Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
32/17.0TRLSB.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: ÚNICA INSTÂNCIA
INSTRUÇÃO
PROCESSO RESPEITANTE A MAGISTRADO
DIFAMAÇÃO
DOLO EVENTUAL
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – FASES PRELIMINARES / INQUÉRITO / ENCERRAMENTO DO INQUÉRITO.
Doutrina:
- Beleza dos Santos, Algumas considerações sobre os crimes de difamação e injúria, RLJ, ano 92.º, p. 165;
- Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, p. 76-88;
- Eduardo Correia, Processo Criminal, Coimbra, 1956, p. 180;
- Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 608;
- Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1, 1974, p. 133 ; Direito Penal, Tomo I, Coimbra editora, 2007, p. 368;
- Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, p. 347-8;
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 289;
- Maria Helena Mira Mateus e outros, Gramática da Língua Portuguesa, Caminho, Lisboa, 2006, p. 87-123;
- Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, Almedina, 1996, p. 11-24, 37;
- Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª ed., 2015, p. 725-726;
- Vital Moreira e Canotilho, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007, p. 466.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 262.º, N.º 1 E 277.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 27.º.
Referências Internacionais:
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (DUDH): - ARTIGO 3.º.
CONVECÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH): - ARTIGO 8.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 28-06-2006, PROCESSO N.º 2315/06;
- DE 06-04-2017, PROCESSOS N.º 29/15.4TRLSB, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Jurisprudência Internacional:

TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS (TEDH):


- KARAKO C. HUNGRIA, N.º 39311/05, DE 28-07-2009;
- POLANCO TORRES E MOVILLA POLANCO C. ESPANHA, N.º. 34147/06, § 40, DE 21-02-2011.
Sumário :
I - É na consideração do contexto, em que a arguida, escreveu a expressão "Em direito processual civil existem critérios e prazos formais que têm de ser seguidos e que o assistente e a sua mandatária descuraram", que tem de se apurar do caracter ofensivo da expressão utilizada pela arguida.
II - Resultando que a expressão alegadamente ofensiva se fundamenta em dados objectivos do processo de inquérito e se traduz numa avaliação, numa apreciação crítica, que se impunha à arguida, enquanto magistrada do MP, destinada a decidir do arquivamento do inquérito, será, neste contexto, que tal expressão deve ser lida.
III - Não pode extrair-se, com o fundamento necessário, que, com o uso dessa palavra (“descuraram”) - que representa uma acção e não uma qualidade -, a arguida se excedeu na avaliação e pretendeu, por essa forma, atingir a aqui assistente, advogada, na sua honra e consideração.
IV - A afirmação pretensamente ofensiva refere-se à prestação funcional, à actividade profissional da assistente, não à pessoa desta, ao seu bom nome e reputação enquanto valores intrinsecamente inerentes à pessoa, dá conteúdo a uma crítica na apreciação que faz dos elementos do inquérito e é dirigida a uma finalidade única e específica, que é a decisão sobre a acusação, a que se destina o inquérito, arquivando-o (art. 262.°, n.º 1, e 277.° do CPP). O que, a coloca, ab initio, fora da área de tutela típica do crime de difamação.
V - Esta avaliação crítica encontra-se objectivamente fundada nos termos do próprio despacho em que se integra e nas provas reunidas no inquérito, não constituindo um acto gratuito dirigido à pessoa da assistente, ao seu bom nome e reputação, nem uma ofensa que, pela sua gravidade, intenção e finalidade, deva considerar-se incluída naquela área de tutela.
VI - Mesmo que se pudesse considerar excessiva, de modo a incluir-se no campo da previsão da norma incriminadora, não se surpreendem elementos que permitam afirmar que a arguida usou a expressão que lhe é imputada no sentido que lhe é atribuído na pronúncia, de modo a poder fundar-se a suficiente indiciação do dolo na forma eventual.


Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I.  Relatório

1. O Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa e a arguida AA, procuradora-adjunta, interpõem recurso da decisão instrutória proferida pela juíza desembargadora do Tribunal da Relação de Lisboa, agindo como juiz de instrução, que, encerrada a instrução requerida pela assistente, a advogada BB, pronuncia a arguida pela prática de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l) do mesmo diploma.

2.  A assistente BB apresentou queixa contra a arguida AA, imputando-lhe a prática de um crime de injúria e de um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 181.º, n.ºs 1 e 2, 180.º, 183.º e 184.º do Código Penal, por, no despacho de arquivamento que proferiu no processo de inquérito n.º 1920/15.3PYLSB, da 8.ª Secção do DIAP de Lisboa, ter incluído uma expressão que considera ofensiva da sua honra e consideração, ao dizer que «em direito processual civil existem critérios e prazos formais que têm de ser seguidos e que o assistente» – CC – «e a sua mandatária» – a aqui assistente BB – «descuraram».

Esta expressão diz respeito à sua intervenção no processo n.º 234/13.8TVLSB, que correu termos na Instância Central da Comarca de Lisboa, na qualidade de mandatária do aí réu CC, que se refere a uma acção de prestação de contas em que era autor o «Condomínio do Prédio da ...», na qual o réu foi condenado no pagamento do montante de 75.528,86€.

Na sequência dessa acção, por factos aí discutidos, CC, que fora membro da administração do condomínio, apresentou queixa contra seis administradores do mesmo condomínio, que se lhe seguiram, o responsável pelos serviços de gestão do condomínio e a TOC designada para elaborar o relatório de contas, imputando-lhes a prática de factos que entendia constituírem um crime de burla qualificada e um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 217.º, 218.º, 180.º e 183.º do Código Penal, a qual deu origem ao referido inquérito n.º 1920/15.3PYLSB, que terminou com o mencionado despacho de arquivamento.

3. Concluído o inquérito a que se reportam os presentes autos, o Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa proferiu despacho de arquivamento, em que considerou, na síntese da decisão instrutória recorrida, que «em nenhum momento se descortina que a Sra. Procuradora-Adjunta afirme que a queixosa perdeu um prazo», que «como todos os operadores da justiça sabem, perder um prazo é algo que não é querido, um acidente ou, na pior das hipóteses, desconhecimento culposo da existência de um prazo», que «no caso, é facto notório que a queixosa como mandatária de Carlos Piteira não cumpriu com o prazo concedido para a prestação de contas e infere-se que tal aconteceu por decisão de um ou de ambos e não por acidente, nem tal é referido no despacho de arquivamento», concluindo que «a Sra. Procuradora-Adjunta não só não imputou qualquer facto falso à queixosa, como não fez qualquer juízo ofensivo da sua honra e consideração que não estivesse baseado em factos demonstrados nos autos – não cumprimento de ordem judicial dentro do prazo concedido para o efeito – e o interesse na sua demonstração é perfeitamente legítimo, uma vez que serviu e bem para fundamentar despacho de arquivamento em inquérito crime».

4. Notificada do despacho de arquivamento, a assistente BB veio requerer instrução, nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 1, al. b), do CPP, dizendo que a imputação que a ora arguida AA lhe faz, nesse despacho de arquivamento, «de que terá descurado o cumprimento de um prazo processual no âmbito do Proc. n.º 234/13.8TVLSB que correu termos na 6.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, não corresponde à realidade imanente das peças processuais juntas aos autos e que a mesma é objectivamente apta a ofender a honra e a consideração da visada, sendo esta uma advogada, do que a arguida tinha conhecimento, tendo agido de forma deliberada, livre e consciente» (transcrição extraída da decisão instrutória).

5. Concluída a instrução, foi proferido o despacho de pronúncia agora recorrido, do seguinte teor:

«Em face do exposto, para julgamento em Processo Comum, tendo-se em atenção o foro especial de que beneficia a arguida, pronuncio

AA, (….) pela prática dos seguintes factos:

1. No despacho final proferido a 9 de Janeiro de 2017, no âmbito do inquérito que correu termos na 8.ª Secção do DIAP de Lisboa sob o NUIPC 1920/15.3PYLSB, a arguida diz que a advogada BB, mandatária do assistente, CC, descurou um prazo processual no âmbito do processo de prestação de contas n.º 234/13.8TVLSB, que correu termos na Instância Central de Lisboa, 1.ª Secção Cível – JII.

2. Noutros segmentos na mesma página do mesmo despacho, a arguida repete a imputação de que o assistente naquele inquérito, representado pela queixosa, não praticou o acto dentro do prazo, inculcando no leitor daquele a ideia de que a queixosa foi negligente no cumprimento dos seus deveres profissionais.

3. A arguida admitiu que tal imputação era susceptível de atingir a queixosa na sua honra e consideração e diminuir aquela aos olhos das pessoas que pudessem tomar conhecimento da decisão, pelo menos os arguidos e seus mandatários, e actuou conformando-se com essa possibilidade.

4. Os arguidos e seus mandatários tomaram conhecimento da imputação.

5. A arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, com conhecimento de que a imputação que fazia era susceptível de atingir a queixosa na sua honra e consideração.

Tais factos integram a prática pela arguida de um crime de difamação p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1, do CP, com a agravação prevista no art. 184.º, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l) do mesmo diploma».

6. Discordando da pronúncia, a senhora Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação de Lisboa apresentou recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, cuja motivação conclui nos seguintes termos:

«1 - Em 11/10/2018, nos autos em epígrafe, foi proferido despacho que pronunciou a Sra. Procuradora Adjunta, BB, pelo crime de difamação agravada, nos termos dos artºs 180º, nº 1, 184º, por referência ao artº 132º, nº 2, al I), do C.P.,

2 - A pronúncia baseia-se na interpretação dada ao verbo “descurar”, inserido no texto do despacho de arquivamento, subscrito pela arguida e proferido no inquérito n.º 1920/15.3PYLSB, da 8ª Secção do DIAP de Lisboa, que considerou ser ofensivo da honra e consideração da Assistente.

3 - Asserção de que se discorda, uma vez que entendemos que a sua inserção na globalidade do texto, não revela a alegada intenção, ainda que eventual, de atentar contra a honra e consideração da Assistente.

4 - Nenhum texto pode ser interpretado, nomeadamente quando possa existir dúvida ou confusão, sem uma análise sintática e morfológica que permita reconstituir a intenção do seu autor.

5 - No caso, o termo poderá classificar-se de inadequado, excessivo, hiperbólico mas nunca ofensivo, nem tal se descortina da leitura do despacho de arquivamento.

6 - O dolo, em qualquer das suas modalidades acha-se ausente, tanto mais que o texto é suficientemente explicativo da asserção pretendida com a inserção do termo “descurar”.

7 - Entendemos que a arguida não praticou o crime porque foi pronunciada, pelo que foram violados os art.º s 180.º, nº 1, 184.º, por referência ao art.º 132.º, n.º 2, al l), do C.P.»

Pelo que defende que o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que não pronuncie a arguida.

7. Recorre também a arguida, apresentando motivação de que extrai as seguintes conclusões:

«1. Há suficiência de indícios para pronunciar o arguido sempre quando deles resultar uma possibilidade razoável de condenação em julgamento. Ora, no caso sub judice os indícios recolhidos são manifestamente insuficientes para que se possa concluir pela probabilidade da condenação da Recorrente em julgamento, como em seguida se demonstrará.

2. Como se salienta no despacho recorrido, citando acórdão deste Supremo Tribunal, a valoração do juízo indiciário não pode deixar de atender a que a sujeição de um arguido a julgamento tem consequências relevantes, pessoais e profissionais, mesmo que dali resulte a absolvição.

3. Tal valoração é particularmente relevante quando o que está em causa nos autos é o legítimo exercício de uma função jurisdicional, com meios de controlo legalmente previstos, próprios (designadamente recurso); a assim não se atender é a livre convicção do Magistrado e a liberdade, ainda que vinculada à lei, de apreciação das provas, de decisão e de fundamentação do decidido que ficam em causa.

4. Por outro lado, a postura processual de quem se diz lesada não pode deixar igualmente de ser valorada, pois a motivação de quem participa deve ser apreciada, no que resulte dos factos, aquando de tal juízo indiciário.

5. Não tendo conseguido ver julgada a seu favor a ação judicial instaurada contra a parte de que a Assistente é cônjuge e mandatária, no essencial por não ter atuado processualmente segundo os critérios e dentro dos prazos legalmente previstos, a parte apresenta queixa crime contra quem foi A. naquela ação; quando há despacho de arquivamento, a mandatária apresenta queixa crime da Magistrada.

6. Ou seja, volta aqui a apreciar-se o que já antes fora decidido, com trânsito em julgado: a extemporaneidade antes decidida quanto à pretendida prestação de contas pela parte representada pela aqui Assistente, seu cônjuge, repita-se, vê-se agora ser objeto de novo juízo, apreciando-se a tempestividade ou não de atos praticados em processo cível, como adiante melhor será clarificado.

7. Como se demonstrou já e aqui melhor se demonstrará, houve apenas imputação de factos, que se mostram verdadeiros, para realização de um interesse legítimo.

8. Considera-se no despacho recorrido, em 1.º lugar, que “(d)izer-se que um advogado descurou o cumprimento de um prazo no decurso de um processo judicial no qual exerce o mandato forense é imputar-lhe um comportamento de ignorância das formalidades processuais ou de negligência no seu comportamento”.

9. Nada do que se escreveu no despacho de arquivamento permite esta conclusão, não o permitindo designadamente a frase “Em direito processual civil existem critérios e prazos formais que têm de ser seguidos e que o Assistente e a sua mandatária descuraram”.

10. E é o contrário que resulta da frase que dali consta: “Não haverá que imputar a uma conduta que foi dolosa ou negligente do Assistente, de não apresentação da documentação, com o reverso da medalha, a imputação aos arguidos de que deveriam ou teriam a obrigação de a conhecer e tal constituir a prática de um ilícito criminal, por parte destes.”

11. Apenas constatou a Recorrente que os critérios e prazos existentes no processo cível não haviam sido acautelados pelo Assistente e mandatária, ou seja, haviam sido descurados. Tal afirmação não contém qualquer juízo de valor, sendo mera constatação de facto, em face das decisões contidas no processo cível, que antecedeu o processo crime, pois vários dos atos do Réu, e não apenas um, como pretende a Assistente, foram considerados intempestivos.

12. A limitação das peças processuais analisadas pelo tribunal a quo gera um erro notório na apreciação da prova por omissão de diligências de descoberta da verdade fundamentais na instrução.

13. De facto, o tribunal a quo não podia decidir como o fez sem consultar na íntegra o Processo n.º 234/13.8TVLSB, do 11.º Juiz dos Juízos Central Cível do Tribunal da Comarca de Lisboa.

14. Ora, da consulta integral do aludido Processo, porém, resulta coisa diferente, ou seja, os critérios e prazos descurados não se referem ao que o tribunal a quo apreciou – o despacho de 5/2/2015, em que o tribunal indeferiu o requerido, não por ser intempestivo, como erradamente se considera na decisão em recurso, mas por improcedência do requerido - mas essencialmente o que julgou intempestiva a junção de documentos ocorrida em 25/2/2015.

15. Ou seja, o tribunal considera como não podendo ser considerado fora de prazo um requerimento que nunca ninguém assim qualificou – o requerimento de 6/1/2015 – e não apreciou aquele requerimento que foi efetivamente considerado como extemporâneo, entre outros – o de 25/2/2015.

16. O mencionado despacho que determinou o desentranhamento da documentação junta pela Réu e pela aqui Assistente, em 25/2/2015 foi por esta omitido na queixa crime que deu origem ao presente inquérito, mas o tribunal podia e devia ter constatado a sua existência, designadamente porque consta de decisão singular desta Relação, que se mostra anexada aos autos.

17. De tal decisão singular resulta outra evidência: mais uma vez o Réu ou a sua mandatária não invocaram tempestivamente direitos que então pretendiam fazer valer em recurso.

18. Em suma, quando a Recorrente afirmou que “Em direito processual civil existem critérios e prazos formais que têm que ser seguidos e que o Assistente e a sua mandatária descuraram” teve como suporte apenas e tão-somente as decisões que já constavam do processo cível, e que não foram sequer analisadas pelo tribunal a quo.

19. Se não se cumpre um prazo o que acontece que não seja perder tal prazo? Esta é a única constatação possível. A razão pela qual se perdeu o prazo é que pode ser díspar, de objetiva e subjetiva, de negligente a pretendida, da parte ou do advogado, por erro ou voluntária, etc, etc.

20. O erro do despacho atendido pelo tribunal a quo – o despacho de 5/2/2015 -, dada a limitação das peças processuais que quis consultar, levou-o ainda a cometer novo erro de qualificação, ao considerar que no exclusivo caso trazido aos autos pela Assistente – o despacho de 5/2/2015 - não estava em causa uma questão de tempestividade (que nunca ninguém disse estar em causa, insista-se), mas de divergência jurídica.

21. O Tribunal a quo – ao bastar-se com as peças processuais cirurgicamente selecionadas pela Assistente - limitou-se a dar como verdadeira a versão por aquela apresentada, pelo que a Meritíssima Juiz a quo percecionou e valorou erradamente os sobreditos elementos de prova, assentando o seu juízo de ponderação em critérios de pura subjetividade, gerando um erro notório na apreciação da prova por omissão de diligências fundamentais na instrução.

22. Do despacho de Acusação e/ou da decisão de pronúncia devem constar unicamente factos concretos e não juízos de valor ou convicções pessoais, já que não resulta de qualquer elemento de prova recolhido em sede de inquérito ou de instrução que a Recorrente pretendeu inculcar no leitor do despacho de arquivamento proferido que a Assistente foi negligente no cumprimento dos seus deveres profissionais.

23. Ocorrendo falta de especificação das circunstâncias factuais, que permitam concretizar as expressões conclusivas, juízos de valor e alusões de contornos indeterminados e de natureza genérica que não permitem extrair e delimitar (e fiscalizar) a censura jurídico-penal inerente à globalidade do comportamento do arguido, existe insuficiência da matéria de facto necessária para sustentar a acusação. Por esta razão, deve o despacho de pronúncia ser considerado nulo.

24. Por outro lado, a intempestividade da apresentação de documentos é real e indiscutível, sendo, pois, imputado ao Réu pela Recorrente um facto verdadeiro, como aliás vem reconhecido no próprio despacho de pronúncia: “Perante as descritas ocorrências processuais, é inequívoco que a ora Assistente, na qualidade de mandatária do réu na acção de prestação de contas, não apresentou a solicitada documentação dentro do prazo fixado”.

25. E também assim se concluiu no despacho de arquivamento que antecedeu o despacho recorrido, apreciando o que consta do despacho da Recorrente: “Perplexidade pela apresentação das contas do prazo no Processo n.º 234/13.8TVLSB – facto verdadeiro e objectivo; perplexidade pelo não cumprimento do rito processual que o Réu e a sua mandataram descuraram, bom como qualquer acordo extrajudicial para já fora do prazo entregarem a documentação em falta que acabou desentranhada – facto verdadeiro e objectivo; incumbia ao Réu apresentar a documentação em falta dentro do prazo, conforme decidido e não o fez – facto verdadeiro e objectivo”.

26. A última conclusão do despacho de arquivamento supra transcrita sempre serviria para contrariar o que consta no despacho em recurso sobre a desnecessidade do apregoado, mas inexistente, juízo de valor para fundamentar o arquivamento e para reconduzir a conduta da Recorrente ao contido na al. a) do n.º 2 do art. 180.º do CP.

27. E como ali bem se concluiu, “a Sra. Procuradora-Adjunta não só não imputou qualquer facto falso à queixosa, como não fez qualquer juízo ofensivo da sua honra e consideração que não estivesse baseado em factos demonstrados nos autos – não cumprimento de ordem judicial dentro do prazo concedido para o efeito – e o interesse na sua demonstração é perfeitamente legítimo, uma vez que serviu para fundamentar despacho de arquivamento em processo inquérito crime” (com realces aditados).

28. O que consta do despacho de arquivamento elaborado pela Recorrente  é que a não junção atempada de documentos em processo cível - seja qual for o motivo para isso - não pode ser sanado através do processo crime, como o Réu e a aqui Assistente pretenderam. Ou seja, ao terem descurado critérios e prazos do processo cível, o ali queixoso e a aqui queixosa comprometeram a possibilidade de prosseguimento do processo-crime, “imputando condutas aos arguidos que resultaram da sua própria conduta”, como se pode ler no despacho de arquivamento elaborada pela Recorrente.

29. As expressões que constam do despacho de arquivamento proferido, não são suscetíveis de ofender a honra e consideração da Assistente, uma vez que nos crimes contra a honra, tal como acontece em muitos outros, há um patamar mínimo exigível de carga ofensiva, abaixo do qual não se justifica a tutela Penal.

30. Importa aliás, ter presente que o Direito Fundamental ao bom nome e reputação de qualquer pessoa terá de ser necessariamente compatibilizado com o Direito Fundamental da liberdade de expressão, o qual tem como manifestação máxima o direito de divulgar a sua opinião e exercer o direito de crítica.

31. Da natureza subsidiária do Direito Penal, decorrente do Princípio da Necessidade enquanto matriz orientadora em matéria de Direitos Fundamentais, assim previsto no artigo 18.°, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, emerge o Princípio da Intervenção Mínima do Direito Penal, por via do qual este não deverá intervir quando seja possível proteger o bem jurídico – com idêntica ou superior eficácia - através de distintas e menos onerosas intervenções tutelares.

32. Para se determinar se a expressão, a imputação ou a formulação de juízos de valor têm relevância típica no âmbito dos crimes contra a honra deverá atender-se, assim, ao contexto em que o agente atuou, às razões que o levaram a agir como agiu, à maior ou menor adequação social do comportamento, tudo dependendo da “intensidade” da ofensa ou perigo de ofensa.

32. No despacho de arquivamento que deu azo aos presentes autos fez-se constar que: “Em direito processual civil existem critérios e prazos formais que têm de ser seguidos e que o Assistente e a sua mandatária descuraram, bem como todas as hipóteses de resolverem a situação extrajudicialmente (...)”

A expressão utilizada, ainda que pudesse ser considerada deselegante, não é apta a ofender a honra e consideração dos visados.

33. Mesmo que se pudesse considerar atendível o juízo de valor partilhado pelo Assistente e pelo tribunal a quo de que em causa estava uma mera divergência jurídica e não a perda de um prazo – saliente-se, de novo, que tal posição assenta na análise de outro despacho que não foi atendido no despacho da Recorrente -, ainda assim, sempre os efeitos da perda de um prazo não haviam sido acautelados.

34. De facto, descurar um prazo é não assegurar as consequências que resultam do seu não cumprimento. Ora, a opção pela não apresentação das contas, invocando para o efeito a falta de documentos, em vez de apresentar logo os documentos que já tinha na sua posse, e que vieram a ser apresentados poucos dias depois, implicou não acautelar o risco de o tribunal ter entendimento diferente, como veio a acontecer.

35. Em face de tudo o que antecede, nomeadamente aos despachos proferidos no processo cível em que assentou a decisão proferida pela Recorrente é manifestamente esse o sentido da expressão “descuraram”: não foram cumpridos os critérios e os prazos do processo civil porque não se acautelou o risco de prevalecer entendimento diverso, o que, aliás, diga-se, em face da letra da Lei nem era um risco mas uma consequência necessária.

36. Ao contrário do que consta do despacho em recurso, e como resulta de tudo o que antes se expôs, não existiu qualquer dolo da Recorrente.

37. Entende-se no despacho recorrido que a Recorrente, sendo licenciada em Direito e Magistrada,  “conhecia o significado e o sentido das palavras que utilizou, pelo que à luz das regras de experiência comum e da normalidade da vida e das coisas, é de ter por indiciariamente provado que tinha consciência do carácter ofensivo da imputação que fazia relativamente ao desempenho profissional de uma advogada, no exercício do patrocínio forense, e de que ainda assim não se absteve de a verter no despacho de arquivamento”.

38. O excerto transcrito padece do mesmo erro de qualificação dos factos já sobejamente destacado, pois não houve qualquer caráter ofensivo na imputação feita à mandatária, sobretudo não houve qualquer apreciação da sua conduta enquanto mandatária.

39. Foi precisamente pela Recorrente bem compreender “o que resulta da tramitação dos autos de prestação de contas” é que concluiu como fez. Da mesma forma, terá sido certamente por não ter apurado a tramitação concreta do processo de prestação de contas em que a Assistente foi mandatária, que o tribunal a quo pode concluir como ora faz.

40. Por outro lado, se a Magistrada é licenciada em Direito e bem pode entender o sentido do que escreveu, por igualdade de razões a Assistente, igualmente licenciada em Direito, deve ter percebido que o sentido de descurar os critérios e os prazos do processo civil é mera constatação, de onde nada resulta sobre o cumprimento ou incumprimento dos seus deveres como mandatária forense.

41. Porventura existe, assim, entre ambas, uma mera divergência jurídica: a Recorrente acha que foram descurados critérios e prazos e a Assistente tem entendimento diverso.

42. E a Assistente sabe bem o que é ofensivo e o que são juízos de valor sobre o trabalho alheio, como claramente resulta das expressões que fez constar do requerimento onde apreciou a conduta da Recorrente e que por esta foi junto a estes autos.

43. Se a Recorrente não fez qualquer juízo de valor sobre a atuação da assistente, muito menos a tendo considerado negligente – expressando mesmo a hipótese de tal atuação ter sido pretendida, como decorre do texto do despacho de arquivamento por si elaborado – não se vê como poderia, dessa forma, antever a Recorrente antever que fazia uma imputação ofensiva a quem quer que fosse.

44. Por força o regime constante do art. 13.º do CP, não existe crime difamação, pela inexistência de dolo.

45. Por tudo o que vem exposto, a decisão ora recorrida violou expressamente o disposto no artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal, não se mostrando indiciado o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime de difamação».

Defende, assim, que a decisão recorrida deve ser substituída por outra que julgue não verificados os indícios de cometimento do crime pelo qual foi a Recorrente foi pronunciada e, consequentemente, concluindo pela não pronúncia desta.

8. Em resposta, conclui a assistente:

«1.º. Na língua portuguesa, descurar é o mesmo que descuidar ou desleixar, supondo uma conduta negligente, pelo que a afirmação que alguém descurou um prazo processual significa que essa pessoa não praticou o acto judicial no tempo fixado para o efeito, ou seja, perdeu o prazo, por desatenção, desleixo ou até desconhecimento.

2.º. Face à acepção semântica da palavra descurar, não tem sustentação a tese que tal afirmação constata meramente que a assistente não praticou o acto dentro do prazo processual a que estava adstrita, indo-se mais além, adiantando-se que a não entrega das contas no prazo se deve ao descuido, desleixo, desatenção ou negligência da assistente.

3.º. Posto que nem a própria, nem a decisão recorrida, põem em causa que a assistente não entregou as contas no prazo no n.º 5 do artigo 942,º do Código de Processo Civil, despacho de 19-12-2014, o que está em causa nos presentes autos não é a se aquela em representação do réu, apresentou as contas no prazo fixado, mas sim se o fez por desleixo ou desatenção, ou por outra razão.

4.º. Das peças processuais da acção de prestação de contas juntas aos autos, nomeadamente do requerimento de 06-01-2015, resulta que a assistente estava perfeitamente ciente do prazo de 20 dias para apresentar contas, decorrente do artigo 942.º n.º 5 do CPP, mas entendeu que o artigo 944.º do CPP impõe que as contas apresentadas pelo réu devem revestir a forma, de conta corrente e ser instruídas com os documentos justificativos, pelo que não tendo estes, requereu a entrega dos elementos que se encontravam na posse do autor, posição que não foi sufragada pelo tribunal.

5.º. A não apresentação das contas naquele prazo deve-se à interpretação que a assistente fez do normativo que entendeu aplicável e não a incúria, negligência ou culpa sua.

6.º. A causa da não entrega das contas foi uma divergência jurídica sobre se a assistente estava ou não em condições de o fazer e não o desleixo daquela, pelo que não se verifica a exceptio veritatis como causa de exclusão, da ilicitude prevista no art.180.º, n.º 2, b), do CP.

7°. Dizer que alguém foi descuidado, desleixado ou negligente é, para a generalidade das pessoas, uma qualificação negativa de outrem, sendo, por isso, objectivamente ofensiva e, como tal, susceptível de constituir ofensa ao bom nome e consideração do visado.

8.º. Afirmar que um advogado no exercício do mandato jurídico por conta de um sujeito processual perdeu um prazo por descuido ou desleixo, tem o significado, de acordo com as regras da experiência comum e para a generalidade das pessoas, que esse advogado negligenciou os seus deveres para com o patrocinado, pelo que tal afirmação é apta a ofender a assistente na sua honra e consideração

9.º. A recorrente em vez de constatar de forma neutra o facto da não entrega das contas no prazo, emitiu um juízo de valor subjectivo sobre este facto dizendo que correspondeu a um desleixo da assistente, agindo com dolo na imputação que faz a esta porque sabia que aquela a poderia atingir na sua honra e consideração».

Pelo que deve, em seu entender, ser confirmada e mantida na íntegra a decisão recorrida por ser adequada e conforme à lei.

9. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos (transcrição parcial, na parte directamente relevante):

«(…) 3. Em brevíssima pronúncia, logo diz o Ministério Público neste Supremo Tribunal de Justiça que acompanha, nos seus momentos fundamentais, a motivação de recurso produzida pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta do Tribunal da Relação de Lisboa, também sendo de parecer que os dados probatórios recolhidos não autorizam a indiciação bastante da intenção dolosa da magistrada Arguida e que, assim, o despacho de pronúncia deve ser revertido, arquivando-se o procedimento.

E assim não porque se não possa concordar com a Exma. Juíza Desembargadora no ponto em que afirma que dizer de um advogado que, no exercício do seu múnus, descurou um prazo processual é «imputar-lhe um comportamento de ignorância das formalidades processuais ou de negligência no seu cumprimento» – por isso que objectivamente ofensivo da sua honra e consideração profissional e, em certa medida, até pessoal –, nem no em que conclui que a Senhora Procuradora Adjunta não podia ignorar o significado do termo descurar, em boa verdade o de desleixar, descuidar, negligenciar ou desprezar.

Sim porque, no contexto, mais geral, do despacho de encerramento de inquérito e no, mais específico, da proposição onde a palavra vem inserida, nada inculca a ideia de uma qualquer animosidade da Arguida relativamente à Assistente – nem, aliás, desta relativamente àquela – que pudesse fazer prever o insulto, muito menos explicá-lo, aparecendo ali o descurar como uma afirmação desgarrada, como uma afirmação irreflectida, melhor dizendo, como uma afirmação saída ao correr da pena com que – tudo leva a crer – apenas se queria significar que não tinha sido observado um prazo, mas sobre que, depois, ou não se teve tempo, ou não se teve discernimento, para reflectir e corrigir.

E tendo as coisas sido assim – ou, pelo menos, podendo as coisas razoavelmente terem sido assim, que a dúvida fundada é suficiente à luz do princípio do in dubio pro reo –, então bem é de dizer que a Arguida pode, afinal, no momento da prática do factos, não ter intuído a ofensividade da honra e consideração da Senhora Advogada da palavra utilizada.

O que, reconduzindo as coisas, no mínimo, para o campo da negligência, prejudica a perfeição do ilícito da difamação agravada por que foi pronunciada, que se trata de crime essencialmente doloso – cfr. art.º 13.º do CP; v., tb., art.ºs 14.º e 15.º.

Razões por que – e com isto se conclui – se entende que o douto despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que, com fundamento em insuficiente indiciação da intenção dolosa da Arguida, determine a não pronúncia e o arquivamento do procedimento relativamente ao, sempre referido, crime de difamação agravada p. e p. pelos art.os 180º n.º 1, 184º e 132º n.º 2 l) do CP.».

10. Notificados, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, os restantes sujeitos processuais não responderam.

11. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso é julgado em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

12. O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida e a nulidades não sanadas, a que se refere o artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I de 28.12.1995).

De acordo com estas motivações, o que está em causa é saber se da instrução resulta a existência de indícios suficientes (artigo 308.º, n.º 1, do CPP) para concluir que a afirmação contida no despacho de arquivamento que a arguida proferiu no processo de inquérito com o n.º 1920/15.3PYLSB, da 8.ª Secção do DIAP de Lisboa – de que a assistente “descurou” “critérios e prazos formais” que “existem” “em processo civil”, na acção de prestação de contas que com o n.º 234/13.8TVLSB correu termos na Instância Central da Comarca de Lisboa – é susceptível de constituir pressuposto de aplicação de uma pena, por preenchimento dos elementos do tipo de crime de difamação p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l), do mesmo diploma.

Dispõe o artigo 380.º, n.º 1, do CPP que «Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia».

Nos termos do n.º 2 do artigo 283.º, aplicável pela remissão operada pelo n.º 2 do artigo 308.º, «Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».

13. Da decisão instrutória, em que se fundamenta a pronúncia, consta o seguinte:

a) Considerações genéricas sobre o conceito de «indícios suficientes»

«Para que, no seu termo, seja proferido despacho de pronúncia exige-se a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos da aplicação de uma pena ou medida de segurança (art. 308.º, n.º 1, do CPP).

De acordo com o disposto no art. 283.º, n.º 2, do CPP, «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento», uma daquelas medidas.

Assim, o despacho de pronúncia, para além de delimitar o objecto do processo e, consequentemente, os poderes cognitivos e decisórios do tribunal, constitui uma garantia para o próprio arguido de não ser julgado, em processo penal, senão quando haja motivo sério para tal [citando os artigos 308.º, n.º 1, 309.º, n.º1, e 379.º, al. b), do CPP e Eduardo Correia, Processo Criminal, Coimbra, 1956, p. 180].

Na ponderação da seriedade de tal motivo deve estar já presente o princípio in dubio pro reo, com vista a evitar que o arguido seja sujeito a vexames e despesas inúteis, sempre que, no espírito do juiz, surjam dúvidas de que o mesmo, face à matéria indiciária constante dos autos, possa vir a ser, efectivamente, condenado.

E, na valoração do juízo indiciário, é imprescindível ter em conta que «A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame.

Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (art. 3.° daquela Declaração e 27.º da CRP)» [transcrevendo o acórdão deste STJ de 28.06.2006, Proc. 2315/06 – 5.ª, in www.dgsi.pt].

«É por isso que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo que aquela “possibilidade razoável” de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido" ou os indícios são suficientes quando haja" uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição” (cfr., respectivamente, Profs. Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, págs. 347-8 e Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1, 1974, págs. 133 e, entre muitos que se poderiam citar, os Acórdãos desta Relação, de 13/11/74, 241, 347, da Relação de Lisboa de 22/2/74, BMJ 234, 338 e da Relação de Évora de 19/6/74, 238, 295)» [transcrevendo o acórdão da Relação do Porto de 20.10.1993, CJ, XVIII, 4.º, 26, e indicando, no mesmo sentido, outros acórdãos desse STJ].

Como refere, também, o Prof. Germano Marques da Silva, «Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido. (…) A referência que o art.º 301.º n.º 3, faz à natureza indiciária da prova para efeitos de pronúncia inculca a ideia de menor exigência, de mero juízo de probabilidade. Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação. A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (artº 283º nº 2); não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final».

Concluindo que «será à luz destas considerações genéricas que apreciaremos a questão de saber se os autos contêm matéria indiciária suficiente da prática pela arguida dos crimes de injúria e difamação, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1, 180.º, nº 1, e 184.º, todos do CP, estando reunidos todos os elementos objectivos e subjectivos dos respectivos tipos legais».

b) Sobre a tutela penal da honra e consideração

«A tutela penal do direito ao bom nome e reputação constitucionalmente consagrado no art. 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa é assegurada pelos artigos 180.º e 181.º do CP.

O bem jurídico-constitucional assim delineado apresenta um lado individual (o bom nome) e um lado social (a reputação ou consideração), fundidos numa pretensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa dos outros; é, ao fim e ao cabo, uma pretensão a não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade.

A difamação consiste na imputação a alguém, levada a terceiros e na ausência do visado, de facto ou juízo que encerre em si uma reprovação ético-social, sendo ofensivos da honra e consideração do visado, enquanto pretensão de respeito que decorre da dignidade da pessoa humana e pretensão ao reconhecimento da dignidade moral da pessoa por parte dos outros.

O crime de injúria tutela o mesmo bem jurídico mas concretiza-se em um ataque directo, sem intromissão de terceiros, ao ofendido (artigo 181.º do CP) [fazendo referência ao acórdão deste STJ de 06-04-2017, proferido no Proc. n.º 29/15.4TRLSB - 5, in www.dgsi.pt, e citando Faria Costa (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 608)].

O sentimento de honra da comunidade deve fundar-se num critério objectivo, à luz do qual deve ser aferida a tipicidade/gravidade das ofensas a este bem jurídico: «ofensivo da honra e consideração (…) é aquilo que razoavelmente (…) segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores. (…) Aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena» [citando Beleza dos Santos, “Algumas considerações sobre os crimes de difamação e injúria”, RLJ, ano 92.º, pág. 165].

Um facto ou juízo, para que possa ser tido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração [referindo o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 02-07-1996, CJ 1996, tomo 4, pág. 295].

Ou seja, como explica o Senhor Conselheiro Oliveira Mendes , «nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180.º e 181.º, tudo dependendo da “intensidade” da ofensa ou perigo de ofensa” [O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, Almedina, 1996, pág. 37].

Por outro lado, a lesão da honra e consideração não constitui elemento dos tipos, sendo bastante para a consumação da difamação ou injúria o perigo de que aquele dano possa verificar-se, configurando-se estes crimes como crimes de perigo [indicando, neste sentido, Faria Costa, ob. cit., I, pág. 604].

c) Aplicação das considerações antecedentes ao caso concreto

«No caso sub judice, não se colocam dúvidas quanto à autoria do despacho de arquivamento proferido no Inquérito com o NUIPC n.º 1920/15.3PYLSB, da 8.ª Secção do DIAP de Lisboa, no qual se contêm as expressões em causa, que a arguida assume e que resulta, de resto, de prova documental. (…)

Analisados criticamente todos os elementos de prova indiciária que constam dos autos, concretamente as declarações prestadas pela assistente a fls. 59-61 e pela ora arguida a fls. 63-68, os escritos de fls. 10-27, 69-78 e 141-208, bem como os que constituem o apenso, extraídos do acima identificado Proc. n.º 234/13.8TVLSB, constata-se o seguinte, com relevância para o que ora importa:
- No âmbito da acção de prestação de contas que com o n.º 234/13.8TVLSB correu termos na 6.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, em que era autor “Condomínio do Prédio da ...” e réu CC, foi proferido despacho judicial, em 16-12-2014, no qual se lê:

«Por sentença transitada em julgado (i.e. confirmada pelo Tribunal da Relação) foi decidido que o Réu está obrigado a prestar contas. Cumpra-se, assim, agora o disposto no nº 5 do artº 942º do CPC.»;
-  Em 06-01-2015, o ali réu, por intermédio da sua mandatária, a aqui assistente, apresentou requerimento nos seguintes termos:

“CC, Réu nos autos à margem referenciados, notificado para apresentação de contas nos termos do art. 942º n. 5 do C.P.C., vem por este meio informar o tribunal de que se encontra impossibilitado de o fazer, nos termos do art. 944º n.º 1 e 3 do mesmo diploma, uma vez que não dispõe de acesso aos documentos contabilísticos da Autora desde 2010, cfr. se constata dos documentos que se juntam em anexo como Doc. 1 e Doc. 2.

Por esse motivo, e ainda que lhe seja possível informar as despesas concretizadas em 2009 e 2010 – em 2009 porque chegou a apresentar as contas a todos os condóminos e em 2010 porque dispõe de um registo das despesas realizadas – ainda assim não dispõem, tais registos, da característica de “conta-corrente” como exige o art. 944º n.º 1, nem dispõe o Réu de legitimidade para requerer junto dos fornecedores e prestadores de serviços a emissão de uma 2ª via das faturas emitidas em 2009 e 2010, para cumprimento do art. 944º n.º 3.

Em conformidade, e para que seja viabilizado o cumprimento do despacho de que foi notificado, requer-se ao tribunal que se digne mandar notificar a Autora para, em tempo útil, vir juntar aos autos todos os documentos contabilísticos de 2009 e de 01 de Janeiro a 26 de Julho de 2010, nomeadamente os extratos bancários, faturas e recibos correspondentes.”;
- Sobre tal requerimento recaiu o despacho de 05-02-2015, que decidiu:

“Requer o Réu que o Tribunal na sequência da notificação determinada à luz do nº 5 do artº 942º do CPC, que se encontra impossibilitado de prestar as contas uma vez que não tem em seu poder os documentos contabilísticos que o permitam, requerendo que o Autor seja notificado para os apresentar.

O A. insurge-se contra tal pretensão do Réu referindo que tal pretexto já foi invocado pelo mesmo para se eximir à obrigação em causa e que, além disso, também não dispõe dos documentos referidos.

Cumpre apreciar.

Considerando que por decisão já transitada o Réu foi obrigado a prestar contas é porque igualmente se considerou estar o mesmo em condições de o fazer.

Não tem qualquer sentido, mais a mais perante a resposta do Autor, inverter o superiormente decidido.

Termos em que se indefere o requerido.

Volvido que o prazo para o efeito, i.e. o consignado no n.º5 do art.º 942.º do CPC, notifique o Autor em conformidade com o estatuído no n.º 1 do art.º 943.º do CPC da falta de apresentação das mesmas.”;
-  Perante tal indeferimento, a ora assistente apresentou, em 11-02-2015, reclamação, na qual alega, para além do mais:

“(…) Tal entendimento contraria, manifestamente, a decisão proferida pelo tribunal superior quando do acórdão foi feito constar, a páginas 17 (parte final) e 18 do mesmo, que:

‘…, cabe ao R./Apelante, uma vez transitada em julgado a decisão que lhe conferiu o prazo de vinte dias para apresentação das contas, comunicar nos autos a impossibilidade existente e requerer o acesso aos documentos necessários, para bem cumprir a sua obrigação”.

Ora, (…) foi precisamente o que o Réu veio fazer aos autos. E, (…) Foi precisamente essa comunicação concretizada nos autos que o tribunal veio indeferir, com manifesta violação do teor da decisão proferida pelo tribunal superior, assim como em violação do art.º 7º n.º 4 do CPC, quando o mesmo determina que:

‘4 – Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo.’

Pelo que se encontra supra exposto, requer-se a V.Exa. que a presente reclamação seja julgada procedente em cumprimento da decisão já proferida por tribunal superior assim como, nos termos do art.º 7º n,º 4 do CPC, requer-se ao tribunal que se digne mandar remover o obstáculo em causa, ou seja, a impossibilidade de o Réu aceder aos extractos bancários – face ao sigilo bancário inerente e à ilegitimidade do Réu para requerer uma 2ª via dos mesmos – assim como de toda a documentação contabilística em causa, para que se viabilize o cumprimento da decisão proferida pelo tribunal – prestação de contas de 2009 e 2010.”
-  E em 25-02-2015 veio apresentar requerimento acompanhado de alguma documentação, afirmando considerar ser esta insuficiente para apresentação das contas sob a forma de conta-corrente, tal como exige a lei;
-  Posteriormente, na sequência da prestação de contas por parte do autor, veio o Réu CC a ser condenado no pagamento do montante de 75.528,86€, decisão da qual interpôs recurso de apelação, julgado improcedente por acórdão deste Tribunal da Relação de 15-07-2017;
-  CC apresentou depois uma queixa contra seis administradores do “Condomínio do Prédio da ...”, o responsável pelos serviços de gestão do condomínio e a TOC designada para elaborar relatório de contas, imputando-lhes a prática de factos que entendia integrarem a prática de um crime de burla qualificada e de um crime de difamação, p. e p., respectivamente, pelos arts. 217.º e 218.º, 180.ºe 183.º, todos do CP, que deu origem ao Inquérito com o NUIPC n.º 1920/15.3PYLSB, que correu termos na 8.ª Secção do DIAP de Lisboa;
-  No despacho de arquivamento que encerrou tal inquérito, datado de 09-01-2017, pode ler-se (depois de uma análise dos elementos de prova constantes dos autos e do tipo legal do crime de burla):

“(…) Compulsados os autos e da extensa prova produzida, constata-se que a conduta dos arguidos não constitui a prática de qualquer ilícito criminal. Como condóminos ou empresas representantes do condomínio, agiram num direito que lhes assiste, o de ver apresentada a documentação referente à actividade de administração do condomínio.

Com efeito, não seria por estar inscrita em acta ou por alegadamente terem conhecimento da remuneração que não lhes assistirá o direito de verificarem a documentação emitida.

Não se descortina a razão de a documentação ter sido por diversas vezes requisitada ao assistente e de poder ter sido apresentada na Acção competente de Prestação de Contas, dentro do prazo fixado para o efeito, e não o terem efectuado, para seguidamente a apresentarem fora de prazo e voltarem a apresentar em processo crime.

Em direito processual civil existem critérios e prazos formais que têm de ser seguidos e que o assistente e a sua mandatária descuraram, bem como todas as hipóteses de resolveram a situação extrajudicialmente e apresentarem a documentação aos condóminos, para mais tarde e, após a condenação, terem apresentado processo-crime por se considerarem injustamente condenados, alegando que os ora arguidos não teriam de manter a acção de prestação de contas. (…)

Não incumbia aos arguidos, nem o poderiam efectuar, descortinar a documentação em falta para apresentar na acção judicial ou pressupor valores como o da remuneração, sem para tal terem os documentos comprovativos. Tal incumbia ao assistente, que não o efectuou dentro do prazo, tendo como consequência legal o seu desentranhamento.

Não haverá que imputar a uma conduta que foi dolosa ou negligente do assistente, de não apresentação de documentação, com o reverso da medalha, a imputação aos arguidos de que deveriam ou teriam obrigação de a conhecer e tal constituir a prática de um ilícito criminal, por parte destes.

Em termos legais, após o assistente não ter efectuado a prestação de contas que teria de efectuar em Tribunal, teria o condomínio de o fazer. O que sucedeu e que efectuou como pôde, na ausência de documentação.

Incumbirá ao assistente, pelos meios cíveis, alegar e provar a razão que lhe assiste, em acção própria que não em sede de processo-crime, imputando condutas aos arguidos que resultaram da sua própria conduta.

Assim, nestes termos, e nos do artigo 277º, n.º2, do Código de Processo Penal, determino o arquivamento dos autos.”

Conforme resulta claro, quer da queixa apresentada, quer do requerimento para abertura da instrução, o que a assistente reputa de ofensivo da sua honra e consideração profissionais é a afirmação da ora arguida de que aquela descurou um prazo processual, no âmbito de um processo civil no qual era mandatária forense de uma das partes, imputação que efectivamente se retira do despacho de arquivamento que acabámos de transcrever parcialmente.

“Descurar” significa “mostrar desleixo por”, “descuidar-se”, negligenciar, descuidar, desprezar.

Dizer-se de um advogado que descurou o cumprimento de um prazo no decurso de um processo judicial no qual exerce o mandato forense é imputar-lhe um comportamento de ignorância das formalidades processuais ou de negligência no seu cumprimento.

Não constitui a mera constatação de um facto, neutra e sem qualquer sentido valorativo – como é a afirmação, que no despacho de arquivamento também consta, de que a mandatária (ou a parte por si representada) não apresentou determinados documentos no prazo fixado – equivalendo sim, em linguagem do foro, a dizer-se que “perdeu um prazo”.

Não nos parece, por isso, oferecer dúvidas que se trata de uma imputação que contém em si um juízo de valor, atribuindo à visada um comportamento profissional de índole negativa, de significativa gravidade, por ser violador do seu dever de zelo na defesa dos interesses do seu constituinte, que excede a margem de tolerância que deve reger a comunicação entre as pessoas e que, pondo em causa a competência ou a diligência profissional da assistente enquanto advogada, é susceptível de a atingir na sua honra e consideração.

Ora, se perante as descritas ocorrências processuais, é inequívoco que a ora assistente, na qualidade de mandatária do réu na acção de prestação de contas, não apresentou a solicitada documentação dentro do prazo fixado, delas resulta também evidente que tal não se deveu a uma conduta involuntária da sua parte, em consequência de desconhecer o prazo em causa ou de nele não ter atentado devidamente.

Pelo contrário, dos elementos documentais juntos decorre que a ora assistente estava perfeitamente ciente do prazo processual de que o seu constituinte dispunha para a apresentação das contas em questão, mas que teve o entendimento de que não se encontrava em condições de o fazer e de que lhe era legítimo endereçar ao tribunal os requerimentos que endereçou.

O que ressalta à evidência é uma divergência de índole jurídica que, de resto, deu origem a dois recursos para este Tribunal da Relação.

Por isso, independentemente de saber se lhe assistia ou não razão no entendimento que sustentou, não poderá dizer-se que a ora assistente não apresentou a documentação em causa por ignorância ou incúria no exercício do mandato forense, ou seja, que a imputação valorativa expressa pela arguida no despacho de arquivamento que elaborou tenha correspondência com o que decorre dos autos.

E tal divergência da verdade não podia ser ignorada pela ora arguida, porquanto se debruçou sobre a tramitação dos autos de prestação de contas a fim de fundamentar o seu despacho de arquivamento, não podendo também concluir-se que tivesse fundamento sério para ter como verdadeira aquela imputação.

Acresce que para a fundamentação do arquivamento determinado bastava à ora arguida referir – como, aliás, refere – que o assistente e a sua mandatária não tinham apresentado os documentos no prazo fixado (o que corresponde a um facto verdadeiro), não carecendo de sobre esse comportamento efectuar um juízo valorativo de índole negativa, pelo que também não se alcança que a imputação em causa fosse necessária para a realização de um interesse legítimo.

Por outro lado, é hoje pacífico que para o preenchimento dos elementos subjectivos do tipo nos crimes de difamação e injúria não se exige o dolo específico, consubstanciado no propósito de atingir o visado na sua honra e consideração, bastando que o arguido tenha conhecimento do carácter ofensivo da imputação ou juízo formulado, ou seja, da susceptibilidade de provocar aquela lesão, e actue conformando-se com ele (i.e., a título de dolo eventual, sem prejuízo de o facto poder ser praticado com dolo directo ou necessário).

Sendo a ora arguida licenciada em Direito e Magistrada, não podemos duvidar de que conhecia o significado e o sentido das palavras que utilizou e de que bem compreendeu o que resultava da tramitação dos autos de prestação de contas a que teve acesso antes de proferir o despacho de arquivamento no Inquérito n.º 1920/15.3PYLSB, pelo que, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida e das coisas, é de ter por indiciariamente provado que tinha consciência do carácter ofensivo da imputação que fazia relativamente ao desempenho profissional de uma advogada, no exercício do patrocínio forense, e de que ainda assim não se absteve de a verter no despacho de arquivamento.

Não resulta, contudo, indiciado que a arguida tenha actuado com intenção de atingir a visada na sua honra e consideração ou que tenha aceitado tal resultado como consequência necessária da sua conduta, excluindo-se, assim, a imputação do ilícito a título de dolo directo ou necessário.

Também não se tem por indiciado, em face dos elementos probatórios disponíveis nos autos, que a generalidade dos condóminos do Condomínio do Prédio da ... tenha tomado conhecimento da imputação através das cópias do despacho de arquivamento que foram distribuídas nas respectivas caixas do correio, facto que, de todo o modo, é irrelevante para o preenchimento dos ilícitos imputados, sendo certo que no requerimento para abertura da instrução nenhuma conduta relacionada com essa distribuição é atribuída à ora arguida.

Em suma, independentemente do que possa vir a ser apurado em audiência de julgamento, uma vez submetidos os factos e os elementos de prova ao crivo do contraditório, afigura-se-nos que os autos contêm, neste momento, matéria indiciária suficiente da prática pela arguida de um crime de difamação p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1, do CP, com a agravação prevista no art. 184.º, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l) do mesmo diploma.

O mesmo não sucede com o crime de injúria, uma vez que a imputação ofensiva efectuada pela arguida não ocorreu na presença da visada, sendo que, como acima já referimos, a diferença entre difamação e injúria se traduz no facto de nesta o agente do crime se dirigir directamente à vítima e naquela veicular a ofensa através de terceiros.

Cabendo ao juiz, no final da instrução (como ao Ministério Público no final do inquérito), efectuar um juízo de prognose em torno do desfecho da causa em sede de julgamento, e sendo de considerar como razoavelmente provável a futura condenação da arguida, importará proferir despacho de pronúncia pela prática do aludido ilícito, consubstanciada nos factos descritos no requerimento para abertura da instrução, com as ressalvas acima explicitadas (cf. art. 283.º, n.º 2, ex vi art. 308.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPP)».

Apreciação

14. Como se refere na fundamentação da decisão instrutória, o crime de difamação da previsão do artigo 180.º do Código Penal confere protecção penal ao bem jurídico «honra», que corresponde a um direito fundamental da pessoa constitucionalmente garantido (assim, Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, 2.ª ed., Tomo I, Coimbra Editora, 2012, p. 904, comentário ao artigo 180.º).

Nos termos do artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, a todos é reconhecido o direito ao «bom nome e reputação», o qual, tendo «um alcance jurídico amplíssimo, situando-se no cerne da dignidade humana» (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 289), «consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação, por outrem» (Vital Moreira/Canotilho, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007, p. 466).

O artigo 180.º do Código Penal dispõe que:

«1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2 - A conduta não é punível quando:

a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e

b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.»

O artigo 182.º equipara a difamação feita por escrito à difamação verbal.

15. É geralmente reconhecido que, diferentemente do que sucede com outros tipos de crime que protegem direitos de personalidade, que correspondem a direitos fundamentais, a definição do conceito de «honra», como bem jurídico-penal, revela particulares dificuldades, dada a historicidade, plasticidade, polissemia e equivocidade que lhe são intrínsecas, concorrendo para a sua determinação elementos de natureza fáctica e normativa, que lhe conferem natureza eclética, em que se costuma distinguir entre «honra interior» – opinião ou sentimento de uma pessoas sobre si própria e sobre o seu valor – e «honra exterior» – representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, a sua reputação ou o seu bom nome (cfr. Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, pp. 76-88, Faria Costa, ob. cit. pp. 905-910, e Noções Fundamentais de Direito Penal, Coimbra Editora, 4.ª ed., 2015, p. 130, Oliveira Mendes, O Direito à Honra e sua Tutela Penal, Almedina, 1996, pp. 11-24 e acórdão deste STJ de 6.4.2007, Proc. 29/15.4TRLSB, cit.).

Aponta-se, porém, a necessidade de, na consideração do artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, se limitar a «área de tutela típica» do crime de difamação, de que se exclui o direito de crítica quanto a juízos de apreciação e valoração de «realizações profissionais» «cuja relevância jurídico-penal está à partida excluída por razões de atipicidade», «na medida em que não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva – isto é: enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às realizações e prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores»; «aqueles juízos caem já fora da tipicidade de incriminações como a difamação» (Costa Andrade, ob. cit. p. 232-233). Como nota Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª ed., 2015, pp. 725-726) o juízo de valor desonroso não é ilícito quando a crítica é dirigida à actividade profissional: «nestes casos de crítica legítima, o visado pela crítica não pode apelar à tutela da sua reputação como parte integrante da sua “vida privada” pelo artigo 8.º da CEDH», citando o caso Karako c. Hungria, no. 39311/05, de 28 Julho 2009, salvo tratando-se de um «ataque pessoal gratuito». Na jurisprudência do TEDH pode ainda ver-se o caso Polanco Torres e Movilla Polanco c. Espanha, no. 34147/06, § 40, de 21 Fevereiro 2011, em que foi considerado que a protecção da reputação de uma pessoa pela CEDH (artigo 8.º) requer que a violação seja suficientemente grave e tenha repercussões directas na vida privada da pessoa visada, isto é, que seja de uma gravidade tal que comprometa a sua integridade pessoal.

16. Como se vê do texto da decisão recorrida, em síntese, a pronúncia da arguida baseia-se em que:

(a) «Descurar” significa “mostrar desleixo por”, “descuidar-se”, negligenciar, descuidar, desprezar», o que corresponde, em parte, ao sentido que lhe é atribuído pela assistente no requerimento de abertura de instrução (fls. 134, ponto 9) (citando o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa na internet);

(b) «Dizer-se de um advogado que descurou o cumprimento de um prazo no decurso de um processo judicial no qual exerce o mandato forense é imputar-lhe um comportamento de ignorância das formalidades processuais ou de negligência no seu cumprimento»; «não constitui a mera constatação de um facto, neutra e sem qualquer sentido valorativo (…) equivalendo sim, em linguagem do foro, a dizer-se que “perdeu um prazo”»;

(c) «Não nos parece, por isso, oferecer dúvidas que se trata de uma imputação que contém em si um juízo de valor, atribuindo à visada um comportamento profissional de índole negativa, de significativa gravidade, por ser violador do seu dever de zelo na defesa dos interesses do seu constituinte, que excede a margem de tolerância que deve reger a comunicação entre as pessoas e que, pondo em causa a competência ou a diligência profissional da assistente enquanto advogada, é susceptível de a atingir na sua honra e consideração»;

(d) «(...) é inequívoco que a ora assistente, na qualidade de mandatária do réu na acção de prestação de contas, não apresentou a solicitada documentação dentro do prazo fixado»;

(e) «(...) resulta também evidente que tal não se deveu a uma conduta involuntária da sua parte, em consequência de desconhecer o prazo em causa ou de nele não ter atentado devidamente»;

(f) «(...) dos elementos documentais juntos decorre que a ora assistente estava perfeitamente ciente do prazo processual de que o seu constituinte dispunha para a apresentação das contas em questão, mas que teve o entendimento de que não se encontrava em condições de o fazer e de que lhe era legítimo endereçar ao tribunal os requerimentos que endereçou»;

(g) «(...) ressalta à evidência uma divergência de índole jurídica que, de resto, deu origem a dois recursos para este Tribunal da Relação»;

(h) «(...) independentemente de saber se lhe assistia ou não razão no entendimento que sustentou, não poderá dizer-se que a ora assistente não apresentou a documentação em causa por ignorância ou incúria no exercício do mandato forense, ou seja, que a imputação valorativa expressa pela arguida no despacho de arquivamento que elaborou tenha correspondência com o que decorre dos autos»;

(i) «(...) tal divergência da verdade não podia ser ignorada pela ora arguida, porquanto se debruçou sobre a tramitação dos autos de prestação de contas a fim de fundamentar o seu despacho de arquivamento, não podendo também concluir-se que tivesse fundamento sério para ter como verdadeira aquela imputação»;

(j) «Sendo a ora arguida licenciada em Direito e Magistrada, não podemos duvidar de que conhecia o significado e o sentido das palavras que utilizou e de que bem compreendeu o que resultava da tramitação dos autos de prestação de contas a que teve acesso antes de proferir o despacho de arquivamento no Inquérito n.º 1920/15.3PYLSB, pelo que, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida e das coisas, é de ter por indiciariamente provado que tinha consciência do carácter ofensivo da imputação que fazia relativamente ao desempenho profissional de uma advogada, no exercício do patrocínio forense, e de que ainda assim não se absteve de a verter no despacho de arquivamento».

17. A premissa de que parte e sobre a qual se constrói a argumentação que fundamenta a imputação do crime – isto é, que «“Descurar” significa “mostrar desleixo por”, “descuidar-se”, negligenciar, descuidar, desprezar» –, que supõe uma conduta negligente, corresponde a uma definição de dicionário, que não esgota, como é próprio dos dicionários, os sentidos possíveis de uma palavra. O verbo «descurar» pode, por exemplo, significar «perder», ou, sendo uma palavra formada por prefixação, a partir de «curar» com adição do prefixo modificador de negação «des», «não tratar de», na definição do mesmo dicionário, ou «não cuidar» de algo, na definição do Dicionário Houaiss, sendo que, na acepção comum, «negligenciar», sendo antónimo de «diligenciar», pode significar agir com falta de prontidão (Priberam), de urgência (Houaiss). Além disso, sendo um verbo, representa uma acção (ou omissão), que pode ser voluntária, com conhecimento e aceitação das suas possíveis consequências, e não uma característica (de uma pessoa, por exemplo). Isto, no essencial, para se poder afirmar que, em si, não contém, por definição, um juízo de valor negativo, de omissão de um dever por negligência, no seu sentido jurídico, descuido, desleixo ou ignorância.

O que está em causa é, pois, a determinação do sentido (ou do significado) com que a expressão foi utilizada pela arguida no texto em que foi escrita, isto é, tendo em conta a «coesão textual» assegurada por «processos de sequencialização que exprimem vários tipos de interdependência semântica das frases que ocorrem na superfície textual» e a «coerência textual», a «estrutura temática» e «informacional» desse texto (sobre estes conceitos, cfr. Maria Helena Mira Mateus e outros, Gramática da Língua Portuguesa, Caminho, Lisboa, 2006, pp. 87-123).

18. O texto em questão é um despacho proferido pela arguida no encerramento do inquérito, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do CPP, segundo o qual o Ministério Público procede ao arquivamento se não tiver sido possível obter indícios suficientes da verificação do crime, isto é, do conjunto de pressupostos de que depende a aplicação de uma pena [artigo 1.º, al. a), do CPP].

Destinando-se o inquérito a recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262.º, n.º 1, do CPP), impõe-se ao Ministério Público, a final, apreciar as provas recolhidas, de modo a poder concluir se delas resultam, ou não, indícios suficientes da prática do crime, ou seja, indícios de que resulte uma possibilidade razoável de, em julgamento, vir, por força deles, a ser aplicada uma pena (artigo 283.º, n.º 2, do CPP). O que necessariamente impõe a formulação de juízos de valoração sobre o conteúdo do inquérito, de que não se exclui uma apreciação crítica da intervenção da assistente na sua intervenção como advogada, os quais, na sua fundamentação (artigo 97.º, n.ºs 3 e 5, do CPP), se devem submeter a critérios de estrita objectividade (artigo 53.º do CPP) e a normas funcionais estatutárias (Estatuto do Ministério Público).

19. No despacho de arquivamento (fls. 11-21), ao especificar os fundamentos de facto da decisão, a arguida faz uma descrição das diligências efectuadas e aprecia a prova documental e pessoal recolhida no inquérito a que deu origem a queixa apresentada por Carlos Piteira, que havia sido condenado a pagar uma importância superior a 75.000 euros na acção de prestação de contas n.º 234/13.8TVLSB, em que este, depois de o não ter feito, apesar de notificado para isso, veio a apresentar documentação em que comprovava valores gastos bem como a sua remuneração como administrador do condomínio. Na queixa apresentada era imputada aos denunciados a prática de crimes de burla e de difamação por, na síntese do despacho de arquivamento, estes, «apesar de reconhecerem a sua remuneração conforme tabela elaborada em 2010, cuja junção se requer aos autos, vieram invocar desconhecer essa remuneração em 2015, como forma de peticionar mais quantias em tribunal» (fls. 14).

Ao apreciar o comportamento processual de CC e da sua advogada, a aqui assistente BB, na acção 234/13.8TVLSB, a arguida, face aos documentos juntos, às declarações dos arguidos e os depoimentos recolhidos, menciona que o queixoso CC nunca apresentou os documentos relativos à administração do condomínio, o que obrigou este a propor a acção (fls. 16, 17), que CC “não veio apresentar contas nem documentação no período designado pelo tribunal, tendo recaído essa obrigação sobre o condomínio” (fls. 17), que “não se descortina razão de a documentação ter sido por diversas vezes requisitada ao assistente e de poder ter sido apresentada na acção competente de prestação de contas, dentro do prazo fixado para o efeito, e não o terem efectuado, para seguidamente a apresentarem fora de prazo e voltarem a apresentar em processo-crime” (fls. 20), que «não incumbia aos arguidos, nem o poderiam efectuar, descortinar a documentação em falta para apresentar na acção judicial ou pressupor valores como a da remuneração, sem para tal terem os documentos comprovativos. Tal incumbia ao assistente, que não o efectuou dentro do prazo, tendo como consequência legal o seu desentranhamento» (fls. 20). É na consideração destes elementos, neste contexto, que a arguida, escreve a expressão “Em direito processual civil existem critérios e prazos formais que têm de ser seguidos e que o assistente e a sua mandatária descuraram”, a ela acrescentando «bem como todas as hipóteses de resolveram a situação extrajudicialmente e apresentarem a documentação aos condóminos, para mais tarde e, após a condenação, terem apresentado processo-crime por se considerarem injustamente condenados, alegando que os ora arguidos não teriam de manter a acção de prestação de contas» (fls. 20).

A afirmação de que a documentação não foi apresentada na acção de prestação de contas nos prazos fixados mostra-se comprovada nos despachos judiciais e requerimentos aí apresentados, referidos na decisão instrutória acima transcrita.

Ouvida, a arguida esclareceu que «não se pretendeu apreciar qualquer comportamento da mandatária na acção, mas tão somente referir um facto notório e que constava dos autos que foi o ter sido ultrapassado o prazo para junção de documentação e legalmente ficou precludida essa possibilidade» (fls. 68).

20. Resulta, por conseguinte, que a expressão alegadamente ofensiva se fundamenta em dados objectivos do processo de inquérito e se traduz numa avaliação, numa apreciação crítica, que se impunha à arguida, destinada a decidir do arquivamento do inquérito. É, pois, neste contexto, que deve ser lida.

Um sentido é seguro – o de que, com essa expressão, a arguida se quis referir à não apresentação dos documentos na acção de prestação de contas nos prazos determinados. Nesse sentido, “descurou”, “não tratou” de os apresentar.

A amplitude de significado do verbo «descurar» e o contexto em que foi utilizado não permitem, porém, assegurar uma outra conclusão. Poderá o termo ser considerado pouco rigoroso, pois haveria outras formas mais exactas de expressar a mesma ideia, ou mesmo «excessivo», como afirma a senhora Procuradora-Geral Adjunta na motivação de recurso, podendo, assim, permitir a leitura que lhe é dada pela assistente e no despacho de pronúncia. Porém, dos elementos que constam do inquérito e da instrução não pode extrair-se, com o fundamento necessário, que, com o uso dessa palavra – que representa uma acção e não uma qualidade –, a arguida se excedeu na avaliação e pretendeu, por essa forma, atingir a aqui assistente, a advogada de Carlos Piteira, na sua honra e consideração, nos termos que constam da fundamentação da decisão instrutória.

Actuação que a decisão instrutória, por considerar afastada qualquer das outras modalidades de dolo (directo e necessário) imputa à arguida unicamente a título de dolo eventual (artigo 14.º, n.º 3, do Código Penal), de difícil comprovação, na linha de fronteira com a negligência consciente [artigo 15.º, al. a)] – de contornos «instáveis e frágeis», vivendo «paredes-meias» com esta (Faria Costa, Noções, cit. p. 381), e com ela tendo em comum a representação da realização típica como consequência possível da conduta, uma «sobreposição inevitável» (Figueiredo Dias, Direito Penal, Tomo I, Coimbra editora, 2007, p. 368).

Não sendo possível a comprovação da «conformação com o resultado», no «espaço de dúvida situado entre o dolo e negligência» (Faria Costa, loc. cit.), a conduta, verificados os demais requisitos, reconduzir-se-á ao domínio da negligência, que, no caso do crime de difamação, não é punível, como observa o senhor Procurador-Geral Adjunto em seu parecer.

21. Como a própria assistente reconhece no requerimento de abertura de instrução, «nenhum advogado ou magistrado tem qualquer dúvida que a perda de um prazo representa ou um desleixo ou um desconhecimento do que deveria conhecer, em última instância, a ignorância de um profissional do foro. (…) a perda de um prazo é uma das negligências mais graves que se lhe pode imputar».

Porém, o que estaria aqui em causa, como resulta do próprio requerimento de abertura de instrução (fls. 136-137), a que aderiu a decisão instrutória, era que não se tratou de «perder um prazo» por  negligência ou desleixo, mas da não prática deliberada do acto dentro do prazo, por “haver discórdia” entre o juiz do processo e a advogada “quanto à interpretação das disposições legais aplicáveis – o advogado não se desleixou, interpretou sim a lei de forma diferente da que veio a fazer o juiz da causa» (fls. 137). Nesta compreensão das coisas, a censurabilidade da conduta da arguida teria resultado do facto de esta não ter reparado em que não houve negligência ou desleixo, mas um comportamento que resultou de uma divergência de interpretação do direito.

Ou seja, é a própria assistente a admitir que o não cumprimento do prazo por negligência ou desleixo é uma conduta não aceitável e, como tal, pode considera-se que, se assim tivesse agido, estaria justificada a expressão usada pela arguida de que «descurou» o prazo. Isto é, tal como está descrito na pronúncia, o facto não constituiria infracção penal; só o seria, na tese desta, sufragada na decisão instrutória que a antecede, se, apesar de saber que a assistente agiu deliberadamente, a arguida lhe quisesse imputar um não verificado comportamento negligente, por definição ofensivo.

22. A afirmação pretensamente ofensiva refere-se à prestação funcional, à actividade profissional da assistente, não à pessoa desta, ao seu bom nome e reputação enquanto valores intrinsecamente inerentes à pessoa, dá conteúdo a uma crítica na apreciação que faz dos elementos do inquérito e é dirigida a uma finalidade única e específica, que é a decisão sobre a acusação, a que se destina o inquérito, arquivando-o (artigo 262.º, n.º 1, e 277.º do CPP). O que, como acima se referiu (ponto 15), a coloca, ab initio, fora da área de tutela típica do crime de difamação.

Esta avaliação crítica encontra-se objectivamente fundada nos termos do próprio despacho em que se integra e nas provas reunidas no inquérito, não constituindo um acto gratuito dirigido à pessoa da assistente, ao seu bom nome e reputação, nem uma ofensa que, pela sua gravidade, intenção e finalidade, deva considerar-se incluída naquela área de tutela.

Para além disso, mesmo que se pudesse considerar excessiva, de modo a incluir-se no campo da previsão da norma incriminadora, não se surpreendem elementos que permitam afirmar que a arguida usou a expressão que lhe é imputada no sentido que lhe é atribuído na pronúncia, de modo a poder fundar-se a suficiente indiciação do dolo na forma eventual.

Pelo que, diversamente do decidido na decisão instrutória, se conclui que não se mostram verificados indícios suficientes de que a arguida praticou o crime que lhe é imputado na pronúncia.

Quanto a custas

23. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso, o que não é o caso.

III. Decisão

24. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedentes os recursos interpostos pelo Ministério Publico e pela arguida AA e, em consequência, revogar o despacho de pronúncia, substituindo-o por decisão de não pronúncia.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 19 de Junho de 2019.

Lopes da Mota (relator)
Vinício Ribeiro