntária dos direitos de personalidade tem, ela própria, limites. Por outras palavras: para ser relevante como causa de exclusão da ilicitude (como acto que determina a inexistência da lesão ou a justifica[25]), o consentimento deve ser conforme à ordem pública. É a própria lei que o prevê, determinando, quer, no artigo 81.º, n.º 1, do CC, que a limitação voluntária destes direitos é nula quando seja contrária aos princípios da ordem pública, quer, no artigo 280.º, n.º 2, do CC, que o negócio- jurídico que seja contrário à ordem pública é nulo.

Explica Manuel Carneiro da Frada que “[a] ordem pública é hoje um conceito normativo legal[26]. Não existe uma definição legal de ordem pública, que se apresenta, no sistema jurídico, como um conceito indeterminado. Entendendo-a em sentido restrito, poderá dizer-se que ela se aproxima dos “valores e princípios injuntivos do ordenamento, base da coexistência social geral e garantes de um bem público [27].

Ora, o direito à imagem e o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada e os outros direitos de personalidade são concretizações da dignidade da pessoa humana. A dignidade humana é um valor intangível e indisponível de todas as pessoas – é, justamente, um daqueles “valores injuntivos do ordenamento”. Assim, se são admissíveis, por princípio, restrições aos direitos de personalidade, já não o são aquelas que atinjam / toquem o limite da dignidade da pessoa humana, por violarem o princípio da ordem pública.

O funcionamento do limite tem sido estendido, na doutrina e, sobretudo, na prática jurisprudencial, a um número alargado de situações, inclusivamente a situações em que o consentimento para a limitação dos direitos de personalidade é dado pelo titular dos direitos e não por “interposta pessoa”[28].

Estando em causa situações em que o consentimento é dado por “interposta pessoa”[29], os obstáculos à limitação dos direitos de personalidade – às modificações do conteúdo dos direitos que importem a redução ou o enfraquecimento –, são ainda mais fortes.

Na disciplina das responsabilidades parentais, destaca-se o disposto no artigo 1878.º, n.º 1, do CC, em que se diz que “[c]ompete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens[30]. Conjugando este preceito com o disposto no artigo 1881.º, n.º 1, do CC (em que se determina que o poder de representação compreende, em princípio, o exercício de todos os direitos do filho), logo se vê que o consentimento que os progenitores podem dar para o efeito de limitar os direitos de personalidade dos filhos menores tem a natureza de um poder-dever, sendo o seu fim vinculado e, mais precisamente, devendo o consentimento servir, em exclusivo, o interesse da criança.

Contributo importante pata a densificação do conteúdo do “interesse da criança” é o disposto no artigo 1885.º, n.º 1, do CC: que diz “[c]abe aos pais, de acordo com as suas possibilidades, promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos”. Significa isto que os progenitores só devem consentir em limitações aos direitos da personalidade dos filhos quando através delas se prossiga o desenvolvimento físico, intelectual e moral das crianças ou, pelo menos, desde que se assegure que elas não comprometem o desenvolvimento físico, intelectual e moral das crianças.

Mesmo admitindo que, em certos casos, o menor dispõe do discernimento necessário (de capacidade natural) para avaliar o sentido e o alcance das consequências e pode, pois, consentir, ele próprio, na limitação ao direito de personalidade, não deve dispensar-se o consentimento do progenitor se houver o risco de a limitação ter reflexos na educação do menor ou, em geral, “contender com os resultados do exercício dos poderes‑deveres dos representantes legais”, [31]. Continuam os pais, consequentemente, no exercício deste poder-dever, vinculados à prossecução / salvaguarda do interesse da criança.

É chegada a altura de perguntar: pode o consentimento para a participação das crianças num programa do tipo “PP”, dado pelos progenitores, ou a dar por quaisquer progenitores, configurar, de facto, o exercício de um poder-dever no interesse da criança?

Olhe-se para a factualidade provada.

Aquilo que daí resulta é que às crianças são colocados, nos teasers e nos episódios do programa, epítetos ou qualificativos como os de “furação”, “diabinha” (facto 26), “pequeno ditador” (facto 27), “pesadelo” (facto 30), “tirana” e outros do tipo. São exibidas, continuamente, cenas de conflito entre crianças e entre estas e os seus pais (facto 28). No programa repetem-se imagens de agressões verbais (facto 32) e mesmo de agressões físicas entre crianças e entre estas e os seus pais (facto 32). As crianças são vistas, em suma, a choramingar, a chorar, a irritar-se, a espernear, a dar pontapés, a dar empurrões, a dar “cuspidelas”, a resmungar, a discutir, a protagonizar birras, a proferir insultos e a dizer palavrões, a ser postas “de repouso” (no “banquinho do repouso”) e também a trocar gestos de ternura, a emocionar-se, a pedir desculpa e a agir na sua rotina diária, íntima e familiar (factos 31 e 32). São ainda vistas, a ir para ou a sair do banho, parcialmente nuas.

Não obstante estar provado que “o objectivo de todos os requeridos pais foi o de contribuir para melhorar o relacionamento dos mesmos com os seus filhos, ajudando-os a estabelecer regras e limites e melhorando a comunicação entre todos” (facto 69), é visível que a exibição das referidas cenas não é um meio adequado, por não ser (no mínimo) o mais eficaz tendo em conta aquele objectivo. Por outro lado – e mais importante–, a exibição das cenas a um público indeterminado e tão alargado (facto 32), ainda por cima num registo susceptível de ser irrestritamente reproduzido, é um meio intoleravelmente intrusivo para os direitos das crianças.

Quer dizer: o programa “PP” alcança ou “toca” os direitos absolutos à imagem e à reserva sobre a intimidade da vida privada das crianças, alcança ou “toca”, por isso, a essência do valor – do valor intrínseco – da dignidade da pessoa humana. Alcançando ou “tocando” a essência do valor intrínseco da pessoa humana, “excede os limites da adequação social[32] e, consequentemente, ofende a ordem pública.

Esta ofensa torna-se, sem dúvida, mais ostensiva e adquire gravidade reforçada pelo facto de as pessoas em causa serem crianças. Reveste a forma de exploração, para efeitos comerciais, da imagem e da vida íntima de crianças. As crianças são como que “lançadas no mercado”, instrumentalizadas aos fins comerciais das entidades promotoras, o que é incompatível com a sua dignidade, que é – deve ser – “um bem fora do comércio”.

São (ainda) oportunas as palavras de Orlando de Carvalho, pronunciadas há algumas décadas atrás: “a questão da tutela da personalidade jurídica é a questão do alcance da protecção jurídica indispensável na nossa civilização para que cada indivíduo seja verdadeiramente uma pessoa (…). o problema do alcance e da força desta protecção jurídica é particularmente importante na sociedade actual (…), de estrutura essencialmente capitalista, com a sua tendência para transformar em mercadoria todos os valores e todos os bens; os mass media – a imprensa, o cinema, a rádio, a televisão – estão ferozmente ávidos do destino de cada ser, com vista a satisfazer os desejos insaciáveis de um público drogado pela máquina de sensações[33].

Destacam-se ainda da factualidade provada os seguintes factos:

O programa em causa foi originariamente criado em Inglaterra em …, tendo sido transmitido no canal público "…", e adaptado em outros Países, pelo menos, outros 22, entre os quais, Espanha, Brasil, França, Estados Unidos da América (facto 19).

No Reino Unido foi exibido durante cinco temporadas, no espaço de quatro a cinco anos, e nos EUA, foi exibido durante oito épocas, entre 2005 e 2013, e com cerca de 700 episódios produzidos e exibidos em todo o mundo (facto 20).

Ou seja: resulta da factualidade provada que o programa foi exibido, com algum sucesso, em certos países. O que está ausente da factualidade provada mas é um facto notório, portanto, não subtraído aos factos que o tribunal pode e deve conhecer (cfr. artigo 5.º, n.º 2, do CPC), é que, nalguns dos países referidos e em outros, o programa foi amplamente contestado[34], tendo a sua exibição chegado a ser proibida / impedida. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu em países como a Alemanha, que, não sendo um país do círculo jurídico anglo-americano, se aproxima mais, sob este ponto de vista, de Portugal do que a Inglaterra ou os Estados Unidos da América.

Na sequência de uma “sinalização” da Kommission für Jugendmedienschutz (Comissão de Protecção dos Jovens), foi apresentada uma queixa nos tribunais alemães contra a exibição do programa “PP”. As entidades promotoras do programa[35] recorreram para o Verwaltungsgericht (Tribunal Administrativo) de Hannover, que foi chamado a decidir a questão e concluiu, em decisão proferida em 8 de Julho de 2014, que o programa comportava uma violação da dignidade humana das crianças à luz do artigo 1 (1) da Grundgesetz (Lei Fundamental), violação esta que não podia ser justificada com base no argumento de que é evidente que “o programa tem um objectivo educacional e destina-se a melhorar a situação da família”. É conveniente ver de perto a fundamentação desta decisão – vê-la enquanto argumento de Direito comparado e já no estrito plano da questão de direito, ou seja, no plano da indagação, da interpretação e da aplicação das regras jurídicas (cfr. artigo 5.º, n.º 3, do CPC). Eis alguns dos extractos mais significativos[36]:

“[66] A dignidade da pessoa humana como tal é atingida quando o ser humano concreto é degradado á condição de objecto, de simples instrumento ou meio, de elemento substituível. Dá-se, em especial, uma violação da dignidade da pessoa humana quando o ser humano não é tomado a sério como um ser autónomo, que se determina pela sua vontade, e quando, [não o tomando a sério como um ser autónomo,] se instrumentaliza o ser humano para um determinado fim, como, p. ex., para conseguir maiores audiências e, em consequência, maiores lucros (…).

[68] O § 4, n.º 1, da Convenção [entre todos os Estados Federados alemães] sobre a protecção da dignidade e da juventude em face dos meios de comunicação social — Staatsvertrag über den Schutz der Menschenwürde und den Jugendschutz in Rundfunk und Telemedien (Jugendmedienschutz-Staatsvertrag — JMStV) — declara que um anúncio não é ilícito quando haja um interesse legítimo / justificado. A formulação adoptada pelo legislador sugere um procedimento de ponderação entre os interesses da pessoa atingida e os interesses protegidos pela liberdade de expressão e de informação. Em todo o caso, deve considerar-se que o Tribunal Constitucional Federal tem considerado que a dignidade da pessoa humana, por ser o fundamento de todos os direitos constitucionais, não pode ser objecto de ponderação e, em particular, que não pode ser objecto de ponderação com direitos fundamentais especiais, isoladamente considerados. Em consequência, o interesse legítimo / justificado só pode ser um critério para determinar se, em concreto, há ou não violação da dignidade da pessoa humana — não pode, de forma nenhuma, ser uma causa de exclusão da ilicitude, ou uma causa de justificação. A violação da dignidade da pessoa humana, como mais alto valor da ordem de valores constitucional, é em qualquer caso ilícita (…).

[73] O fim educativo ou pedagógico de alterar positivamente a situação da família e de prevenir práticas educativas e pedagógicas semelhantes, para o futuro, não é um interesse legítimo / justificado e, em todo o caso, não faz com que deixe de haver violação da dignidade da pessoa humana (…)”.

Sem prejuízo das diferenças (circunstanciais) entre o processo que correu termos no Tribunal alemão e o presente recurso, a “fórmula do objecto”, a que o Tribunal de Hannover faz referência no parágrafo 66, é susceptível de ser convocada também e contribuir para a resolução do caso em apreciação. Inspirada na filosofa moral de Kant, a “fórmula do objecto” foi preconizada, na Alemanha, por Günter Dürig e assenta, fundamentalmente, no seguinte raciocínio: “a dignidade da pessoa humana enquanto tal é atingida se o ser humano concreto é reduzido à condição de objecto, de simples meio, de elemento substituível[37]. Ou seja: cada pessoa tem o dever de respeitar as outras e de se abster de as tratar como objecto ou como um simples meio, pois a pessoa humana é um fim em si; indo mais longe, existe um núcleo material mínimo de dignidade, que, segundo Dürig, é mesmo independente da concepção que cada um tenha sobre a sua própria dignidade[38].

Ainda que não se convoque a “fórmula do objecto”[39], é indiscutível que existe, no ordenamento jurídico português, uma proibição geral da instrumentalização das pessoas. Tal instrumentalização é contrária à ordem pública, pois ofende um dos valores “contidos” na e protegidos pela ordem pública – o valor inderrogável, irrenunciável e indisponível da dignidade humana. Num contexto deste tipo – será dispensável dizer –, o consentimento é absolutamente irrelevante como causa de exclusão da ilicitude (cfr. artigos 81.º, n.º 1, e 280.º, n.º 2, do CC).

Pelo exposto, julga-se plenamente verificado o requisito da ofensa / ameaça directa e ilícita aos direitos de personalidade das crianças que é pressuposto da aplicação de medidas adequadas à tutela do direito de personalidade dos menores.


3. Das providências concretamente decretadas

A preocupação fundamental do julgador no processo especial de tutela da personalidade deve ser a de encontrar as medidas que melhor se ajustem ao caso concreto – o que significa, neste caso, que melhor se prestem ao efeito de prevenir ou evitar a ofensa à personalidade. É visível – e compreensível – que o julgador não está limitado, nesta tarefa, por qualquer princípio da tipicidade, gozando o juiz de discricionariedade quanto à escolha das medidas mais eficazes para prosseguir aquele fim[40].

É sabido que os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça são limitados. Ainda assim, e como se disse atrás[41], esta questão suscita a apreciação – que este Tribunal pode e deve realizar – dos critérios normativos utilizados pelo Tribunal recorrido para o decretamento das medidas concretas de tutela da personalidade.


3.1. Da aplicabilidade das providências previstas na Lei n.º 105/2009, de 14.09, ao episódio 3 e aos episódios futuros em particular

Tendo os episódios 1 e 2 sido já exibidos, tratava-se de evitar a persistência da ofensa já cometida ou atenuar os seus efeitos (providências repristinatórias). Resumidamente, as rés / ora recorrentes foram condenadas a providenciar para que o acesso a quaisquer conteúdos acessíveis fossem imediatamente bloqueados, nada se vendo que pudesse obstar a tal decisão.

No que se prende com as providências inibitórias propriamente ditas, o Tribunal recorrido achou adequado, no caso concreto, determinar que as rés / recorrentes não pudessem exibir ou por qualquer modo divulgar o episódio 3, sem que, previamente, comunicassem e solicitassem autorização de participação dos menores no programa à CPCJ competente e que a participação de menores em futuros episódios, independentemente de quem viessem a ser os menores, ficasse dependente de prévia comunicação e autorização a solicitar à CPCJ por elas.

A decisão de fazer depender, quer a exibição do programa 3 (que conta já com cenas gravadas em que participam os menores), quer a participação dos menores em programas futuros, de prévia comunicação e de autorização da CPCJ é, desde logo, uma medida que encontra suporte na lei – a Lei n.º 105/2009, de 14.09.

Segundo o seu artigo 1.º, n.º 1, al. a), a Lei n.º 105/2009, regula, em primeira linha, a “participação de menor em actividade de natureza cultural, artística ou publicitária, a que se refere o artigo 81.º do Código do Trabalho (…)”.

No artigo 81.º do Código do Trabalho diz-se que ““[a] participação de menor em espectáculo ou outra actividade de natureza cultural, artística ou publicitária é regulada em legislação específica”.

O artigo 2.º da Lei n.º 105/2009 estabelece que “[o] menor pode participar em espectáculo ou outra actividade de natureza cultural, artística ou publicitária, designadamente como actor, cantor, dançarino, figurante, músico, modelo ou manequim”.

Finalmente, de acordo com o n.ºs 1 e 3 do artigo 5.º, “[a] participação de menor em actividade referida no artigo 2.º está sujeita a autorização ou comunicação”, “[sendo] competente para a autorização e para receber a comunicação referidas no n.º 1 a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) cuja área abranja o domicílio do menor ou, na sua falta, aquela cuja sede estiver mais próxima, funcionando em comissão restrita”.

Pode discutir-se – como discutem as recorrentes – se esta Lei é directamente aplicável à situação dos autos. Pode, nomeadamente, argumentar-se que a participação dos menores no programa televisivo “PP”, por um lado, não tem natureza laboral e, por outro, não consubstancia uma participação de menor em actividade de natureza cultural, artística ou publicitária, decaindo, assim, os requisitos de aplicabilidade da Lei, de acordo com o seu artigo 1.º.

Ora, para a delimitação do âmbito de aplicabilidade da Lei n.º 105/2009 é relevante, não a qualificação da actividade como cultural, artística ou publicitária (elenco visivelmente não taxativo), mas o conceito de “espectáculo”, central na disposição do artigo 81.º do Código do Trabalho (referida no artigo 1.º) e presente nas disposições do artigo 2.º e 5.º da Lei. A doutrina especializada conflui para que o conceito deve ser entendido num sentido (cada vez mais) lato: basta a exposição perante o público, designadamente por meios audiovisuais, para haver espectáculo[42]. Os elementos essenciais e suficientes seriam, pois, a exibição e o público. Ora, neste caso, estão ambos presentes.

O outro aspecto importante é a remuneração. Terá a participação da criança de ser remunerada para que ela se inclua no âmbito de aplicação da Lei? No mínimo, poderá dizer-se que a questão não é pacífica. Mas há argumentos fortes que militam no sentido negativo. Por um lado, a lei não o impõe (ou não o impõe expressamente). É verdade que o Código do Trabalho regula contratos de trabalho e estes são, por força da lei, remunerados. No entanto, a referência do artigo 1.º da Lei ao artigo 81.º do Código do Trabalho não tem a função de remeter para o regime do contrato de trabalho mas apenas a de identificar (materialmente) as actividades em causa. Por outro lado, o objectivo da Lei é a protecção da criança tout court. A Lei dirige-se, mais precisamente, a evitar que a criança participe em atividades que possam pôr em risco a sua segurança, a sua saúde, o seu desenvolvimento físico, psíquico e moral, a sua educação e a sua formação. Para isto pouco ou nada interessa se as actividades são ou não remuneradas – e nada deve interessar porquanto a necessidade de tutela é a mesma em ambos os casos.

Dito isto, a verdade é que está provado que, ao abrigo do denominado "acordo de participação", os pais cediam os direitos de imagem e propriedade intelectual das crianças mediante o pagamento de uma contrapartida de €1.000,00 (mil euros) por acordo celebrado, pagos em dinheiro ou mediante a entrega de cartão "Dá", o qual permitia aquisições nas lojas aderentes, até ao limite dos mil euros (facto 21). O facto suscita a dúvida sobre se não existirá, afinal, remuneração e, portanto, não existirá um contrato de trabalho celebrado entre as entidades promotoras e os menores[43] (admitindo-se, claro está, que os pais têm o poder de celebrar contratos de trabalho em representação dos menores[44]).

Por fim, mesmo que se recuse que a Lei n.º 105/2009 é directamente aplicável, tem de reconhecer-se que ela contém as soluções que o legislador predispôs para situações semelhantes, pelo que nada impediria que, sendo solicitado ao Tribunal que decretasse medidas concretamente aplicáveis, fossem analogicamente aplicáveis as medidas nela contidas.

Diga-se, a título comparativo, que no Direito estrangeiro existem medidas tão ou mais exigentes sob o ponto de vista do sacrífico dos direitos ou interesses das rés / recorrentes como aquelas que decretou o tribunal recorrido. Por exemplo, o artigo 3.º, n.º 2, da lei espanhola sobre tutela civil do direito à honra, à intimidade pessoal e familiar e à própria imagem (Lei Orgânica n.º 1/1982, de 5 de Maio) determina que, sempre que, estando em causa actividades que contendam com o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, é exigível o consentimento dos representantes dos menores, tal consentimento deve ser antecipadamente comunicado ao Ministério Público, o qual se pode opor.


3.2. A colisão de direitos e a proporcionalidade das providências

Um derradeiro controlo que pode e deve ser feito a respeito de todas as providências em presença, e que cabe ainda no âmbito dos poderes deste Supremo Tribunal, prende-se com a adequação das providências à luz do princípio jurídico da proporcionalidade.

Isto suscita uma breve observação sobre o conflito de direitos, que as recorrentes alegam não se verificar.

Para que se verifique uma situação de conflito ou colisão de direitos é preciso que estejam cumulativamente presentes três pressupostos: a pluralidade de direitos, a sua pertença a diferentes titulares e a impossibilidade de exercício simultâneo e integral dos direitos[45].

O conflito de direitos é uma característica natural do processo especial de tutela de personalidade[46], sendo manifesta a existência deste conflito no caso dos autos, entre, por um lado, a liberdade de expressão (sob a forma de criação e divulgação de programas televisivos), de que são titulares da HH e a GG, e os direitos de personalidade das crianças.

O artigo 336.º do CC estabelece os critérios para resolver a situação de colisão de direitos: quando os direitos sejam iguais e da mesma espécie, o sacrifício deve ser igual (cfr. n.º 1); quando sejam desiguais ou de diferente espécie, deve prevalecer o que se considerar superior (cfr. n.º 2). Traduz-se isto, sinteticamente, num sacrífico ou numa limitação proporcional dos direitos, que atende à necessidade, à adequação e à proporcionalidade das restrições.

Quando seja chamado a resolver o conflito, o julgador deve, assim, orientar-se pelo principio da proporcionalidade, optando por aquelas providências que se revelem necessárias, adequadas e proporcionais e tendo em conta o valor dos direitos envolvidos. Nem sempre, de facto, os direitos têm igual valor, pelo que, quando tal seja absolutamente necessário, pode haver um sacrifício absoluto daquele que se apresenta “menos valioso”.

Há quem vá longe e diga que o conflito deve ser resolvido “com recurso ao instituto da colisão ou conflito de direitos, de harmonia com uma ideia de harmonização ou concordância prática de direitos e, no caso de tal se revelar necessário, na prevalência de um direito ou bem em relação a outro. A tutela, ainda que puramente cível e cautelar, envolve em muitos casos, necessariamente, a restrição, desde que proporcional e justificada, de direitos do lesante: na colisão entre os direitos do lesado e do lesante devem prevalecer os direitos do primeiro, maxime, nos casos em que o exercício dos direitos do último é causa ilícita de lesão dos direitos do primeiro[47].

Mas aqui nem é necessário ponderar o (este) critério da prevalência dos direitos de acordo com a qualidade do seu titular (lesante ou lesado). Quando aquilo que está em causa é um conflito entre os direitos de personalidade das crianças e a liberdade de expressão de (típico de) entidades produtora de programas televisivos e estações de televisão, está, segundo se entende, suficientemente justificada, à luz daquele princípio da proporcionalidade, a decisão por aquelas providências. Uma avaliação, em abstrato e em concreto[48], dos bens jurídicos protegidos em cada uma das hipóteses é suficiente para firmar esta conclusão.

Em conclusão, o Tribunal foi instado a encontrar as providências que, sendo necessárias e adequadas à protecção da personalidade dos menores, fossem também proporcionais, isto é, fossem aptas a assegurar aquela proteção e afectar o exercício dos direitos colidentes o mínimo possível[49]. Ora, as providências adoptadas pelo Douto Tribunal da Relação de Lisboa não impedem as recorrentes de exercer o seu direito, apenas o subordinam a uma condição. Cumpriu, em conclusão, o Tribunal recorrido todas as exigências legais que se impunham, nada havendo a censurar na sua decisão[50].

4. Da procedência, em particular, do 4.º pedido, respeitante aos eventuais programas futuros

4.1. Da legitimidade processual do MP

Alega a recorrente HH que o 4.º pedido, respeitante aos eventuais programas futuros não pode proceder, em primeiro lugar, porque, tendo intentado a acção em nome de certas crianças, o MP não tem legitimidade processual activa para intentar a acção também em representação de outras, ainda não identificadas.

No artigo 3.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 4/86, de 15.10 (Estatuto do Ministério Público) dispõe-se que “[c]ompete, especialmente, ao Ministério Público: [r]epresentar (…) os incapazes, os incertos (…)”. E no artigo 5.º, n.º 1, al. c) da mesma Lei acrescenta-se que “[o] Ministério Público tem intervenção principal nos processos: (…) Quando representa incapazes, incertos (…)”.

Por sua vez, o artigo 23.º, nº 1, do CPC determina que “[i]ncumbe ao Ministério Público, em representação de incapazes e ausentes, intentar em juízo quaisquer ações que se mostrem necessárias à tutela dos seus direitos e interesses”.

O facto de o MP ter intentado a acção em nome de certas crianças não prejudica o facto de, em face da lei, ele ter o poder de intentar a acção em nome de todos os incapazes e incertos – mais: de ele ser o representante “natural” de todos os incapazes e incertos – e, portanto, de ele ter o poder agir simultaneamente para defesa em juízo dos interesses de uns e de outros.

Improcede, pois, manifestamente, o argumento invocado pela recorrente HH.

4.2. Da possibilidade de avaliação em concreto da situação e de decretamento das medidas concretamente adequadas

Salvo o devido respeito pelo entendimento das recorrentes, acredita-se que o carácter futuro dos programas e a indeterminação dos respectivos intervenientes não impede, de forma alguma, a avaliação em concreto da situação – não impede, nomeadamente, a conclusão de que se trata de uma situação de risco para os efeitos do artigo 878.º do CPC (ameaça directa e ilícita à personalidade) e, consequentemente, não impede a decisão sobre as medidas adequadas a evitá-la.

Como o carácter ilícito foi amplamente abordado atrás, resta explicar melhor por que se entende que está em causa, em particular, uma ameaça directa à personalidade.

Em primeiro lugar, é sobejamente conhecido o modelo ou o formato do programa. Resultam da factualidade provada que ele se compõe das cenas referidas atrás. Mantendo-se o formato do programa, estas tenderão a repetir-se, nos mesmos moldes, com outras crianças. É previsível, pois, o mesmo aproveitamento, a mesma exploração da imagem e da intimidades das crianças para fins de entretenimento – a mesma lesão directa e ilícita aos seus direitos de personalidade.

Em segundo lugar, mesmo que se admita a presença de fins diversos (informativos, pedagógicos, educativos, médicos, científicos, etc.), é inegável que o fim principal e imediato do programa é a recreação ou o entretenimento dos espectadores, com o fim mediato de angariação de audiências, logo, de receitas / lucros.

O meio adequado para a prossecução de algum / alguns daqueles outros fins (pedagógicos, educativos, médicos, científicos…) não é um programa de televisão, muito menos um programa de televisão com este formato, ou seja, do tipo “reality show” / “documentário da realidade” (facto provado 14).

Uma definição corrente de reality shows é a de “programas de televisão em que as pessoas reais são continuamente filmadas e se dirigem mais a fins de entretenimento do que de informação” (“television programs in which real people are continuously filmed, designed to be entertaining rather than informative”)[51] .

A “reality show” faz-se, geralmente, corresponder – e fez-se também aqui corresponder (facto provado 14) –, em tradução não literal, “documentário da realidade”. Na verdade, o reality show tem uma dose consideravelmente maior de “show” do que de “realidade” e tem, em absoluto, uma dose cada vez menor de “realidade”. Como tem sido apontado, “as pessoas reais podem ser bastante desinteressantes (…). As pessoas reais são orientadas para actuar de determinada maneira por instrutores que permanecem fora do cenário e lhes dão dicas destinadas a criar polémica. O resultado chama-se 'realidade melhorada'[52].

É certo, quanto aos eventuais programas futuros, que, como alegam as recorrentes, no momento em que o Tribunal decretou as medidas aplicáveis não estavam determinados / não eram conhecidos os intervenientes, portanto, os que estariam sujeitos à ameaça de lesão. Sendo, porém, absolutamente seguro que o formato do programa se manterá, os intervenientes seriam, inevitavelmente, crianças. E seriam, inevitavelmente, crianças que seriam sujeitas a situações idênticas àquelas a que foram sujeitas as crianças que participaram nos programas anteriores. Relativamente àquelas – à necessidade de protecção da sua dignidade humana –, valem, portanto, as mesmas considerações que se teceu a propósito destas.

Em suma, a identidade das crianças que viessem a participar nos episódios futuros é absolutamente irrelevante para decidir as medidas adequadas à situação, sendo suficiente, por um lado, a sua qualidade de crianças e, por outro, os factos assentes sobre o tipo de programa em causa.


Respondidas as questões eminentemente substantivas, subsiste um último grupo de questões a tratar, suscitadas pela recorrente GG: as inconstitucionalidades e ofensas aos direitos humanos que, no seu entender, encerra o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa. Estas, como se viu na formulação, não são pouco numerosas. Nalguns casos, será, contudo, importante distinguir a interpretação que a recorrente GG atribui ao Tribunal e a interpretação que o Tribunal, de facto, faz de cada uma das normas.


5. Das alegadas inconstitucionalidades e ofensa dos direitos humanos do Acórdão recorrido


5.1. Da inconstitucionalidade material da interpretação do disposto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC por violação dos artigos 2.º, 3.º, 13.º e 20.º da CRP

Diz a recorrente que o Tribunal interpretou aquela norma no sentido de que o tribunal pode dar como provados factos para cuja apreciação são necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem (informação pericial, de acordo com o artigo 388.º do CC) com fundamento em prova testemunhal, prescindindo, portanto, das garantias legalmente impostas quanto à prova pericial (artigos 467.º a 489.º do CPC).

O artigo 607.º, n.º 5, do CPC determina que “[o] juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.

Ora, não se afigura que o Tribunal recorrido tenha retirado desta norma as consequências que a recorrente lhe imputa, designadamente, dando como provados certos factos (factos provados 65, 66, e 67) com base em certo tipo de prova (testemunhal) quando outro tipo de prova (pericial) era exigível e desrespeitando as garantias desta última.

Como afirmou o Tribunal recorrido, em resposta à mesma questão, o recurso à prova pericial foi feito no quadro da lei aplicável, inexistindo impedimento a que na mesma pessoa se concentrem as qualidades de testemunha e de perito. Decorre, depois, do artigo 389.º do CC que o tribunal aprecia livremente as respostas dos peritos, de acordo com a sua convicção, atribuindo o significado e a ponderação que entender adequados[53].

Não é, pois, inconstitucional a interpretação do artigo 607.º, n.º 3, do CPC realizada pelo Tribunal recorrido.


5.2. Da inconstitucionalidade material da interpretação do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC por violação dos artigos 2.º e 20.º da CRP (violação do princípio do Estado de Direito e do direito de acesso ao direito e do princípio da tutela jurisdicional efectiva) e da ofensa dos direitos humanos por violação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (violação do direito a um processo equitativo),

Alega a recorrente que o Tribunal a quo entendeu a norma do artigo 3.º, n.º 3, do CPC no sentido de que o Tribunal pode conhecer de matéria de Direito, suscitada a título oficioso, sem primeiramente dar às partes a possibilidade de quanto à mesma exercerem o contraditório.

Ora, não é esta, manifestamente, a interpretação da norma feita pelo Tribunal a quo. Como oportunamente explicitou, no seu Acórdão de 14.03.2019 (em que apreciou das nulidades invocadas pela recorrente), o Tribunal a quo apenas entende que, por um lado, sob pena de banalização, o “direito de audição complementar” aí referido não é absoluto – o que é confirmado pela letra e pelo espírito da lei – e, por outro lado, que a norma não impõe que, no que toca à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, o tribunal fique limitado às alegações das partes – o que é confirmado pelo disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC.

A este esclarecimento apenas se acrescentaria que o disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC é uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão[54], que resulta directamente do artigo 203.º da CRP (sujeição dos tribunais à lei) e ainda do artigo 202.º, n.º 2, da CRP (função dos tribunais de garantia da defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos). O disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC não obsta, assim, por princípio, ao conhecimento oficioso da norma jurídica.

Conclui-se, assim, que esta interpretação não enferma de inconstitucionalidade; antes está em conformidade com o que resulta da Constituição.


5.3. Da inconstitucionalidade material da interpretação do disposto nas als. b), c) e d) do artigo 615.º, n.º 1, do CPC por violação dos artigos 2.º e 20.º da CRP (violação do princípio do Estado de Direito e do direito de acesso ao direito e do princípio da tutela jurisdicional efectiva) e da ofensa dos direitos humanos por violação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (violação do direito a um processo equitativo)

No entender da recorrente, a norma foi interpretada no sentido de que o Tribunal pode decidir mediante invocação de argumentos de natureza abstracta, não estabelecendo relação de tais fundamentos teóricos com os factos concretos do caso, sem que tanto represente nulidade da decisão por omissão de pronúncia ou por falta ou obscuridade da fundamentação.

Não é isso, porém, o que resulta do pensamento exposto pelo Tribunal a quo, nem no Acórdão recorrido nem no Acórdão em que apreciou e decidiu das nulidades. Em todos os pontos em que lhe foram imputadas as nulidades reguladas nas als. b), c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, o Tribunal recorrido indicou por que razão não se verificavam as referidas nulidades, refutando existirem os vícios, consoante os casos, de falta de fundamentação, de oposição entre os fundamentos e a decisão ou ocorrência de obscuridade e de omissão de pronúncia. É de concluir, por isso mesmo, que a sua interpretação das normas é exactamente a mesma que a recorrente delas faz, sendo elas inaplicáveis porque as hipóteses não se verificam.

Não há, em síntese, inconstitucionalidade na interpretação dos preceitos em causa.


5.4. Da inconstitucionalidade material da interpretação do disposto na al. d) do artigo 615.º, n.º 1 do CPC por violação dos artigos 2.º e 20.º da CRP (violação do princípio do Estado de Direito e do direito de acesso ao direito e do princípio da tutela jurisdicional efectiva) e da ofensa dos direitos humanos por violação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (violação do direito a um processo equitativo)

A interpretação atribuída ao Tribunal recorrida foi a de que a norma autorizaria o Tribunal a furtar-se à decisão sobre concretas e expressas questões invocadas pela parte, pronunciando-se sobre questão diversa ou em absoluto omitindo pronúncia, sem que tanto represente nulidade da decisão por omissão de pronúncia.

Mais uma vez, não foi esta a interpretação feita pelo Tribunal da Relação de Lisboa do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

Conforme visto acima, sempre que lhe foi apontada a nulidade com fundamento naquela disposição, o Tribunal recorrido indicou por que razão a disposição não tinha aplicação, decorrendo daqui que a sua interpretação não é senão igual à que a recorrente defende e não está em causa a sua inconstitucionalidade.


5.5. Da inconstitucionalidade material da interpretação do disposto nos artigos 2.º a 11.º da Lei n.º 105/2009, de 14.09, por violação dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 110.º e 111.º, n.º 1, da CRP (violação do princípio da proporcionalidade e da separação de poderes)

A recorrente alega que o Tribunal da Relação de Lisboa retirou das normas mencionadas que os menores apenas podem participar em programas de televisão após pedido e concessão de autorização pela CPCJ.

As normas constituem o regime da participação do menor em actividade de natureza cultural, artística ou publicitária regulado naquela lei e respeitam às actividades permitidas a menor, à duração do período de participação em actividade, à responsabilidade por acidente de trabalho, à autorização ou comunicação de participação em actividade, ao pedido de autorização de participação em actividade, à deliberação da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, ao procedimento de comunicação de participação em actividade, Celebração do contrato e formalidades, às consequências de alteração do horário ou do aproveitamento escolar de menor e à autorização judicial.

Sem entrar em considerações sobre o mérito da aplicação das normas legais em causa (pois este não é o lugar próprio), dir-se-á, simplesmente, que não se vê como a interpretação imputada ao Tribunal recorrido poderia pôr em causa o princípio da proporcionalidade e da separação de poderes e, consequentemente, o disposto nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 110.º e 111.º, n.º 1, da CRP.


5.6. Da inconstitucionalidade material da interpretação do disposto nos artigos 878.º e 879.º do CPC por violação dos artigos 2.º, 110.º e 111.º, n.º 1, da CRP

Por fim, no entender da recorrente o Tribunal da Relação de Lisboa interpretou as normas relativas aos pressupostos (artigo 878.º do CPC) e aos termos posteriores (artigo 879.º do CPC) do processo especial de tutela da personalidade no sentido de que o tribunal pode decretar providências e decisões relativas a situações futuras e desconhecidas.

Em primeiro lugar, diga-se que não é verdade que o Tribunal recorrido tenha retirado daqui a possibilidade de decretar providências absolutamente desconhecidas.

Em segundo lugar, quanto à possibilidade de decretamento de providências futuras, não se vê, mais uma vez, como é que esta interpretação brigaria com as normas constitucionais respeitantes ao Estado de direito democrático, aos órgãos de soberania e à separação e interdependência destes.



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III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.



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Custas de cada revista por cada recorrente.



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LISBOA, 30 de Maio de 2019


Catarina Serra (Relatora)

Bernardo Domingos

João Bernardo

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[1] Isto significa, a contrario, que o objecto do recurso não é delimitado pelas alegações, pelo que não poderá considerar-se, para este efeito, as alegações para que a recorrente GG remete, de forma sistemática, no final de cada grupo de conclusões.
[2] Em que apenas foi alterado o teor do facto 63.
[3] O teor final do ponto 63 dos factos assentes resulta da apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto levada a cabo pelo Tribunal recorrido.
[4] Sublinhados do Relator.
[5] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.04.2019 , Proc. 2758/15.3T8BCL.G1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[6] Cfr. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, “O processo especial de tutela da personalidade, no Código de Processo Civil de 2013”, in: Jurismat, Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes, Portimão, 2014, n.º 5, p. 68.
[7] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.04.2019 , Proc. 2758/15.3T8BCL.G1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[8] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.03.2014, Proc. 555/2002.E2.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[9] Cfr. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, “O processo especial de tutela da personalidade, no Código de Processo Civil de 2013”, cit., p. 69 (sublinhados da autora).
[10] Cfr. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, “O processo especial de tutela da personalidade, no Código de Processo Civil de 2013”, cit., p. 70.
[11] Resulta isto da conjugação do n.º 2 do artigo 70.º do CC (“a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer providências adequadas às circunstâncias do caso”) com o n.º 4 do artigo 879.º do CPC (“o tribunal determina o comportamento concreto a que o requerido fica sujeito”). Cfr., neste sentido, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, “O processo especial de tutela da personalidade, no Código de Processo Civil de 2013”, cit., p. 69 (sublinhados da autora). Cfr. no mesmo sentido Maria de Fátima Ribeiro, “Anotação ao artigo 70.º do Código Civil”, in: AAVV, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, p. 174.
[12] Cfr. Tiago Soares da Fonseca, “Da tutela judicial civil dos direitos de personalidade – Um olhar sobre a jurisprudência”, in: Revista da Ordem dos Advogados, 2006, vol. I, pp. 231 e s.
[13] Cfr. Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, (4.ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto) 2005, p. 210.
[14] Indo mais longe, Orlando de Carvalho (Teoria Geral do Direito Civil – Sumários desenvolvidos para uso dos alunos do 2.º ano (1.ª turma) do Curso Jurídico de 1980/1981, Coimbra, Centelha, 1981, p. 180) reconhece mesmo um “direito geral de personalidade” ou um “direito à personalidade no seu todo”, abrangendo “todas as manifestações previsíveis e imprevisíveis da personalidade humana” e associado à “pessoa-ser em devir”.
[15] Antes da revisão de 2013, o instrumento rigorosamente homólogo (e homónimo) estava regulado no artigo 1474.º do CPC (sob a epígrafe “Requerimento”), dentro do capítulo reservado aos processos de jurisdição voluntária. Por contraste, o processo especial de tutela da personalidade ocupa agora o primeiro lugar nos processos especiais de jurisdição contenciosa. Esta deslocação tem, evidentemente consequências ao nível da delimitação entre os poderes das partes e do juiz, quanto aos factos de que o tribunal pode conhecer para julgar, ao critério de julgamento, ao valor das resoluções proferidas, à admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e à inaplicabilidade legal das regras de tramitação dos incidentes. A outra diferença reside na previsão actual de uma providência cautelar sem processamento autónomo e eventualmente sem contraditório prévio (cfr. artigo 874.º, n.º 5, do CPC), com o intuito de não frustrar a eventual urgência das medidas preventivas ou atenuantes requeridas. Cfr., para mais desenvolvimentos, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, “O processo especial de tutela da personalidade, no Código de Processo Civil de 2013”, cit., pp. 64 e s.
[16] Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra, Almedina, 2018, p. 770 (sublinhados do autor). Também Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (“O processo especial de tutela da personalidade, no Código de Processo Civil de 2013”, cit., p. 77), diz que “[se] esclareceu que o processo especial tem um âmbito de aplicação genérica, como meio judicial de tutela da personalidade e de execução do nº 2 do artigo 70º do Código Civil. Suscitava-se na verdade a dúvida, a meu ver infundada, sobre se o processo apenas se poderia aplicar à tutela preventiva ou atenuante dos direitos de personalidade especificados nos artigos 1474º e 1475º, inseridos numa secção cujo título era tutela da personalidade, do nome e da correspondência confidencial” (sublinhados da autora).
[17] Mesmo aqui, ou seja, quando o requerente pede a atenuação ou a cessação da ofensa ao direito do requerente, a acção desempenha, no fundo, também uma função preventiva (cfr., neste sentido, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, “O processo especial de tutela da personalidade, no Código de Processo Civil de 2013”, cit., p. 79).
[18] Veja-se, para a destrinça entre a acção inibitória e o procedimento cautelar, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.10.2010, Proc. 18645/10.9T2SNT.L1-2 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[19] Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, cit., pp. 772-773 (sublinhados do autor).
[20] Este ponto é confirmado no (referido) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2016, onde se diz: “[a] aplicação das providências previstas no art. 70.º, n.º 2 do CC não depende de culpa do lesante, já que os pressupostos destas providências não se confundem com os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos (art. 483.º, n.º 1), bastando que o facto seja voluntário e ilícito. Trata-se de uma providência de proteção, que deve funcionar mesmo em situações puramente objetivas, independentemente de culpa do agente (Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 121)”.
[21] Cfr. o (referido) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2016. Proc. 3446/14.3TBSXL.L1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[22] Tende-se a concordar com Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (“O processo especial de tutela da personalidade, no Código de Processo Civil de 2013”, cit., p. 77) quando diz que a norma “[e]sclarece que a ofensa tem que ser ilícita e directa. Não creio que o Código de Processo Civil seja o local próprio à definição destes requisitos, de natureza substantiva. Para a escolha da via processual não se pode previamente averiguar se é lícita ou ilícita, ou directa ou indirecta a ofensa ou a ameaça alegada pelo requerente”.
[23] Este é um “postulado axiológico do jurídico” (cfr. Paulo Mota Pinto, “Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos de personalidade no Direito português”, in: Ingo Wolfgang Sarlet / José Luís Bolzan de Morais, A Constituição concretizada: construindo pontes com o publico e o privado, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000, p. 61).
[24] Cfr. Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria geral do Direito Civil, cit., p. 208 (sublinhados do autor).
[25] Cfr. Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil – Sumários desenvolvidos para uso dos alunos do 2.º ano (1.ª turma) do Curso Jurídico de 1980/1981, cit., p. 183.
[26] Cfr. Manuel Carneiro da Frada, “A Ordem Pública no Direito dos Contratos”, in: Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, p. 83.
[27] Cfr. Manuel Carneiro da Frada, “A Ordem Pública no Direito dos Contratos”, cit., p. 91 (itálicos do autor).
[28] Um exemplo paradigmático é o caso francês das competições de lançamento de anões, que consistiam no lançamento de anões, em bares e discotecas, com vista a ver qual deles atingia a maios distância. Estando salvaguardada a integridade física dos sujeitos (os anões estavam equipados com vestuário protector e o lançamento era feito para um colchão), punha-se a questão da ofensa à dignidade humana. Na decisão do Conseil d’Etat julgou-se que a dignidade humana é um valor que não tolera limitações, nem sequer quando elas são determinadas voluntariamente pelo seu titular. A decisão pode ser consultada em Revue Française de Droit Administratif, 1995, n.º 11 (6), pp. 1024 e s.
[29] Os menores de dezoito anos são incapazes, sendo a sua incapacidade suprida pelo poder paternal e, subsidiariamente, pela tutela (cfr. artigo 124.º do CC) e ficando sujeitos às responsabilidades parentais até à sua maioridade ou emancipação (cfr. artigos 1877.º do CC).
[30] Sublinhados nossos.
[31] Cfr. Paulo Mota Pinto, “A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, in: Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra, Coimbra Editora: 2001, pp. 527 e s. Cfr. ainda, do mesmo autor, “Notas sobre os direitos de personalidade no Direito português”, cit. pp. 61 e s.
[32] A expressão é usada por Orlando de Carvalho (Teoria Geral do Direito Civil – Sumários desenvolvidos para uso dos alunos do 2.º ano (1.ª turma) do Curso Jurídico de 1980/1981, 1981, cit., p. 180).
[33] Cfr. Orlando de Carvalho, “Les Droits de L'Homme dans le Droit Civil Portugais“, in : Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1973, 49 (1), p. 11 e pp. 14-15 (tradução, a partir do francês, da exclusiva responsabilidade da presente relatora).
[34] Estavam, pois, a GG e a HH em condições de prever que em Portugal surgiria igual contestação.
[35] Independentemente do significado técnico que lhe possa corresponder, usa-se a expressão no seu sentido comum; i.e., como entidades que têm interesse directo na comercialização do programa.
[36] O texto da decisão está disponível, em língua alemã, em http://www.rechtsprechung.niedersachsen.juris.de/jportal/portal/page/bsndprod.psml?doc.id=MWRE140002695&st=null&doctyp=juris-r&showdoccase=1&paramfromHL=true#focuspoint (tradução da exclusiva responsabilidade da presente relatora).
[37] Cfr. Günter Dürig, “Der Grundrechtssatz von Menscherwürde – Entwurf eines praktikablen Wertsystems der Grundrechet aus Art. 1 Abs. 1 in Verbindung mit Art. 19 Abs. II des Grundgesetez”, in: Archiv des öffentlichen Rechts, 1956, p. 125.
[38] Cfr. Günter Dürig, “Der Grundrechtssatz von Menscherwürde – Entwurf eines praktikablen Wertsystems der Grundrechet aus Art. 1 Abs. 1 in Verbindung mit Art. 19 Abs. II des Grundgesetez”, cit., pp. 152-153.
[39] A doutrina tem merecido a consideração de diversos autores portugueses. Cfr., por exemplo, Nuno Manuel Pinto Oliveira, O Direito geral de personalidade e a 'solução do dissentimento' – Ensaio sobre um caso de 'constitucionalização' do Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, pp. 105 e s., e Benedita Mac Crorie, Os limites da renúncia a direitos fundamentais nas relações entre particulares, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 229 e s.
[40] Cfr., neste sentido, expressamente, o (referido) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2016. Proc. 3446/14.3TBSXL.L1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[41] Veja-se a nota prévia quanto ao alcance do presente recurso.
[42] Cfr., por todos, António Bentes de Oliveira, “Trabalho de menores em espetáculos e publicidade”, in: Questões Laborais, 2000, 16, p. 191 e p. 94.
[43] Os proventos pertenceriam, neste caso, ao menor e não aos seus representantes. Cfr., neste sentido, Paulo Mota Pinto, “A limitação voluntário do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, cit., pp. 527 e s.
[44] O que não é consensual. Veja-se, por exemplo, Júlio Vieira Gomes, Direito do Trabalho, vol. I – Relações individuais de trabalho, Coimbra, Coimbra Editora 2007, pp. 455-456.
[45] Cfr. Elsa Vaz de Sequeira, “Anotação ao artigo 335.º do Código Civil”, in: AAVV, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, p. 790.
[46] Diz, por exemplo, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (“O processo especial de tutela da personalidade, no Código de Processo Civil de 2013”, cit., p. 72) que “[p]or regra, os processos de tutela da personalidade respeitam a situações de conflito entre direitos” e, logo a seguir, “[é] incontestável que normalmente existe um conflito de direitos entre o requerente que inicia um processo de tutela de direitos de personalidade e o requerido”.
[47] Cfr. João Paulo Remédio Marques, “Alguns aspectos processuais da tutela da personalidade humana na revisão do processo civil de 2012”, in: Revista da Ordem dos Advogados, 2012, vols. II / III, p. 656 (sublinhados do autor).
[48] De acordo com o critério do interesse ou fim do exercício em concreto, o critério da minimização dos danos e o critério dos lucros do exercício. Cfr., sobre estes critérios, Elsa Vaz de Sequeira, “Anotação ao artigo 335.º do Código Civil”, cit., p. 793.
[49] Nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, Coimbra, 2015 (8.ª edição), p. 46): “Quanto à natureza e conteúdo das providências, a lei diz apenas que serão 'as adequadas às circunstâncias do caso'. Deixa-se assim, uma larguíssima margem de liberdade ao juiz a quem forem requeridas. Mas esta liberdade não pode ser total nem sem critério. Da letra da lei resulta desde logo que as providências devem ser adequadas, o que exclui o excesso. Deve, assim, entender-se que, ao decretar as providências, o juiz não deve exceder o que for suficiente e deve actuar com moderação, de modo a lesar ou perturbar o menos possível terceiros. Há que encontrar, caso a caso, um equilíbrio entre o mínimo possível de lesão ou incómodo a terceiros e a eficácia necessária. Tudo isto de acordo com o prudente arbítrio do julgador”.
[50] São ainda escassas as decisões em que os tribunais portugueses se confrontaram com problemas idênticos ao que aqui se apresenta, envolvendo o conflito entre os direitos de personalidade das crianças e a liberdade de expressão, detida por outros titulares. Cumpre salientar o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25.06.2015, Proc. 789/13.7TMSTB-B.E1 (disponível em http://dgsi.pt), em cujo sumário se afirma: “A imposição aos pais do dever de 'abster-se de divulgar fotografias ou informações que permitam identificar a filha nas redes sociais' mostra-se adequada e proporcional à salvaguarda do direito à reserva da intimidade da vida privada e da protecção dos dados pessoais e, sobretudo, da segurança da menor no Ciberespaço”.
[51] A definição consta de Oxfordictionaries.com (http://www.oxforddictionaries.com/us/definition/american_english/reality-tv).
[52] Cfr. M. Kitman, “On Television”, 2009, apud Scott J. Weiland / Kaitlyn Dunbar, “What’s real about reality television?”, in: Journal of Mass Communication & Journalism, 2016, 6 (3), pp. 1-2 (tradução, a partir do inglês, da exclusiva responsabilidade da presente relatora).
[53] Cfr., no mesmo sentido, por todos, Francisco Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, volume II, p. 307.
[54] Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º - Artigos 1.º a 361.º, Coimbra, Almedina, 2018 (4.ª edição), p. 40.