Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
84/07.0TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
REQUISITOS
ÓNUS DA PROVA
FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS INSTRUMENTAIS
CESSÃO DE QUOTA
CONTRATO-PROMESSA
Data do Acordão: 03/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES / CONSERVAÇÃO DA GARANTIA PATRIMONIAL / IMPUGNAÇÃO PAULIANA / REQUISITO DE MÁ FÉ.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO / EXCEÇÕES / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., p. 653;
- Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. I, Almedina 2010, p. 241;
- Gonçalo dos Reis Martins, Código Civil Anotado, Coordenação de Ana Prata, Vol. I, 2017, Almedina, p. 790 e 791;
- Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 2ª edição, p. 660;
- Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª edição, 2004, Almedina, p. 252;
- Miguel Teixeira de Sousa, Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia, Cadernos de Direito Privado n.º 44, Outubro/Dezembro de 2013, p. 29 e ss. ; Estudos sobre o novo Processo Civil, p. 348;
- Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, 2ª Edição, Volume I, Almedina, p. 40, 588 e 589;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 3º Edição Revista e Actualizada, 1982, p. 594, 595, 596 e 599;
- Vaz Serra, RLJ, ano 100º, p. 206-207.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 612.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 581.º, N.º 4, 608.º, N.º 2, 635.º, N.º 4, 639.º, N.ºS 1 E 2 E 663.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 19-12-1972, IN BMJ N.º 222, P. 386 E SS.;
- DE 08-06-2011, PROCESSO N.º 350/98.4TAOLH.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 06-07-2011, PROCESSO N.º 8609/03.4TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 06-07-2011, PROCESSO N.º 645/05.2TBVCD.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 24-09-2013, PROCESSO N.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT.


-*-


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 55/85, IN BMJ 360 (SUPLEMENTO), P. 195.
Sumário :
I - São assim requisitos da impugnação pauliana:

– Que haja um prejuízo causado pelo acto impugnado à garantia patrimonial;
- Anterioridade do crédito ou caso o crédito seja posterior ter sido o acto dolosamente realizado com o fim de impedir a satisfação do crédito pelo mesmo acto.
- O requisito da má fé previsto no artigo 612º do Código Civil.

II - Competia aos autores, enquanto credores dos 1ºs réus, a prova:
- do montante das dívidas;
- que dos actos impugnados tenha resultado para os autores a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade, devendo tal juízo ou ponderação ser efectuada com referência à data daqueles actos impugnados;
- a anterioridade do seu crédito ou, sendo posterior, a prova de que as cessões de quotas impugnadas foram realizadas com a intenção de impedir a satisfação do seu ulterior ou futuro crédito;
- sendo onerosos os actos impugnados, a má fé dos réus na sua outorga, traduz-se na consciência do prejuízo que tais actos causavam aos autores.

III - Os actos impugnados foram praticados em 26.10.2006.

IV - A decisão donde decorre a obrigatoriedade dos 1ºs réus pagarem aos autores a quantia correspondente ao dobro do sinal – que reconhece ou define o crédito dos ora autores -, transitou em julgado em 18.05.2015.

V - Factos essenciais são os previstos nas fatispécies das normas das quais pode emergir o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou pelo reconvinte (ou nos quais pode fundar-se a excepção deduzida pelo réu), sendo imprescindíveis para a procedência da acção ou da reconvenção (ou da excepção) – artº 581º nº 4 CPC..

VI - Os factos instrumentais, não preenchendo a fatispécie de qualquer norma de direito substantivo que confira um direito ou tutele um interesse das partes, permitem, mediante presunção, chegar à demonstração de factos principais – tendo, pois, uma função probatória.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO

AA e mulher BB, intentaram acção de impugnação pauliana, sob a forma de processo ordinário, contra:

- DD e mulher EE(1ºs réus);

- FF e mulher GG (2ºs réus),  

pedindo:

a) Que se declare a ineficácia das cessões de quotas identificadas nos artigos 1º a 9º (cf., documentos 1 e 3), reconhecendo-se a possibilidade dos autores impugnantes executarem no património dos 2ºs réus as identificadas quotas;

b) Que se declare o direito dos autores a praticarem sobre as aludidas quotas todas as medidas conservatórias de garantia patrimonial do seu crédito.

Em síntese, alegaram o seguinte:

No dia 26/10/2006, os 1ºs réus cederam aos 2ºs réus a totalidade do capital social da sociedade HH, Lda, bem como duas quotas de que eram titulares na sociedade II, Lda, tendo tais cessões sido efectuadas por preços iguais aos valores nominais das quotas.

E, através de tais cessões, os 2ºs réus passaram a ser titulares, directa ou indirectamente, da totalidade do capital social daquelas sociedades;

Sendo a II Lda, a proprietária do edifício onde está instalado o Hotel ..., que é gerido e explorado pela sociedade HH, Lda.

Os autores e 1ºs réus, por escrito datado de 01/01/2006, outorgaram contrato promessa de Cessão de Quotas e Acordos Complementares, tendo por base as quotas supra enunciadas.

Acordaram na entrega, pelos autores aos 1ºs réus, do sinal no montante de € 2.600.000,00, tendo, logo no acto da assinatura do contrato pago aos 1ºs réus a quantia de € 1.582.906,80;

Sendo que, desde logo, por deliberação da assembleia-geral de 11/01/2006, foi o autor marido designado gerente da HH, Lda, em substituição na gerência do 1º réu marido DD.

Em 11/10/2006, às ocultas dos autores, os 1ºs réus lavraram acta da assembleia-geral da HH... da, na qual deliberaram destituir o autor marido da gerência, designando um gerente “de palha”. E, paralelamente, desapossaram os autores do hotel, impedindo-os de entrarem nas instalações do mesmo, incumprindo, de forma frontal e definitiva, o contrato celebrado em 11/01/2006. O que fizeram em virtude de terem negociado com os 2ºs réus os mesmos bens (quotas).  Em virtude de tal incumprimento dos 1ºs réus, têm os autores o direito de exigir-lhes, em dobro, as quantias entregues a título de sinal e princípio de pagamento.

Os actos impugnados foram outorgados dolosamente com o fim de impedir a satisfação do crédito dos autores. Pois os 1ºs réus não possuem em Portugal património suficiente para responder por tal avultado crédito dos autores.

Os 1ºs e 2ºs réus são sócios e amigos de longa data e os 2ºs réus sabiam do negócio que os 1ºs réus tinham celebrado com os autores.

Todos os réus agiram concertadamente e com plena consciência de que estavam a lesar os direitos dos autores, quando outorgaram as cessões de quotas ora impugnadas.

Ou seja, tiveram plena consciência de que com as cessões de quotas tornavam difícil ou impossível a satisfação do crédito dos autores. Os réus quiseram apenas simular as cessões de quotas e os cessionários, 2ºs réus, são meros “testas de ferro” dos 1ºs réus.

Os 2ºs réus não pagaram sequer o preço que declaram nas escrituras (500.973,09 €), pois o que celebraram foram negócios gratuitos, destinados exclusivamente a colocar no lugar dos 1ºs réus os 2ºs réus, quanto à titularidade do capital social das duas sociedades.

           

Os 2ºs réus contestaram, alegando, em síntese, o seguinte:

Desconhecem os termos e condições em que os autores vieram negociar e a assinar com os 1ºs réus o referenciado contrato promessa de Cessão de Quotas. Remonta ao ano de 2004 o interesse do 2º réu marido em adquirir uma participação social nas identificadas sociedades.

Fruto de ter pago a totalidade do sinal perante os anteriores donos das quotas, na sequência de contrato-promessa entretanto celebrado, e cuja participação cedeu aos 1ºs réus, bem como de empréstimo que lhes efectuou posteriormente, os 1ºs réus ficaram com uma dívida perante o 2º réu, a qual, em Março de 2005, ascendia ao montante de 2.470.000,00 €.

Em Janeiro de 2006, o 2º réu teve conhecimento que havia nova gerência no hotel e que o mesmo iria ser vendido.

Pelo que interpelou de imediato o 1º réu, já que tinha uma quantia avultada para receber, tendo então tomado conhecimento do contrato promessa outorgado com os ora autores. Contactaram então contactado com estes, e reunido posteriormente com os mesmos em 19/04/2006, onde expôs a sua situação, dando-lhes conhecimento do crédito que tinha sobre os 1ºs réus.

E pedindo-lhes que o informassem da data e local da outorga da escritura de cessão das quotas das sociedades, de forma a que, no acto do pagamento do remanescente do valor, pudesse ver de imediato o seu crédito satisfeito.

No início de Outubro de 2006, o 1º réu marido contactou o 2º réu marido e deu-lhe conta do incumprimento contratual dos ora autores.

Mencionando que, por causa desse incumprimento, a venda já não se iria realizar, o que colocava o Hotel ... em difícil situação financeira.

Pelo que, receando a não satisfação do seu crédito, que se situava na quantia de 2.170.000,00 €, os 2ºs réus propuseram aos 1ºs réus a compra do Hotel, através da alienação total do capital social das firmas II e HH..., pelo preço global de 5.000.000,00 €, incluindo neste o preço de todas as despesas com as obras de ampliação do Hotel e sua remodelação.

O que foi aceite pelos 1ºs réus em 20/10/2006, que lhes apresentaram cópia de uma carta de destituição de gerente, datada de 11/10/2006, bem como cópia de uma carta enviada aos autores, comunicando a cessação dos efeitos do contrato promessa, por incumprimento deste.

O que convenceu os 2ºs réus que o negócio tinha ficado sem efeito e determinou a cessão das quotas ora impugnada, as quais foram efectivamente realizadas e declaradas pelo valor nominal das quotas e não pelo valor real do negócio, por exigência dos 1ºs réus, que invocaram questões relacionadas com mais-valias, a que os 2ºs réus acederam.

Conforme demonstram, o negócio foi efectivamente realizado pelo preço de 5.000.000,00 €, tendo os 2ºs réus sempre actuado em plena boa-fé.

Poucos meses após a aquisição, os 2ºs réus já injectaram no referido estabelecimento mais de 350.000,00 €, situação que só se compadece com quem efectivamente adquiriu tais firmas com o objectivo de nelas exercer a sua actividade.

Concluem pela total improcedência da acção, devendo os réus ser absolvidos do petitório deduzido.

O 1ºs réus contestaram, aduzindo, em síntese, o seguinte:

Em Dezembro de 2005 o hotel necessitava de efectuar obras de elevado valor, não só fruto da degradação existente, como ainda para obter o devido licenciamento. Não tendo capacidade económica para realizá-las e tendo uma dívida para com os 2ºs réus superior a 2.000.000,00 €, os 1ºs réus decidiram ceder as quotas nas duas identificadas sociedades pelo preço de 6.000.000,00 €.

Após terem sido procurados por vários interessados, os autores contactaram-nos em Dezembro de 2005, afirmando-se igualmente interessados na aquisição do “Hotel ...”.

Após inteirarem-se da situação do hotel, os autores solicitaram uma redução do preço, fruto do elevado valor que calculavam necessário para a realização das obras, propondo o valor de 5.500.000,00 €, o que foi aceite pelos 1ºs réus.

Acordando no pagamento do sinal de 2.600.000,00 €, sendo que o demais montante de 2.900.000,00 € seria pago no acto da realização da escritura definitiva.

Pelo que, de imediato pagaram, a título de sinal, o montante de 1.582.906,80 €, retendo a demais parte – 1.017.093,20 € - para pagamento das dívidas ao JJ, KK e LL.

Foi então outorgado contrato promessa de cessão das quotas, acordando-se que a escritura seria celebrada no prazo de 90 dias a contar da data aposta no contrato (01/01/2006), e que, se a escritura não pudesse ser celebrada nesse prazo, poderia ainda ser realizada até ao máximo de 180 dias após o prazo inicial acordado, ou seja, até 01 de Outubro de 2006, sem penalização para os autores, ou com ela, dependendo de a escritura ser celebrada até 01 de Julho de 2006, ou depois dessa data até ao prazo limite de 01/10/2006.

Nunca se tendo combinado ou sequer falado que a escritura poderia ser celebrada no prazo de um ano. Os autores não procederam à regularização do passivo com que se tinham comprometido.

Sendo que o empréstimo autorizado em assembleia-geral da HH... destinava-se à realização das obras necessárias, e nunca ao financiamento da operação de aquisição das quotas sociais.

Os autores nunca tiveram a intenção de pagar a restante parte do preço acordado, com dinheiro próprio, nem de efectuar obras, no valor de 4.500.000,00 € ou aproximado.

Tendo incumprido o acordado com os réus promitentes cedentes.

Pelo que, chegados ao termo final para a realização da escritura definitiva atinente ao contrato promessa, cuja marcação incumbia aos autores, estes não tinham liquidado as dívidas bancárias (que fazia parte do pagamento do sinal), o pagamento à MM e não tinham procedido à marcação da escritura pública, de forma a pagarem a restante parte do preço, entrando assim em incumprimento.

E, no exercício da gerência, o autor marido gerou conflitos com várias entidades (fornecedores, bancos, empreiteira, agências), com os trabalhadores e mesmo com os clientes que se relacionavam com o hotel.

Levando a que este tivesse perdido clientela e sofrido perdas, o que levou à destituição do autor marido como gerente do hotel. E, em 17/10/2006, os 1ºs réus remeteram aos autores carta a comunicar que faziam cessar os efeitos do contrato-promessa de cessão de quotas, resolvendo o mesmo, com as necessárias consequências legais, discriminando, ainda, as respectivas razões.

Através do incumprimento contratual dos autores, e da sua HHão ruinosa e danosa para o hotel, os 1ºs réus vivenciaram uma situação económica e financeira muito complicada, com dívidas à Banca, à empreiteira MM e sendo constantemente pressionados pelos 2ºs réus para lhes pagarem o montante em dívida.

Pelo que, não tendo condições económicas para prosseguir com a HHão do hotel, e muito menos para as necessárias obras, acabaram por negociar com os 2ºs réus a aquisição, por estes, das quotas das sociedades HH... e II

Tendo o 1º réu marido contactado o 2º réu marido, em meados de Outubro de 2006, dando-lhe conhecimento do incumprimento dos autores, pelo que os 1ºs réus não poderiam pagar aos autores o valor que lhes deviam.

Tendo então o 2º réu marido proposto a aquisição das quotas prometidas vender, pelo preço global de 5.000.000,00 €, o que os 1ºs réus se viram obrigados a aceitar, face à situação vivenciada pelo hotel, ainda mais degradada após a gerência do autor marido.

E, após outorga do contrato-promessa de cessão, datado de 23/10/2006, as escrituras definitivas de cessão foram celebradas em 26/10/2006.

Sendo que presentemente os 2ºs réus já realizaram todas as obras previstas e necessárias, pelas quais pagaram cerca de 4.000.000,00 €.

Pelo que os negócios realizados após o incumprimento dos autores são reais, realizados de boa-fé e não tiveram por objectivo prejudicar os autores ou tornar difícil ou impossível a cobrança do alegado crédito, que não existe.

Concluem pela total improcedência da acção, devendo ser absolvidos do pedido.

A fls. 527 a 536, vieram os autores requerer a intervenção principal provocada de NN, SA., o que foi admitido por despacho de fls. 784, determinando-se a citação da chamada como associada dos réus, nos termos do artº 327º do Cód. de Processo Civil.

A chamada apresentou contestação, (fls. 791 a 795), dizendo, em síntese, o seguinte:

A constituição da sociedade contestante é a expressão de que os 2ºs réus nada fizeram e em nada colaboraram para que os interesses dos autores fossem beliscados, nomeadamente no quadro do contrato-promessa entre os autores e os 1ºs réus.

Pelo que, caso os 2ºs réus tivessem algo a esconder, certamente que não constituiriam uma sociedade com uma firma que, facilmente, fica associada a um deles.

Sendo que a ora chamada mais não é do que um meio de cariz empresarial que os 2ºs réus encontraram de, com uma nova entidade, poder aceder a capitais alheios necessários ao saneamento das empresas adquiridas.

A questão essencial resume-se a um litígio entre os autores e os 1ºs réus, já que foi entre estes que se gerou a polémica pela resolução do contrato-promessa.

Contestando-se o alegado pelos autores relativamente à má-fé da chamada, bem como quaisquer alusões que lhe apontem, ou aos 2ºs réus, qualquer intervenção concertada com os 1ºs réus, ou tentativa de prejuízo dos autores.

Conclui no sentido de que, para além do aduzido na contestação dos 2ºs réus, seja considerada improcedente a argumentação aposta no requerimento de intervenção provocada.

Em 20.05.2016, foi proferida sentença (fls. 1723 a 1728), que julgou a acção improcedente e absolveu os réus dos pedidos.

Por acórdão de 03.05.2018 foi julgado totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelos autores e confirmada a sentença apelada.

Os autores, entendendo que se gerou a dupla conforme, impeditiva do recurso de revista normal, interpuseram recurso de revista excepcional, invocando o disposto no artigo 672º nº 1 alªs a) e b) do Código de Processo Civil, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª - Face à estrutura do litígio objecto do recurso, e ao disposto no artigo 672° n° 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil, justifica-se a admissibilidade do recurso de revista excepcional.

2ª - Está provada a factualidade reveladora de que os recorridos, quando outorgaram no contrato de cessão de quotas societárias, agiram com plena consciência de que estavam a lesar os direitos dos recorrentes e de que, com essa cessão, tornavam difícil ou impossível a satisfação do crédito dos recorrentes.

3ª - A decisão da Relação, decidindo em sentido contrário, infringiu o disposto nos artigos 607°, n° 4, 662°, n° 1 e 663° n° 2, do CPC, e 349° do Código Civil.

4ª - O Supremo Tribunal de Justiça tem competência para sindicar a referida decisão da Relação que não declarou provados os mencionados factos.

5ª - O direito de crédito dos recorrentes é jurídica e cronologicamente anterior à celebração dos contratos de cessão de quotas celebrados entre os recorridos DD e EE e FF e GG.

6ª - A Relação, ao julgar que o direito de crédito dos recorrentes é posterior à celebração dos contratos de cessão de quotas, infringiu o disposto nos artigos 432° n° 1, 434º n° 1 e 610° alínea a), do Código Civil.

7ª - Considerando a manifesta desproporção entre o valor real das quotas societárias cedidas e a quantia paga pelos cessionários aos cedentes como contrapartida, os contratos reconduzem-se a actos gratuitos.

8ª - Ainda que os referidos contratos fossem de qualificar juridicamente como actos onerosos - e não o são - estão provados os factos justificativos da declaração da sua ineficácia.

9ª - Decidindo em sentido contrário, a Relação infringiu o disposto no referido artigo 612° do Código Civil.

10ª - Provados que estão, conforme resulta do exposto, todos os requisitos legalmente previstos para a procedência da impugnação dos contratos de cessão de quotas, a decisão recorrida deve ser substituída por outra que declare a ineficácia daqueles contratos.

Os 2ºs réus responderam, pugnando pela negação da admissibilidade da revista excepcional.

A Formação, por acórdão de 19.12.2018 (fls 2214 a 2219), admitiu a revista excepcional, por se encontrar preenchido o pressuposto da alínea a) do nº 1 do artigo 672º do CPC, ficando prejudicada a apreciação do da alínea b).

Ali se escreveu o seguinte:

“10. Como se vê temos aqui as questões consistentes em saber:

(i) - O nível de abrangência do artigo 417º do Código de Processo Civil, sobre o qual mingua a jurisprudência;

(ii) - A relevância do comportamento omissivo neste domínio, nomeadamente quanto à inversão do ónus de prova;

(iii) - A distinção entre factos instrumentais e principais;

(iv) - O regime relativo à posteridade do crédito – ela mesmo posta em dúvida no recurso – no instituto da impugnação pauliana;

(v) - O regime relativo à prova dos factos integrantes do dolo e da culpa consciente neste domínio (aqui também com intensa controversidade no recurso)”.

II -FUNDAMENTAÇÃO

A) Fundamentação de facto

Os factos provados, com as alterações resultantes do acórdão, são os seguintes:

- Por escritura de 26 de Outubro de 2006, no Cartório Notarial de Faro e perante a Notária OO, os 1ºs RR cederam aos 2ºs RR a totalidade do capital social da sociedade por quotas “HH, LIMITADA”, com sede na Rua …, freguesia ..., Concelho de …, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de … sob o nº ..., com o capital social de € 249.398,95 (duzentos e quarenta e nove mil trezentos e noventa e oito euros e noventa e cinco cêntimos), dividida em duas quotas, uma de € 124.699,48 (cento e vinte e quatro mil seiscentos e noventa e nove euros e quarenta e oito cêntimos) pertencente ao sócio ora R. DD, e outra de € 124.699,47 (cento e vinte e quatro mil seiscentos e noventa e nove euros e quarenta e sete cêntimos) pertencente à sócia, ora R. EE.

- Nos termos de tal escritura a quota titulada em nome do sócio R. DD foi cedida ao R. FF, enquanto a quota titulada em nome da sócia R. EE foi cedida à R. GG.

- Ambas as cessões foram efectuadas por preço igual ao valor nominal indicado no ponto 1 ;

- Os 1ºs RR, na qualidade de cedentes declararam na aludida escritura ter recebido dos cessionários, ora 2ºs RR., os mencionados preços.

- Os 2ºs RR passaram a ser, por virtude de tal cessão de quotas, os únicos sócios da identificada sociedade HH..., LDA.

- As cessões de quotas foram registadas pela Ap. 7/20061102 e Ap. 8/20061102.

- Na mesma data e Cartório, foi celebrada escritura pública de cessão de quotas entre os mesmos intervenientes, ora 1º RR e 2º RR, nos termos da qual os 1ºs RR cederam ao R. FF uma quota de € 125.697,07 (cento e vinte cinco mil seiscentos e noventa e sete euros e sete cêntimos) de que o R. DD era titular na sociedade II, LIMITADA, registada na Conservatória Registo Comercial de Faro sob o nº …, com sede na urbanização ..., Lote Zona …, freguesia ..., Concelho de …, com o capital social de €1.675.960,94.

- Pela mesma escritura, os 1ºs RR. cederam à R. GG uma quota do valor nominal de € 125.697,07 (cento e vinte cinco mil seiscentos e noventa e sete euros e sete cêntimos) titulada na sociedade identificada no ponto 7º.

- As cessões de quotas referidas nos pontos 7º e 8º foram efectuadas por preços iguais aos valores nominais.

10º - Todos os RR sabem que o valor real é da ordem dos € 5.500.000,00.

11º - Na mesma escritura, foi alterado o artigo 3º do contrato social referente ao capital social da II, LIMITADA, o qual passou a ter a seguinte redacção:


“TERCEIRO

O capital social integralmente realizado em dinheiro é de 1.675.960,94, representado por cinco quotas: uma de € 125.697,07 pertencente ao sócio FF, e outra de igual valor nominal pertencente à sócia GG, três quotas, uma de 1.005.576,56 e duas de 209.495,12 pertencentes à sócia HH LIMITADA”.

12º - Consequentemente, através das cessões de quotas atrás identificadas relativas às duas sociedades, os 2ºs RR passaram a ser titulares directa ou indirectamente da totalidade do capital social das mesmas.

13º - A sociedade II, LIMITADA, é dona do edifício onde está instalado o Hotel ....

14º - A HH, LIMITADA, é a sociedade que gere e explora o hotel em causa.

15º - Além da titularidade e exploração do mencionado hotel as duas referidas sociedades não têm outro património ou actividades.

16º - AA e 1ºs RR celebraram o contrato que consta de fls. 83 a 86, datado de 1 de Janeiro de 2006, onde consta que aqueles, como terceiro e quarto outorgantes declararam prometer comprar as quotas de que os primeiros e segundos outorgantes eram titulares nas sociedades “II, Lda.” e HH..., Lda.

17º - No negócio referido no ponto 16º foi acordado que o preço global da compra e venda das quotas era de € 5.500.000,00, correspondendo a € 4.250.000,00 ao preço global das quotas da II e € 1.250.000,00 ao preço global da HH....

18º - Sob a cláusula 3ª alínea a), a título de sinal e princípio de pagamento, acordaram AA e 1ºs RR no montante de € 2.600.000,00, sendo paga no acto da assinatura do contrato a quantia de €1.582.906,80, através de cheques, montante que foi recebido pelos RR [promitentes-vendedores].

19º - Sob a cláusula 3ª alínea b) consta que os restantes € 2.900.0000,00 do preço, seriam pagos simultaneamente com a escritura pertinente, a celebrar no prazo de 90 dias a contar da data de assinatura do contrato promessa.

20º - Sob a cláusula 3ª 1º § acordaram a parte restante do sinal (€ 1.017.093,20) seria destinada para pagar os débitos da sociedade HH... junto das entidades JJ e KK, titulados por contas caucionadas, no valor de € 100.000,00 quanto ao JJ, e € 49 879,79 quanto ao KK, obrigando-se os cessionários, desde já a liquidar esses valores ou a proceder à substituição das garantias que asseguravam tais dívidas, no prazo máximo fixado para a escritura; e a quantia de € 867.213,41 relativo à dívida hipotecária ao LL, constituindo-se os cessionários também na obrigação de realizar esse pagamento, através da entrega, ao credor hipotecário dos valores correspondentes às prestações devidas.

21º - Sob a cláusula 3ª 2º § consta que a dívida à construtora MM, que ainda não estava totalmente apurada (tendo-se feito um cálculo aproximado de € 260.000,00), seria apurada em definitivo até à celebração da escritura, cabendo a sua regularização aos AA.

22º - Sob a cláusula 3ª 4º § consta que a escritura de cessões prometida será marcada pelos cessionários, que avisarão os cedentes do dia, hora e local da mesma, com uma antecedência mínima de quinze dias. Caso a escritura não possa ter lugar na data acima indicada, poderá ainda realizar-se nos noventa dias subsequentes sem qualquer penalização ou, então, nos 180 dias subsequentes, embora, a verificar-se esta eventualidade, com o encargo de os cessionários pagarem aos cedentes, juros de mora passados os 180 dias, à taxa bancária mais alta praticada pela banca comercial para operações activas de crédito.

23º - Sob a cláusula 4. 1ª acordaram que a partir da presente data, assumem os cessionários a gestão da HH..., ficando eles exclusivamente - e solidariamente - responsáveis por todos os actos e contratos que celebrem nessa qualidade.

24º - Sob a cláusula 4. 2ª acordaram que as dívidas até final de 2005 serão da exclusiva responsabilidade da gerência exercida até essa data.

25º - O A. AA foi designado gerente da HH..., LDA, substituindo na gerência o R. DD por deliberação da assembleia-geral de 11/01/2006.

26º - Por deliberação da mesma assembleia-geral de 11/01/2006 foi autorizada a cessão de quotas prometida no contrato.

27º - Igualmente por deliberação tomada na mesma assembleia de 11/01/2006 e “por se revelar necessário financiamento bancário para a conclusão das obras em curso no Hotel, a Assembleia-geral autoriza a nova gerência a contrair um empréstimo até ao montante de € 4.500.000, ficando, para tanto, o novo gerente com poderes para negociar e assinar o que necessário for para esse efeito”.

28º - A 11/10/2006, os 1ºs RR lavraram uma acta da assembleia-geral da HH..., LDA. e deliberaram destituir o A. AA da gerência e designar um gerente.

29º - A fracção autónoma identificada sobre a letra “L”, descrita na 9ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, freguesia de São Sebastião da Pedreira, sob o nº. ..., e inscrita na matriz sob o artigo ..., da mesma freguesia, encontrava-se, em 21/11/2006, inscrita a favor dos 1ºs Réus – inscrição de aquisição, por compra, AP. 33 de 2004/08/31 -, onerada por Hipoteca Voluntária – AP. 32 de 2004/11/03 – e sobre a qual fora ordenado arresto.

29º-A - Sob a mesma fracção, por informação datada de 27/09/2013, encontrava-se registada inscrição de aquisição, por compra – AP. 692 de 2013/01/29 -, figurando como sujeito activo PP, Lda, e como sujeito passivo DD.

30º - Os 2ºs RR sabiam do negócio que os 1ºs RR celebraram com os AA.

31º - Os 2ºs RR tomaram conhecimento que os AA. haviam prometido adquirir as quotas das identificadas sociedades e os termos do negócio.

32º - Os 2ºs RR tomaram conhecimento que o A. AA foi gerente da HH... no período entre 11/01/2006 e 15/10/2006.

33º - A restrição ao uso de cheques que afectava a sociedade HH... - Actividade Hoteleiras, Lda foi retirada, por decisão do Banco de Portugal, a 9 de Março de 2006.

34º - Os AA não pagaram aos 1ºs RR a prestação de € 2.900.000,00 referidos no ponto 19º, nem procederam à marcação da escritura pública.

35º - A 17 de Outubro de 2006, os 1ºs RR remeteram aos AA uma carta, a comunicar que faziam cessar os efeitos do contrato-promessa de cessão de quotas em causa, resolvendo o mesmo com as necessárias consequências legais.

36º - A carta foi enviada para a morada indicada pelos AA. em Portugal - para o …, nº 8, r/c Dto, …, … -, tendo sido devolvida com a indicação “não reclamada”.

37º - Na acção que os AA propuseram contra os RR DD e EE, que correu termos sob o número 3038/07.3TVLSB, foi proferida decisão a 29 de Janeiro de 2013, transitada em julgado a 18 de Maio de 2015, foram aqueles RR condenados a pagar aos AA “a quantia de € 3.165.813,60, correspondente ao dobro do sinal, e juros de mora à taxa legal”.

38º - Da fundamentação da decisão referida no ponto 37º consta o seguinte:

- “… apurou-se que no contrato-promessa foram fixados sucessivos prazos para a celebração dos contratos de cessão das acções e que incumbia aos autores a marcação das escrituras…, bem como que decorrido tais prazos as escrituras não foram celebradas, resultando assim evidente a existência de mora dos autores”.

- “No entanto, os RR não converteram essa mora em incumprimento definitivo, não procedendo à interpelação admonitória dos AA para cumprir em prazo fixado para o efeito conforme exigido pelo artigo 808º, nº 1 do C.C.”

- Deste modo não assistia aos réus o direito de resolver o contrato-promessa pelo que ao celebrarem com terceiros as escrituras de cessão das quotas se colocaram em incumprimento definitivo”.

39º - Dá-se por integralmente reproduzido o registo do pacto social da sociedade “HH, Lda”, conforme certidão de fls. 1062 a 1073.

40º - Dá-se por integralmente reproduzido o registo do pacto social da sociedade “II – …, Lda”, conforme certidão de fls. 1074 a 1087;

41º - No dia 01/03/2016, os 1ºs réus figuravam como contribuintes singulares devedores à Fazenda Nacional, em listagem publicada pela Autoridade Tributária e Financeira, no escalão de dívidas entre € 250.000,00 a € 1.000.000,00;

42º - O 1º réu marido e o 2º réu marido conhecem-se de longa data e possuem negócios comuns no estrangeiro, nomeadamente e, pelo menos, na ....

Não se provou a seguinte factualidade:

1 - Que, para além do descrito em 29 e 29-A, os Réus DD e EE (1ºs réus) tenham património em Portugal.

2 - Os RR, quando outorgaram as cessões de quotas impugnadas, agiram concertadamente e com plena consciência de que estavam a lesar os direitos dos AA.

3 - Tiveram consciência de que com as cessões de quotas tornavam difícil ou impossível a satisfação do crédito dos AA.

4 - Os RR FF e GG não pagaram o preço de € 500.973,09 que declaram nas escrituras.

5 - O RR, quando celebraram as cessões de quotas, quiseram apenas e exclusivamente colocar no lugar dos RR DD e EE os RR FF e GG, quanto à titularidade do capital social das duas sociedades HH..., LDA e II LDA, com o propósito e objectivo de tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito dos AA.

B) Fundamentação de direito

A questão colocada e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável por força do seu artigo 5º nº 1, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, consiste em saber se estão provados os pressupostos da impugnação pauliana, ou seja, se os negócios jurídicos celebrados (cessão de quotas), tornaram impossível a satisfação do crédito dos autores, o qual foi posterior aos actos jurídicos postos em crise.

Estatui o artigo 610º do Código Civil que “os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:

a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;

b) Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade”.

São assim requisitos da impugnação pauliana:

1 – Que haja um prejuízo causado pelo acto impugnado à garantia patrimonial;

2 - Anterioridade do crédito ou caso o crédito seja posterior ter sido o acto dolosamente realizado com o fim de impedir a satisfação do crédito pelo mesmo acto.

3- O requisito da má fé previsto no artigo 612º do Código Civil.

Primeiro requisito

Este primeiro requisito da impugnação pauliana exige que “o acto envolva diminuição da garantia patrimonial, isto é, diminuição dos valores patrimoniais que, nos termos do artigo 601º, respondem pelo cumprimento da obrigação” (…). “Mas esta exigência deve ser interpretada em harmonia com o disposto na alª b). É necessário que resulte do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade (…)”. “Conforme se decidiu no ac. do STJ de 19.12.1972 (BMJ nº 222, pág. 386 e segs), “é à data do acto impugnado que se deve atender para determinar se dele resulta a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade; por isso, se, nessa data, o obrigado ainda possuía bens de valor bastante superior ao montante do crédito, a impugnação deve ser julgada improcedente”[1].

Segundo requisito

“Exige, por último, a alínea a) que o crédito seja anterior ao acto ou, sendo posterior, tenha sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor” (…) “ O dolo supõe, na verdade, a intenção de enganar (cfr artº 253º). Quer-se, por exº, fazer crer ao credor que os bens ainda existem no património do devedor à data em que foi constituído o crédito. Ora, para não reconhecer a fraude, importa considerar, em relação ao credor, como existentes ainda no património do devedor os bens alienados (supomos o caso mais vulgar que é o da alienação), ou, por outras palavras, atribuir-lhe o direito à impugnação pauliana, como faz a lei (vide Vaz Serra, na RLJ, ano 100º, págs 206-207)”[2].

O dolo deve aqui então ser compreendido “no sentido próprio (directo, necessário ou eventual), e tem entendido, tanto a jurisprudência, como a doutrina, que deverá existir um nexo de causalidade (adequada) entre a conduta do devedor e a criação da percepção no credor de que o património do devedor não foi afectado pelo acto em causa, ou seja, para a maioria dos casos, de que o bem se mantém no património do devedor (o que normalmente ocorre em caso de ocultação do acto ao credor).
Um dos fundamentos do regime é a protecção da expectativa do credor fundada na percepção que tem do património do devedor no momento do nascimento do crédito. O dolo de que aqui se trata é independente da onerosidade ou gratuitidade do acto referidas no artº 612º.
A ratio desta exigência está na protecção da expectativa do credor quanto ao património do devedor quando aceita constituir o crédito; sabe com o que conta. Se, dolosamente, o devedor actuou no sentido de o privar da garantia patrimonial e de lhe ocultar a sua situação patrimonial, induzindo-o em erro, compreende-se que a lei o proteja”[3]

Terceiro requisito

Este requisito é apenas exigível no que concerne aos actos a título oneroso.

Trata-se do requisito da má fé previsto no artigo 612º nºs 1 e 2 do Código Civil, o qual estatui que “o acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé”, sendo a má fé legalmente definida como “a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”.

“Sendo o acto oneroso, em tese geral não há prejuízo para o credor, porque à prestação cedida há-de corresponder, por conceito, uma prestação de valor equivalente. Deve, portanto, exigir-se mais alguma coisa. E essa mais alguma coisa é a má fé.”.

A consciência do prejuízo é, “ a consciência de que o acto de alienação e o subsequente esbanjamento do preço recebido prejudicam o credor”. (…) Não se exige que haja com o acto a intenção de prejudicar o credor; normalmente, mesmo, há a intenção, ou pode haver a intenção, de realizar um acto vantajoso, ou a intenção de satisfazer uma necessidade do devedor, sem o intuito de causar um dano”.[4]

A má fé abrange o dolo e a negligência consciente, mas não já a negligência inconsciente[5].

A consciência do prejuízo causado ao credor, que caracteriza a má fé, pode consubstanciar-se num dolo eventual ou numa negligência consciente, ficando afastada a negligência inconsciente.

O apuramento da existência dessa consciência do prejuízo é uma questão de facto[6].

O estado de má fé subjectiva, previsto pelo artº 612° nº 2, do Código Civil, enquanto requisito da impugnação pauliana, em que podem incorrer quer o devedor ou quer o terceiro, compreende o dolo, nas suas diversas modalidades, e, também, a negligência consciente, porquanto ainda nesta, com ressalva da situação em que o acto a atacar for anterior à constituição do crédito, se observa a consciência de que o acto querido causa prejuízo ao credor, ou seja, que se traduz na diminuição da garantia patrimonial do seu crédito, sem se mostrar necessário demonstrar a intenção de originar tal prejuízo[7].

Relativamente ao ónus probatório, incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor – artigo 611º do Código Civil.

Pires de Lima e Antunes Varela, a propósito do regime probatório do artigo 611º do Código Civil, esclarecem[8]:

“ A doutrina deste artigo afasta-se, em alguma medida, das regras gerais sobre o ónus da prova. Em princípio, numa acção de impugnação devia caber inteiramente ao autor fazer a prova dos requisitos necessários à procedência do pedido (cf. art. 342º) e, portanto, devia caber-lhe não só a prova do montante da dívida e da anterioridade do crédito, como da diminuição da garantia patrimonial nos termos da alínea b) do artigo anterior. No entanto, por razões compreensíveis – dificuldade ou mesmo impossibilidade de provar que o devedor não tem bens – o artigo atribui a este o encargo de provar que possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das dívidas. E igual encargo lança a lei sobre o adquirente (terceiro), interessado na manutenção do acto.

Advirta-se, entretanto, que o artigo 611º impõe ao credor o ónus de provar o montante das dívidas – e não apenas da dívida, de que ele é titular activo -, o que está em consonância com o requisito fixado na alínea b) do artigo anterior”.

Vejamos agora, face às regras do ónus da prova, se os autores provaram os factos que preenchem os requisitos da impugnação pauliana, nos termos dos artigos 610º, 611º e 612º, todos do Código Civil.

Efectivamente, competia aos autores, enquanto credores dos 1ºs réus, a prova:

- do montante das dívidas;

- que dos actos impugnados tenha resultado para os autores a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade, devendo tal juízo ou ponderação ser efectuada com referência à data daqueles actos impugnados;

- a anterioridade do seu crédito ou, sendo posterior, a prova de que as cessões de quotas impugnadas foram realizadas com a intenção de impedir a satisfação do seu ulterior ou futuro crédito;

- sendo onerosos os actos impugnados, a má fé dos réus na sua outorga, traduz-se na consciência do prejuízo que tais actos causavam aos autores.

O crédito dos autores

O crédito dos autores está provado no nº 37º da Fundamentação de facto, cujo teor é o seguinte:

“Na acção que os AA propuseram contra os RR DD e EE, que correu termos sob o número 3038/07.3TVLSB, foi proferida decisão a 29 de Janeiro de 2013, transitada em julgado a 18 de Maio de 2015, foram aqueles RR condenados a pagar aos AA “a quantia de € 3.165.813,60, correspondente ao dobro do sinal, e juros de mora à taxa legal”.

Este montante corresponde ao dobro do sinal de € 1.582.906,80 por referência ao contrato-promessa de 1 de Janeiro de 2006 – Cfr nºs 18º e 15º da Fundamentação de facto.

As cessões de quotas foram concretizadas em 26.10.2006 – Factos provados nºs 1º a 6º e 7º a 12º.

Tal como vem escrito no acórdão da Relação, “tendo sido concretizada a impugnada cessão de quotas em 26.10.2006, tal não deixou de implicar, até pela troca de tal valor mobiliário por pecunia, de mais fácil dissipação ou ocultação, diminuição da garantia patrimonial dos devedores 1ºs Réus, o que, em concatenação com o património dos mesmos Réus à data – cf., factos 29 e 29-A -, não deixa de revelar impossibilidade dos Autores poderem obter a satisfação integral do seu reconhecido crédito.

Pelo que, e prima facie, o supra aludido primeiro requisito - diminuição da garantia patrimonial do crédito, no sentido de dos actos impugnados resultar ou decorrer para os credores a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade – também parece plenamente preenchido”.

O crédito dos autores é anterior ou posterior aos actos impugnados?

É questão que se discute nos autos e que vem referida no nº 10 (iv) do acórdão da Formação (fls 2219) nos seguintes termos:

“ O regime relativo à posteridade do crédito – ela mesma posta em dúvida no recurso – no instituto da impugnação pauliana”.

Na tese dos autores, ora recorrentes, o crédito dos autores constitui-se a 01 de Janeiro de 2006, data do contrato-promessa de cessão de quotas, em que entregaram aos 1ºs réus, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 1.582.906,80 (Factos provados nºs 16 e 18).

Para além disso, provou-se que “ A 11.10.2006, os 1ºs RR lavraram uma acta da assembleia-geral da HH..., LDA e deliberaram destituir o autor AA da gerência e designar um gerente” – Facto provado nº 28º.

 

Por isso, deve este segmento decisório da Relação ser substituído por outro que declare a anterioridade do direito de crédito dos recorrentes em relação aos contratos de cessão de quotas celebrados no dia 26 de Outubro de 2006.

A tese que ficou plasmada no acórdão recorrido é diferente, pois teve em atenção a prova do facto nº 37, a que já nos referimos, segundo o qual, “Na acção que os AA propuseram contra os RR DD e EE, que correu termos sob o número 3038/07.3TVLSB, foi proferida decisão a 29 de Janeiro de 2013, transitada em julgado a 18 de Maio de 2015, foram aqueles RR condenados a pagar aos AA “a quantia de € 3.165.813,60, correspondente ao dobro do sinal, e juros de mora à taxa legal”.

Ora, em concordância com o acórdão da Relação, os actos impugnados foram praticados em 26.10.2006 (Factos provados nºs 1 e 7).

A resolução do contrato-promessa operada pelos 1ºs réus foi concretizada mediante carta enviada aos autores, em 17.10.2006 (Factos provados nºs 35 e 36).

A decisão donde decorre a obrigatoriedade dos 1ºs réus pagarem aos autores a quantia correspondente ao dobro do sinal – que reconhece ou define o crédito dos ora autores -, transitou em julgado em 18.05.2015 (Facto provado nº 37).

E, de acordo com a mesma decisão, considerou-se ter existido mora dos autores, apenas se reconhecendo que os 1ºs réus não tinham o direito de resolver o contrato-promessa em virtude de não terem convertido tal situação moratória em incumprimento definitivo, nomeadamente através de interpelação admonitória aos autores, para cumprirem em prazo fixado para o efeito (Facto provado nº 38).

Assim, aquando da outorga das impugnadas cessões de quotas (26.10.2006) os autores ainda não eram possuidores de qualquer posição creditória perante os 1ºs réus (promitentes-cedentes), o que só aconteceu a 18.05.2015 (Vide Facto provado nº 37).

Finalmente, como bem decidiu o acórdão recorrido, não resulta dos factos provados que as cessões de quotas ora impugnadas tenham sido realizadas dolosamente, ou seja, que as mesmas tenham tido por causa ou intencional motivação prejudicar a satisfação de um futuro (eventual ou conjecturável) direito de crédito dos promitentes-cessionários, caso a resolução operada viesse a ser reconhecida como ilícita ou ilegítima, a determinar a restituição do sinal em dobro.

Pelo que, não se preenchendo tal requisito, a solução só poderia ser a da improcedência da acção.

Impugnação da decisão proferida no acórdão sobre matéria de facto.

 

Alegaram os recorrentes que os factos que a Relação considerou não provados, são factos muito relevantes para a decisão da causa.

Pretendem que, por via deste recurso, seja decidido o contrário pelo Supremo Tribunal de Justiça, certo que a Relação, neste âmbito, infringiu regras de direito, que ao Supremo compete sindicar.

Os fundamentos em que os recorrentes, nesta parte, baseiam a sua discordância do acórdão da Relação, consubstanciam-se na existência de factos provados que permitem decisão de sentido contrário ao decidido pela Relação a propósito dos pontos 2 e 3 dos factos não provados.

Os pontos 2 e 3 têm a seguinte redacção:

“2 - Os RR, quando outorgaram as cessões de quotas impugnadas, agiram concertadamente e com plena consciência de que estavam a lesar os direitos dos AA.

3 - Tiveram consciência de que com as cessões de quotas tornavam difícil ou impossível a satisfação do crédito dos AA”.

Concluem que o Supremo Tribunal de Justiça tem competência para declarar provado que os réus, quando outorgaram a cessão de quotas impugnadas, agiram com plena consciência de que estavam a lesar os seus direitos e de que, com essa cessão, tornavam difícil ou impossível a satisfação do seu crédito – são estes os factos não provados sob os nºs 2 e 3.

Ainda no entender dos recorrentes, esses factos instrumentais, complementares e concretizadores são os seguintes:

a) A fracção predial …, sita em São Sebastião da Pedreira, estava, em 21 de Novembro de 2006, inscrita no registo predial a favor dos primeiros réus, por compra - Apresentação de 31 de Agosto de 2004, com hipoteca voluntária - Apresentação 3/11/2004, sobre a qual houve arresto – (Facto provado nº 29);

b) Sobre a mesma fracção (informação de 27 de Setembro de 2013), estava registada aquisição por compra - Apresentação de 29 de Janeiro de 2013 - sujeito activo PP, Lda, e sujeito passivo DD – (Facto provado nº 29- A);

c) O réu DD e o Réu FF conhecem-se de longa data e possuem negócios comuns no estrangeiro, pelo menos na ... – (Facto provado nº 42);

d) O contrato-promessa que os recorrentes celebraram com os recorridos DD e EE e o contrato de cessão de quotas celebrado entre estes e os recorridos FF e GG tiveram por objecto a mesma realidade de facto - as quotas das sociedades HH..., Lda e II Lda – (Factos provados nº 16, 1 e 7);

e) As referidas quotas eram o único património de DD e de EE, que era o Hotel ..., única garantia patrimonial que os recorrentes podiam efectivamente fazer valer contra eles;

f) Todos os réus sabiam que o valor real das quotas era de € 5 500 000, bem como sabiam do negócio que DD e EE celebraram com os autores, ou seja, o contrato-promessa de 1 de Janeiro de 2006 – (Factos provados nº 10 e 30);

g) Os recorridos FF e GG tomaram conhecimento de que os autores haviam prometido adquirir as quotas das indicadas sociedades e os termos do negócio – (Facto provado nº 31);

h) Os segundos réus tomaram conhecimento que o Autor AA foi gerente da sociedade HH..., Lda, de 11 de Janeiro de 2006 a 15 de Outubro de 2006 – (Factos provados nº 25 e 28).

Ora, no entender dos recorrentes, a elencada factualidade sob as alíneas a) a h) prova à saciedade, directa ou indirectamente, os factos principais que ficaram não provados sob os nºs 2 e 3:

"Os réus, quando outorgaram a cessão de quotas impugnadas agiram com plena consciência de que estavam a lesar os direitos dos autores e de que, com essa cessão, tornavam difícil ou impossível a satisfação do crédito dos autores".

Mais alegam que o Supremo Tribunal de Justiça tem competência para sindicar a decisão da matéria de facto da Relação por causa do não uso por esta dos seus poderes de derivar de uns factos provados a existência necessária de outros.

Cumpre decidir.

Como é sabido, os poderes do Supremo Tribunal de Justiça são muito limitados quanto ao julgamento da matéria de facto, cabendo-lhe, fundamentalmente, e salvo situações excepcionais (artigo 674º nº 3 in fine e artigo 682º nº 2 do CPC), limitar-se a aplicar o direito aos factos materiais fixados pelas instâncias (682º nº 1 do CPC) e não podendo sindicar o juízo que o Tribunal da Relação proferiu em matéria de facto.

Efectivamente, preceitua o nº 3 do artigo 674º do CPC que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Contudo, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, pode censurar o modo como a Relação exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto, já que se tal for feito ao arrepio do artigo 662º do Código do Processo Civil, está-se no âmbito da aplicação deste preceito e, por conseguinte, no julgamento de direito[9].

Ou seja, e nas palavras do acórdão do STJ de 06/07/2011[10], “se a este Supremo Tribunal de Justiça lhe é vedado sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto, já lhe é, todavia, possível verificar se, ao usar tais poderes, agiu ela dentro dos limites traçados pela lei”.

Trata-se, por conseguinte, de verificar se o Tribunal da Relação, ao usar os seus poderes, respeitou a lei processual, o que é inequivocamente, e como também destaca o Acórdão do STJ de 06/07/2011, matéria de direito[11].

Para tanto, importa fazer a distinção entre factos instrumentais e factos essenciais.

Factos instrumentais são aqueles que, sem fazerem directamente a prova dos factos principais, servem indirectamente a essa prova como indícios geradores da convicção sobre a realidade ou ocorrência; factos principais são os que servem de base à individualização da situação jurídica alegada na acção ou na excepção, desdobrando-se em essenciais e complementares[12].

Com o novo Código de Processo Civil, o artigo 5º (Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal), que corresponde parcialmente aos ex-artigos 264º e 664º, veio estabelecer o seguinte:

1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.

2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;

(…).

Assim, segundo Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro[13], “Factos essenciais são os previstos nas fatispécies das normas das quais pode emergir o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou pelo reconvinte (ou nos quais pode fundar-se a excepção deduzida pelo réu), sendo imprescindíveis para a procedência da acção ou da reconvenção (ou da excepção) – artº 581º nº 4. Os factos instrumentais, não preenchendo a fatispécie de qualquer norma de direito substantivo que confira um direito ou tutele um interesse das partes, permitem, mediante presunção, chegar à demonstração de factos principais – tendo, pois, uma função probatória”.

Já assim escrevia Lopes do Rego[14] a propósito do ex-artigo 264º:

“ O regime vigente baseia-se numa fundamental distinção entre factos essenciais e factos instrumentais. Os factos essenciais são os que, concretizando, especificando e densificando os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor ou do reconvinte, ou a excepção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, se revelam decisivos para a viabilidade ou procedência da acção, da reconvenção ou da defesa por excepção, sendo absolutamente indispensáveis à identificação, preenchimento e substanciação das situações jurídicas afirmadas e feitas valer em juízo pelas partes.

Os factos instrumentais destinam-se a realizar prova indiciária dos factos essenciais, já que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes – assumindo, pois, em exclusivo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões da defesa”.

Entremos agora na questão nuclear que diz respeito à fundamentação da matéria de facto e à análise crítica das provas.

Se se exige que o Tribunal da Relação forme livremente a sua própria convicção, ainda que a mesma porventura possa coincidir com a (também ela livre) convicção do julgador de 1ª instância, a fundamentação da decisão deve, de modo transparente, mostrar o caminho próprio que o Tribunal da Relação seguiu ao formar essa convicção e ao decidir da matéria de facto.

Nas palavras do Acórdão do STJ de 08.06.2011[15], “motivar é justificar a decisão de modo a que possa ser controlada, desde logo, pelo tribunal e, naturalmente, pelos sujeitos processuais e pelas instâncias de recurso”.

Assim, da fundamentação deve resultar, com clareza, o caminho próprio que o Tribunal da Relação seguiu para formar a sua própria convicção, não podendo ser suficiente uma remissão ou concordância genérica com a fundamentação da 1ª instância, como destacou, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/09/2013[16], anotado em sentido concordante por Miguel Teixeira de Sousa[17], e em que se afirma inequivocamente que “a reapreciação das provas não pode traduzir-se em meras considerações genéricas, sem qualquer densidade ou individualidade que as referencie ao caso concreto”.

Sobre esta matéria prescreve o artigo 607º nº 4 do C.P.Civil o seguinte:

“Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.

No regime de fundamentação da sentença ou do acórdão sobre matéria de facto, para além da fundamentação das respostas positivas, o juiz passa a ter de justificar as respostas negativas; por outro lado, a decisão, para além de especificar os fundamentos que foram decisivos para convicção do julgador, tem de proceder à análise crítica das provas.

Isto significa que o juiz deve esclarecer quais as provas que o levaram a formar a sua convicção e deve ainda analisar criticamente as provas produzidas, explicando os motivos que o levaram a optar por uma determinada resposta.

Para Antunes Varela, “além do mínimo traduzido na menção especificada dos meios de prova geradores da convicção do julgador, deve este ainda, para plena consecução do fim almejado pela lei, referir, na medida do possível, as razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova”[18].

Miguel Teixeira de Sousa refere que “ o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente”[19].

Em anotação ao artigo 653º nº 2 (a que corresponde o actual 607º nº 4), Lopes do Rego escreveu: “… a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, provada e não provada, deverá fazer-se por indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, o que compreenderá não só a especificação dos concretos meios de prova, mas também a enunciação das razões ou motivos substanciais por que eles relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador – só assim se realizando verdadeiramente uma “análise crítica das provas”. Tal circunstância determinou a alteração do preceituado no nº 5 do artigo 712º do CPC, podendo ter lugar a remessa do processo à 1ª instância para fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto sempre que ela se não mostre “devidamente fundamentada” (e não apenas quando omita a menção dos concretos meios de prova que a suportaram)[20].

Segundo o acórdão nº 55/85 do Tribunal Constitucional[21], a fundamentação das decisões jurisdicionais cumpre, em geral, duas funções:

a) Uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitindo às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente com o decidido;

b) Outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz “ad quem”, que procura, acima de tudo, tornar possível o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão – e que visa garantir, em última análise, a “transparência” do processo e da decisão.

Não sendo satisfatoriamente cumprida, quanto a algum facto essencial, a exigência de fundamentação emergente do estatuído no nº 2 do artigo 653º, pode a parte prejudicada requerer que o tribunal de 1ª instância supra a nulidade, procedendo à fundamentação adequada. Face à actual relevância – constitucional e legal – da exigência de fundamentação, temos como duvidosa a solução consistente em considerar que a lei não estabelece qualquer sanção para a falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto: o que, a nosso ver, decorre do nº 5 deste artigo 712º é que a nulidade cometida, quando reclamada adequadamente pela parte, deve, na medida do possível, ser sempre suprida pela 1ª instância; mas, se tal suprimento for impossível, não nos parece excluída a possibilidade de a Relação anular o julgamento com base numa omissão essencial e relevante de fundamentação (sublinhado nosso)[22].

A fundamentação deve conter, como suporte mínimo, a concretização do meio probatório gerador da convicção do julgador e ainda a indicação, na medida do possível, das razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova, a menção das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto[23].

“Quando a prova é gravada, a sua análise crítica constitui complemento fundamental da gravação; indo, nomeadamente, além do mero significado das palavras do depoente (registadas em audiência e depois transcritas), evidencia a importância do modo como ele depôs, as suas reacções, as suas hesitações e, de um modo geral, todo o comportamento que rodeou o depoimento”[24].

A análise crítica das provas prevista para o julgamento referido na primeira parte do nº 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil não difere funcionalmente do exame pressuposto no julgamento regulado na segunda parte deste número: ambos visam concluir se a prova produzida é, em concreto, bastante para a demonstração do facto. O modo como se chega a tal conclusão é, no entanto, profundamente diferente, o que se reflecte na motivação da convicção.

Na motivação da decisão sobre os factos julgados de acordo com a norma constante da primeira parte do nº 4, o juiz explica por que razão, de acordo com a sua livre convicção (primeira parte do nº 5), o meio é idóneo, em abstracto e em concreto, à prova do facto; na motivação do julgamento feito no contexto da segunda norma, o juiz partindo da certeza e afirmando que o meio é, em abstracto, idóneo (v.g. um documento), esclarece por que razão se extrai dele (ou não) o facto a provar (segunda parte do nº 5).

Num caso, o juízo de conformidade entre os factos alegados e a realidade histórica estriba-se na prudente convicção do julgador; noutro, este juízo funda-se, em especial, no valor que a lei atribui a determinados meios de prova[25].

Ora, no caso concreto e como decorre da respectiva fundamentação da matéria de facto e análise crítica da prova (fls 2075 vº a 2095), o tribunal usou de um amplo poder inquisitório relativamente aos factos instrumentais com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio, o que, aliás, decorre por força do disposto no artigo 6º nº 1 do NCPC.

O acórdão esclareceu, explicou e analisou o conteúdo dos depoimentos das testemunhas, em articulação com a prova documental produzida.

Os argumentos agora utilizados pelos recorrentes nas alíneas a) a h) que indicam como factos instrumentais (página 19 do presente acórdão) são os mesmos que utilizaram nas conclusões 1ª a 13ª da apelação.

Pela importância que reveste e pelo acerto da análise e decisão a propósito dos factos não provados sob os nºs 2 e 3 que os recorrentes pretendem que sejam dados como provados, incluímos aqui um breve excerto do acórdão da Relação (fls 2081 vº e 2082):

“ Com base na prova produzida e convincentemente ponderável, nos termos justificados na decisão apelada, não é possível concluir que os réus (1ºs e 2ºs), aquando da outorga das cessões de quotas impugnadas, tenham agido de forma concertada e com plena consciência de estarem a lesar os direitos dos autores, ou seja, que com tais cessões tornavam difícil ou impossível a satisfação do crédito dos autores.

Ademais, os próprios 1ºs réus (promitentes-cedentes) estariam plenamente convencidos da legitimidade e validade da resolução contratual operada relativamente ao contrato-promessa celebrado, da qual não proviria qualquer posição creditória aos autores. O que acaba por ter algum suporte e sustento, ponderando-se a decisão proferida no processo nº. 3038/07.3TVLSB, a qual concluiu pela existência de mora dos autores (ora apelantes), tendo-se apenas gerado posição creditória na sua esfera jurídica fruto da não conversão de tal posição moratória em incumprimento definitivo, determinante de ilegitimidade na resolução contratual e colocação dos réus promitentes cedentes em situação de incumprimento definitivo, ao operarem a cessão aos ora 2ºs réus – cf., facto 38.

Convencimento que terão, inclusive, transmitido aos 2ºs réus, ao darem-lhes conhecimento da carta de resolução enviada, sendo certo que, tal como apontado na decisão apelada, a versão de decidirem avançar para a aquisição do hotel, mediante a aquisição das quotas de ambas as sociedades, revela-se pertinente e dotada de sentido, pois traduzia-se na forma lograda obter de verem satisfeito o crédito que detinham perante os 1ºs réus”.

Perante todo o exposto, é altura de dizer que os ditos factos instrumentais referidos pelos recorrentes (alíneas a) a h), só por si, não assumem a função probatória que lhe é própria com vista à conclusão que:

- Os RR, quando outorgaram as cessões de quotas impugnadas, agiram concertadamente e com plena consciência de que estavam a lesar os direitos dos AA – Facto não provado nº 2.

- Tiveram consciência de que com as cessões de quotas tornavam difícil ou impossível a satisfação do crédito dos AA – Facto não provado nº 3.

Estes dois factos não provados, como resulta do relatório deste acórdão, foram alegados pelos autores.

São factos essenciais que constituem a causa de pedir (artº 5º nº 1 do CPC).

Ora, além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz os factos essenciais não alegados, desde que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar – artº 5º nº 2 alª b).

Podemos até afirmar que os ditos “factos instrumentais” expostos pelos recorrentes nas alíneas a) a h) não são propriamente factos instrumentais, mas são essenciais, já que integram matéria que os recorrentes consideram tema central da acção e que foram por si alegados no respectivo articulado.

Nesta conformidade, mantém-se a resposta dada pelas instâncias aos factos não provados 2 e 3.


**

O nível de abrangência do artigo 417º do Código de Processo Civil, sobre o qual mingua a jurisprudência. A relevância do comportamento omissivo neste domínio, nomeadamente quanto à inversão do ónus de prova.

Estas são as primeiras questões que importa saber, segundo o acórdão da Formação de 19.12.2018 (fls 2219).

O artigo 417º (Dever de cooperação para a descoberta da verdade), preceitua o seguinte:

1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.

2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.

3 - (…).

4 – (…).

Este artigo corresponde ao artigo 519º do CPC - 95/96 e mantém o regime anteriormente previsto.

Cumpre relembrar e mesmo reforçar a ideia que é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do CPC.

As questões que a Formação considerou comportáveis no âmbito da alínea a) do artigo 672º do CPC só podem ser objecto de decisão, desde que se insiram no âmbito do recurso de revista, delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, como acima se referiu.

Vale isto por dizer que aquelas questões que importa saber, segundo o acórdão da Formação, não foram alegadas nem constam das conclusões do recurso de revista.

Esta matéria prende-se exclusivamente com o facto não provado nº 4, segundo o qual, “ os RR FF e GG não pagaram o preço de € 500.973,09 que declararam nas escrituras”.

Na apelação os autores defenderam que aquele facto tem que ser dado como provado, em virtude de estarmos perante uma situação de inversão do ónus probatório.

Efectivamente, a conclusão 28ª da apelação dos autores é do seguinte teor:

“ Os 2ºs RR não pagaram o preço de € 500.973,09 que declararam nas escrituras que titulam os actos impugnados. Os AA alegaram que o preço declarado nas aludidas escrituras não foi pago, pelo que, ao abrigo do artº 342º nº 1 do Código Civil, caber-lhe-ia o ónus de o provar. Contudo, tal ónus da prova deve considerar-se invertido, nos termos do artigo 344º nº 2 do Código Civil”.

O acórdão da Relação de Lisboa (fls 2081 vº a 2085 vº - pág 62 a 70), de forma acertada e douta, decidiu que a sentença apelada bem andou ao não considerar provado o facto 4 constante da matéria de facto considerada não provada.

Sobre o facto não provado nº 4, os autores conformaram-se com a decisão da Relação, que não colocaram em crise no recurso de revista excepcional, quer nas alegações, quer nas conclusões.

No recurso de revista excepcional limitaram-se a solicitar que este Supremo Tribunal de Justiça dê como provados os factos negativos 2 e 3, não havendo a menor referência à pretensão da prova positiva do mencionado facto não provado nº 4.

Isso mesmo consta a fls 2151 das suas alegações que, em parte, se transcreve:

“Em consequência, entendem os recorrentes que o Supremo Tribunal de Justiça tem competência para declarar provado que os réus, quando outorgaram a cessão de quotas impugnadas, agiram com plena consciência de que estavam a lesar os seus direitos e de que, com essa cessão, tornavam difícil ou impossível a satisfação do seu crédito" – matéria dos factos não provados sob os nºs 2 e 3.

Perante tudo o que ficou dito e apesar dos itens (i) e (ii) do acórdão da Formação, entendemos que esta questão está abrangida pelo caso julgado formal, nos termos do disposto no artigo 620º nº 1 do Código de Processo Civil.

Aqui chegados e sendo tempo de concluir, diremos que improcedem as conclusões da revista interposta pelos autores, ora recorrentes.

III - DECISÃO

Atento o exposto, nega-se provimento à revista, confirmando-se o douto acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 14 de março de 2019

Ilídio Sacarrão Martins (Relator)

Nuno Pinto Oliveira

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

 

____________________
[1] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 3º Edição Revista e Actualizada, 1982, pág. 594-595.
[2] Autor e ob cit, pág. 595.
[3] Gonçalo dos Reis Martins, Código Civil Anotado, Coordenação de Ana Prata, Vol. I, 2017, Almedina, pág. 790 e 791.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, ob cit, pág. 599.
[5] Almeida Costa, RLJ, ano 127º-277.
[6] Ac STJ de 13.12.2005, in CJ STJ III/05.162.
[7] Ac STJ de 14.04.2015, Proc.º nº 593/06.9TBCSC.L1.S1
[8] Ob cit, pág. 596.
[9] Ac STJ de 13/11/2012, in www.dgsi.pt Proc.º nº 10/08.0TBVVD.G1.S1/jstj
[10] Proc.º nº 645/05.2TBVCD.P1.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[11] Proc.º nº 8609/03.4TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[12] Francisco Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, Vol. I, Almedina 2010, pag. 241.
[13] Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, 2ª Edição, Volume I, Almedina, pág. 40.
[14] Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª edição, 2004, Almedina pág. 252.
[15] Proc.º nº 350/98.4TAOLH.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[16] Proc.º nº 1965/04.9TBSTB.E1.S1, in www.dgsi.pt/ jstj
[17] Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia, Cadernos de Direito Privado nº 44, Outubro/Dezembro de 2013, pp. 29 e ss.
[18] Manual de Processo Civil, 2ª ed. pág. 653.
[19] Estudos sobre o novo Processo Civil, pág. 348.
[20] Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª edição, 2004, pág. 545.
[21] BMJ 360 (Suplemento), pág. 195, citado por Lopes do Rego, loc e ob cit.
[22] Lopes do Rego, ob cit, em anotação ao artigo 712º, pág. 610.
[23] Antunes Varela, ob cit pág. 653 a 655.
[24] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 2ª edição, pág. 660.
[25] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro ob cit págs 588 e 589.