Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
11197/14.2T2SNT-F.L1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: ARTIGO 6º DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
PRESTAÇÃO DE GARANTIAS
VALIDADE DO TÍTULO
ÓNUS DA PROVA
CONTRADIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Data do Acordão: 03/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES – PERSONALIDADE E CAPACIDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / PROVA POR DOCUMENTOS – PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA / PROCESSO ORDINÁRIO / PENHORA / BENS QUE PODEM SER PENHORADOS.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA / PROVA DOCUMENTAL / DOCUMENTOS AUTÊNTICOS.
Doutrina:
- Alexandre Soveral Martins, Código Das Sociedades Comerciais Em Comentário, Coordenação de Jorge Coutinho de Abreu, Volume I, p. 110;
- Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio da Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 447 a 457;
- Código Das Sociedades Comerciais Anotado, I Volume, 2014, Coordenação de António Menezes Cordeiro, p. 93 a 95;
- Fernando Pereira Rodrigues, A Prova Em Direito Civil, p. 21 a 29;
- Helder Martins Leitão, A Prova No Código De Processo Civil, p. 65 a 68;
- João Labareda, Direito Societário Português Algumas Questões, p. 186 a 192;
- Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso De Direito Comercial, Volume II, Das Sociedades, 3ª edição, p. 193 a 199;
- José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, p. 278;
- Manuel de Andrade, Noções Elementares De processo Civil, 1976, p. 199 a 202;
- Osório de Castro, Da Prestação De Garantias Por Sociedades a Dívidas De Outras Entidades, ROA Ano 56, Agosto 1996, p. 565 a 593;
- Vaz Serra, RLJ 103º, p. 27.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 6.º, N.º 3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 444.º, N.ºS 1 E 2 E 735.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 342.º, N.ºS 1 E 2, 344.º, 369.º E 371.º.
CÓDIGO DE INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 146.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 13-05-2003, RELATOR PINTO MONTEIRO;
- DE 17-06-2004, RELATOR QUIRINO SOARES;
- DE 25-11-2008, RELATOR SEBASTIÃO PÓVOAS, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 27-05-2010, RELATOR MÁRIO CRUZ, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 07-10-2010, RELATOR ÁLVARO RODRIGUES;
- DE 28-05-2013, RELATOR FERNANDES DO VALE;
- DE 16-11-2017, PROCESSO N.º 1721/14.6T8VNG-E.P1.S1;
- DE 22-05-2018, RELATORA ANA PAULA BOULAROT.
Sumário :

I Nos termos do artigo 6º, nº3 do CSComerciais «Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.».

II Impende sobre a sociedade garante que invoca a nulidade da garantia por si prestada com o objectivo de se fazer valer de tal nulidade para não ter de cumprir a obrigação garantida, o ónus de alegação e prova da inexistência de interesse próprio, ou seja, o ónus da prova dos requisitos da existência da tal invalidade do acto, de que se pretende aproveitar, sendo que a razão principal para tal reside na circunstância de que ninguém melhor do que a própria sociedade que presta a garantia, poderá certificar que a mesma foi prestada no seu próprio interesse e esta é a posição maioritária deste Supremo Tribunal de Justiça.

III Tendo a sociedade garante/Recorrente, invocado a nulidade da apontada garantia por a escritura cometida em sede de escritura pública de constituição de hipoteca, estar eivada de falsidade, deveria ter arguido tal vício, em termos adequados e no momento próprio, isto é, em sede de contestação de harmonia com o preceituado no normativo inserto no artigo 444º, nº, nºs 1 e 2 do CPCivil e tendo sido apenas abordada aquando do recurso de Apelação, apresenta-se como questão nova que transcende o objecto do recurso.

IV Constituindo ónus da garante a alegação e prova da invalidade da garantia prestada, por inexistir qualquer interesse próprio na sua prestação, nos termos do artigo 342º, nº2 do CCivil, se omitir tal imposição legal faz conduzir a sua pretensão ao insucesso.

V O documento de constituição de hipoteca não faz prova plena quanto às declarações nele apostas, máxime o interesse societário na prestação das garantias, podendo assim a sua força ser destruída por qualquer meio de prova legal, independentemente de uma eventual arguição da sua falsidade, o que, na espécie, não foi suscitada.

V Tendo a Recorrente baseado a sua defesa apenas na circunstância da garantia ter sido prestada a título gratuito, factualidade essa que não logrou provar, como resulta da materialidade que se deu como não apurada, e, essa ausência de prova não contende com o que ficou decidido no Acórdão fundamento, já que aí se deixou assente que «[N]ão se mostrando provado que a sociedade tivesse interesse na prestação das garantias, há que concluir que não se encontra preenchido o interesse justificado próprio da sociedade garante a que alude a parte final do disposto no n.º 3 do artigo 6.º do CSC.».

 VI Isto quer dizer o seguinte: o ónus de alegação e prova dos factos impeditivos do direito impende como no Acórdão fundamento, sobre o garante, porquanto foi ele que constituiu a garantia, artigo 342º, nº2 do CCivil; o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do direito de crédito alegado pelo credor reclamante na qualidade de beneficiário de garantia hipotecária alegadamente constituída pela sociedade em benefício dos devedores de que houve justificado interesse daquela na constituição de tal garantia hipotecária, nestas precisas circunstâncias, impenderá sobre o titular da garantia, artigo 342º, nº1 do CCivil.

VII São duas realidades correspondentes às duas faces de uma mesma moeda e que só aparentemente se contradizem: de um lado temos os factos concretizadores de uma excepção obstativa da procedência de um direito de crédito; de outro lado, temos a concretização da materialidade consubstanciadora daquele mesmo direito.

VIII Se o Autor invoca determinado direito na acção é suposto que tenha de alegar e provar os factos que o integram, sendo obrigação da parte contra quem aquele direito é invocado, a alegação e prova dos factos anormais que possam impedir a sua operância.

(APB)

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I O MINISTÉRIO PÚBLICO, em representação da Fazenda Nacional, propôs ação declarativa, sob a forma de processo comum sumário, nos termos do disposto no artigo 146º, nº1, do CIRE, contra P, SA, MASSA INSOLVENTE DE P, SA e CEDORES DA MASSA INSOLVENTE, peticionando o reconhecimento das seguintes quantias a título de créditos vencidos e da responsabilidade da devedora à data da insolvência: € 2.408.855,95 respeitante a IRS, com data de vencimento de 01.10.2008; € 1.490.170,68, a juros de mora contados sobre os antecedentes valores de IRS até á declaração de insolvência; € 24.708,40 de custas devidas.

Citados os Réus, apenas a Ré Massa Insolvente contestou, alegando em sede de excepção que a dívida é das pessoas singulares e não da empresa, que apenas responde nos termos da garantia hipotecária que prestou, pelas dívidas fiscais do seu administrador e da esposa; e, a insolvente sociedade comercial não tinha qualquer interesse na constituição de hipoteca sobre o seu património, pelo que a garantia prestada é nula.

Em sede de resposta à excepção, o Magistrado do MP defendeu a validade da garantia decorrente da escritura pública de constituição unilateral de hipoteca, uma vez que a sociedade declarou ser esta constituída no seu interesse.

Foi proferida sentença, a julgar a ação procedente, tendo sido declarado reconhecido e verificado o crédito do Autor no montante € 3.923.735,03, respeitante a IRS, juros e custas, devidas no processo de execução fiscal n.º …, de natureza garantido.

Inconformada a Massa Insolvente de P, vem agora recorrer de Revista excepcional, apresentando o seguinte acervo conclusivo:

- A decisão, quer da 1ª Instância, quer da Relação, está em contradição com outro Acórdão já proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, acórdão-fundamento, motivo pelo qual é admissível o presente recurso como Revista Excepcional, ao abrigo do art. 6723, nº 1, alínea c) do C.P.C.;

- No acórdão sob recurso defende-se que, prestada uma garantia real, unilateral, por parte da sociedade insolvente a favor das finanças, por dívidas (fiscais) do seu então administrador (e respetiva esposa), constando da respetiva escritura de constituição de hipoteca que “a sociedade sua representada tem justificado interesse próprio na constituição da presente hipoteca, tendo a mesma obtido o parecer favorável do Conselho de Administração (...) e do Conselho Fiscal da sociedade” cabe à parte que invoca a nulidade o ónus da prova da ausência do interesse próprio.

- Existe uma posição contrária, que versa sobre a mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação, a qual consta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Novembro de 2017, proferido no proc. 1721/14.6T8VNG-E.P1.S1, Relator Graça Amaral, acórdão-fundamento deste recurso de Revista Excecional.

- Assim, a Recorrente, com presente recurso, pretende que se determine a quem competia o ónus de alegar e provar o justificado interesse próprio da sociedade na prestação da garantia e, bem assim, se tal prova foi, ou não, conseguida.

- O Recorrido veio reclamar, em sede de processo de Verificação ulterior de créditos, um crédito de IRS, no montante de € 2.408.855,95, bem como um crédito de € 1.490.170,95, resultantes de dívidas à Fazenda Nacional de J e F, sem nada mais referir na sua petição inicial.

- A Recorrente invocou que as dívidas em causa não eram dívidas da insolvente, pelo que não era devedora à Fazenda Nacional dos montantes em causa.

- Recorrente, nos termos do art. 6º do Código das Sociedade Comerciais, conjugado com os arts. 280º, nº 1 e 294º, ambos do Código Civil, invocou a nulidade da garantia prestada pela insolvente para pagamento daquelas dívidas.

- Garantia consistente em hipoteca voluntária a favor da Fazenda Nacional sobre o prédio urbano composto de pavilhão fabril constituído por 2 pisos, identificado pelo n9 2 e um anexo constituído por pavilhões industriais identificados pelos n9s 2 A, 2B, 2C, 2D e 2E, sito em …

 - O Recorrido pugnou pela validade da garantia dado existir interesse próprio da insolvente na prestação da mesma.

- Alegou ainda o Recorrido que a justificação do interesse próprio da insolvente se encontrava lavrada na escritura pública de hipoteca unilateral, que juntou desacompanhada das atas que instruem a mesma, bem como na ata nº 22 da reunião da Assembleia Geral onde, diz, estaria confirmado o interesse próprio na prestação da garantia.

-A Recorrente, em sede de audiência de discussão e julgamento, juntou certidão da ata nº 76 do Conselho de Administração e da ata nº 30 do Conselho Fiscal ficando, assim, a escritura de constituição de hipoteca unilateral integralmente junta aos autos.

- Na escritura de constituição de hipoteca unilateral refere-se “Que a sociedade sua representada tem justificado interesse próprio na constituição da presente hipoteca, tendo a mesma obtido o parecer favorável do Conselho de Administração, conforme acta atrás referida, e do Conselho de Fiscal da sociedade, conforme acta número trinta, da reunião do mesmo órgão realizada em quinze de Julho corrente, de que arquivo fotocópia”.

- Em face do conteúdo da escritura resulta que não corresponde à verdade o afirmado pela Recorrido dado que na mesma não se encontra lavrada a justificação do interesse próprio da insolvente na prestação da garantia.

- Na escritura encontra-se apenas invocado genericamente um suposto interesse próprio na constituição da hipoteca.

- Da ata nº 76 do Conselho de Administração, datada de 15/07/2009, arquivada com a escritura de constituição de hipoteca resulta que "Dando-se início aos trabalhos, o Conselho de Administração apreciou um pedido do presidente do Conselho de Administração, Sr. J, para que a sociedade P, S.A., preste garantia a favor da Fazenda Pública, até ao montante de cinco milhões de euros, no âmbito do processo de execução fiscal nº 3166200901037080, através da penhora do prédio urbano, sito no lugar da ….

Analisado o pedido, os Administradores Snr. J e Eng. H deliberaram aprovar aquele pedido de prestação daquela garantia a favor da Fazenda Nacional, através de penhora do citado prédio/''(o negrito e o sublinhado são nossos).

- Por sua vez da ata nº 30 do Conselho fiscal, datada de 15/07/2009, arquivada com a escritura de constituição de hipoteca resulta que “Aberta a sessão, o Conselho apreciou um pedido do presidente do Conselho de Administração, Sr. J, para que a sociedade P, S.A., preste garantia a favor da Fazenda Pública, até ao montante de cinco milhões de euros, no âmbito do processo de execução fiscal nº 3166200901037080, através da penhora do prédio urbano, sito no lugar da ….

- A escritura está eivada de falsidade, pois refere-se na mesma que foi obtido parecer favorável do Conselho de Administração, ata nº 72, e do Conselho Fiscal, ata n9 30, para a hipoteca ai constituída quando tal não corresponde à verdade, porquanto o que foi genericamente autorizado nestas atas, conforme acima transcrito, foi a constituição de penhora sobre o imóvel ai identificado,

- A justificação do interesse próprio da insolvente na constituição da garantia também não consta, nem foi confirmada, através da ata n2 22 em reunião da Assembleia Geral onde apenas se refere que “Aberta a sessão o Presidente do Conselho de Administração, Sr. J, tomou a palavra para solicitar que a empresa lhe preste uma garantia a favor da Fazenda Pública, nos autos de execução fiscal, referente ao processo nº…”.

- O facto de ter ficado provado que “Foi consignado na escritura que a sociedade garante tem justificado interesse próprio na constituição da hipoteca, nos termos do parecer favorável do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal, constante da ata arquivada no cartório notarial.” em nada releva, pois esta declaração não tem a força probatória plena do documento autêntico.

- Demonstrou-se, de forma cabal, que parte do que se fez consignar da escritura é falso, pois inexiste nas atas que servem de base à mesma qualquer parecer favorável à constituição de hipoteca, assim como inexiste qualquer justificação ou, sequer, invocação do interesse próprio da insolvente na prestação da garantia.

- O Meritíssimo Juiz “a quo” conclui, dos documentos juntos, pela “existência de deliberação válida (não impugnada no tempo e modo próprios) e a indicação de interesse na constituição da garantia”.

- Este pressuposto parte de duas premissas incorretas, ou seja, por um lado, era ao Recorrido que cabia provar o justificado interesse e, por outro lado, a declaração feita na escritura pela insolvente não se encontra abrangida por força probatória plena do documento autêntico.

- Assim, verifica-se a falta de capacidade da insolvente para prestar garantias a favor de terceiros, constante da 1^ parte do n9 3 do art. 69 do Código das Sociedades Comerciais, que apenas poderia ser afastada, no caso concreto, se existisse justificado interesse próprio desta na constituição da garantia.

- O justificado interesse próprio da insolvente na constituição da garantia, enquanto condição de validade da  garantia  prestada, teria  que ser demonstrado  pelo

Recorrido enquanto beneficiário da mesma, o que nos presentes autos não aconteceu.

- Ou seja, cabia ao Recorrido, nos termos do n§ 1 do art. 3429 do Código Civil, cabia ao Recorrido, que invocou o justificado interesse próprio da insolvente na prestação da garantia, provar a existência de tal interesse.

- O facto de a insolvente ter declarado na escritura, documento autêntico, que existia justificado interesse na constituição da garantia, só por si não faz prova plena de que tal seja verdade, pois o Notário apenas atesta que perante si foi feita tal declaração.

- No caso em concreto fundamenta-se a declaração de justificado interesse próprio da insolvente com o conteúdo das atas do Conselho de Administração, ata nº 72, e do Conselho Fiscal, ata n2 30, arquivadas com a escritura, o que não corresponde à verdade;

- Deveria a Sra. Notária ter verificado o conteúdo das referidas atas para que escritura não contivesse, como contém, falsas declarações e não estivesse, como está, eivada de falsidade nos termos do art. 3722 do Código Civil, o que sempre afastaria a força probatória plena da mesma. - Além de que, não tendo o Recorrido, como lhe competia, provado o justificado interesse próprio da insolvente na prestação da garantia, veja-se a matéria de facto dada como assente, esta tem que ser considerada nula e, consequentemente, a ação improceder.

-O acórdão-fundamento, em situação análoga, decidiu da forma acima descrita, em contradição com o acórdão ora recorrido.

- A decisão recorrida viola, entre outros, o art. 6º do Código das Sociedades Comerciais, bem como os arts. 342º, 344º e 372º, todos do Código Civil.

Nas contra alegações o Recorrido pugna pela manutenção do julgado.

II A problemática solvenda no âmbito do presente recurso é a de determinar a quem competia o ónus de alegar e provar o justificado interesse próprio da sociedade garante na prestação da garantia.

As instâncias declararam como assentes os seguintes factos:

1. A Sociedade P, SA foi declarada insolvente por sentença proferida em 09/06/2014 no âmbito do processo principal.

2. J P, NIF… e F P, NIF … possuem dívida perante da Fazenda Nacional emergente de IRS com data de vencimento de 01.10.2008, no valor de € 2.408.855,95 e de € 1.490.170,68, proveniente de Juros de mora sobre tal quantia, vencidos até à data da declaração de insolvência.

3. Em 20.07.2009 a insolvente constituiu hipoteca voluntária a favor da Fazenda Nacional sobre o prédio urbano composto por pavilhão fabril constituído por 2 pisos, identificado pelo nº 2 e um anexo constituído por pavilhões industriais identificados pelos nºs 2º, 2B, 2€, 2D e 2E, sito em ….

4. A garantia foi prestada para pagamento das quantias devidas no processo de execução fiscal n.º 3166200901037080, e até ao montante de cinco milhões de euros.

5. Foi consignado na escritura que a sociedade garante tem justificado interesse próprio na constituição da hipoteca, nos termos do parecer favorável do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal, constante da ata arquivada no cartório notarial.

6. A hipoteca mostra-se registada na CRP a favor da Fazenda Nacional pela ap. 2021 de 20.07.2009.

- Factos não provados:

Com interesse, não se provou que:

a) Não existe qualquer justificado interesse na concessão da referida garantia.

b) A insolvente não retirou qualquer vantagem por ter prestado tal garantia.

Insurge-se a Recorrente contra o Aresto impugnado uma vez que no mesmo se defende que, prestada uma garantia real, unilateral, por parte da sociedade insolvente a favor das finanças, por dívidas (fiscais) do seu então administrador (e respetiva esposa), constando da respetiva escritura de constituição de hipoteca que “a sociedade sua representada tem justificado interesse próprio na constituição da presente hipoteca, tendo a mesma obtido o parecer favorável do Conselho de Administração (...) e do Conselho Fiscal da sociedade” cabe à parte que invoca a nulidade o ónus da prova da ausência do interesse próprio, estando tal posição em oposição com a tese defendida no Acórdão Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Novembro de 2017, proferido no proc. 1721/14.6T8VNG-E.P1.S1, sendo mister que se determine a quem competia o ónus de alegar e provar o justificado interesse próprio da sociedade na prestação da garantia e, bem assim, se tal prova foi, ou não, conseguida.

Lê-se no Acórdão impugnado:

«[c]omo expressamente refere o n.º3 do artigo 6.º da CSC, a prestação de uma garantia real a dívidas de outras entidades não se assume, à partida, no âmbito do escopo lucrativo; como tal, constitui acto contrário ao seu fim.

Todavia, salvaguarda o referido preceito, que cairá fora do âmbito dos actos contrários ao fim da sociedade a prestação de garantia no caso de existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou tratando-se de sociedades em relação de domínio ou de grupo.”.

Ora, a referida garantia, hipoteca voluntária a favor da Fazenda Pública, foi constituída por escritura pública, dela se fazendo constar que a sociedade “tinha justificado interesse próprio na constituição da presente hipoteca”, tendo obtido, previamente, o parecer favorável do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal, de acordo com actas que se anexaram à referida escritura.

Constituindo esta escritura documento autêntico, previsto no artº 369 do C.C., a sua força probatória, no entanto, apenas abrange os factos que nela se referem como praticados pela autoridade ou oficial público, assim como dos factos que nela são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, conforme dispõe o artº 371 do C.C., estando afastados da fé pública do documento, o que neles foi declarado pelos outorgantes, mormente a existência de interesse próprio da sociedade.

Assim, a questão da existência do requisito do interesse próprio da sociedade, declarado na escritura e não abrangido tal facto pela prova plena conferida aos documentos autênticos, depende de, em primeiro lugar, se apreciar a quem incumbe o ónus de alegação e prova da existência ou inexistência desse interesse.

Face a esta questão, considerou a decisão recorrida que incumbia à R. insolvente o ónus de prova da falta de interesse “na constituição da garantia bancária a favor da Autoridade Tributária”, como aliás decorreu dos temas de prova elaborados e que não mereceu então a oposição do recorrente.

Efectivamente, a questão da atribuição do ónus de prova do interesse próprio da sociedade na prestação de garantias a favor de terceiros, tem sido objecto de discordância jurisprudencial, considerando uma parte da nossa jurisprudência (minoritária) que o ónus de alegação e prova da existência de interesse próprio da sociedade garante, incumbe ao credor que se pretenda aproveitar da garantia, sendo no entanto jurisprudência e doutrina maioritária (e actualmente praticamente unânime), a tese oposta, ou seja, que o ónus da prova de que tal interesse, apesar de declarado, não existe, incumbe à sociedade que emitiu a referida garantia.

Para a primeira tese, de que é exemplo máximo o Ac. do S.T.J. de 16/11/17, citado pelo recorrido, “A nulidade de que tais actos, à partida, se revestem, faz impender sobre o Banco Mutuante, beneficiário da garantia e autor em acção de verificação ulterior de créditos, o ónus de alegar e provar o justificado interesse da sociedade na prestação das garantias reais aos mutuários, por tal situação se configurar numa excepção à referida regra da nulidade e, como tal, constituir um elemento constitutivo do seu direito (artigo 342.º, n.º1, do CC).”, considerando que a “reclamação do crédito enquanto crédito garantido, (invocando as hipotecas constituídas a seu favor pela sociedade insolvente), atenta a nulidade de que os actos, à partida, se revestem, impunha ao Banco aqui Recorrente, o ónus de alegar e provar a excepção à referida regra, isto é, de que, no caso, existiu justificado interesse da sociedade na prestação das referidas garantias reais.

O justificado interesse da sociedade na prestação das garantias surge, por isso, como facto constitutivo da validade das garantias e do direito do Banco reclamante ver o seu crédito reconhecido como privilegiado. Por consequência, o ónus de provar tal circunstância teria de recair sobre o beneficiário da garantia, in casu a credor reclamante ora Recorrente — artigo 342.º, n.º1, do Código Civil.”

(…)

Em sentido contrário e formando posição maioritária e dominante na doutrina e jurisprudência, a imputação do ónus de prova, tratando-se de um facto impeditivo do interesse do direito invocado pelo credor, incumbe à sociedade garante”, nomeadamente por a “entender-se que é a sociedade garantida que tem que provar a existência de interesse próprio por parte da sociedade garante, estar-se-ia perante uma prova que na prática seria muito difícil ou impossível de fazer, salvo, obviamente, se existissem prévias cautelas à prestação da garantia. Tirando casos limite, não se vê como é que uma sociedade pode provar que os actos praticados por outra foram no interesse próprio desta, tanto mais que por um lado lei não diz o que entender por tal interesse e, por outro, este teria que ser avaliado com referência à globalidade da actividade social da sociedade e não apreciado o acto de forma isolada.”

(citado ac. do STJ de 13/05/2003).

Desde já se adianta que se adere na íntegra a esta posição.».

O Acórdão fundamento arrimou-se no seguinte raciocínio:

«O princípio geral para averiguar a quem incumbe a prova dos factos é o que resulta do artigo 342.º, do Código Civil: àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, sendo que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extensivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (nºs. 1 e 2 do referido preceito). 

Assim, a reclamação do crédito enquanto crédito garantido, (invocando as hipotecas constituídas a seu favor pela sociedade insolvente), atenta a nulidade de que os actos, à partida, se revestem, impunha ao Banco aqui Recorrente, o ónus de alegar e provar a excepção à referida regra, isto é, de que, no caso, existiu justificado interesse da sociedade na prestação das referidas garantias reais.

O justificado interesse da sociedade na prestação das garantias surge, por isso, como facto constitutivo da validade das garantias e do direito do Banco reclamante ver o seu crédito reconhecido como privilegiado. Por consequência, o ónus de provar tal circunstância teria de recair sobre o beneficiário da garantia, in casu a credor reclamante ora Recorrente – artigo 342.º, n.º1, do Código Civil.

A este propósito refere Soveral Martins “Se é invocado um justificado interesse próprio da sociedade garante na prestação da garantia, quem tem o ónus de alegar e provar que aquele interesse existe é aquele que tem interesse em afirmar a validade da garantia. Para que a garantia deva ser considerada nula, basta que não se prove que existe esse justificado interesse próprio da sociedade garante. Não é, por isso, necessário que o terceiro soubesse ou não pudesse ignorar que esse justificado interesse próprio não existia. Esta conclusão parece inequívoca atendendo ao que se lê no art. 6.º, 3: aí se estabelece, logo à partida, que «Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias». É certo que, muitas vezes, a própria sociedade declara, ao prestar a garantia, que existe um justificado interesse próprio. Só por si, isso não significa que a invocação posterior, pela sociedade, da inexistência desse mesmo interesse constitua um abuso de direito. Em muitos casos, nenhuma expectativa de terceiros existe que deva ser tutelada. Os terceiros estão obrigados a conhecer a lei e os limites que esta fixa para a capacidade das sociedades comerciais. Os terceiros estão obrigados a saber que as sociedades comerciais existem para buscar o lucro (…). E se a sociedade presta a garantia a dívida de outrem alega que tem um justificado interesse próprio, o terceiro ou controla se isso é verdade, ou arrisca e sujeita-se às consequências, ou recusa a garantia”.

Como se encontra salientado no excerto transcrito, nos casos em que é a própria sociedade garante quem invoca a nulidade das garantias por si prestadas, ainda que tal não integre, necessariamente, uma situação de abuso de direito, assume cabimento impor sobre a mesma, enquanto arguente e beneficiária da nulidade, o ónus de demonstrar a inexistência de justificado interesse próprio. Nesse sentido o tem entendido a jurisprudência deste Tribunal alicerçada em duas ordens de razões:

- por a sociedade ter tomado posições contrárias à boa fé, a sancionar com a inversão do ónus da prova;

- por a sociedade se encontrar em posição privilegiada para fazer prova de tal facto – artigo 344.º, do Código Civil. 

Tal posicionamento, todavia, não assume assento no caso dos autos por a situação se reportar a acção proposta pelo credor reclamante que se quer valer das garantias prestadas (e a quem compete demonstrar essa validade – artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil).

Por outro lado, a excepção de nulidade das garantias foi deduzida não pela sociedade que as prestou, a devedora insolvente, mas pela massa insolvente, património autónomo que com a primeira se não confunde e que, por existir apenas com o processo insolvencial, não lhe pode ser atribuída posição probatória privilegiada do (des)interesse da sociedade aquando da prestação das garantias – artigo 146.º, n.º1, do CIRE.».

Analisemos.

Decorre do artigo 6º do CSComerciais, no que à temática envolvente diz respeito, o seguinte:

«1. A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim, excetuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.

2. As liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta,

3. Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.».

Prima facie há que acentuar que o segmento normativo constante daquele preceito legal estabelece os limites da capacidade de gozo da sociedade comercial, entendida como a aptidão para ser titular de um círculo, com mais ou menos restrições, de relações jurídicas e sendo o fim das sociedades comerciais a obtenção de lucro, tal significa que a respectiva actividade social terá de abranger não só os direitos e obrigações necessários à prossecução daquele fim lucrativo, mas também todos os que para tal se revelem convenientes, dentro dos limites da Lei, apanágio do princípio da especialidade, cfr Alexandre Soveral Martins in Código Das Sociedades Comerciais Em Comentário, Coordenação de Jorge Coutinho de Abreu, Volume I, 110; Código Das Sociedades Comerciais Anotado, I Volume, 2014, Coordenação de António Menezes Cordeiro, 93/95.

Dentro dos aludidos limites impostos pela norma, surge-nos o do nº3, onde se impõe que qualquer prestação de garantia real ou pessoal por banda da sociedade a terceiros, se considera contrária ao fim social, salvo se existir justificado interesse da sociedade garante ou se estiver perante uma situação de sociedade em relação de domínio ou de grupo, hipótese esta que transcende a economia da questão solvenda.

A jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que impende sobre a sociedade garante que invoca a nulidade da garantia por si prestada com o objectivo de se fazer valer de tal nulidade para não ter de cumprir a obrigação garantida, o ónus de alegação e prova da inexistência de interesse próprio, ou seja, o ónus da prova dos requisitos da existência da tal invalidade do acto, de que se pretende aproveitar, sendo que a razão principal para tal reside na circunstância de que ninguém melhor do que a própria sociedade que presta a garantia, poderá certificar que a mesma foi prestada no seu próprio interesse, cfr inter alia os Ac STJ de 13 de Maio de 2003 (Relator Pinto Monteiro), 17 de Junho de 2004 (Relator Quirino Soares), 7 de Outubro de 2010 (Relator Álvaro Rodrigues), 28 de Maio de 2013 (Relator Fernandes do Vale), 22 de Maio de 2018, deste mesmo colectivo; João Labareda, Direito Societário Português Algumas Questões, 186/192; Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso De Direito Comercial, Volume II, Das Sociedades, 3ª edição, 193/199; Osório de Castro, Da Prestação De Garantias Por Sociedades a Dívidas De Outras Entidades, ROA Ano 56, Agosto 1996, 565/593; Vaz Serra, RLJ 103º, 27.

Nessa jurisprudência maioritária encontra-se o Acórdão fundamento, de 16 de Novembro de 2017 (Relatora Graça Amaral), o qual, como se vislumbra pela leitura do trecho supra extractado, segue a mesma linha de raciocínio do Acórdão recorrido: impenderá sobre a sociedade garante que invoque a nulidade da garantia por si prestada com o objectivo de se fazer valer de tal nulidade para não ter de cumprir a obrigação garantida, o ónus de alegação e prova da inexistência de interesse próprio, ou seja, o ónus da prova dos requisitos da existência da tal invalidade do acto, de que se pretende aproveitar, o que ali afastado ficou, nessa perspectiva negativa, por a excepção não ter sido arguida pela sociedade garante, mas antes pela Massa Insolvente desta, pessoa jurídica diversa.

Analisemos, contudo, antes de mais, a situação posta nestes autos.

Da factualidade apurada resulta que a constituição de hipoteca aqui questionada pela garante, ora Recorrente, foi prestada para pagamento das quantias devidas no processo de execução fiscal n.º …, e até ao montante de cinco milhões de euros, em dívida perante da Fazenda Nacional emergente de IRS por J P e F P, sendo certo que, na escritura de constituição de hipoteca consta «[Q]ue a sociedade (…) tem justificado interesse próprio na constituição da presente hipoteca, tendo a mesma obtido o parecer favorável do Conselho de Administração (…) e do Conselho Fiscal da sociedade».

Invocou, in casu, a sociedade garante, aqui Recorrente, a nulidade da apontada garantia por a escritura estar eivada de falsidade, porquanto a referência às actas demonstra que o que foi autorizado não foi a constituição de hipoteca mas antes a constituição de penhora sobre os imóveis.

Contudo, este argumento encontra-se ferido de alguma imprecisão lógico-normativa, já que, constituindo a penhora uma apreensão judicial dos bens do devedor no âmbito de acção executiva com vista à satisfação do(s) direito(s) do(s) respectivo(s) credore(s), óbvio se torna que a mesma poderá operar sem necessidade de obtenção de qualquer autorização do devedor e/ou de qualquer dos seus órgãos sociais, porquanto é ordenada pelo Tribunal, cfr artigo 735º, nº1 do CPCivil, sendo certo que nos aludidos documentos se fala em prestação de garantias a favor da Fazenda Nacional, podendo ter-se tratado, tão só,  de falta de rigor terminológico.

Ademais, a invocação feita pela Recorrente da falsidade cometida em sede de escritura pública de constituição de hipoteca não foi objecto de arguição em termos adequados e no momento próprio, isto é, em sede de contestação de harmonia com o preceituado no normativo inserto no artigo 444º, nº, nºs 1 e 2 do CPCivil pelo que tendo sido apenas abordada aquando do recurso de Apelação, apresentando-se como questão nova que transcende o objecto do recurso, tal como decidido foi pelo segundo grau.

Daqui deflui que, constituindo, como constituía, ónus da garante a alegação e prova da invalidade da garantia prestada, por inexistir o apontado interesse próprio na sua prestação, nos termos do artigo 342º, nº2 do CCivil, aquela omitiu de todo em todo tal imposição legal, o que fez conduzir a sua pretensão ao insucesso, com a procedência da acção e concomitantemente do recurso de Apelação, e, mutatis mutandis, desta específica impugnação em sede de Revista.

Não nos podemos esquecer que o documento de constituição de hipoteca não faz prova plena quanto às declarações nele apostas, máxime o interesse societário na prestação das garantias, podendo assim a sua força ser destruída por qualquer meio de prova legal, independentemente de uma eventual arguição da sua falsidade, o que, como já se assinalou, não foi suscitada, cfr Helder Martins Leitão, A Prova No Código De Processo Civil, 65/68.

Efectivamente, tendo a Recorrente baseado a sua defesa apenas na circunstância da garantia ter sido prestada a título gratuito, factualidade essa que não logrou provar, como resulta da materialidade que se deu como não apurada, as conclusões estão votadas ao insucesso.

E, essa ausência de prova por parte da Recorrente, não contende com o que ficou decidido no Acórdão fundamento, já que aí se deixou assente que «[N]ão se mostrando provado que a sociedade tivesse interesse na prestação das garantias, há que concluir que não se encontra preenchido o interesse justificado próprio da sociedade garante a que alude a parte final do disposto no n.º 3 do artigo 6.º do CSC.».

 

Isto quer dizer o seguinte: o ónus de alegação e prova dos factos impeditivos do direito impenderia, na especie, tal como naqueloutro caso em tela (Acórdão fundamento), sobre o garante, porquanto foi ele que constituiu a garantia, artigo 342º, nº2 do CCivil; o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do direito de crédito alegado pelo credor reclamante na qualidade de beneficiário de garantia hipotecária alegadamente constituída pela sociedade em benefício dos devedores de que houve justificado interesse daquela na constituição de tal garantia hipotecária, nestas precisas circunstâncias, impenderá sobre o titular da garantia, artigo 342º, nº1 do CCivil.

São duas realidades correspondentes às duas faces de uma mesma moeda e que só aparentemente se contradizem: de um lado temos os factos concretizadores de uma excepção obstativa da procedência de um direito de crédito; de outro lado, temos a concretização da materialidade consubstanciadora daquele mesmo direito.

Se o Autor invoca determinado direito na acção é suposto que tenha de alegar e provar os factos que o integram, sendo obrigação da parte contra quem aquele direito é invocado, a alegação e prova dos factos anormais que possam impedir a sua operância.

 

Se a parte contra quem é invocado o direito de crédito proveniente da constituição da hipoteca, seja ou não seja a garante, se se quiser fazer valer da excepção obstativa da procedência daquele, terá de carrear para os autos a factualidade conducente à respectiva consumação, competindo, nestas circunstâncias, por seu turno, ao titular do crédito o ónus de provar que o facto impeditivo nunca ocorreu, cfr Fernando Pereira Rodrigues, A Prova Em Direito Civil, 21/29; Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio da Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, 447/457.

Esta imposição bilateral, decorrente da aplicação do preceituado no artigo 342º do CCivil, encontra o seu respaldo e concretização na regra substantiva constante do normativo inserto no artigo 6º, nº3 do CSComerciais, na medida em que regula, em termos gerais e abstractos, a situação em tela nos seus dois vectores, o positivo (existência de interesse societário na constituição da garantia) e o negativo (constituição da garantia contrária ao interesse da sociedade), ficando assim equitativamente repartida entre os pleitantes o gravame da incerteza quanto à prova dos factos relevantes para a aplicação daquela normas de direito relevante para a decisão, cfr Manuel de Andrade, Noções Elementares De processo Civil, 1976, 199/202 «[a)] Cabe ao Autor a prova dos factos jurídicos constitutivos do seu direito; dos momentos constitutivos do facto jurídico (simples ou complexo) que representa o título ou causa desse direito. b) O Réu não carece de provar que tais factos não são verdadeiros: reo suffit vicere per non jus actoris; actore non probante réus absolvitur. O que lhe compete é a aprova dos factos impeditivos ou extintivos do direito do Autor; dos momentos constitutivos dos correspondentes títulos ou causas impeditivas ou extintivas. c) Operando com a noção de título ou causa, a repartição do ónus da prova continuará por aí adiante entre Autor e o Réu.». 

Cada uma das partes terá assim o ónus de alegar e provar os factos correspondentes à previsão da norma que aproveita à sua pretensão ou à sua excepção, cfr Antunes Varela, ibidem, 455; José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol III, 278; ver a este propósito os Ac STJ de 25 de Novembro de 2008 (Relator Sebastião Póvoas) e de 27 de maio de 2010 (Relator Mário Cruz), in www.dgsi.pt.

Foi precisamente esta a situação analisada no Acórdão fundamento.

Dilucidada, assim, a problemática, soçobram todas as conclusões de recurso.

III Destarte, nega-se a Revista, confirmando-se a decisão plasmada no Acórdão recorrido.

Custas pela Massa Insolvente, artigo 303º do  CIRE.

Lisboa, 12 de Março de 2019

 Ana Paula Boularot (Relatora)

Pinto de Almeida

José Rainho