Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
285/11.7TAEPS.G1.A.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: MARGARIDA BLASCO
Descritores: RECURSO DE DECISÃO CONTRA JURISPRUDÊNCIA FIXADA
PRESSUPOSTOS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OPOSIÇÃO EXPRESSA
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 10/31/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS / FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 440.º N.ºS 3 E 4, 445. °, N. ° 3 E 446.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 1/2014 IN DR, 1.ª SÉRIE-A, DE 25-02-2014;
- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 5/2018, IN DR, 1ª SÉRIE, N° 209, DE 30-10-2018;
- DE 23-04-2015, PROCESSO 523/08.3TAVIS.C1-A.S1;
- DE 18-10-2017, PROCESSO 1727/14.5TAGM-A.S1;
- DE 18-10-2017, PROCESSO 1727/14.5TAGMR-A.S1;
- DE 06-02-2019, PROCESSO 73/16.4PHLRS.L1.S1;
- DE 23-05-2019, PROCESSO 74/15.0T9ABF.E1.S1.
Sumário : I - O recurso de decisão proferido contra jurisprudência fixada pelo STJ é um recurso extraordinário que permite a este Tribunal controlar as decisões contrárias à jurisprudência que fixou, garantindo a coerência e estabilidade da jurisprudência. Viabiliza-se, desta forma, o reexame da mesma quando, por exemplo, surjam argumentos novos, não anteriormente ponderados, ou quando a jurisprudência fixada se encontra ultrapassada.
II - Ao recurso contra jurisprudência fixada são "correspondentemente aplicáveis" as disposições do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, o que significa que terão de verificar-se os respectivos pressupostos, formais e substanciais, - art. 446.º do CPP. Entre os requisitos de ordem formal contam-se a legitimidade do recorrente - que é restrita ao arguido, ao assistente, às partes civis e ao MP - e a interposição do referido recurso no prazo de 30 dias, contados a partir do trânsito da decisão de que se pretende recorrer. É ainda exigível a existência de prévio trânsito em julgado, por esgotada a possibilidade de recurso ordinário. A nível substancial, exige-se a oposição entre a decisão recorrida e um acórdão de fixação de jurisprudência. Exige-se, nos termos do disposto no art. 445. °, n ° 3, que "a decisão recorrida tenha decidido em sentido divergente ao do acórdão uniformizador, por não acatamento da sua doutrina, caso em que o tribunal que assim decida terá de fundamentar a sua divergência".
III - O recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada está, assim, sujeito aos mesmos requisitos substanciais exigidos para o recurso de fixação de jurisprudência, isto é, necessário é que a oposição respeite à própria decisão e não aos fundamentos, bem como que se verifique identidade de facto quanto à mesma questão de direito.
IV - Estipula a norma do art. 446.º que prevê a possibilidade de recurso de decisão contra jurisprudência fixada, que esta se encontra directamente relacionada com a do n° 3 do art. 445.º do CPP, a qual estipula que, embora a jurisprudência fixada pelo STJ não seja obrigatória para os tribunais judiciais, "estes devem fundamentar as divergências relativas" a essa jurisprudência. Apenas as decisões que divergem da jurisprudência fixada, ou sejam, as decisões que a mencionam e contrariam expressamente, podem ser objecto do presente recurso extraordinário.
V - Nos casos em que a decisão não expressa qualquer divergência em relação à jurisprudência fixada, não negando a sua validade, mas não a aplicando, quer por desconhecimento, ou mau entendimento, estamos perante uma errada aplicação do direito, que pode ser impugnada pelas vias normais, no caso de estas ainda o permitirem, mas não é possível interpor recurso extraordinário contra jurisprudência fixada. Uma vez que na decisão recorrida, o tribunal a quo, não expressou oposição à jurisprudência fixada pelo STJ através do AFJ 5/2018, tendo tão só e apenas deixado de o aplicar, louvando-se no AUJ 1/2014, não se está, assim, perante decisão proferida contra jurisprudência fixada e, assim sendo, não estão reunidos todos os pressupostos para admissão do recurso, razão pelo qual deve ser rejeitado.
Decisão Texto Integral:
Autos de Recurso Extraordinário

Uniformização de Jurisprudência

Processo n.º 285/11.7TAEPS.G1-A. S1

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I.

1. O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães (TRG), com fundamento no disposto no artigo 446.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal (CPP), veio, em 15 de Maio de 2019, interpor recurso extraordinário do acórdão proferido nos autos de recurso penal com o n º 111.2019, datado, de 14 Janeiro de 2019, alegando, nas suas conclusões que:

"1. O acórdão desta Relação proferido nos autos e que transitou em julgado, decidiu contra a jurisprudência fixada pelo AUJ n. º5/2018, do Pleno das Secções Criminais do STJ, pub. DR 1ª Série, n º 209, de 30 de Outubro de 2018.

2. Isto porque estando em causa, em ambos os acórdãos, a questão da utilidade ou inutilidade superveniente da lide, decorrente das regras previstas no Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (doravante CIRE) quanto ao pedido de indemnização civil decorrente da prática de um crime que correu os seus termos enxertados no processo penal e de acordo com as regras deste último, ou seja, a mesma questão de direito tendo por base identidade de situações de facto,

3. O acórdão desta Relação decidiu no sentido de que: "A insolvência do lesante determina a inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal".

4. Quando o AUJ n º 5/2018 tinha fixado jurisprudência no sentido de que: " A insolvência do lesante não determina a inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal".

5. Assim, os acórdãos em confronto estão em oposição sobre a mesma questão de direito, relativa à extinção (ou não) por inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização civil enxertado em um processo penal quando tenha ocorrido a declaração de insolvência do demandado.

6. O recurso, por preencher os pressupostos legais e jurisprudenciais, deverá ser julgado admissível, proceder e a final ser revogado o acórdão recorrido que deverá ser substituído por outro que aplique a jurisprudência fixada.”

2. Foi cumprido o disposto no artigo 439.º, n. º1 do CPP (sendo doravante deste Diploma as normas sem menção de origem). O arguido, demandantes e a demandada nada disseram.

3. Remetido a este Supremo Tribunal de Justiça, o processo foi com vista ao Ministério Público nos termos do disposto no artigo 440.º, n. º1, tendo o Sr. Procurador-Geral Adjunto sustentado que o recurso interposto deve ser liminarmente rejeitado.

II.

4. De acordo com os n.ºs 3 e 4 do artigo 440.º, sendo interposto um recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada, a que são aplicáveis as normas constantes dos artigos 437.º a 448.º, compete à conferência apreciar a admissibilidade, o regime do recurso e a existência de oposição entre os julgados, o que se passará a fazer sucintamente.

Estabelece o n.º 1 do artigo 446.º que e cita-se” [é] admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo”, tendo para o efeito legitimidade, de acordo com o n.º 2 do mesmo preceito legal, o arguido, o assistente e as partes civis, sendo o recurso obrigatório para o Ministério Público.

Assim, o recurso de decisão proferido contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça é um recurso extraordinário que permite a este Tribunal controlar as decisões contrárias à jurisprudência que fixou, garantindo a coerência e estabilidade da jurisprudência. Viabiliza-se, desta forma, o reexame da mesma quando, por exemplo, surjam argumentos novos, não anteriormente ponderados, ou quando a jurisprudência fixada se encontra ultrapassada.

Ao recurso contra jurisprudência fixada são "correspondentemente aplicáveis" as disposições do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, o que significa que terão de verificar-se os respectivos pressupostos, formais e substanciais, - artigo 446.º.

Entre os requisitos de ordem formal contam-se a legitimidade do recorrente - que é restrita ao arguido, ao assistente, às partes civis e ao Ministério Público - e a interposição do referido recurso no prazo de 30 dias, contados a partir do trânsito da decisão de que se pretende recorrer. É ainda exigível a existência de prévio trânsito em julgado, por esgotada a possibilidade de recurso ordinário.

A nível substancial, exige-se a oposição entre a decisão recorrida e um acórdão de fixação de jurisprudência. Exige-se, nos termos do disposto no artigo 445. °, n ° 3, que "a decisão recorrida tenha decidido em sentido divergente ao do acórdão uniformizador, por não acatamento da sua doutrina, caso em que o tribunal que assim decida terá de fundamentar a sua divergência".

Para além destes requisitos e, apesar de a lei processual penal não o referir expressamente, tem entendido a jurisprudência do STJ, que"o critério para aferir da existência de oposição de julgados entre decisão recorrida e jurisprudência fixada é o mesmo, do recurso de uniformização de jurisprudência, que de acordo com o disposto no artigo 437° do Código de Processo Penal, há-de aplicar-se também nesta espécie de recurso extraordinário, por via do estatuído no n.º 1 do art. 446.º do mesmo diploma. Nessa apreciação releva a identidade de facto quanto à mesma questão de direito que é, justamente, a tratada no acórdão uniformizador.” Neste sentido vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo. n.º 73/16.4PHLRS.L1. S1, em 06-02-2019.

O recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada está, assim, sujeito aos mesmos requisitos substanciais exigidos para o recurso de fixação de jurisprudência, isto é, necessário é que a oposição respeite à própria decisão e não aos fundamentos, bem como que se verifique identidade de facto quanto à mesma questão de direito.

5. No caso em apreço, no que diz respeito aos requisitos formais, os mesmos encontram-se preenchidos, já que o presente recurso foi interposto por quem tinha legitimidade para tanto, in casu, o Ministério Público – foi tempestivamente apresentado.

Aliás, como diz o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal sobre a questão da tempestividade, o mesmo mostra-se tempestivo.

Recorde-se o que diz no Parecer que lavrou:

“Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 446.º do CPP é admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, recurso esse a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida.

In casu, decorre da tramitação processual que o acórdão foi notificado ao Ministério Público, por termo nos autos, em 15-01-2019 [fls. 9] e aos demais sujeitos processuais por via electrónica em 15.01.2019. Os demandantes interpuseram pedido de aclaração/reforma, do acórdão que antecede, o qual foi julgado improcedente por acórdão proferido em 25 de Março de 2019, sendo os demais sujeitos processuais notificados por via electrónica em 26.03.2019 e o Ministério Público, por termo nos autos, em 26-03-2019.

O acórdão recorrido transitou em julgado, no dia 08-04-2019, considerando-se a interrupção do prazo durante o período de férias judiciais, entre 14 de Abril de 2019 e 22 de Abril de 2019, pelo que o presente recurso, interposto que foi, como já vimos, em 15-05-2019, mostra-se tempestivo.”.

6. Passemos a analisar o caso em concreto.

Entende o MP junto do TRG que o acórdão proferido por aquele Tribunal está em manifesta oposição com o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n° 5/2018, publicado no DR, 1ª Série, n° 209, de 30-10-2018.

Estipula a norma do artigo 446.º que prevê a possibilidade de recurso de decisão contra jurisprudência fixada, que esta se encontra directamente relacionada com a do n° 3 do artigo 445. °, a qual estipula que, embora a jurisprudência fixada pelo STJ não seja obrigatória para os tribunais judiciais, "estes devem fundamentar as divergências relativas" a essa jurisprudência.

Assim, apenas as decisões que divergem da jurisprudência fixada, ou sejam, as decisões que a mencionam e contrariam expressamente, podem ser objecto do presente recurso extraordinário, pois que apenas nestes casos, em que é questionada a validade da jurisprudência fixada pelo STJ, pode este equacionar a necessidade de a reexaminar, de acordo com o n ° 3, do artigo 446.°.

Como refere o Ministério Público junto do TRG o que o acórdão em causa afrontou (foi) inequivocamente a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão 5/2018, publicado in DR 1.ª Série, n.º 2009, de 30 de Outubro de 2018, já que, decidiu que “na sequência da junção aos autos de sentença transitada em julgado no dia 23 de Março de 2015, por força da qual foi o arguido/demandado AA, face à respectiva apresentação, declarado insolvente, veio a ser, à luz do artigo 277.º alínea e), do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal, declarada extinta a instância civil por inutilidade superveniente da lide, por ter sido considerado que qualquer decisão a proferir já não pode ter qualquer efeito útil, nomeadamente por não ser possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo.

Tal despacho foi proferido em cumprimento do Acórdão Uniformizador de jurisprudência datado de 8 de Maio de 2013 publicado in DR, 1.ª série, n.º 39, de 25.02.2014, segundo o qual transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º, do C.P.C”.

Entendemos que lhe cabe razão nesta alegação. Com efeito, cumprindo os ditames de tal jurisprudência uniformizadora que, precavendo o direito à acção de todos os credores na insolvência, na sequência de um conjunto de trâmites processuais aí determinados, faz soçobrar as acções que dispersamente possam pender contra o declarado insolvente.

Ou seja, dizer-se que na sequência do entendimento do legislador, veio a jurisprudência uniformizar o entendimento que será numa acção colectiva, a insolvência, que todos os créditos devem sofrer reclamação, ser reconhecidos, merecer graduação e depois serem satisfeitos pelo património apreendido ao insolvente.

Verifica-se, assim, que o acórdão em causa, decidiu a questão da inutilidade/utilidade superveniente da lide, face à declaração de insolvência do arguido/demandado, convocando, para o efeito o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 1/2004 e, não o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 5/2018, o qual se aplicava neste caso.

Com efeito, num caso como o dos autos, em que estamos perante um pedido de indemnização civil, por perdas e danos decorrentes da prática de um crime, resultante de responsabilidade civil extracontratual, não é aplicável o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/2004, mas sim o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2018. É que o acórdão de fixação de jurisprudência 1/2004, teve como fundamentos a perda do efeito útil da acção declarativa proposta contra o empregador/devedor com o objetivo de ver reconhecido um crédito a favor do autor/trabalhador, decorrente de um contrato de trabalho celebrado entre ambos e, não um pedido de indemnização cível decorrente da prática de um crime (que é o caso dos autos).

Relembre-se o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2018 no qual se refere que:

“Porém, no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2014 (DR, 1.ª Série-A, de 25.02.2014, p. 1642 e ss) decidiu-se que:[t]ransitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil, normal, a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º, do C.P.C -o atual art. 277.º, al. e), na versão do CPC de 2013- (para uma visão crítica, cf. Alexandre Soveral Martins, «Um curso de direito da insolvência», 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, p. 152-3; Catarina Serra, ob. cit. supra, p. 199-201).

Perante esta fixação surge a pergunta de saber se deve ser aplicada analogicamente (uma vez que o âmbito de decisão é distinto daquele outro que aqui discutimos e por isso naquela decisão não é feita qualquer alusão aos casos de pedido de indemnização civil, por perdas e danos decorrentes da prática de um crime, resultante de responsabilidade civil extracontratual) à questão agora em discussão.

Os fundamentos que levaram àquela fixação resultam da perda do efeito útil da acção após a declaração da insolvência. Entendeu-se que, em estrita obediência ao princípio par conditio creditorum, e atento o escopo do art. 1.º, do CIRE, a declaração judicial de insolvência, por sentença transitada em julgado, é incompatível com a prossecução da ação declarativa proposta contra o empregador/devedor com o objetivo de ver reconhecido um crédito a favor do autor/trabalhador, decorrente de um contrato de trabalho celebrado entre ambos.

(…)

Se se admitisse, por absurdo, a possibilidade de aplicação do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2014 ao caso em apreço, daí resultaria que, uma vez declarada a inutilidade superveniente da lide, o pedido de indemnização civil iria prosseguir os seus termos no âmbito da ação de insolvência, porém sem que ainda se soubesse se haveria ou não lugar à constituição da obrigação - desde logo, seria necessário que se provasse a prática do facto ilícito e típico, com todos os inconvenientes para a economia processual decorrentes, nomeadamente, de uma duplicação da prova (relativa ao facto fundador da responsabilidade penal e da responsabilidade civil).

Por outro lado, a admitir a integração do pedido de indemnização civil decorrente da prática de um crime no processo de insolvência teria como consequência a aplicação de regras processuais distintas das regras processuais penais.”

No entanto, e apesar de o acórdão recorrido, ter decidido a questão da inutilidade superveniente da lide face à declaração de insolvência do credor, contra o que se mostra decidido no acórdão de fixação n.º 5/2018, verifica-se, que não manifestou a sua discordância expressa, face a tal acórdão de fixação, contestando-o, ou negando a sua validade.

Motivo que nos leva a entender que não é admissível recurso contra jurisprudência fixada.

Com efeito, nos casos em que a decisão não expressa qualquer divergência em relação à jurisprudência fixada, não negando a sua validade, mas não a aplicando, quer por desconhecimento, ou mau entendimento, estamos perante uma errada aplicação do direito, que pode ser impugnada pelas vias normais, no caso de estas ainda o permitirem, mas não é possível interpor recurso extraordinário contra jurisprudência fixada.

Neste sentido, vide acórdão deste Tribunal proferido no processo n.º 1727/14.5TAGM-A. S1, em 18/10/2017 no qual se refere que:

1. Sobre este tipo de recurso considerou-se em acórdão deste Supremo Tribunal de 27/04/2017, proferido no processo n° 28/13.0SPPRT.P1. S1 da 5ª secção, subscrito por esta formação de juízes:

Nos termos do art° 446° do CPP, «é admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis» as disposições que regulam o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. Esta norma está directamente relacionada com a do n° 3 do art° 445°, que imediatamente a precede: embora a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça não seja obrigatória para os tribunais judiciais, «estes devem fundamentar as divergências relativas» a essa jurisprudência.

Deve, pois, entender-se que é das decisões que, ao abrigo do n° 3 do art° 445°, divirjam da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça que se admite o recurso previsto no art° 446°, ou seja, das decisões que não aceitem essa jurisprudência, contestando-a. Não das decisões que, sem afrontarem a referida jurisprudência, deixem de aplicá-la, por desconhecimento ou por dela fazerem uma errada leitura.

Por outras palavras, para o efeito previsto no art° 446°, n° 1, decisões proferidas contra jurisprudência fixada são as que se inserem na categoria acabada de delimitar na norma anterior: aquelas que divergem dessa jurisprudência. Só nesses casos se justifica que seja sempre admitido recurso para o Supremo, que será directo se estiver em causa uma decisão de 1 ª instância, na medida em que, sendo questionada a validade da jurisprudência por si fixada, se pode equacionar a necessidade de a reexaminar, de acordo com o n° 3 do mesmo art° 446°.”

Nos casos em que a decisão não afirma qualquer divergência em relação à jurisprudência fixada, isto é, não nega a sua validade, mas a não aplica, por desconhecimento ou mau entendimento, o que pode haver é uma errada aplicação do direito, que, como todas as erradas aplicações do direito, pode ser impugnada na medida em que as vias normais o permitam. Não há, na verdade, qualquer justificação para que uma decisão que não põe em causa a validade da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça admita mais meios de impugnação do que uma decisão que aplica incorrectamente o direito.

Já assim não é no caso de divergência assumida. Aí, porque é posta em causa a validade da jurisprudência fixada, há necessidade de decidir se ela continua válida. E isso só pode ser feito por meio do recurso extraordinário, visto que se pode colocar a questão do reexame dessa jurisprudência, para o qual só tem competência o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça. Só uma decisão desse tipo justifica o desencadeamento do mecanismo processual destinado a verificar se a jurisprudência fixada se mantém válida. Reafirma-se aqui esse entendimento.”

7. Pelo que, analisando o caso dos autos, não podemos deixar de concluir que, uma vez que na decisão recorrida, o tribunal a quo, não expressou oposição à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça através do acórdão n° 5/2018, tendo tão só e apenas deixado de o aplicar, louvando-se no acórdão uniformizador n º 1/2004, o qual como já se disse, não é aplicável no caso concreto, não se está, assim, perante decisão proferida contra jurisprudência fixada e, assim sendo, não estão reunidos todos os pressupostos para admissão do presente recurso Neste sentido, ver acórdãos desta 5.ª secção: Proc. n.º 74/15.0T9ABF.E1. S1 - 5.ª Secção, de 23.05.2019, proferido pelos Conselheiros Carlos Almeida (relator) Júlio Pereira (adjunto); Proc. n.º 1727/14.5TAGMR-A. S1 - 5.ª Secção, de 18.10.2017, e Proc. n.º 523/08.3TAVIS.C1-A. S1 - 5.ª Secção, de 23.04.2015, ambos proferidos pelos Conselheiros Manuel Braz (relator), Isabel São Marcos(adjunta).

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Razão que nos leva à rejeição do recurso extraordinário contra jurisprudência fixada, nos termos conjugados dos artigos 440.º, n.º 4, e 441.º, n.º 1, correspondentemente aplicáveis ao caso, por força do artigo 446.º, n.º 1.

8. Não são devidas custas, por força do disposto no artigo 522.º, n.º 1.

III.
9. Face ao exposto, acordam os juízes da 5.ª secção deste Supremo Tribunal em:

a) Rejeitar o recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, interposto pela Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação de Guimarães;

b) Sem custas, por não serem devidas.

Lisboa, 31 de Outubro de 2019

Processado e revisto pela relatora, nos termos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP.

(Margarida Blasco) (Relatora)

(Helena Moniz (Com voto de vencida)

(Manuel Braz)

Voto vencida por considerar que o recurso interposto contra jurisprudência fixada, nos termos do art. 446.º, do CPP, não devia ser rejeitado, porquanto:

O recurso extraordinário contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça pretende assegurar a finalidade básica que presidiu à manutenção da existência de acórdãos de fixação de jurisprudência: a uniformização das soluções jurídicas aplicadas a situações semelhantes, assim garantindo a certeza e a segurança jurídica necessárias a toda a comunidade quanto à forma como o Direito é aplicado.

Se numa fase inicial a uniformização era imposta (quando ainda existiam assentos, e quando passaram a ter força obrigatória geral até à declaração de inconstitucionalidade Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 743/96, de 28 de maio.), com o novo Código de Processo Penal a uniformização passou a constituir apenas jurisprudência obrigatória para os tribunais, podendo, todavia, ser alterada sempre que se decidisse contra a jurisprudência fixada. Na reforma de 1998, a jurisprudência fixada perdeu o seu carácter de obrigatoriedade, pelo que pode decidir-se em oposição ao determinado, mas necessariamente a decisão tem que ser fundamentada (tem que fundamentar as divergências). O que se integra na linha geral de necessidade de fundamentação das decisões (nos termos do art. 97.º, n.º 5, do CPP).

No caso dos autos, verificamos que o tribunal recorrido aplicou o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 1/2014, nada referindo quanto ao acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2018 (in DR, de 30.10.2018).

Entende-se no acórdão agora prolatado que, tal como quando ocorre um erro de direito por errada aplicação e não há possibilidade, segundo se refere, de recurso extraordinário por inaplicabilidade do normativo correto, também aqui não se deve admitir o recurso contra jurisprudência fixada; já assim não se entende quando claramente a jurisprudência afirma a sua divergência relativamente à posição fixada. Este entendimento terá como consequência que aquele acórdão que nunca refere o acórdão de fixação de jurisprudência nunca verá a sua solução questionada (a não ser em sede de recurso ordinário), contrariamente ao que fundamentou de forma exaustiva a sua oposição.

Como bem se constata, o Supremo Tribunal de Justiça, ao não admitir o recurso contra jurisprudência fixada quando o acórdão recorrido omite acórdão de fixação de jurisprudência anterior (conexo com a questão de direito a resolver), restringe o que a lei não restringiu.

Na verdade, quando há uma decisão em que não se aplica um certo normativo, assim incorrendo em erro de direito, porque todas as decisões têm que ser fundamentadas legalmente, constitui uma decisão que não aplicou o normativo adequado, mas necessariamente teve que se basear em outro dispositivo legal. Ora, assim sendo, a solução adotada divergirá de todas aquelas situações que aplicaram o dispositivo correto e que não incorreram numa errada aplicação do direito. Pelo que teremos uma oposição de julgados, porque baseados em disposições legais distintas.

Isto é, no caso de uma errada aplicação de direito, após os recursos ordinários, ainda se terá a possibilidade de interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, pois aquela errada aplicação do direito estará em oposição com a aplicação correta do direito a um caso semelhante. Ou seja, uma decisão com uma aplicação errada do direito pode ser objeto de recurso ordinário, mas também de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

Considera-se, pois, que nos casos de erro de direito por inaplicabilidade de um dispositivo legal haverá lugar, após os recursos ordinários possíveis, a um recurso para fixação de jurisprudência, nos termos da lei.

Paralelamente, no caso de um acórdão que não aplica uma certa jurisprudência fixada — sem a sequer referir ou contestar abertamente, isto é, sem divergência expressa quanto à solução acolhida no acórdão uniformizador —, então, ou aplica normativos distintos daqueles que serviram de base à decisão de uniformização (e nesse caso temos um acórdão em oposição com o acórdão de fixação) ou, como nos autos, aplica um distinto acórdão de fixação de jurisprudência.

Ora, também nesta última hipótese, tal como aquando do erro de direito, deverá considerar-se que há uma oposição de julgados — entre o acórdão de fixação e o acórdão recorrido, a justificar uma fixação de jurisprudência em nome do interesse da unidade do direito. Também aqui, a solução adotada no acórdão (tal como acontece na decisão recorrida, nada referindo quanto à jurisprudência fixada, mas em oposição, permite a constatação da ocorrência de uma oposição de julgados, relativamente à mesma questão de direito, a reclamar uma fixação de jurisprudência. Porém, como a oposição é em relação a uma jurisprudência já fixada, o recurso a interpor será o recurso previsto no art. 446.º, do CPP. Mas, mesmo que assim não estivesse previsto, uma coisa era certa: o acórdão que não aplicou o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que fixou jurisprudência constitui um acórdão em oposição com este e, portanto, estando os restantes pressupostos preenchidos, permitiria um recurso nos termos do 437.º, do CPP, uma vez que a mesma questão de direito tem soluções opostas.

Ou seja, o acórdão agora recorrido, aplicando acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2014, assentou numa solução oposta relativamente ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (de fixação de jurisprudência) n.º 5/2018. Assim sendo, e ainda que por absurdo se considerasse não ser admissível o recurso contra jurisprudência fixada tal como neste acórdão se defende, sempre, em atenção ao aproveitamento dos atos, se deveria admitir o recurso à luz do disposto no art. 437.º, do CPP.

Todavia, considero que a simples omissão de qualquer referência ao acórdão de fixação de jurisprudência e, consequentemente, a não apresentação de qualquer fundamentação a divergir ou não relativamente à solução adotada no acórdão de fixação, não constitui obstáculo à sua admissibilidade. Não só porque, então, estava aberta a porta para que facilmente, e sem qualquer fundamentação, não se aplicasse o acórdão de fixação de jurisprudência, pese embora não se apresentassem os argumentos necessários para adotar outra solução, como também porque o legislador pretendeu uniformizar a jurisprudência e por esta via de rejeição do recurso, tal como apresentada no acórdão agora prolatado pelo Supremo Tribunal de Justiça, o próprio órgão jurisdicional que constitui o pilar da aplicação do Direito e da sua interpretação jurisprudencial, assim cumprindo a sua primacial função constitutiva de realização do Direito, e que fixou jurisprudência, desvaloriza-a e restringe o âmbito de um recurso que o legislador não limitou.

Ora, o legislador não pretendeu limitar este recurso, desde logo porque impôs a sua obrigatoriedade para o MP (art. 446.º, n.º 2, do CPP), sem que tivesse exigido quaisquer requisitos adicionais para além de uma decisão proferida contra jurisprudência fixada (art. 446.º, n.º 1, do CPP). E esta obrigatoriedade foi imposta como forma de garantir o controlo do respeito pela jurisprudência uniformizadora. Pese embora o legislador tenha retirado o carácter de jurisprudência obrigatória à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, assim permitindo a necessária flexibilidade para que aquela jurisprudência possa ser modificada, não pretendeu, todavia, desautorizar o Supremo Tribunal de Justiça na sua relevante função de uniformização da aplicação do Direito. Ora, a limitação de admissibilidade do recurso contra jurisprudência fixada, baseada no argumento de que o acórdão recorrido não apresentou quaisquer razões divergentes porque nem sequer chegou a referir o acórdão de fixação de jurisprudência, já publicado em jornal oficial aquando da decisão, constitui uma limitação não imposta por lei, e contrária à lei, pois impossibilita o Supremo Tribunal de Justiça de exercer a sua função de uniformização da jurisprudência, acentuando ainda mais o “rude golpe [no] carácter simbólico do Supremo Tribunal de Justiça” Simas Santos, Notas sobre a revisão dos recursos em processo penal, Revista do Ministério Público, ano 27 (out—dez.2006), n.º 108, p. 72..

E estabelecer a analogia com a eventual impossibilidade de recurso extraordinário quando ocorra um erro de direito constitui uma analogia proibida porque restritiva de um direito ao recurso consagrado legalmente.

Supremo Tribunal de Justiça, 31 de outubro de 2019


(Helena Moniz (Adjunta)