Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3959/05.8TBSXL.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO MENDES
Descritores: VENDA JUDICIAL
PENHORA
AGENTE DE EXECUÇÃO
REGISTO PREDIAL
VENDA DE BENS ALHEIOS
Data do Acordão: 09/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CADERNOS DE DIREITO PRIVADO, Nº 48 (OUT./DEZ. 2014) - ANOTAÇÃO - P. 41-57
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICAS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES - CONTRATOS EM ESPECIAL.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO - REGISTO PREDIAL / NATUREZA E VALOR DO REGISTO / OBJECTO E EFEITOS DO REGISTO / VÍCIOS DO REGISTO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE EXECUÇÃO / VENDA JUDICIAL (EFEITOS).
Doutrina:
- António Quirino Duarte Soares, O conceito de terceiros… .
- Isabel Pereira Mendes, O Registo Predial e a Segurança Jurídica nos negócios Imobiliários, citada na anotação I ao artigo 5º CRPred., anotado e comentado pela mesma autora.
- Mónica Jardim, Efeitos substantivos do Registo Predial terceiros para efeitos de registo, Teses, Almedina, 2013, 740 e ss..
- Orlando de Carvalho, Boletim da Faculdade de Direito LXX, Coimbra 1994.
- Rui Pinto Duarte, O Registo Predial.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 291.º, 824.º, N.º 2, 892º E SGS..
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 888.º, 900.º, 907.º, 908.º, 909.º (OS ÚLTIMOS SÃO OS ACTUAIS 827.º, 835.º, 838.º E 839.º).
CÓDIGO DO PROCEDIMENTO E PROCESSO TRIBUTÁRIO (CPPT): - ARTIGOS 2.º AL. E), 253.º E 256.º.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRGP): - ARTIGO 5.º, N.º4, 17.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 17/2/94, CJ ANO II, TOMO I, PAGINA 105, E DE 14/4/99.
Sumário :
I - A transmissão de bem imóvel no âmbito da execução judicial opera a extinção ipso jure dos direitos de garantia que oneram o bem penhorado, nomeadamente as penhoras efectuadas tanto na execução judicial como na execução fiscal.

II - Cabe ao agente de execução comunicar ao conservador do registo predial competente a realização da venda, para que este proceda ao respectivo registo e ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado com a venda, incluindo o cancelamento do registo das penhoras.

III - A extinção dos direitos prevista no art. 824.º, n.º 2, do CC opera ipso jure
.
IV- O art. 5.º, n.º 4, do CRgP consagra uma noção restritiva do conceito de terceiro para efeitos de eventual oponibilidade do registo a adquirente anterior omisso, devendo concluir-se que não são terceiros (entre si) dois adquirentes em duas vendas executivas do mesmo bem imóvel.

V - Perante isto, a venda efectuada à autora em execução fiscal do mesmo imóvel que anteriormente tinha sido vendido em execução judicial comum aos réus configura uma venda de coisa alheia.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. AA, S.A., veio instaurar acção declarativa contra BB e mulher CC alegando ser dona de prédio que adquiriu em venda efectuada em processo de execução fiscal, cuja aquisição de propriedade registou estando os Réus a ocupar esse prédio causando-lhe dessa forma prejuízos.

Pede sejam condenados a reconhecerem o seu direito de propriedade e a restituírem o prédio, ordenando-se o cancelamento do registo a favor deles, e a indemnizá-la pelos prejuízos causados, que liquidou em € 4.000,00 sem prejuízo do que ulteriormente se liquide quanto a danos supervenientes.

Os Réus contestaram, impugnando além do mais a obrigação de indemnizar e deduziram reconvenção alegando serem eles os donos do prédio por o haverem comprado em venda efectuada em execução judicial comum circunstancia que afasta a presunção de titularidade do direito que do registo advém à Autora.

 Pedem seja declarada nula a venda do prédio à Autora e esta condenada a reconhecer o seu direito de propriedade ordenando-se o cancelamento do respectivo registo e a ainda a pagar-lhes indemnização no montante de € 20.000,00, acrescida de juros de mora, para além do que ulteriormente se liquidar quanto a prejuízos supervenientes.

A Autora replicou para manter o alegado na iniciai, impugnando o direito de propriedade dos réus e o dever de os indemnizar. Foi proferido despacho saneador tabelar e organizada a matéria de facto assente e a base instrutória, tendo sido indeferidas as reclamações apresentadas pelas partes.

Após audiência de julgamento e na sequencia do mesmo foi proferida sentença que julgou procedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade formulado pela Autora e improcedente o pedido indemnizatório por ela deduzido e a reconvenção.

Os Réus interpuseram recurso que foi admitido como apelação com subida imediata e efeito devolutivo.

Na sequência deste recurso foi proferido acórdão no qual se decidiu julgar parcialmente procedente o recurso e improcedente a ampliação do seu objecto e desta forma julgar improcedente a acção e julgar parcialmente procedente a reconvenção, declarando nula a venda à Autora do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob a ficha …, da freguesia da ..., efectuada no processo de execução fiscal … do serviço de Finanças 2 do ..., ordenando o cancelamento da inscrição G2 - ap. ….

II. Deste recurso foi pela AA interposto o presente recurso de revista tendo a recorrente apresentado a sua alegação na qual conclui da forma constante de fls. 804 a 812 cujo teor aqui se dá por reproduzido; responderam os recorridos RR pela forma constante de de fls. 823 a 825.

Perante o teor das conclusões da alegação resultam colocadas as seguintes questões que constituem, assim, o objecto do recurso:

1. a questão da aplicabilidade en casu do disposto no nº 4 do artigo 5º do Código de Registo Predial (adiante CRPred) inoponibilidade à A de qualquer direito fundado em aquisição anterior, face à presunção registral de que beneficiará nos termos dessa mencionada disposição legal;

2. a questão da aplicabilidade dos artigos 17º nº 2 CRPred e 291º CC;

3. a concretização da data em que se efectuou a transmissão do imóvel em cada uma das execuções;

4. da verificação de qualquer circunstancia impeditiva da transmissão aos RR antes de 7/2/2005.                                                     

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. Correu termos na 2ª Repartição de Finanças do ... o processo de execução fiscal nº. … em que é executada DD, Lda., NIPC …, tendo sido penhorado em 26 de Maio de 2003 o prédio urbano, correspondente a terreno para construção, com a área de 434 m2, sito no ..., ..., norte, sul e poente, EE, nascente Estrada Nacional 10, da freguesia de ..., concelho do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº. … e inscrito na matriz sob o artigo … (doravante designado por "prédio"); essa penhora foi registada sob a cota F-2 pela apresentação …;

2. No âmbito do referido processo de execução fiscal procedeu-se à abertura de propostas em carta fechada no dia 13 de Janeiro de 2005 tendo-se adjudicado o prédio à proponente autora, por auto de fls.198, assinado em 07 de Fevereiro de 2005, tudo conforme certidão de fls. 234 e ss. cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; a autora procedeu ao pagamento da quantia de 121.000,00€ em 13.01.2005 e da quantia de 239.200,00€ em 07.02.2005;

3. Mostra-se inscrita pela apresentação 33 de 07.02.2005 a favor da autora aquisição do prédio por adjudicação em processo de execução fiscal;

4. Corre termos sob o nº 122/1998 do 1º Juízo Cível deste Tribunal o processo de execução ordinária instaurado por Banco FF, S.A contra DD, Lda. tendo sido penhorado em 14 de Maio de 1998 o mesmo prédio; esta penhora foi registada sob a cota F-1 pela apresentação …;

5. No referido processo de execução procedeu-se no dia 30 de Junho de 2004 à abertura de propostas em carta fechada, tendo sido aceite a proposta apresentada pelo proponente réu; em 21.01.2005 foi proferido despacho adjudicando ao proponente réu o direito de propriedade sob o referido prédio, que transitou em julgado no dia 07.02.2005;

6. Em 15.02.2005 foi emitido título de transmissão a favor do proponente réu;

7. Mostra-se inscrita pela apresentação 41 de 18.02.2005 a favor do réu a aquisição por adjudicação em execução do prédio, tendo o respectivo registo sido lavrado como provisório por dúvidas;

8. Em 14.04.2005 no âmbito do processo de execução ordinária procedeu-se à entrega do prédio ao adquirente réu;

9. Numa ocasião, em meados de 2005, pessoas a mando da autora foram ao local para impedir que o réu continuasse a ocupá-lo (há um lapso manifesto na escrita da resposta a este ponto da base instrutória, que aqui se corrige, pois da leitura da redacção desse ponto e da fundamentação respectiva resulta evidente que quem estava a ocupar o prédio era o réu e não a autora);

10. O réu é comerciante do ramo de automóveis, possuindo um stand contíguo ao prédio identificado; comprou a parcela de terreno com o objectivo de alargar as instalações, dada a exiguidade das que detém actualmente; projectou ampliar as instalações do seu negócio para a parcela de terreno em questão;

11. A divergência sobre a propriedade do terreno causou aos réus irritação, ansiedade e angústia;

12. Durante um período no ano de 2005, a seguir aos factos referidos no ponto 4, o réu colocou viaturas do seu comércio noutros comerciantes do ramo, pagando comissões de vendas, o que não aconteceria se as tivesse vendido no terreno em questão.

IV. DO MÉRITO DO RECURSO

Tal como se indica no acórdão recorrido questão central que vem suscitada resulta da dupla venda do mesmo prédio, uma ocorrida primeira ocorrida em execução judicial (a dos RR, aqui recorridos) e uma segunda em execução fiscal (a da A, aqui recorrente), acontecendo que nesta segunda houve registo predial de aquisição; precisamente com fundamento neste registo, a A veio reivindicar dos RR e, por sua vez estes vieram em reconvenção pedir o reconhecimento da sua propriedade defendendo que a sua anterior aquisição (ainda que não registada) ilide a presunção registaI invocada pela A alegando também ser inválida a venda em execução fiscal o que pedem seja declarado[1].

Tanto na sentença como no acórdão foi efectuada uma cronologia dos factos que entendemos de utilidade para a melhor compreensão de toda a questão e que na parte relevante aqui mencionamos: a) 16JUN98: registo da penhora na execução comum; b) 26MAI03: registo da penhora na execução fiscal; c) 30JUN04: abertura de propostas na execução comum; d) 13JAN05: abertura de propostas na execução fiscal e pagamento da 1ªprestação; e) 21JAN05: despacho de adjudicação ao réu na execução comum; f) 7FEV05: pagamento da 2ª prestação e adjudicação à autora na execução fiscal;  g) 7FEV05: registo da aquisição a favor da autora;  h) 15FEV05: emissão do título de transmissão a favor do réu na execução comum; i) 18FEV05: registo da aquisição a favor do réu provisório por dúvidas; j) 14ABR05: entrega judicial do prédio ao réu.

Tomando por base esta indicação cronológica de factos que temos por relevantes para uma exacta percepção da questão, factos relevantes que são retirados da factualidade provada na acção, passaremos a uma análise das questões colocadas.

Sem obediência à ordem como elencámos tais questões na secção II deste acórdão começaremos por analisar e decidir sobre a questão que vem colocada e que tem a ver com um alegado incumprimento de obrigações fiscais (segundo a recorrente atinentes à prolação de despacho) por parte dos RR que impediria (na óptica da A) que lhes fosse transmitido o imóvel em causa, pelo menos até 7/2/2005.

A questão suscitada, que em termos abstractos poderia mostrar-se pertinente, é no entanto e neste caso destituída de qualquer apoio factual sendo aliás inequivocamente contrariada pelo que consta do ponto 5 dos factos provados, uma vez que dali resulta não ter havido qualquer circunstância que impedisse o despacho de adjudicação (lembra-se que nos termos do artigo 900º CPC, actual artigo 827º[2], a adjudicação só tem lugar após pagamento do preço e cumpridas as obrigações fiscais inerentes à transmissão).

Carece de total fundamento este segmento do recurso.

A segunda questão prende-se com a alegada aplicabilidade do disposto nos artigos 17º nº 2 CRPred e 291º CC. Para apoio desta sua posição, no sentido de beneficiar da protecção conferida por aquelas normas, constrói a recorrente uma “tese imaginativa”, mas de todo destituída de fundamento, de forma a tentar contornar a decisão a este propósito tomada no acórdão recorrido que foi no sentido da inaplicabilidade do regime do artigo 17º nº 2, por ser ela recorrente titular do registo ferido de nulidade.

Qualquer das disposições legais citadas visa estabelecer um regime de protecção ao terceiro adquirente de boa fé nos casos nulidade ou anulação de negócio jurídico[3]devendo sublinhar-se, como correctamente se fez no acórdão recorrido, que dessa protecção beneficia tão só o subadquirente de boa-fé[4]. Concretamente, o campo de aplicação protectora do regime normativo daquelas disposições legais (fundamentalmente neste caso do 17º nº 2 CRPred) cobre o subadquirente de boa fé do titular de registo nulo ou anulado ou seja aquela situação em que um registo nulo serviu de base à aquisição de direitos por um terceiro[5], não sendo manifestamente aqui o caso. Não desconhecendo o campo de aplicação das disposições legais invocadas a recorrente socorre-se de uma construção, a qual lamentavelmente abandona os limites do que deve ser a argumentação jurídica e se situa próximo do domínio da ficção construção que partindo de uma base em que coloca o Estado como vendedor do bem coercivamente a ele transmitido pelo executado acaba por pretender colocar-se na posição de subadquirente.

Torna-se óbvio que este recurso argumentativo “ficcionário” nada tem de sustentação jurídica e em nada põe em causa a bondade da decisão contida no acórdão recorrido.

Carece de total fundamento este segmento do recurso.

A terceira questão a analisar tem a ver com a concretização da data em que se verificou cada uma das transmissões/adjudicações.

Defende a recorrente que enquanto nas execuções judiciais comuns a aquisição/transmissão da propriedade ocorre com a adjudicação (o que coloca a transmissão aos RR em 21/1/2005) nas execuções fiscais a aquisição/transmissão opera-se na data da abertura das propostas (o que colocaria a transmissão à A em 13/1/2005).

Apesar de alguma jurisprudência do STA ir no sentido de colocar a transmissão da propriedade nas execuções fiscais no momento da aceitação da proposta mais favorável (não da abertura das propostas) complementada com o pagamento de parte ou totalidade do preço, não acompanhamos de todo e com o devido respeito tal posição; desde logo não encontramos no Código do Procedimento e Processo Tributário (nomeadamente nos seus artigos 253º e 256º) qualquer referência expressa ou implícita nesse sentido, situação que obviamente conduz, por força do disposto no artigo 2º al. e) CPPT, a uma aplicação supletiva das normas pertinentes do CPC (v. com relevância in casu artigo 900ª /actual 827º). Por outro lado e como se refere no acórdão deste STJ, de 14/4/99, que vem citado no acórdão recorrido, os efeitos concretizadores da venda se verificam através despacho judicial de adjudicação, o qual só deverá ser proferido depois de se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações inerentes à transmissão, conforme determina o artigo 900º. Esta realidade é válida tanto para a venda judicial comum como para a venda (judicial) ocorrida em execução fiscal e assim em conformidade com a factualidade provada a adjudicação aos RR efectuada em processo de execução comum teve lugar em 21/1/2005.[6]

Por sua vez a adjudicação à A efectuada em processo de execução fiscal teve lugar em 7 de Fevereiro de 2005, sendo consequentemente posterior.

Não merece igualmente provimento este segmento do recurso.

Passamos por ultimo à análise da questão que consideramos mais relevante e mais sustentada neste recurso e que tem a ver com a posição dos recorrentes no sentido de, ao contrário do que se entendeu no acórdão recorrido, ser aplicável o nº 4 do artigo 5º C.R.Predial devendo a A ser declarada, como pede, proprietária do imóvel por lhe ser inoponível qualquer direito fundado em aquisição anterior, isto em consequência da presunção registral de que beneficia.

Em termos correctos a questão é mais vasta necessitando de uma análise mais abrangente e de uma forma mais geral e concreta situa-se em saber se o adquirente anterior de um imóvel em venda judicial não registada pode opor o seu direito fundado nessa aquisição anterior a um adquirente posterior (no caso em venda em execução fiscal), que beneficia de uma precedência registral. No acórdão recorrido, entendeu-se que o artigo 5º, n.º 4, do CRPred, consagra uma noção restritiva do conceito de terceiros quanto a uma oponibilidade do registo ao adquirente anterior omisso concluindo que não são terceiros dois adquirentes em duas vendas executivas do mesmo bem. Com base neste entendimento conclui que prevalece, pelo menos nestes casos, a verdade substantiva sobre a registral.

Em coerência com este entendimento e fazendo, como se disse, prevalecer a realidade substantiva entendeu-se que os RR enquanto adquirentes anteriores podiam opor à A o seu direito fundado na aquisição anterior efectuada na execução comum, apesar da precedência registral do direito desta.

È em consequência desta posição que no acórdão, de forma manifestamente confusa ainda que exaustivamente sustentada através de citações e referencias à jurisprudência e doutrina entendidas como pertinentes, se decidiu declarar nula a venda efectuada à A; sobre esta mesma questão (nulidade da venda efectuada à A na execução fiscal), e sem entrar directamente no campo de aplicação do artigo 5º nº 4 CRPred, a sentença proferida em 1ª Instancia considerou nula a venda judicial efectuada à A por considerar tratar-se de uma venda de bem alheio, aplicando-lhe o regime da venda de bens alheios (artigos 892º e seguintes CC).

No entanto e apesar de ter seguido (em nosso entender de forma correcta) esta fundamentação a sentença acabou por fazer prevalecer a verdade registral sobre a verdade substantiva considerando para tanto que a A enquanto adquirente nas condições em que o foi terceiro de boa fé, beneficiava da protecção contida no campo normativo do artigo 17º nº 2 CRPred[7] (diz concretamente que nos termos do disposto no artigo 17º nº 2 a nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé). Não nos afastando daquela que é a posição da recorrente no sentido de o conceito de terceiro constante da supra referida disposição legal abranger aquele que tenha a seu favor um direito (registado), e por isso não possa ser afectado pela produção de efeitos de um acto que esteja fora do registo e seja com ele incompatível,[8] sempre diremos que esta posição não conflitua mas antes tem que ser conjugada e conciliada com a possibilidade de a presunção resultante do registo poder vir a ser destruída pela declaração de invalidade do acto que lhe serviu de base.

Nestes casos a incompatibilidade de direitos sobre a mesma coisa deixa de existir em consequência da declaração de nulidade do acto ou do contrato de onde resulta o direito registado; possibilidade legal de o reconhecimento da inscrição em registo não convalidar actos ou contratos que venham a ser declarados nulos ou anulados por força da lei encontra expressão clara e inequívoca no artigo 33º da Lei Hypotecaria espanhola (que tal como acontece em Portugal acolhe o sistema de raiz germânica)[9] e no nosso sistema jurídico encontra igualmente expressão no conteúdo normativo dos artigos 892º e sgs. e 285º e sgs. CC e 907º, 908º e 909º CPC (actuais artigos 835º, 838º e 839º).

Na situação em análise o imóvel foi adjudicado aos RR recorridos por meio de venda judicial realizada mediante abertura de propostas em carta fechada em 21.1.2005 sem que porém se tivesse procedido ao registo da respectiva aquisição (apenas em 18/2/2005 se procedeu a um registo provisório por duvidas (v. ponto 7 dos factos provados); independentemente da inexistência de registo verdade é que, tal como se entendeu na sentença, a transmissão operou (ope legis) a extinção por caducidade dos direitos de garantia que oneravam o prédio, abrangendo essa extinção tanto a penhora efectuada na execução judicial como também a penhora realizada na execução fiscal, nos termos do disposto no artigo 888º CPC[10]; não podendo deixar de referir que nos termos do artigo 900º nº 2 CPC é ao agente de execução que compete a promoção e efectivação do registo da aquisição com todas as consequências [11]legais (cancelamento de todos os registos e inscrições anteriores) seria de todo incompreensível e injustificável que uma falta de diligência e zelo ou mesmo qualquer atraso justificável por parte deste no cumprimento dessa obrigação viesse a ter consequências na esfera jurídica do adquirente[12] de boa fé.

Perante isto não se nos oferecem duvidas que a venda (posterior) efectuada à A em execução fiscal precisamente do mesmo imóvel que anteriormente tinha sido vendido em execução judicial comum aos RR configura nos termos referidos uma venda de coisa alheia cuja consequência legal é a nulidade substantiva dessa venda judicial em execução fiscal efectuada à A; face aos efeitos retroactivos dessa declaração de nulidade verifica-se a consequente ausência do título em que se baseou o registo. A partir daqui a divergência entre as decisões das instâncias (em parte coincidentes nos respectivos fundamentos) situou-se exclusivamente no facto de enquanto na sentença se ter entendido que a A recorrente era adquirente terceiro de boa-fé beneficiando da protecção normativa do artigo 17º nº 2 CRPred no acórdão ora recorrido se entendeu, como tivemos já ocasião de analisar, que a A adquirente titular do registo não estava protegida pela norma referida; repetindo o que oportunamente e por análise concreta à questão colocada tivemos ocasião de acima deixar expresso, não se nos afigura susceptível de suscitar qualquer dúvida que o campo de aplicação daquela referida disposição legal depende da existência de um registo inválido a favor do transmitente.

Tal como tivemos ocasião de mencionar qualquer das disposições legais relevantes (artigos 17 nº 2 CRPred e 291º CC) visa estabelecer um regime de protecção ao terceiro adquirente de boa fé nos casos nulidade ou anulação de negócio jurídico devendo sublinhar-se, como correctamente se fez no acórdão recorrido, que dessa protecção beneficia tão só o subadquirente de boa-fé. Concretamente, o campo de aplicação protectora do regime normativo daquelas disposições legais (fundamentalmente neste caso do 17º nº 2 CRPred) cobre o subadquirente de boa fé do titular de registo nulo ou anulado ou seja aquela situação em que um registo nulo serviu de base à aquisição de direitos por um terceiro, o que significa, na situação concreta, que apenas beneficiaria dessa protecção normativa um eventual (sub) adquirente do direito transmitido à A e não esta enquanto titular de um registo ferido de nulidade substantiva.

Em conclusão, o artigo 17º nº 2 CRPred que protege no seu campo de aplicação normativa tanto os casos de nulidade registral como de nulidade substantiva (e bem assim o artigo 291º CC cuja aplicação está afastada pelo facto de ter havido registo da acção no prazo de três anos legalmente previsto) depende da verificação de um pressuposto – existência de um registo inválido anterior do transmitente. Não é manifestamente aqui o caso.

Ainda que por razões não totalmente coincidentes com as alicerçam o acórdão recorrido carece de total fundamento o recurso.
Sumário: a) A transmissão de bem imóvel no âmbito da execução judicial opera a extinção, ipso jure, dos direitos de garantia que oneram o bem penhorado, nomeadamente as penhoras efectuadas tanto na execução judicial como na execução fiscal;
b) Cabe ao agente de execução comunicar ao conservador do registo predial competente a realização da venda, para que este proceda ao respectivo registo e ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado com a venda, incluindo o cancelamento do registo das penhoras;
c) A extinção dos direitos prevista no art.º 824.º n.º 2 CC opera ipso jure;
d) No nº 4 do artigo 5º CRPred é consagrada uma noção restritiva do conceito de terceiro para efeitos de eventual oponibilidade do registo a adquirente anterior omisso devendo concluir-se que não são terceiros (entre si) dois adquirentes em duas vendas executivas do meso bem imóvel;
e) Perante isto a venda efectuada à A em execução fiscal do mesmo imóvel que anteriormente tinha sido vendido em execução judicial comum aos RR configura uma venda de coisa alheia.

V. Decisão: nestes termos acorda-se em negar a revista.

Custas (nas instancias e neste recurso) pela A aqui recorrente.

Lisboa, 30 de Setembro de 2014

Mário Mendes (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves

_______________________
[1]  Face ao disposto no n.º 3 do art.º 218.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), a circunstância de um imóvel, penhorado numa execução fiscal, ter sido alvo de penhora mais antiga numa execução judicial, não determina a suspensão da execução fiscal, a qual prosseguirá os seus termos tendo em vista, nomeadamente, a venda do bem penhorado.
[2] Permanece a mesma redacção.
[3] No caso da norma do CC exclusivamente a negócios jurídicos cujo objecto sejam imóveis e no caso da norma do CRPred a quaisquer negócios jurídicos cujo registo seja nulo nos termos do artigo 16º desse mesmo diploma.

[4] Mónica Jardim ("Efeitos substantivos do Registo Predial terceiros paro efeitos de registo", Teses, Almedina, 2013, p. 740 e ss), citada no acórdão recorrido, em análise desta norma diz: «o terceiro apenas é protegido perante a eficácia retroactiva da nulidade ou da anulabilidade de um negócio anterior àquele em que interveio».
[5] V. Rui Pinto Duarte “O Registo Predial” e António Quirino Duarte Soares “ O conceito de terceiros …” citados no acórdão recorrido (notas 6,7 e 8)
[6] Não consta que este despacho tenha sido objecto de qualquer impugnação, designadamente por parte de qualquer dos recorrentes, pelo que a sua força obrigatória dentro do processo é indiscutível.

[7] Orlando de Carvalho (Boletim da Faculdade de Direito LXX, Coimbra 1994) escreve que no nosso sistema jurídico se não deve proceder à substituição da verdade material por uma verdade registral que praticamente a elimina mas, ao invés, deve consagrar-se a manutenção das duas verdades, cada uma com o seu regime e a sua esfera específicos, pois o registo oferece-se como o imagem possível da situação jurídica do bem, imagem que nunca se pretende esgotante e nem sequer necessariamente aproximativa.
[8] V. Acórdão deste STJ de 17/2/94, CJ ano II, Tomo I, pagina 105.
[9] V. Isabel Pereira Mendes, “O Registo Predial e a Segurança Jurídica nos negócios Imobiliários”, citada na anotação I ao artigo 5º CRPred., anotado e comentado pela mesma autora.
[10] O art.º 824.º n.º 2 do Código Civil, determinava que o juiz proferisse despacho nesse sentido.

[11] Na situação dos autos estamos perante um auto de aceitação da proposta da Autora lavrado no dia do pagamento do remanescente do preço, logo seguido de emissão de certidão para registo e efectivação deste, nesse mesmo dia, enquanto o Réu viu decorrer sete meses entre a aceitação da proposta de aquisição e a adjudicação e mais um mês até emissão do título de transmissão.

[12] A extinção dos direitos prevista no art.º 824.º n.º 2 CC opera ipso jure, não carecendo de decisão judicial para esse efeito daí que a lei tão só preveja que o agente de execução promoverá o cancelamento dos registos que caducam nos termos do n.º 2 do artigo 824.º CC e não sejam de cancelamento oficioso pela conservatória (artigo 888.º CPC). No caso da venda mediante propostas por carta fechada, estatui-se que o agente de execução comunicará a venda ao conservador do registo predial, o qual procederá ao respectivo registo e, oficiosamente, ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado com a venda, incluindo o cancelamento do registo da penhora (artigo 900.º n.º 2 do Código de Processo Civil. -neste sentido, Lebre de Freitas, “A acção executiva depois da reforma”, 4.ª ed. Coimbra Editora, 2004, ps. 342 e 343)”.