Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8049/15.2TPRT.P1.S3.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: SOCIEDADE ANÓNIMA
DISPOSIÇÃO DE BENS
FRAUDE À LEI
Data do Acordão: 09/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES – CONTRATO DE SOCIEDADE / CELEBRAÇÃO E REGISTO / OBRIGAÇÕES E DIREITOS DOS SÓCIOS/ OBRIGAÇÃO DE ENTRADA / CONSERVAÇÃO DO CAPITAL / ADMINISTRAÇÃO E FISCALIZAÇÃO / APRECIAÇÃO ANUAL DA SITUAÇÃO DA SOCIEDADE / PUBLICIDADE DOS ACTOS SOCIAIS – SOCIEDADES ANÓNIMAS / CARACTERÍSTICAS E CONTRATO.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, Almedina, 2018, p. 329, 655-656;
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018, 5.ª edição, p. 397 e ss., 431 e ss.;
- António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Parte Geral, Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 2014, 4.ª edição, p. 580 e 583;
- Catarina Serra, Direito Comercial, Noções fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 157 e ss. ; Desdramatizando o afastamento da personalidade jurídica (e da autonomia patrimonial), Julgar, 2009, n.º 9, p. 111 e ss.;
- José Brandão Proença, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das obrigações em geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p. 1036;
- José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra, Almedina, 2018, 3.ª edição, p. 583;
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Volume II, Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 1983, p. 66-67 e 337;
- Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de Direto dos Contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 325;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II, Coimbra, Coimbra Editora, 1986, p. 8;
- Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 111 ; Volume II, Coimbra, Almedina, 2018, p. 339.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 9.º, N.º 1, ALÍNEAS G) E H), 20.º, ALÍNEA A), 25.º, 31.º, 35.º, 64.º, 70.º, N.º 1, 166.º, 167.º E 271.º.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 3.º.
CÓDIGO DE REGISTO COMERCIAL (CRCOM): - ARTIGO 3.º, N.º 1, ALÍNEA N).
CÓDIGO DO IMPOSTO SOBRE O RENDIMENTO DAS PESSOAS COLETIVAS (CIRC): - ARTIGOS 117.º, N.º 1, ALÍNEA C) E 121.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 26-03-2015, PROCESSO N.º 6500/07.4TBBRG.G2.S2, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-07-2016, PROCESSO N.º 377/09.2TBACB,L1.S1;
- DE 30-05-2019, PROCESSO N.º 156/16.0T8BCL.G1.S2, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. A realização de entrada em espécie é um acto de cumprimento que, tendo por objecto a disposição de bens, não deixa de estar sujeito ao regime das invalidades dos negócios jurídicos.

II. A ausência de um preceito legal específico não prejudica o recurso à fraude à lei como fundamento autónomo de ilicitude.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


                                       

I. RELATÓRIO



O Banco AA, S.A. (entretanto incorporado, por fusão, no Banco BB, S.A.[1], que assumiu a posição contratual daquele em todos os contratos e relações jurídicas geradores de direitos e obrigações, garantias reais ou especiais), instaurou acção declarativa sob forma comum contra CC, DD, EE - Imobiliária, S.A., FF, GG, HH, II e JJ, deduzindo os seguintes pedidos:

I – Ser declarada nula por simulação ou por fraude à lei a alienação através de entrada em espécie realizada pelo 1º R. a favor da 3ª R. no dia 30/11/2012 e, consequentemente, serem canceladas as inscrições prediais registadas pelas Apresentações:

a) Ap. 2950 de 2012/12/07 - relativa ao prédio n.º 846 de …, fracções “A”, “B”, “C”, “D”, “I”, “K”, “L”, ao prédio n.º 847 de …, fracção “K” e ao prédio n.º 335 de …, fracções “R”, “S”, “T” e “U”;

b) AP. 79 de 2012/12/17 – quando ao prédio n.º 166 de …, fracção “D”, 1º edifício[[2]];

II – Ser declarada nula por simulação ou por fraude à lei o contrato promessa com eficácia real do prédio descrito sob o n.º 753, da freguesia de … realizado pela 2ª R. a favor do 8º R. e, caso não seja cancelado oficiosamente até ao trânsito em julgado da sentença a proferir nestes autos, ser determinado o cancelamento do registo provisório do referido negócio jurídico, registado pela Ap. 3647 de 2012/03/16;

III – Ser declarada nulo por simulação ou por fraude à lei o contrato de doação da quota ideal de ½ do prédio n.º 846, fracção “H”, de …, realizada pelo 1º R. a favor da 4ª R e, consequentemente, o cancelamento da inscrição registral desse negócio, registada pela Ap. 24 de 22/8/2008;

IV – Ser declarada a oponibilidade das nulidades peticionadas nos pontos I e III do pedido aos sub adquirentes 5º, 6º e 7º Réus, e consequentemente:

a) Ser declarada nula a venda da fracção “I” do prédio n.º 846 de … ao 6º R. HH e, consequentemente, ser determinado o cancelamento da inscrição a seu favor registada pela Ap. 3096 de 27/10/2014;

b) Ser declarada nula a venda da fracção “K” do prédio n.º 847 de … ao 7º R. II e, consequentemente, ser determinado o cancelamento da inscrição a seu favor registada pela Ap. 1868, de 27/6/2014;

c) Ser declarada nula a venda da fracção “H” do prédio n.º 846 de … ao 5º R. GG e, consequentemente, ser determinado o cancelamento da inscrição a seu favor registada pela Ap. 4113, de 28/11/2014;

Subsidiariamente:

V - Ser declarado ineficaz face ao Autor o negócio jurídico de alienação dos prédios infra descrito, por meio de entrada em espécie do 1º R. a favor da 3ª R. registada pela AP. n.º 2950 de 2012/12/07, com a consequente restituição dos referidos bens nos termos do art. 616º n.º 1 C. Civil:

a) Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 846, fracção “A”;

b) Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 846, fracção “B”;

c) Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 846, fracção “C”;

d) Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 846, fracção “D”;

e) Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 846, fracção “K”;

f) Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 846, fracção “L”;

g) Prédio urbano sito em …, art. matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o n.º 335, fracção “R”;

h) Prédio urbano sito em …, art. matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o n.º 335, fracção “S”;

i) Prédio urbano sito em …, art. matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o n.º 335, fracção “T”;

j) Prédio urbano sito em …, art. matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o n.º 335 fracção “U”;

k) Prédio urbano sito em …, art. matricial 1126, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 166, fracção “D”, 1º edifício[3].


Em 11.02.2018, foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e declara-se nula por fraude à lei a alienação através de entrada em espécie realizada pelo 1º R. a favor da 3ª R. no dia 30/11/2012 e, consequentemente, serem canceladas as inscrições prediais registadas pelas Apresentações:

a) Ap. 2950 de 2012/12/07 - relativa ao prédio n.º 846 de …, fracções “A”, “B”, “C”, “D”, “I”, “K”, “L”, ao prédio n.º 847 de …, fracção “K” e ao prédio n.º 335 de …, fracções “R”, “S”, “T” e “U”;

b) AP. 79 de 2012/12/17 – quando ao prédio n.º 166 de …, fracção “D”;

Mais se declara nula por fraude à lei o contrato de doação da quota ideal de ½ do prédio n.º 846, fracção “H”, de …, realizada pelo 1º R. a favor da 4ª R e, consequentemente, o cancelamento da inscrição registral desse negócio, registada pela Ap. 24 de 22/8/2008;

Declara-se a oponibilidade das nulidades peticionadas nos pontos I e III do pedido aos sub adquirentes 5º, 6º e 7º Réus, e consequentemente:

a) Ser declarada nula a venda da fracção “I” do prédio n.º 846 de … ao 6º R. HH e, consequentemente, ser determinado o cancelamento da inscrição a seu favor registada pela Ap. 3096 de 27/10/2014;

b) Ser declarada nula a venda da fracção “K” do prédio n.º 847 de … ao 7º R. II e, consequentemente, ser determinado o cancelamento da inscrição a seu favor registada pela Ap. 1868, de 27/6/2014;

c) Ser declarada nula a venda da fracção “H” do prédio n.º 846 de … ao 5º R. GG e, consequentemente, ser determinado o cancelamento da inscrição a seu favor registada pela Ap. 4113, de 28/11/2014;

Decide-se ainda, julgar a presente acção improcedente por não provada quanto à 2ª Ré e ao 8ª Réu, absolvendo-os do pedido.

Custas a cargo dos 1º, 3º, 4º,5º e 6º Réus e do Autor na proporção 6/8 e 2/8.

Notifique e registe.


Em 28.03.2018, inconformados com a sentença, CC, EE - Imobiliária, S.A., FF, GG, HH e II interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.

Em 24.09.2018, foi proferido Acórdão contendo a seguinte decisão:

Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto, na parcial procedência do recurso de apelação interposto por CC, EE – Imobiliária, SA, FF, GG, HH e II acordam em julgar totalmente improcedente a reapreciação da decisão da matéria de facto e, no mais, em revogar parcialmente a decisão recorrida proferida em 11 de fevereiro de 2018 na parte em que se “declara nula por fraude à lei o contrato de doação da quota ideal de ½ do prédio n.º 846, fracção “H”, de …, realizada pelo 1º R. a favor da 4ª R e, consequentemente, o cancelamento da inscrição registral desse negócio, registada pela Ap. 24 de 22/8/2008” e ainda na parte em que se declarou a oponibilidade desta nulidade ao réu GG e, consequentemente, declarou nula a venda da fração “H” do prédio nº 846 descrito na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de … ao réu GG e, consequentemente, determinou o cancelamento da inscrição a seu favor registada pela Ap. 4113, de 28/11/2014, mantendo-se no mais a decisão recorrida”.


Ainda inconformados, vêm os réus / apelantes CC (1.º réu), EE - Imobiliária, S.A. (3.ª ré), FF (4.ª ré), GG (5.º réu), HH (6.º réu), II (7.º réu) interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça.

Alegam, no essencial, que o Acórdão recorrido padece de determinadas nulidades mencionadas no artigo 615.º do CPC bem como de erro de julgamento e pugnam, designadamente, pela revogação do Acórdão recorrido na parte em que mantém a declaração de nulidade por fraude à lei da alienação através de entrada em espécie realizada por CC a favor da EE – Imobiliária, SA. [4].

Formulam as conclusões, que numa versão graficamente reformulada, se transcrevem[5]:

“I

1.ª  A questão prévia invocada nos parágrafos 1 a 4 da fundamentação destas alegações, pela qual se tomou posição perante a "QUESTÃO PRÉVIA" aduzida por quem, até aí, era desconhecido nos autos como parte, apesar de, segundo o que aí alega, aquando do julgamento e da sentença, já ter assumido, em relação ao demandante BANCO AA, S.A. "a posição" deste "em todos os contratos e relações jurídicas geradoras de direitos e obrigações, garantias reais ou especiais" (sic).

2.ª  Porém, até essa data (e nem mesmo após ela) nunca os RECORRENTES foram notificados do que quer que seja e para o que quer que seja, sobre o que aí é alegado.

Assim, o que essa "QUESTÃO PRÉVIA" prova - pois o BANCO AA nunca disse o que quer que seja após a prolação da sentença, de que foi dela notificado e na veste de Autor esteve em julgamento - é que o DEMANDANTE, nesta acção, já não era titular do interesse que invocou nesta acção, e para o qual pediu tutela, quando foi feito o julgamento e proferida e notificada a sentença.

3.ª  Assim, de facto (ou materialmente) a instância está extinta (faltando o seu reconhecimento de direito, "in jus"). Essa extinção deverá ser declarada com efeitos a reportar ao início do julgamento, visto que o DEMANDANTE já não era titular do interesse cuja tutela pediu, não só por aquilo que o autor da "Questão Prévia" veio dizer, como pelo facto de nunca mais ter (o referido DEMANDANTE) praticado qualquer acto, a partir do recebimento da sentença.

4.ª    Por isso pela manifesta falta de interesse em agir - ou, então, por ser parte ilegítima - do BANCO BB, a instância deve ser declarada extinta por deserção do DEMANDANTE, ou, então, por ser impossível a lide (art.ºs 130.º e 277.º, c) do C.P.C. ou art.º 30.º, 1 e 2 e 277.º, e) do ref. Código).

II

5.ª    Pelas razões sócio-económicas e constitucionais invocadas nos parágrafos 5 a 23 destas alegações, o presente recurso deve ser admitido, pois é necessária a consideração das numerosas questões suscitadas, para que o direito, em casos da espécie, siga as luzes da justiça.

III

6.ª   Na senda da doutrina sufragada por este SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, em acórdão de 27.12.21994, no Proc.º N.º 86057, que, em conclusão, declarou que "o direito não está nem na norma nem no caso, mas sim na relação mútua", pois "apenas na solução concreta há direito, pelo que, consequentemente, a solução-decisão é a norma do caso, nesta parte evidencia-se a matéria de facto que as instâncias julgaram provada, como prius da crítica subsequente (em que se procura evidenciar com bem mais "largura", o direito com que o caso dialoga na procura da justa decisão), seguida das transcrições dos dispositivos da 1.ª e da 2.ª Instâncias.

7.ª        Os factos que o Tribunal de 1.ª Instância julgou provados foram os seguintes:

1. O Autor é uma instituição bancária, cuja actividade consiste na realização de operações bancárias e financeiras com a latitude consentida por lei aos bancos de investimento.

2. No âmbito da sua actividade, o A. estabeleceu uma relação comercial com os 1º e 2º RR.

3. Nesse contexto, no dia 27 de Junho de 2007 foi exarada uma escritura pública de mútuo com constituição de hipoteca, através da qual o A. emprestou aos RR. DD e CC a quantia de € 383.350,00 (trezentos e oitenta e três mil trezentos e cinquenta euros).

4. Ficou convencionado entre as partes que os Executados reembolsariam o A. da quantia mutuada no prazo de 360 meses, mediante pagamento do mesmo número de prestações mensais e sucessivas de capital e juros à taxa nominal anual igual à soma do indexante (Euribor a 6 meses) com o “spread” de 0,5%, arredondada à milésima, inicialmente fixada em 4,755%, correspondendo uma taxa anual efectiva de 5,719%.

5. Mais tendo sido estipulado que a primeira prestação vencer-se-ia no primeiro mês após a outorga da escritura, ou seja, em Julho de 2007 e que, em caso de mora dos mutuários, seria acrescida à taxa de juro em vigor a título de cláusula penal, uma sobretaxa de 4%.

6. Em garantia do bom pagamento da quantia mutuada, juros, despesas judiciais e extrajudiciais que o mutuante A. houvesse de fazer para se ressarcir do seu crédito, as quais tão-somente para efeitos de registo se computaram em € 15.334,00, até ao montante máximo assegurado de € 559.691,00, constituíram o 1º e 2º R. hipoteca voluntária sobre o prédio urbano sito na Rua …, n.º s 202 a 206, freguesia do …, concelho do …, descrito na primeira conservatória do registo predial do … sob o n.º 828/…, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 9902 .

7. Em 27/10/2008, os referidos RR. deixaram de efectuar o pagamento das prestações a que se tinham comprometido, pagamento esse que não retomaram.

8. O A. começou por interpelar verbalmente os RR. DD e CC para cumprimento das obrigações que assumiram, sem sucesso.

9. O A. requereu a tutela judicial através da instauração de uma acção executiva contra os 1º e 2º RR. Em 31.03.2011.

10. Antes de instaurar a acção, o A. ainda procurou interpelar novamente os referidos RR., por cartas registadas datadas de 31/01/2011, as quais foram devolvidas com a menção “não reclamado”.

11. A carta foi remetida para a morada que os RR. Mutuários forneceram ao A. para quaisquer contactos escritos.

12. À data da instauração da acção executiva o crédito do A. sobre os RR. Mutuários ascendia aos €410.707,64 (quatrocentos e dez mil setecentos e sete euros e sessenta e quatro cêntimos).

13. À data da instauração da acção executiva os RR. ali demandados eram ainda devedores da quantia de €352,69 relativamente a um descoberto existente na conta de depósitos à ordem .

14. O processo executivo prosseguiu com a citação prévia dos RR. em questão, tendo o R. CC sido citado em 10/5/2011 e a R. DD em 12/5/2011.

15. Os RR. ali Executados não deduziram oposição à execução.

16. O Agente de Execução promoveu pesquisas de bens em nome dos executados no mês de Setembro de 2011, tendo sido encontrados os seguintes bens em seus nomes (...)

17. A penhora iniciou-se pelo bem hipotecado.

18. Face ao valor patrimonial do imóvel hipotecado à data da penhora, era de €240.223,51.

19. Após a notificação aos ali Executados da realização da penhora, o 1º R. apresentou um requerimento aos autos no qual comunicava que, sobre o prédio em crise, incidia um direito de uso e habitação registado a favor da mãe dos RR. DD e CC, KK (5ª R.).

20. Os funcionários do Réu que directamente intervieram na fase negocial e preparatória do empréstimo desconheciam que os pais dos RR. DD e CC – reservaram para si os aludidos direitos de uso e habitação.

21. Aquando da recolha dos elementos documentais do prédio para efeitos de análise e preparação do empréstimo, foi fornecida uma certidão do registo predial, emitida pela 1ª Conservatória do Registo Predial do …

22. Desse documento não constava qualquer registo do direito de uso invocado pelo R. CC no processo executivo.

23. Da ficha predial constava apenas a aquisição a favor dos RR. DD e CC, na proporção de ½ para cada, e uma hipoteca a favor de uma instituição bancária.

24. De resto, se o conhecessem, tão-pouco esse prédio seria aceite como garantia da operação.

25. O Autor reagiu ao requerimento com a junção aos autos de um requerimento no qual alegava a inexistência de qualquer registo do direito de uso.

26. O R. CC juntou uma certidão predial da qual constava inscrito o invocado direito de uso e habitação, pela Ap. 5 de 15/01/1992.

27. Na sequência desse requerimento, o Tribunal considerou que o direito de uso e habitação era oponível à execução.

28. O Agente de Execução voltou a realizar pesquisas de bens penhoráveis, face ao lapso temporal decorrido desde as últimas pesquisas.

29. Na sequência das novas pesquisas de bens veio a verificar-se que, após a citação dos ali Executados DD e CC, estes RR. procederam a uma série de alienações de bens.

30. No dia 24/4/2014, o Autor foi notificado do resultado das pesquisas patrimoniais, das quais resultava que, dos quinze imóveis inicialmente existentes em nome dos Executados CC e DD, apenas subsistiam em nome da segunda – e apenas metade indivisa - os seguintes três (...)

31. Todos os imóveis em nome do 1º R. à data da realização das primeiras pesquisas de bens - sem excepção - haviam sido por este transmitidos favor da 3ª R. EE - IMOBILIÁRIA S.A., a título de entrada em espécie.

32. No dia 30 de Novembro de 2012, no Cartório Notarial da Sr.ª Dr.ª LL, foi outorgada a escritura pública de constituição da sociedade comercial com a firma “EE - IMOBILIÁRIA, S.A..”.

33. Nesse acto intervieram, como outorgantes, o R. CC, a R. FF, seu cônjuge, KK, sua mãe, MM, sua sogra e NN, que com esta reside na Rua da …, Praceta …, n.º …, entrada 10, Ap. 4.2, …

34. A sociedade 3ª R. foi constituída com o capital social de €150.000,00, cabendo ao R. CC uma participação social de €145.000,00, a R. FF €4.000,00, a mãe do R. KK com uma participação de €250,00, a sogra do 1º R. com acções no valor nominal de €500,00 e o sócio NN com uma participação de €250,00.

35. Foi designada administradora única da sociedade a 4ª R. FF, que permanece em funções até hoje.

36. A entrada no capital social do R. CC foi integralmente realizada em espécie com os 13 imóveis que haviam sido identificados em seu nome em sede executiva, quais sejam (...).

37. Após esta transmissão a favor da 3ª R., o R. CC ficou sem quaisquer bens penhoráveis, além do hipotecado, por cujo valor o A. se pudesse ressarcir pelo seu crédito.

38. No dia 16/3/2012, foi registado um contrato-promessa com eficácia real relativamente ao prédio n.º 753, da freguesia de ….

39. O imóvel em crise encontrava-se entre os bens encontrados em nome da R. DD na primeira pesquisa de bens realizada pelo Agente de Execução.

40. Já após a sua citação para a acção executiva, a R. DD veio a registar um contrato-promessa com eficácia real a favor do R. JJ.

41. Nesta data, o registo da alienação já caducou.

42. No dia 22/8/2008, foi registada pela Ap. 24 a doação quota ideal de ½ do prédio 846-H, de …, pertencente ao R. CC, a favor da R. FF, sua mulher

43. Nesse propósito, e conforme já se alegou supra, a R. Fátima revendeu a fracção “H” do prédio n.º 846 de … ao R. GG,

44. negócio que foi registado pela Ap. 4113, de 28/11/2014.

45. Através da sociedade R. EE, S.A., foram alienadas as fracções “I” do prédio n.º 846 de … e a fracção “K” do prédio n.º 847 da mesma freguesia, transmitindo-se respectivamente a favor dos RR. HH (em 27/10/2014) e II (em 27/6/2014).

46. Tais alienações foram registadas pela Ap. 3096 de 27/10/2014 e pela Ap. 1868, de 27/6/2014 .

46. O registo da acção foi efectuado em 14/07/2015.

47. O Ddo CC propôs e sugeriu acordo do Demandante.

8.ª     E no dispositivo foi decidido assim:

Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e declara-se nula por fraude à lei a alienação através de entrada em espécie realizada pelo 1º R. a favor da 3ª R. no dia 30/11/2012 e, consequentemente, serem canceladas as inscrições prediais registadas pelas Apresentações:

a) Ap. 2950 de 2012/12/07 - relativa ao prédio n.º 846 de …, fracções “A”, “B”, “C”, “D”, “I”, “K”, “L”, ao prédio n.º 847 de …, fracção “K” e ao prédio n.º 335 de …s, fracções “R”, “S”, “T” e “U”;

b) AP. 79 de 2012/12/17 – quando ao prédio n.º 166 de …, fracção “D”;

Mais se declara nula por fraude à lei o contrato de doação da quota ideal de ½ do prédio n.º 846, fracção “H”, de …, realizada pelo 1º R. a favor da 4ª R e, consequentemente, o cancelamento da inscrição registral desse negócio, registada pela Ap. 24 de 22/8/2008;

Declara-se a oponibilidade das nulidades peticionadas nos pontos I e III do pedido aos sub adquirentes 5º, 6º e 7º Réus, e consequentemente:

a) Ser declarada nula a venda da fracção “I” do prédio n.º 846 de … ao 6º R. HH e, consequentemente, ser determinado o cancelamento da inscrição a seu favor registada pela Ap. 3096 de 27/10/2014;

b) Ser declarada nula a venda da fracção “K” do prédio n.º 847 de … ao 7º R. II e, consequentemente, ser determinado o cancelamento da inscrição a seu favor registada pela Ap. 1868, de 27/6/2014;

c) Ser declarada nula a venda da fracção “H” do prédio n.º 846 de … ao 5º R. GG e, consequentemente, ser determinado o cancelamento da inscrição a seu favor registada pela Ap. 4113, de 28/11/2014;

Decide-se ainda, julgar a presente acção improcedente por não provada quanto à 2ª Ré e ao 8ª Réu, absolvendo-os do pedido.

9.ª     Não tendo "tocado" na factualidade julgada provada, como se colhe do dispositivo que, já a seguir, se transcreve, o Tribunal recorrido fundamentou assim a sua decisão:

No contexto que se acaba de enunciar que fez o réu Célio?

Em 30 de Novembro de 2012 constituiu uma sociedade anónima, subscrevendo em espécie mais de noventa e seis por cento do seu capital social (96,666 ao infinito), subscrevendo sua esposa pouco mais de dois e meio por cento do mesmo capital (2,666 ao infinito), cabendo aos restantes sócios uma fracção residual do mesmo capital social (veja-se o ponto 3.2.1.34 dos factos provados). A subscrição do capital por parte do réu CC foi feita em espécie (veja-se o artigo 28.º do Código das Sociedades Comerciais), entrando para tal efeito com todos os bens imóveis que em Setembro de 2011 o agente de execução havia localizado em sede de pesquisa de bens realizada no âmbito da acção executiva instaurada em 31 de março de 2011 (ponto 3.2.1.36 dos factos provados).

Ao dispor de todos os seus bens imóveis que não o que se achava penhorado no âmbito da acção executiva, utilizando-os para integrar a sua entrada em espécie em sociedade anónima de que detém mais de noventa e seis por cento do capital social, volvidos alguns meses sobre a data em que teve conhecimento da efectivação da aludida penhora, só se pode concluir que o réu CC agiu de forma determinada, intencional e com o objectivo de subtrair à garantia patrimonial do aqui autor os referidos bens, bem sabendo que o bem imóvel hipotecado era manifestamente insuficiente para permitir a satisfação do crédito exequendo.

Pelo exposto, em face dos factos objectivos provados, atenta a normalidade das condutas expectáveis num certo quadro de relação negocial, infere-se necessariamente que o réu CC agiu dolosamente quando realizou, em espécie, a sua entrada no capital social da sociedade que constituiu em 30 de Novembro de 2012, para tanto mobilizando a totalidade dos bens imóveis que haviam sido localizados na sua titularidade em sede de diligências prévias à penhora no âmbito da acção executiva contra si instaurada em 31 de março de 2011, agindo com o objectivo de obstar à penhora de tais bens para realização coerciva do crédito exequendo.

E nem, a circunstância de o réu CC ter tentado um acordo com o autor (veja-se o ponto 3.2.1.47 dos factos provados) descaracteriza este propósito, pois que se tal tentativa se iniciou antes das aludidas entrada em espécie, tratar-se-á na realidade de um expediente para distrair o credor do que se estava a passar (criar uma cortina de fumo) e se acaso se processou após a prática de tais factos, será um expediente típico para pressionar o credor face ao facto consumado, atenta a incerteza das lides judiciais e a demora na resolução dos litígios judiciais.

Porém, esta inferência de dolo do réu CC quanto às entradas em espécie realizadas em 30 de Novembro de 2012, não tem base de sustentação quanto à doação do réu CC de 1/2 da fracção 846-H da Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de …, do prédio inscrito na matriz sob o artigo 2157, a favor da ré FF, sua mulher e cuja inscrição de aquisição data de 22 de agosto de 2008 (veja-se o ponto 3.2.1.42 dos factos provados), algum tempo antes ainda do incumprimento do contrato de mútuo.

Na realidade, nesta data, antes ainda do incumprimento do contrato de mútuo, ao contrário do que concluiu o tribunal recorrido, não é possível inferir um propósito de dissipação de bens por parte do réu CC com o fim de obstar à realização coerciva do crédito do autor e nem sequer configurar os pressupostos objectivos da fraude à lei.

Por outro lado, quando ocorre a transmissão a favor do réu GG (já em 2014 - vejam-se os pontos 3.2.1.43 e 3.2.1.44 dos factos provados), numa altura em que pendia já a acção executiva contra os réus CC e DD e em que a esposa do réu CC já havia sido citada no âmbito da ação executiva, mas sem se perceber a que título, pois que no requerimento inicial não foi requerida a sua citação, nem sequer para os efeitos do artigo 825.º do Código de Processo Civil, na redação que então vigorava. Anote-se que os dados registrais dos autos (folhas 266 a 270) apontam claramente no sentido de a metade indivisa da fracção "H" do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de … adquirida pelo réu CC em solteiro e posteriormente, já no estado de casado, doada à sua então esposa, a ré FF, ser um bem próprio do réu CC.

Por isso, nesta parte, o recurso procede, mantendo-se em tudo o mais a decisão recorrida.

As custas da acção e do recurso são da responsabilidade dos recorrentes que não obtiveram ganho de causa (todos os réus, com exceção dos que foram já absolvidos do pedido por decisão transmitida em julgado - a segunda ré e o oitavo réu - a que acrescem por força da decisão deste recurso os réus FF e GG) e do recorrido, na exata proporção do decaimento e que corresponde ao preço da transmissão realizada pelo preço de quarenta mil euros (folhas 543 deste autos).

IV

10.ª     Sendo os factos o "prius" lógico de uma decisão justa, como vem demonstrado, mormente desde Platão (e, provavelmente desde Sócrates), a VERDADE - dos FACTOS - é o elemento primevo da JUSTIÇA. E por isso, não fossem a Verdade e a Justiça coisa muito séria da vida comunitária (entre os homens e estes e a natureza), quando "predicadas" de formal (verdade formal, justiça formal...), estas afirmações seriam levadas à conta, quando proferidas, de desinteressantes "blagues". (Infelizmente, essas coisas - ideais - desinteressantes continuam por "aí à solta"...)

11.ª    Como não vamos por aí (pois no palco da tragédia não afivelamos tal máscara - respeitando a sagrada lição do insuperável MESTRE), aqui se destacam, como primeira consideração, os princípios lógicos do pensamento racional, como instrumento de análise crítica, cuja observância neste recurso - já que antes o não foram -, é de todo indispensável, mormente os princípios da identidade, não-contradição e meio excluído - no que têm de orientação congruente do pensamento com o próprio e no entendimento comum, que assim tornam os juízos racionais, bem como, entre os princípios que orientam o pensamento com as coisas concretas - o princípio da razão suficiente.

12.ª     Nos caminhos por que se procura a verdade, e na análise do que se oferece ao sujeito cognoscente - que, "in jus", é o juiz -, a fim de ser percebido (não determinado) o seu ser, é necessário ter em conta que uma coisa é o que é, não podendo tornar-se negação de si própria (princípio da identidade); não pode ao mesmo tempo ser e não ser (princípio da não-contradição); e que, se duas proposições contraditórias uma é verdadeira, a outra é necessariamente falsa (princípio de meio excluído).

13.ª     Estes postulados racionais - que asseguram a coerência que a razão postula - nem sempre são suficientes na captação do dado (como se percebe nas ciências experimentais), implicando (quando não estão em causa factos "naturais" - p. ex., mecânicos, químicos, biológicos...) a consideração do princípio da razão suficiente na "recolha" desses elementos, o qual nos diz que nada acontece, nada existe, sem que uma causa ou razão determinante torne a sua existência inteligível.

Este princípio tem uma função relevante quando se procura a explicação da razão - razão-motivo - de um comportamento, mas não pode entrar em choque com os princípios da identidade, da não-contradição e de meio excluído.

Havendo esse choque algo está errado. E, então, poderemos ter, quando isso acontece, uma questão epistemológica (questão que nunca deverá fugir do "horizonte cognitivo"), em que a "razão suficiente" procura a evidência-verdade, trilhando os caminhos do fundacionalismo e/ou coerentismo, no contexto em que o caso se desenrolou.

14.ª    Agir com justiça mais não é que realização de uma virtude moral. Fazer justiça é cumprir esse mandamento moral. A justiça é assim um dos principais fundamentos entre (p. ex., o Bem - que é simultaneamente causa-final) aqueles que dão corpo à Ética. Como sem VERDADE a Justiça é uma impossibilidade, nunca qualquer desculpa (de fim político, económico, social...) serve (justifica) o dever de afastar a procura da verdade (que será sempre pretexto para ceder à pragmática).

É por isso que JUSTIÇA-VIRTUDE nunca desculpará a Justiça-aparelho-de-poder, quando esta se escuda em princípios da "livre apreciação", salvo no que ela significa "livre de quaisquer constrangimentos", presunções, preclusões, ficções e demais formas de postergar a VERDADE.

15.ª    Fora do esparso quadro traçado, os tribunais não cumprem os comandos decorrentes, desde logo, dos mais densos princípios e valores que os art.ºs 1.º e 2.º da Constituição acolhem. E, sucessivamente, como se procurou evidenciar na fundamentação, o disposto nos art.ºs 3.º, 20.º, 1 e 2, 202.º, 1 e 2, 204.º e 205.º, 1 também da Constituição.

Sendo esta a perspectiva que os ora Recorrentes colocam as coisas, é por ela (reconhecendo que têm a limitação de serem parte e que não têm o difícil cargo de ajuizar e decidir), por essa perspectiva, que se continua o esforço (de constitucionalidade duvidosa, pois epistemologicamente redutor) de sintetizar o que tanto custou a demonstrar (tentativa de demonstrar).

16.ª     É a estas "luzes" que, contra o corte epistemológico feito pelo legislador, que "impõe" aos tribunais de 1.ª instância um entendimento próximo do que aqui se sufraga, e que, no que toca aos tribunais superiores, pretende transformá-los em "juízos-da-confirmação", devem ser interpretados os princípios normativos consignados nos art.ºs 615.º, 616.º, 674.º, 1, c) e 3 e 682.º 2 e 3 do C.P.C..

É que, se é verdade que a lei é elemento por que (também) se forma o direito, mormente o direito de cada caso concreto, não é menos verdade que não é na norma (escrita na lei) - como não é no caso - que o direito se situa, pois "apenas na solução concreta há direito".

Isto significa que o direito do caso é o direito que o tribunal declara - pois o direito do caso não foi pré-dado, não foi dado antes do caso acontecer, na norma (da lei).

Por isso aos tribunais compete dizer o direito do caso, declarar o direito de cada caso, como incontornável competência própria.

V

17.ª     As decisões recorridas cometeram nulidades na determinação da matéria de facto, nos dispositivos

- Da fundamentação de facto

18.ª    Tendo-se em conta que o BANCO AA, para garantia do empréstimo de 383.3650 euros, referido no ponto 1 da fundamentação de facto, considerou bastante a constituição de uma hipoteca sobre o prédio identificado no ponto 6 dessa fundamentação, até ao "montante assegurado de €559.691,00" - que, de harmonia com as regras bancárias, terá avaliado, primeiro, esse prédio, por esse valor, não tem sentido que no ponto 16 o Tribunal tenha julgado provado que o valor do prédio estava reduzido ao seu valor patrimonial de 240.223,51€, sem ter ordenado a sua avaliação, quando se sabe que era corrente os prédios estarem avaliados fiscalmente por pouco mais de 1/4 ou 1/3 do seu efectivo valor.

Por isso, ao abrigo do disposto nos art.ºs 411.º e 6.º, 1, parte final do C.P.C. o Tribunal deveria ter ordenado a avaliação pericial do prédio.

Essa omissão consubstancia uma nulidade insanável, nos termos do art.º 195.º, 1 do C.P.C. pois o juiz não pode julgar provado um dado facto, sem esgotar a produção dos meios de prova pertinentes. Que, neste caso, era a prova pericial.

O facto do ponto 16 deverá ser objecto de prova pericial ou ser eliminado da fundamentação de facto.

19.ª      Por seu lado, os factos dos pontos 20 a 27, mormente o do ponto 27, só podem ser provados por documentos (art.º 364.º do C.C.), pois até importaria apurar, com clareza, onde estava a causa da discrepância - se é que existe - e quem lhe deu causa, o que poderá implicar a responsabilidade de outras pessoas. É que, a existir essa discrepância entre certidões registrais, estaremos na presença de falsidade de documento, por dolo ou negligência.

Consequentemente, os factos dos pontos 20 a 27 da fundamentação de facto deverão ser objecto de pertinente prova documental ou deverão ser eliminados da fundamentação de facto.

20.ª     Pela forma vaga e conclusiva da formulação, sem préstimo para ser facto material do corpo fáctico de um caso jurídico, o facto do artigo 29 da fundamentação de facto deverá ser eliminado.

21.ª  Nos pontos 31, 36, 37 e 34 da fundamentação foi, respectivamente, julgado provado que:

- "Todos os imóveis em nome do 1.º R. à data da realização das primeiras pesquisas de bens - sem excepção - haviam sido por este transmitidos a favor da 3.ª R. EE - IMOBILIÁRIA, S.A., a título de entrada em espécie" (31).

- "A entrada no capital social do R. CC foi integralmente realizada em espécie com os 13 imóveis (fracções urbanas com o valor de 145.000€) que haviam sido identificados em sede executiva (segue-se a identificação) (36).

- "Após esta transmissão a favor da 3.ª R., o R. CC ficou sem quaisquer bens penhoráveis, além do hipotecado, por cujo valor o A. se pudesse ressarcir do seu crédito" (o sub. é do subscritor). (37)

- "A sociedade 3.ª R. foi constituída com o capital social de €150.000€, cabendo ao R. CC uma participação social de €145.000 (...)" - sub. nosso (34).

Abstraindo a forma da descrição dos factos, na sequência da petição, fica uma cabal, ostensiva, inexplicável violação dos princípios por que se organiza o pensamento racional, pois nenhuma explicação foi dada pelas instâncias pela, pelo visto, impenhorabilidade de 96,666% do capital social da sociedade que, agora, é dona dos imóveis que lhe foram entregues como entrada de capital, contra a entrega, por parte da sociedade, dos títulos que representam aquela participação de 96,666%.

Ora, se a participação social referida no ponto 34 da fundamentação de facto não tem a natureza de "bens penhoráveis", com "valor (para) o A. se pudesse ressarcir pelo seu crédito", então também valor não tinham os bens transmitidos "a título de entrada em espécie".

Pelos já expostos princípios da identidade, não-contradição e meio excluído, a forma como os factos foram descritos nos pontos 31, 36, 37 e 34 da fundamentação de facto, é uma forma equívoca na determinação da identidade de cada facto, e forma um conjunto de juízos logicamente irregulares, porque incoerentes, em face do princípio da não-contradição, mormente o facto do ponto 37, onde se diz que "o R. CC ficou sem quaisquer bens penhoráveis", quando dos pontos anteriores resulta que ele é titular de 96,666% do capital da sociedade dona dessas fracções.

À luz do princípio da "razão suficiente", o descrito no ponto 37 carece de fundamento, pois não foi - nem podia ter sido - alegado nem provado que tivessem sido dissipados bens da sociedade.

Os factos dos pontos 31, 34 e 36 da fundamentação de facto devem ser alterados porque comportam formulação equívoca.

E o facto do ponto 37, porque contraditório com aqueles, e com clara falta de fundamento, deve ser eliminado. Porque é falso.

- Do dispositivo (pedidos)

22.ª      No essencial, e no que respeita a este recurso, o BANCO AA pediu que a acção fosse julgada procedente, "e por via dela", em clara e expressa forma alternativa, "Ser declarada nula por simulação ou por fraude à lei a alienação através de entrada em espécie realizada pelo 1.º R. a favor da 3.ª"(...), e, "Subsidiariamente", "Ser declarado ineficaz face ao Autor o negócio jurídico de alienação dos prédios (...)".

No dispositivo o Tribunal de 1.ª Instância disse: "julga-se a acção parcialmente procedente e declara-se nula por fraude à lei a alienação através de entrada em espécie realizada pelo 1.º R. a favor da 3.ª R. no dia 30/11/12 (...)".

Ora, os pedidos alternativos só são permitidos quando estão em causa obrigações alternativas, e o pedido subsidiário, com o qual se pretende inibir a eficácia de um negócio jurídico contra o Autor, pela via da impugnação pauliana, só é admissível, sob pena de ostensiva contradição, quanto pressupõe os mesmos factos do pedido principal, mas dos quais resultam dúvidas quanto ao pedido pertinente. Ora, aos factos de um negócio inválido, ferido de nulidade, não cabe a impugnação pauliana que supõe um negócio válido.

O processo é assim integralmente nulo, porque viola o disposto nos art.ºs 553.º, 554.º e 185.º, 1, 2, c) e 4 do C.P.C.

E a instância deverá ser assim extinta pelas razões já aduzidas - de deserção da instância ou impossibilidade da lide (art.º 278.º, c) e) do referido C.P.C.

23.ª    Por seu lado, o acórdão recorrido reza assim:

"Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto, na parcial procedência do recurso de apelação interposto por (CC..., EE..., FF..., GG..., HH..., II...) acordam em julgar totalmente improcedente a reapreciação da decisão da matéria de facto e, no mais, revogar parcialmente (...)".

Esta decisão não é de fácil inteligência para pessoas de bom nível cultural, mas não iniciadas nas coisas do direito. E, para pessoas de modesto nível cultural, é certamente inintelegível.

Assim, não é norma ou comando jurídico de um caso concreto da vida de relação, apesar de repetir um modo de decidir, cujo número não tem conta, nos nossos tribunais - e quiçá por esse mundo de Deus.

Por isso o acórdão recorrido é nulo violando o disposto na 2.ª parte da al. c) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C. que diz que "É nula a sentença", quando "ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão inteligível", aplicável por força do art.º 666.º do mesmo Código, pois a inteligibilidade que a norma supõe respeita aos destinatários da decisão e não aos que cultivam profissionalmente os conhecimentos e saberes jurídicos.

VI

24.ª    E como o facto é o "prius" e a norma é o "posteriorus", não pode ser esquecido que o facto decisivo foi o gravemente errado julgamento de que o recorrente CC, ao transmitir as fracções urbanas que possuía para a recorrente EE, (na qual ficou detentor de uma participação social de 96,666% do capital social desta sociedade, não tendo sido alegado - nem podia ter sido - nem provado que o património desta sociedade tivesse sido dissipado, nem alienado o que quer que fosse do seu activo imobilizado), ficaria "sem quaisquer bens penhoráveis", "por cujo valor o A. se pudesse ressarcir pelo seu crédito" (subl.).

O Tribunal não explicou - nem podia porque não alegado - porque razão, em tal situação, a participação social do recorrente CC não era bem penhorável. E porque razão essa participação não era penhorável e mesmo arrestável, nomeadamente porque não tinha qualquer valor.

Por ter assentado num facto falso - que é o constante do ponto 37 da fundamentação de facto - este recurso deverá ser julgado procedente, por falta do facto que integra a hipótese legal em que se terá fundado o Tribunal, revogando-se as decisões recorridas.

25.ª     As decisões recorridas deverão ainda ser revogadas por outras razões.

26.ª     Como resulta dos factos constantes dos pontos 31, 34 e 36 - e sendo falso o provado sob o ponto 37 -, o cumprimento da obrigação de entrada para a formação do capital social de uma sociedade, em si, não altera a situação patrimonial do devedor, seja essa entrada em espécie ou em dinheiro. A natureza do seu activo altera-se, mas a sua expressão (totalidade) mantém-se, assim como a situação líquida desse património.

Por outro lado, nos termos da lei, esses actos - mesmo quando a entrada é em espécie - são devidamente publicitados quer nos termos da lei civil e comercial e registral, quando ao negócio de subscrição de uma participação societária, a que acresce a publicação do contrato de sociedade.

Ora, não havendo qualquer acto que ponha em causa tal publicidade, é ostensivamente manifesto que, de tal acto, não resulta qualquer intenção de lesar alguém, em termos de efectivação de responsabilidade civil decorrente de outros actos, nem quebra de garantias de cumprimento.

Por esta razão, também as decisões recorridas deverão ser revogadas, pois o caso não se integra nas normas em que se fundaram.

27.ª    A decisão recorrida tem por base um facto que respeita ao cumprimento de uma obrigação de entrada em espécie. Tal facto, em si, não tem autonomia jurídica.

Qualquer vício da vontade (em sentido lato) teria que ser sempre reportado ao contrato de sociedade. O cumprimento da obrigação de entrada é uma parte do cumprimento do que foi contratado, sento até parte específica desse contrato, pois não era obrigação fungível (era aquela e não outra qualquer). O cumprimento do contrato tem semelhanças com o contrato de permuta.

A haver vícios da vontade, que implicassem nulidades, era o contrato de sociedade que, no todo ou em parte, teria de ser posto em causa. E com a presença, na acção, de todas as partes contratantes no contrato de sociedade. Na verdade, nos negócios jurídicos bilaterais, maxime nos contratos, não há nulidades praticadas por uma só pessoa. E, por outro lado, a personalidade jurídica da sociedade não extingue o contrato de execução continuada que o contrato é. E como estaria em causa o contrato, enquanto negócio jurídico, e não como relação contratual, daí decorrem específicas consequências, nomeadamente, e no caso dos autos, a insolvência da sociedade, com reflexos nos interesses dos que se relacionam com a sociedade, nomeadamente trabalhadores, fornecedores, clientes, Estado e outros.

28.ª     Do esparsamente descrito na conclusão imediatamente precedente resultam consequências de facto e de direito relevantíssimas, nomeadamente para terceiros, alheios e desconhecedores desta acção, que podem ser gravemente lesados, porque, nas decisões recorridas, foram postergadas os significados de alguns elementos jurídicos, dos quais decorreria o bom juízo e boa decisão da presente acção - como é o caso de se chamar alienação ao cumprimento de uma obrigação de entrada.

Assim:

29.ª    Na petição inicial, e nas decisões, foi alegado e assim julgado provado que a dita "alienação através da entrada em espécie realizada pelo 1.º R. a favor da 3.ª R. (a sociedade) era um negócio jurídico, celebrado entre dois sujeitos de direito, com as pertinentes capacidades jurídicas de gozo e exercício.

Tudo isto está erradamente julgado.

A "alienação através de entrada" é mero elemento do contrato de sociedade que foi celebrado por cinco pessoas - o CC e mais quatro pessoas.

Assim, a transmissão do direito de propriedade das fracções urbanas em causa é mero acto de cumprimento da obrigação de entrada em espécie - e não em coisa fungível - e não um contrato (ou qualquer outro modo de transmissão do direito de propriedade) que tivesse essas fracções como seu objecto mediato.

Por isso a obrigação de entrada é correlativa do direito aos títulos de participação no capital social da sociedade, que só podem ser emitidos por esta, e após lhe ser atribuída a personalidade jurídica.

Por isso a dita alienação não é mais que cumprimento de uma obrigação em contrato de sociedade. E por isso esse cumprimento não pode enfermar de qualquer vício enquanto tal, mas, sim, e em abstracto, o contrato de sociedade, mas cuja validade não foi posta em causa.

A relação material controvertida só poderia assim situar-se, quanto ao objecto, no contrato de sociedade, e, quanto aos sujeitos, nas partes outorgantes desse contrato - o demandado CC e os outros contratantes da sociedade - e não nos demandados CC e a sociedade EE -, pois o contrato de sociedade não se extingue com o reconhecimento da personalidade jurídica da sociedade.

Foram assim violadas as disposições dos art.ºs 3.º, 1 e 33.º do C.P.C., art.º 20.º, 1 e 4 da Constituição e art.º 26.º da Lei n.º 62/2013, de 26.8, e art.º 217.º e 224.º e 280.º do C.C.

Mesmo por esta perspectiva a sentença deve ser revogada.

30.ª    Em perspectiva prática esta acção destrói a demandada EE. Pois foi intentada, e assim decidida, como se tivesse havido um negócio semelhante à compra e venda. E, assim, com a nulidade declarada as coisas voltavam ao princípio: as fracções urbanas ao demandado CC, e a contrapartida, por este recebida, regressava à sociedade. E no caso do CC nada ter recebido, nada teria de restituir. Em ambas as hipóteses, mantinha-se incólume a situação patrimonial líquida de ambas as partes.

Só que as coisas não são assim.

Com a nulidade do negócio, a sociedade fica desapropriada de um activo, que se constituiu no momento em que adquiriu personalidade jurídica, reduzindo-se o seu capital social na medida do valor atribuído a essa entrada, que é coisa bem diferente a uma eventual aquisição - a título oneroso ou gratuito - após a aquisição da personalidade jurídica.

É por isso que, após o registo definitivo da sociedade, a nulidade do contrato só pode ser ter como base as causas previstas no art.º 42.º do C.S.C..

E como o cumprimento da obrigação da entrada não teve a sociedade como parte correlativa, os eventuais vícios desse cumprimento seriam vícios do contrato, a dirimir contra todos os outorgantes.

Contudo, por força do disposto no art.º 42.º referido, tal acção não podia ser deduzida contra a sociedade, que ainda não existia.

Por outro lado, atento o facto em que a acção se funda - que é o facto fundador da sociedade - e as consequências da procedência - a insolvência da sociedade, que assim põe em causa a satisfação de direitos contra a sociedade, de trabalhadores, fornecedores, clientes, Estado e sócios -, o processo não poderia seguir sem termos - mormente após a fase dos articulados -, sem estar registada a acção nele deduzida, para que os ora referidos relacionados com a sociedade pudessem defender os seus interesses.

A admissão desta acção, o seu prosseguimento sem registo no registo comercial e as decisões proferidas, agora por esta perspectiva, e por esta ordem, violaram o disposto nos art.ºs 64.º e 31.º e segts. do C.S.C.; art.º 35.º do C.S.C. e art.º 3.º do CIRE; art.ºs 70.º, 1, 166.º e 167.º do C.S.C., art.º 3.º, 1, n) do C.R.C. e art.ºs 117.º, 1, c) e 121 do CIRE.

31.ª     As demonstrações precedentes evidenciam que a realidade material - cumprimento da obrigação de entrada contraída em contrato de sociedade comercial -, que esta acção incorpora, em razão de matéria, é da competência do tribunal de comércio e não do tribunal cível.

Por isso foram violadas as disposições descritas nos art.ºs 9.º, 1, g) e h), 20.º, a) e 25.º e segts. do C.S.C.; art.º 128.º, 1, b) da Lei n.º 62/2013, de 26.8; art.ºs 65.º; 96.º, a); 97.º 1 e 99.º do C.P.C.

32.ª     Um último aspecto que implica a revogação das decisões recorridas, respeita ao vício alegado e julgado provado e procedente.

Na verdade foi decidido que é "nula por fraude à lei a alienação através de entrada em espécie realizada pelo 1.º R. a favor da 3.ª R no dia 30/11/2012".

Foi já demonstrado que não é possível haver alguma "alienação através de entrada", mas sim cumprimento de uma obrigação de entrada assumida num contrato. E também já foi demonstrado que não podia o recorrente CC alienar o que quer que seja em favor da recorrente EE, em 30/11/2012, pela simples razão de que, em 30/11/2012, a EE não existia como pessoa jurídica.

Ora, um facto como o aludido no pedido e na decisão - que é um mero acto ou efeito de um contrato, mas não, em si, autónomo facto jurídico produtor de efeitos jurídicos -, é necessariamente um facto que implica a correlatividade contraposta de duas ou mais pessoas, implicando uma concertação ilícita de vontades, entre os comparticipantes.

Ora, pela natureza das coisas, essa concertação de vontades era impossível, porque a 3.ª R., dita favorecida em 30/11/2012, não existia, não tinha quem em seu nome outorgasse o acto "viciado", sendo manifesto - como a escritura o mostra, e outra coisa não podia mostrar - que não interveio na escritura.

Por isso as instâncias julgaram provado um facto inexistente, e que, por força da lei, atento o disposto no art.º 5.º do C.S.C., era de existência impossível.

33.ª     Por outro lado, a lei portuguesa - mormente nos negócios jurídicos bilaterais - não reconhece a existência do vício de "fraude à lei", enquanto divergência da vontade das partes intervenientes, mormente se, com o negócio, declaram o que, em absoluto, não querem, com o intuito de enganar terceiros, ou querem coisa diferente do que declararam, sempre com o intuito de enganar terceiros.

Em abstracto, o caso dos autos poderia configurar a segunda das hipóteses ora enunciadas - simulação relativa e não simulação absoluta.

Como o que as partes fizeram, mesmo que o intuito fosse fraudar o RECORRIDO (o que é falso pois a participação do recorrente CC vale tanto quanto as fracções), é objecto física e legalmente possível, conforme a lei e determinado, que não ofende a ordem pública nem os bons costumes. Por isso tutelado pelo artº 280.º do C.C,.

34.ª    Como o negócio em causa - o contrato de sociedade, de que o cumprimento da obrigação de entrada é mero efeito - não tem qualquer indício relativo à capacidade jurídica do disponente nem dos outros contratantes (haveria, sim, se fosse celebrado com a sociedade, absoluta incapacidade jurídica desta porque, na altura, não tinha personalidade jurídica), e como o facto jurídico originário (o contrato) não enferma de qualquer vício quanto ao objecto, a dita "fraude à lei" (até por definição) só pode ser um vício da vontade (divergência ou vício em sentido restrito).

Ora, é manifesto que o Código Civil não consagrou a fraude à lei como vício da vontade - nem qualquer outro elemento do negócio jurídico -, os quais estão tipificados nos art.ºs 240.º a 257.º do C.C.

A figura da fraude à lei era, doutrinal e jurisprudencialmente, aceite na vigência do C.C. de 1867, dada a imprecisão e limitação dos seus artigos 641.º a 671.º. Mas não foi considerado no Código vigente, porque a materialidade que subjazia àquele conceito está consumida nas figuras consagradas na lei vigente, que regulam a previsão e consequências dos vícios da vontade, que constam dos art.ºs 240.º a 257.º do C.C., que assim foram violadas.

Tendo-se em conta que a situação prático-patrimonial do recorrente CC é a mesma anterior à constituição da sociedade, que a sua posição no capital da mesma é de 96,666% e que pode ser penhorada e até adquirida pelo recorrido BANCO AA, a acção terá de ser julgada improcedente.

Dessa forma, os interesses do RECORRIDO não são afectados, assim como não é afectada a existência da sociedade, para quem é indiferente ser o recorrente CC detentor de 96,666% do seu capital, ou ser o RECORRIDO ou outrem”.


Apreciando o recurso, verificou a presente relatora que os recorrentes pretendem a revogação do Douto Acórdão recorrido na parte em que este confirma a decisão do Tribunal de 1.ª instância, o que se depara com o bloqueio recursório conhecido como “dupla conforme”. Atendendo, porém, a que os recorrentes afirmam que, “por dever de patrocínio também se ancora este recurso por razões excepcionais” (ponto 23 das alegações[6]), entendeu que havia sido invocada, subsidiariamente, a via da revista excepcional. Proferiu, então, em 12.02.2019, despacho de envio dos autos à Formação para a apreciação dos pressupostos de admissibilidade do recurso por aquela via, nos termos do artigo 672.º, n.º 3, do CPC.

Notificados desta decisão, vieram os recorrentes pedir que, ao abrigo do artigo 652.º, n.º 3, ex vi do artigo 679.º do CPC, sobre matéria recaísse um acórdão.

Reunidos em Conferência, proferiram os Juízes deste Supremo Tribunal, em 30.04.2019, um Acórdão em que se decidiu confirmar integralmente a decisão singular.

Tendo em conta que no cerne do presente recurso está a questão da fraude à lei na alienação por entrada em espécie, envolvendo, designadamente, a criação de sociedade, e que a figura a figura da fraude à lei ainda suscita muitas dúvidas, a Formação admitiu, por Acórdão de 27.06.2019, a revista por via excepcional.

Cumpre, assim, apreciar o objecto do presente recurso.


Sendo o objecto de qualquer recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir neste recurso são cinco.

Enunciando as questões, sempre que aplicável, pela ordem estabelecida no artigo 278.º do CPC e tendo em consideração que a resposta afirmativa a umas é susceptível de prejudicar o conhecimento das outras (cfr. artigo 608.º do CPC), são elas:

1.ª) se se verifica ilegitimidade ou falta de interesse em agir do Banco Santander;

2.ª) se se verifica deserção do demandante ou impossibilidade (superveniente) da lide e a instância deve ser extinta com algum destes fundamentos;

3.ª) se o Acórdão recorrido é nulo por ininteligibilidade;

4.ª) se, ao apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal recorrido incorreu em violação de alguma norma da lei processual ou de alguma norma de Direito probatório material;

5.ª) se, ao decidir que a entrada em espécie realizada pelo 1.º réu / ora recorrente CC a favor da 3.ª ré / ora recorrente EE - Imobiliária, S.A., é nula por fraude à lei, o Tribunal recorrido incorreu em violação das normas jurídicas aplicáveis.

Além destas, os recorrentes suscitaram ainda duas questões: a) a incompetência do Tribunal em razão da matéria; e b) a ineptidão da petição inicial. Todavia, como se explicará adiante, estas não podem ser apreciadas na fase de recurso, pelo que não são elencadas como questões a responder.

Esclarece-se ainda que o recurso de revista versa, em regra, sobre acórdãos (cfr. artigo 671.º do CPC), não cabendo ao Supremo Tribunal de Justiça, fora dos casos excepcionalmente previstos na lei (cfr., nomeadamente, artigo 644.º, n.º 1, ex vi do 678.º do CPC), apreciar e revogar sentenças, como parecem pretender os recorrentes nas conclusões das suas alegações.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1. O autor é uma instituição bancária, cuja atividade consiste na realização de operações bancárias e financeiras com a latitude consentida por lei aos bancos de investimento.

2. No âmbito da sua atividade, o autor estabeleceu uma relação comercial com os 1º e 2º réus.

3. Nesse contexto, no dia 27 de junho de 2007 foi exarada uma escritura pública de mútuo com constituição de hipoteca, através da qual o autor emprestou aos réus DD e CC a quantia de € 383.350,00 (trezentos e oitenta e três mil trezentos e cinquenta euros).

4. Ficou convencionado entre as partes que os executados [aliás réus e mutuários] reembolsariam o autor da quantia mutuada no prazo de 360 meses, mediante pagamento do mesmo número de prestações mensais e sucessivas de capital e juros à taxa nominal anual igual à soma do indexante (Euribor a 6 meses) com o “spread” de 0,5%, arredondada à milésima, inicialmente fixada em 4,755%, correspondendo [a] uma taxa anual efetiva de 5,719%.

5. Mais tendo sido estipulado que a primeira prestação vencer-se-ia no primeiro mês após a outorga da escritura, ou seja, em julho de 2007 e que, em caso de mora dos mutuários, seria acrescida à taxa de juro em vigor, a título de cláusula penal, uma sobretaxa de 4%.

6. Em garantia do bom pagamento da quantia mutuada, juros, despesas judiciais e extrajudiciais que o mutuante autor houvesse de fazer para se ressarcir do seu crédito, as quais tão-somente para efeitos de registo se computaram em € 15.334,00, até ao montante máximo assegurado de € 559.691,00, constituíram o 1º e 2º réu hipoteca voluntária sobre o prédio urbano sito na Rua …., nºs. … a …, freguesia do …, concelho do …, descrito na primeira Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 828/…, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 9902.

7. Em 27 de outubro de 2008, os referidos réus deixaram de efetuar o pagamento das prestações a que se tinham comprometido, pagamento esse que não retomaram.

8. O autor começou por interpelar verbalmente os réus DD e CC para cumprimento das obrigações que assumiram, sem sucesso.

9. O autor requereu a tutela judicial através da instauração de uma ação executiva contra os 1º e 2º réus, em 31 de março de 2011.

10. Antes de instaurar a ação, o autor ainda procurou interpelar novamente os referidos réus, por cartas registadas datadas de 31 de janeiro de 2011, as quais foram devolvidas com a menção “não reclamado”.

11. A carta foi remetida para a morada que os réus mutuários forneceram ao autor para quaisquer contactos escritos.

12. À data da instauração da ação executiva o crédito do autor sobre os réus mutuários ascendia aos € 410.707,64 (quatrocentos e dez mil setecentos e sete euros e sessenta e quatro cents).

13. À data da instauração da ação executiva os réus ali demandados eram ainda devedores da quantia de € 352,69 relativamente a um descoberto existente na conta de depósitos à ordem.

14. O processo executivo prosseguiu com a citação prévia dos réus em questão, tendo o réu CC sido citado em 10 de maio de 2011 e a ré DD em 12 de maio de 2011.

15. Os réus ali executados não deduziram oposição à execução.

16. O Agente de Execução promoveu pesquisas de bens em nome dos executados no mês de setembro de 2011, tendo sido encontrados os seguintes bens em seus nomes:

i. Prédio urbano sito em …., artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “A”;

ii. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “B”;

iii. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “C”;

iv. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “D”;

v. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “I”;

vi. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “K”;

vii. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “L”;

viii. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2518, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 847, fração “K”;

(estes bens compropriedade dos réus DD e CC em partes iguais)

ix. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 335, fração “R”;

x. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 335, fração “S”;

xi. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 335, fração “T”;

xii. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 335 fração “U”;

xiii. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 1126, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 166, fração “D”, [1º edifício];

(estes imóveis propriedade do réu CC)

xiv. Prédio urbano sito em …, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial da … sob o n.º 753, artigo matricial 1792 (propriedade da mutuária DD);

xv. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “H” (da qual a ré DD era proprietária de ½ indiviso);

17. A penhora iniciou-se pelo bem hipotecado.

18. Face ao valor patrimonial do imóvel hipotecado à data da penhora, era de € 240.223,51 [quereria certamente dizer-se que o valor patrimonial do imóvel hipotecado era à data da penhora de € 240.223,51, pois que este ponto de facto resulta de uma fusão truncada do que foi alegado pelo autor nos artigos 23 e 24 da petição inicial].

19. Após a notificação aos ali Executados da realização da penhora, o 1º réu apresentou um requerimento aos autos no qual comunicava que, sobre o prédio em crise, incidia um direito de uso e habitação registado a favor da mãe dos réus DD e CC, KK (5ª ré).

20. Os funcionários do réu [aliás autor] que diretamente intervieram na fase negocial e preparatória do empréstimo desconheciam que os pais dos réus DD e CC – reservaram para si os aludidos direitos de uso e habitação.

21. Aquando da recolha dos elementos documentais do prédio para efeitos de análise e preparação do empréstimo, foi fornecida uma certidão do registo predial, emitida pela 1ª Conservatória do Registo Predial do … .

22. Desse documento não constava qualquer registo do direito de uso invocado pelo réu CC no processo executivo.

23. Da ficha predial constava apenas a aquisição a favor dos réus DD e CC, na proporção de ½ para cada, e uma hipoteca a favor de uma instituição bancária.

24. De resto, se o conhecessem, tão-pouco esse prédio seria aceite como garantia da operação.

25. O autor reagiu ao requerimento com a junção aos autos de um requerimento no qual alegava a inexistência de qualquer registo do direito de uso.

26. O réu CC juntou uma certidão predial da qual constava inscrito o invocado direito de uso e habitação, pela Ap. 5 de 15 de janeiro de 1992.

27. Na sequência desse requerimento, o Tribunal considerou que o direito de uso e habitação era oponível à execução.

28. O Agente de Execução voltou a realizar pesquisas de bens penhoráveis, face ao lapso temporal decorrido desde as últimas pesquisas.

29. Na sequência das novas pesquisas de bens veio a verificar-se que, após a citação dos ali executados DD e CC, estes réus procederam a uma série de alienações de bens.

30. No dia 24 de abril de 2014, o autor foi notificado do resultado das pesquisas patrimoniais, das quais resultava que, dos quinze imóveis inicialmente existentes em nome dos executados CC e DD, apenas subsistiam em nome da segunda – e apenas metade indivisa – os seguintes três:

a. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “K”;

b. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “L”;

c. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “H”;

31. Todos os imóveis em nome do 1º réu à data da realização das primeiras pesquisas de bens – sem exceção – haviam sido por este transmitidos a favor da 3ª ré EE – IMOBILIÁRIA S.A., a título de entrada em espécie.

32. No dia 30 de novembro de 2012, no Cartório Notarial da Sr.ª Dr.ª LL, foi outorgada a escritura pública de constituição da sociedade comercial com a firma “EE - IMOBILIÁRIA, S.A..”.

33. Nesse ato intervieram, como outorgantes, o réu CC, a ré FF, seu cônjuge, KK, sua mãe, MM, sua sogra e NN, que com esta reside na Rua da …, …, nº …, entrada 10, Ap. 4.2, ….

34. A sociedade 3ª ré foi constituída com o capital social de € 150.000,00, cabendo ao réu CC uma participação social de € 145.000,00, à ré FF € 4.000,00, à mãe do 1º réu, KK, uma participação de € 250,00, a sogra do 1º réu com ações no valor nominal de € 500,00 e o sócio NN com uma participação de € 250,00.

35. Foi designada administradora única da sociedade a 4ª ré FF, que permanece em funções até hoje.

36. A entrada no capital social do réu CC foi integralmente realizada em espécie com os 13 imóveis que haviam sido identificados em seu nome em sede executiva, quais sejam:

i. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 335, fração “R”;

ii. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 335, fração “S;

iii. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 335, fração “T”;

iv. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 335 fração “U;

v. ½ do prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “A”;

vi. ½ do prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “B”;

vii. ½ do prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “C”;

viii. ½ do prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “D”;

ix. ½ do prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “I”;

x. ½ do prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “K”;

xi. ½ do prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “L”;

xii. ½ do prédio urbano sito em …, artigo matricial 2518 , descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 847, fração “K”;

xiii. Prédio urbano sito em …, artigo matricial 1126, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 166, fração “D”, [1º edifício].

37. Após esta transmissão a favor da 3ª ré, o réu CC ficou sem quaisquer bens penhoráveis, além do hipotecado, por cujo valor o autor se pudesse ressarcir pelo seu crédito.

38. No dia 16 de março de 2012, foi registado um contrato-promessa com eficácia real relativamente ao prédio nº 753, da freguesia de … .

39. O imóvel em crise encontrava-se entre os bens encontrados em nome da ré DD na primeira pesquisa de bens realizada pelo Agente de Execução.

40. Já após a sua citação para a ação executiva, a ré DD veio a registar um contrato-promessa com eficácia real a favor do réu JJ.

41. Nesta data, o registo da alienação já caducou.

42. No dia 22 de agosto de 2008, foi registada pela Ap. 24 a doação de quota ideal de ½ do prédio 846-H, de …, pertencente ao réu CC, a favor da ré FF, sua mulher.

43. Nesse propósito[7], e conforme já se alegou supra [? Reitera-se a nota de rodapé elaborada quando se conheceu da reapreciação deste ponto de facto], a ré Fátima revendeu a fração “H” do prédio nº 846 de … ao réu GG, negócio que foi registado pela Ap. 4113, de 28 de novembro de 2014.

44. Através da sociedade ré EE, S.A., foram alienadas as frações “I” do prédio nº 846 de … e a fração “K” do prédio nº 847 da mesma freguesia, transmitindo-se respetivamente a favor dos réus HH (em 27 de outubro de 2014) e II (em 27 de junho de 2014).

45. Tais alienações foram registadas pela Ap. 3096, de 27 de outubro de 2014 e pela Ap. 1868, de 27 de junho de 2014.

46. O registo da ação foi efetuado em 14 de julho de 2015.

47. O demandado CC propôs e sugeriu acordo do Demandante.


E são os seguintes os factos dados como não provados:

1. Que no momento da constituição da sociedade EE, não foi intenção dos outorgantes do contrato de sociedade que esta pessoa coletiva tivesse atividade empresarial.

2. Que a única atividade que eventualmente prosseguiria, seria a “gestão de imóveis próprios”, in casu os imóveis do réu CC.

3. Sendo que a pretensa gestão dos mesmos não passou de um estratagema para se furtar ao cumprimento das suas obrigações.

4. Que esse esquema foi urdido com a colaboração da família mais próxima do réu CC – cônjuge, mãe, sogra e um seu companheiro.

5. Que a ré Célia não pretendeu deixar de poder dispor, usar e fruir plenamente do prédio n.º 753, da freguesia de Gueifães.

6. Nem o réu JJ quis exercer tais faculdades em relação ao prédio.

7. Que o réu CC continuou a usar, dispor e fruir da fração “H” do prédio 846 retirando todas as suas utilidades como se continuasse a ser sua propriedade.

8. Que o réu CC nunca quis deixar de ser titular de metade da fração em crise e muito menos pretendeu que a ré FF passasse a ser proprietária.

9. Que a ré FF não quis adquirir o bem imóvel.


O DIREITO

Antes de responder às questões, cabe uma referência às outras duas questões que, como se disse, os recorrentes suscitam na fase de recurso:

a) a incompetência do tribunal em razão da matéria; e

b) a ineptidão da petição inicial.

a) Afirmam, a certa altura[8], os recorrentes que existe violação do artigo 128.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 62/2013, de 26.08, e dos artigos 65.º, 96.º, al. a), 97.º, n.º 1, e 99.º do CPC, o que constitui uma infracção de regras de competência em razão da matéria e determina a incompetência absoluta do tribunal (cfr. conclusão 31.ª).

Sucede, porém, que o Supremo Tribunal de Justiça está impedido de apreciar esta questão, determinando o n.º 2 do artigo 97.º do CPC que “[a] violação das regras de competência em razão da matéria que apenas respeitem aos tribunais judiciais só pode ser arguida, ou oficiosamente conhecida, até ser proferido despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência final”[9].

b) Afirmam, noutra altura, os recorrentes que se verifica ineptidão da petição inicial por violação dos artigos 553.º e 554.º do CPC, sendo nulo todo o processo, nos termos do artigo 186.º, n.ºs 1, 2, al. c), e 4, do CPC[10] (cfr. conclusão 22.ª).

Também aqui, todavia, está vedado a este Supremo Tribunal o conhecimento da questão[11], dispondo o n.º 2 do artigo 200.º do CPC que “as nulidades a que se referem o artigo 186.º e o n.º 1 do artigo 193.º são apreciadas no despacho saneador, se antes o juiz as não houver apreciado; se não houver despacho saneador, pode conhecer-se delas até à sentença final”.


Esclarecido isto, cumpre agora apreciar o recurso.

As duas primeiras questões surgem interligadas nas conclusões (cfr. conclusões 1.ª a 4.ª), designadamente no parágrafo em que os recorrentes afirmam que “pela manifesta falta de interesse em agir - ou, então, por ser parte ilegítima - do BANCO BB, a instância deve ser declarada extinta por deserção do DEMANDANTE, ou, então, por ser impossível a lide (art.ºs 130.º e 277.º, c) do C.P.C. ou art.º 30.º, 1 e 2 e 277.º, e) do ref. Código)” (cfr. conclusão 4.ª).

Apesar do carácter conclusivo que liga as alegações, a questão daqui resultante e denominada pelos recorrentes como “questão prévia” deve ser decomposta, pelo menos, em duas.

A 1.ª questão consiste em saber se se verifica ilegitimidade ou falta de interesse em agir do Banco BB.

A falta de legitimidade e a falta de interesse são excepções dilatórias (respectivamente, a excepção dilatória prevista no artigo 577.º, al. e), do CPC e uma excepção dilatória inominada[12]). São, portanto, de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 578.º do CPC, sendo irrelevante terem ou não sido suscitadas antes.

A legitimidade é um pressuposto processual que consiste numa “certa posição exigida às partes em relação ao concreto objecto processual[13], estabelecendo-se claramente no n.º 3 do artigo 30.º do CPC que o critério subsidiário para aferir da legitimidade é a relação controvertida, tal como ela é configurada pelo autor [14]. Faltará legitimidade sempre que não “estejam em juízo os titulares da relação material litigiosa, de modo a que a decisão a proferir possa efectivamente resolver o conflito[15], o que determina, em regra, a absolvição da instância, nos termos do artigo 576.º, n.º 2, e 278.º, n.º 1, al. d), do CPC.

Distinto da legitimidade – e não devendo ser confundido com ela – é o interesse processual ou interesse em agir[16]. Este consiste no “interesse em recorrer aos tribunais para tutela do interesse material [17]. Faltará o interesse processual / interesse em agir sempre que falte “interesse sério para o recurso a juízo [18] , havendo lugar, também, à absolvição da instância, nos termos do artigo 576.º do CPC.

Acontece que o Banco BB não carece nem de legitimidade nem de interesse processual / interesse em agir. Como se esclareceu no relatório que antecede, depois da propositura da acção, o Banco AA, S.A., foi incorporado, por fusão, no Banco BB, S.A., conforme certidão permanente, cujo código de acesso este último juntou[19]. Neste contexto, o Banco BB assumiu a posição contratual do Banco AA em todos os contratos e relações jurídicas geradores de direitos e obrigações, garantias reais ou especiais bem como nos processos em curso destinados à realização destes direitos.

Esclarecimento idêntico foi feito no Acórdão recorrido: “[o] Banco BB, SA, afirmando ter incorporado por fusão o Banco AA, SA mediante transferência global do património deste para o primeiro e oferecendo para comprovação de tal afirmação código de acesso a certidão permanente, contra-alegou requerendo que seja admitido a intervir nestes autos na posição processual anteriormente ocupada pelo Banco AA, SA e pugnando pela total improcedência do recurso”.

Considerando – bem – que a intervenção do Banco BB nestas circunstâncias não punha em causa a sua legitimidade ou o seu interesse em agir e, portanto, não havia motivo para a extinção da instância, a ausência de considerações adicionais do Tribunal recorrido é plenamente justificada.

E, para o caso de se entender que das alegações dos recorrentes decorre, implicitamente, uma arguição de nulidade por omissão de pronúncia[20], tal arguição seria, pelas razões expostas, improcedente.


A 2.ª questão consiste em saber se se verifica deserção do demandante ou impossibilidade (superveniente) da lide e a instância deve ser extinta com algum destes fundamentos.

Como se disse, esta questão está ligada à questão anterior. Tentando reconstituir o raciocínio dos recorrentes, será por causa da falta de interesse em agir ou ilegitimidade do Banco BB, que a instância deve ser declarada extinta por deserção do demandante (Banco AA), ou, então, por impossibilidade (superveniente) da lide.

Ora, conforme decorre da resposta à questão anterior, o autor / ora recorrido Banco BB é parte legítima e com interesse de agir, pelo que esta pretensão não pode ser atendida.

As causas de extinção da instância estão enumeradas no artigo 277.º do CPC. Entre elas conta-se a deserção [artigo 277.º, al. c), do CPC] e a impossibilidade superveniente da lide [artigo 277.º, al. e), do CPC].

Quanto à deserção, note-se que o artigo 281.º, n.º 2, do CPC consagra uma regra especial para a fase de recurso. Diz-se aí que “[o] recurso se considera deserto quando, por negligência do recorrente, esteja a aguardar impulso processual há mais de seis meses”. Como manifestamente não se verifica uma situação do tipo descrito, não procede a alegação de que a instância deve ser extinta com este fundamento.

Por seu turno, a impossibilidade superveniente pode derivar de três ordens de razões: impossibilidade subjectiva nos casos de relações jurídicas pessoais que se extinguem com a morte do titular da relação, não ocorrendo sucessão nessa titularidade; impossibilidade objectiva nos casos de relações jurídicas infungíveis em que a coisa não possa ser substituída por outra ou o facto prestado por terceiro; e impossibilidade causal quando ocorre a extinção de um dos interesses (v.g. por confusão)[21]. Como tão-pouco qualquer destas circunstâncias se verifica, a pretensão dos recorrentes não é acolhida.


Passe-se, de seguida, à 3.ª questão, que é a de saber se o Acórdão recorrido é nulo por ininteligibilidade.

Afirmam os recorrentes que a decisão do Tribunal recorrido “não é de fácil inteligência para pessoas de bom nível cultural, mas não iniciadas nas coisas do direito. E, para pessoas de modesto nível cultural, é certamente ininteligível (…). Por isso o acórdão recorrido é nulo violando o disposto na 2.ª parte da al. c) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C.” (cfr. conclusão 23.ª).

Referem-se os recorrentes à parte da decisão seguinte (presumindo-se que o trecho em crise diga, sobretudo, respeito à fórmula por eles sublinhada):

"Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto, na parcial procedência do recurso de apelação interposto por (CC..., EE..., FF..., GG..., HH..., II...) acordam em julgar totalmente improcedente a reapreciação da decisão da matéria de facto e, no mais, revogar parcialmente (...)".

Deverão os recorrentes compreender que a fórmula “em crise” é uma fórmula muito habitual nos segmentos decisórios de recursos. E, sendo certo que a linguagem jurídica tem uma certa dimensão técnica[22], a expressão “na parcial procedência do recurso” significa aquilo que literalmente dela resulta e que é apreensível por qualquer pessoa, isto é, que o recurso foi julgado (só) parcialmente procedente. Como os recorrentes terão decerto reparado, a decisão não se esgotou – nunca poderia esgotar-se – nesta expressão. Os Exmos. Juízes Desembargadores explicitaram o sentido daquela procedência parcial do recurso, discriminando cada uma das decisões por tal via tomadas. Afirmaram, nomeadamente, os Exmos. Juízes Desembargadores que acordavam:

1.ª) “em julgar totalmente improcedente a reapreciação da decisão da matéria de facto”;

2.º) “no mais, em revogar parcialmente a decisão recorrida proferida em 11 de fevereiro de 2018 na parte em que se 'declara nula por fraude à lei o contrato de doação da quota ideal de ½ do prédio n.º 846, fracção 'H', de …, realizada pelo 1º R. a favor da 4ª R e, consequentemente, o cancelamento da inscrição registral desse negócio, registada pela Ap. 24 de 22/8/2008' e ainda na parte em que se declarou a oponibilidade desta nulidade ao réu GG e, consequentemente, declarou nula a venda da fração 'H' do prédio nº 846 descrito na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de … ao réu GG e, consequentemente, determinou o cancelamento da inscrição a seu favor registada pela Ap. 4113, de 28/11/2014;

3.º) mantendo-se no mais a decisão recorrida”.

É visível, em face disto, que não procede a nulidade invocada pelos recorrentes.


Responda-se agora à 4.ª questão, que trata de saber se, ao apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal recorrido incorreu em violação de alguma norma da lei processual ou de alguma norma de Direito probatório material.

Identificam os recorrentes, no Acórdão recorrido, no plano que apelidam “fundamentação de facto”, determinadas “nulidades” (cfr. conclusões 5.ª a 21.º e, em especial, conclusões 18.ª, 19.ª, 20ª e 21.º), pretendendo, no fundo, a eliminação e a alteração de certos factos dados / mantidos como provados pelo Tribunal recorrido.

Em primeiro lugar, cabe advertir que a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no tocante à decisão sobre a matéria de facto é consideravelmente limitada.

De facto, o Supremo Tribunal não pode sindicar os resultados a que chegou o Tribunal recorrido ou controlar a sua decisão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, mas apenas apreciar da observância das regras de Direito probatório material ou mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, conforme resulta das disposições do n.º 3 do artigo 674.º e do n.º 3 do artigo 682.º do CPC[23]. É ainda entendido que ele pode apreciar o uso que a Relação faz dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662.º do CPC, uma vez que o “mau uso” (uso indevido, insuficiente ou excessivo destes poderes) é susceptível de configurar violação da lei de processo e, portanto, de constituir fundamento do recurso de revista, nos termos do artigo 674º, nº 1, al. b), do CPC[24] [25].

Em segundo lugar, verifica-se que algumas das questões suscitadas no recurso de revista pelos recorrentes respeitam factos não impugnados no recurso de apelação. Como é evidente, o Supremo Tribunal não poderá pronunciar-se sobre estas.

Esclarecido isto, passe-se à análise das questões que podem ser apreciadas, atinentes, por um lado, aos factos sob os números 20 e 24 e, por outro lado, ao facto sob o número 31[26].

Sustentam, em primeiro lugar, os recorrentes, quanto aos factos sob os números 20 e 24 que “só podem ser provados por documentos (art.º 364.º do C.C.) (…). Consequentemente, (…) deverão ser objecto de pertinente prova documental ou deverão ser eliminados da fundamentação de facto” (cfr. conclusão 19.ª).

Os factos em causa – recorde-se – têm o seguinte teor:

20. Os funcionários do réu [aliás autor] que diretamente intervieram na fase negocial e preparatória do empréstimo desconheciam que os pais dos réus DD e CC – reservaram para si os aludidos direitos de uso e habitação.

24. De resto, se o conhecessem, tão-pouco esse prédio seria aceite como garantia da operação”.

Na apreciação da impugnação destes factos, teceu o Tribunal da Relação do Porto as seguintes considerações (incluindo notas de rodapé):

No que respeita ao ponto 20 dos factos provados é ostensivamente falsa a alegação dos recorrentes de não ter sido produzida prova pessoal e documental dessa matéria na audiência final.

Na verdade, no que respeita à prova pessoal, basta ouvir o depoimento da testemunha OO, atualmente funcionário da “QQ” e antes empregado do autor, tenho acompanhado os preparativos e a celebração do contrato de mútuo de 27 de junho de 2007 (ouça-se o depoimento desta testemunha do minuto dois até ao minuto quatro e do minuto sete e cinquenta segundos até ao minuto oito e cinquenta segundos), para concluir que o autor não teve conhecimento da oneração do imóvel dado em hipoteca com o direito real de uso e habitação a favor dos progenitores dos mutuários.

Por outro lado, no que respeita à prova documental, basta atentar no teor da cópia da certidão da Conservatória do Registo Predial, oferecida pelo autor como documento nº 10[27] e junta de folhas 251 a 255, referente a uma informação de 13 de fevereiro de 2007 da 1ª Conservatória do Registo Predial do …, relativa à descrição nº 828/19940111, da freguesia do …, onde consta o registo de aquisição desse imóvel, inscrito na matriz sob o artigo 9902, a favor dos réus CC e DD, por remição e a uma outra informação da mesma conservatória, datada de 23 de outubro de 2007, também relativa à descrição nº 828/19940111, da freguesia do …, onde consta o registo de aquisição desse imóvel, inscrito na matriz sob o artigo 9902, a favor dos réus CC e DD, por remição, não constando em nenhuma das informações qualquer referência a ónus ou encargos que não seja, no primeiro caso, uma hipoteca voluntária a favor do PP Bank, PLC e na segunda a duas hipotecas voluntárias a favor do autor.

Assim, neste contexto probatório, bem andou o tribunal recorrido ao dar como provada a matéria vertida no ponto 20 dos factos provados.

Atentemos agora no ponto 24 dos factos provados.

No que respeita este ponto de facto, é também falso não ter sido produzida qualquer prova pessoal da mesma, bastando para tanto, uma vez mais atentar no depoimento de OO, do minuto oito e cinquenta segundos em diante e que de forma espontânea confirmou esta matéria.

A prova documental produzida no que respeita ao valor tributável do imóvel dado em garantia (€ 231.540,73, fazendo fé na informação do registo predial a folhas 254), conjugada com as regras da experiência comum conforta o depoimento testemunhal de OO.

Na verdade, se se admite que, como aliás aconteceu no caso dos autos, a instituição bancária aceite receber em garantia um imóvel com um valor fiscal inferior ao montante do capital mutuado e desde que essa diferença se mantenha em patamares toleráveis[28], já não se aceita que a entidade bancária mantenha a mesma postura quando o bem dado em garantia tem um ónus com a duração vitalícia dos seus beneficiários e por isso de termo incerto que não só reduz significativamente o valor do bem dado em garantia como também diminui o leque dos potenciais interessados na aquisição da nua propriedade do bem onerado.

Por isso, também no que respeita este ponto de facto improcede a pretensão recursória dos recorrentes”.

Como pode verificar, o Tribunal da Relação do Porto decidiu manter estes factos como provados de forma amplamente fundamentada e com observância das normas jurídicas aplicáveis, não se vislumbrando violação de qualquer regra de Direito probatório material, designadamente da norma do artigo 364.º do CC.

Esta norma versa sobre a exigência legal de documento escrito, dispondo-se no n.º 1 que “[q]uando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior” e, no n.º 2, que [s]e, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório”.

Sustentam, depois, os recorrentes, quanto ao facto 31, que “deve[] ser alterado[] porque comporta[] formulação equívoca” (cfr. conclusão 21.ª).

O facto em causa tem o seguinte teor:

31. Todos os imóveis em nome do 1º réu à data da realização das primeiras pesquisas de bens – sem exceção – haviam sido por este transmitidos a favor da 3ª ré EE – IMOBILIÁRIA S.A., a título de entrada em espécie”.

O Tribunal recorrido expôs, a propósito da impugnação, o seguinte raciocínio (incluindo notas de rodapé):

Vejamos agora o ponto 31 dos factos provados.

A fim de se poder ajuizar o exato alcance deste ponto de facto, deve o mesmo conjugar-se com o ponto 16 dos factos provados.

Os bens imóveis existentes em nome do primeiro réu à data da realização das primeiras pesquisas de bens (vejam-se folhas 126 a 129) e que foram transmitidos para a ré EE – Imobiliária, SA, a título de entrada de capital em espécie foram os seguintes:

 - (1) prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “A” (folhas 306 a 310); (2) prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “B” (folhas 311 a 313); (3) prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “C” (folhas 314 e 315); (4) prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “D” (folhas 316 e 317); (5) prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “I”[29]; (6) prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “K” (folhas 271 e 272 e 319 a 320); (7) prédio urbano sito em …, artigo matricial 2517, descrito na conservatória do Registo Predial de … sob o nº 846, fração “L” (folhas 321 e 322); (8) prédio urbano sito em …, artigo matricial 2518, descrito na conservatória do Registo Predial de … sob o nº 847, fração “K”(folhas 326 a 329); (9) prédio urbano sito em …, artigo matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 335, fração “R” (folhas 298 e 299); (10) prédio urbano sito em Paranhos, artigo matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 335, fração “S” (folhas 300 e 301); (11) prédio urbano sito em …, artigo matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 335, fração “T” (folhas 302 e 303); (12) prédio urbano sito em …, artigo matricial 11117, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do … sob o nº 335, fração “U” (folhas 304 e 305); (13) prédio urbano sito em …, artigo matricial 1126, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 166, fração “D”, 1º edifício (folhas 333 e 334).

Destes imóveis, os oito primeiros eram da titularidade do réu CC, na proporção de metade, sendo os quatro últimos da titularidade exclusiva do mesmo réu.

No entanto, repare-se que não se afirma no ponto 31 dos factos provados que o réu CC era dono exclusivo dos bens com que entrou em espécie para o capital social da sociedade EE – Imobiliária, SA, mas apenas que todos os bens que eram de sua titularidade aquando da pesquisa de bens em sede de ação executiva, foram transmitidos àquele título para a aludida sociedade, facto inequivocamente verdadeiro. Isto mesmo resulta inequívoco do ponto 36 dos factos provados da sentença recorrida, não impugnado pelos recorrentes e comprovadamente verdadeiro por prova documental autêntica.

Deste modo, também relativamente a este ponto de facto, improcede a reapreciação requerida pelos recorrentes”.

Não sendo invocada, desta feita, a violação de nenhuma regra de Direito probatório material, a eventual censura deste Supremo Tribunal ao Tribunal recorrido só poderia radicar na violação da lei processual, maxime em uso indevido dos poderes que a norma do artigo 662.º do CPC confere ao Tribunal da Relação.

Ora, a verdade é que não se vê qualquer razão para censura, bem pelo contrário. Olhando para o discurso / a fundamentação do Acórdão recorrido, é manifesto que o Tribunal da Relação do Porto formou uma convicção própria e autónoma, fundada nos meios de prova adequados. A fundamentação apresentada reflecte o percurso traçado para formar tal convicção, não se tendo o Tribunal limitado a remeter para a fundamentação da 1.ª instância ou a aderir genericamente a ela mas tendo-se pronunciado detalhadamente.

O facto 31 foi, em conclusão, mantido como provado pelo Tribunal a quo, com observância das normas jurídicas aplicáveis, não sendo procedente qualquer alegação em contrário por parte dos recorrentes.


Chega-se, finalmente, à 5.ª e última questão, aquela que motivou a admissibilidade da revista por via excepcional. Consiste ela em saber se, ao decidir que a entrada em espécie realizada pelo 1.º réu / ora recorrente CC a favor da 3.ª ré / ora recorrente EE - Imobiliária, S.A.., é nula por fraude à lei, o Tribunal recorrido incorreu em violação das normas jurídicas aplicáveis.

A fundamentação do Tribunal da Relação do Porto foi a seguinte:

A intenção de um determinado sujeito quando pratica certos factos é algo que não é sensorialmente percecionável por terceiros, sendo vivenciada exclusivamente pela pessoa que atua. Trata-se de um facto interno que não é passível de prova direta, por não ser apreensível por qualquer dos sentidos do ser humano e, mesmo quando confessada, trata-se apenas de um relato da pessoa que alegadamente experienciou esse móbil.

O perfil da intenção enquanto facto interno, indiciada seja por palavras, seja por atitudes, implica que a sua prova seja feita por via indireta, especialmente por presunções judiciais (artigo 349º do Código Civil).

No caso, o autor instaurou uma ação executiva contra os réus CC e DD em 31 de março de 2011 (ponto 3.2.1.9 dos factos provados) a fim de realizar coercivamente o seu direito de crédito que se achava em situação de incumprimento desde 27 de outubro de 2008 (ponto 3.2.1.7 dos factos provados).

Os aqui réus CC e DD foram citados no âmbito da ação executiva em 10 de maio de 2011 e 12 de maio de 2011, respectivamente (ponto 3.2.1.14 dos factos provados), não tendo deduzido qualquer oposição (ponto 3.2.1.15 dos factos provados).

Nos termos do disposto na alínea b), do nº 1, do artigo 832º do Código de Processo Civil, na redação que então vigorava, findo o prazo para dedução de oposição por parte dos executados, em setembro de 2011, o Sr. Agente de Execução procedeu a consultas e diligências prévias à penhora, tendo encontrado vários bens imóveis em nome dos executados (ponto 3.2.1.16 dos factos provados).

O crédito exequendo estava garantido pela hipoteca de um imóvel, razão pela qual a penhora se iniciava necessariamente sobre o bem dado em garantia, só podendo recair noutros quando estivesse reconhecida a insuficiência do hipotecado para permitir a satisfação coerciva do crédito exequendo (artigo 835º do Código de Processo Civil, na redação que então vigorava).

Só após a efetivação da penhora do imóvel hipotecado e notificação da prática desse ato aos executados, com base em informação então prestada pelo executado Célio (em 13 de janeiro de 2012), o autor veio a ter conhecimento de que sobre o bem hipotecado incidia um direito real de uso e habitação (ponto 3.2.1.19 dos factos provados).

Nessa altura, os executados sabiam qual era o montante do crédito exequendo (conhecimento que, na pior das hipóteses, lhes chegou com a citação para a ação executiva) e não podiam desconhecer que excedia o valor patrimonial do bem hipotecado, sendo o valor do bem dado em garantia ainda mais reduzido por força do ónus real que sobre ele incidia – o direito real de uso e habitação – e ainda por força da conjuntura adversa que então se atravessava para transações imobiliárias, facto de conhecimento geral e por isso não carecido de alegação e prova (artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Civil).

No contexto que se acaba de enunciar que fez o réu CC?

Em 30 de novembro de 2012 constituiu uma sociedade anónima, subscrevendo em espécie mais de noventa e seis por cento do seu capital social (96,666 ao infinito), subscrevendo sua esposa pouco mais de dois e meio por cento do mesmo capital (2,666 ao infinito), cabendo aos restantes sócios uma fração residual do mesmo capital social (veja-se o ponto 3.2.1.34 dos factos provados). A subscrição do capital por parte do réu CC foi feita em espécie (veja-se o artigo 28º do Código das Sociedades Comerciais), entrando para tal efeito com todos os bens imóveis que em Setembro de 2011 o agente de execução havia localizado em sede de pesquisa de bens realizada no âmbito da ação executiva instaurada em 31 de março de 2011 (ponto 3.2.1.36 dos factos provados).

Ao dispor de todos os seus bens imóveis que não o que se achava penhorado no âmbito da ação executiva, utilizando-os para integrar a sua entrada em espécie em sociedade anónima de que detém mais de noventa e seis por cento do capital social, volvidos alguns meses sobre a data em que teve conhecimento da efetivação da aludida penhora, só se pode concluir que o réu CC agiu de forma determinada, intencional e com o objetivo de subtrair à garantia patrimonial do aqui autor os referidos bens, bem sabendo que o bem imóvel hipotecado e já penhorado era manifestamente insuficiente para permitir a satisfação do crédito exequendo.

Pelo exposto, em face dos factos objetivos provados, atenta a normalidade das condutas expectáveis num certo quadro de relação negocial, infere-se necessariamente que o réu CC agiu dolosamente quando realizou, em espécie, a sua entrada no capital social da sociedade que constituiu em 30 de novembro de 2012, para tanto mobilizando a totalidade dos bens imóveis que haviam sido localizados na sua titularidade em sede de diligências prévias à penhora no âmbito da ação executiva contra si instaurada em 31 de março de 2011, agindo com o objetivo de obstar à penhora de tais bens para realização coerciva do crédito exequendo.

E nem a circunstância de o réu CC ter tentado um acordo com o autor (veja-se o ponto 3.2.1.47 dos factos provados) descarateriza este propósito, pois que se tal tentativa se iniciou antes das aludidas entrada em espécie, tratar-se-á na realidade de um expediente para distrair o credor do que se estava a passar (criar uma cortina de fumo) e se acaso se processou após a prática de tais factos, será um expediente típico para pressionar o credor face ao facto consumado, atenta a incerteza das lides judiciais e a demora na resolução dos litígios judiciais”.

Pugnando pela revogação da decisão do Tribunal da Relação do Porto, na parte em que declara a nulidade do acto por fraude à lei, os recorrentes formulam, essencialmente, três ordens de argumentos:

1.º) o acto de realização da entrada em espécie corresponde ao cumprimento de uma obrigação, pelo que não tem autonomia jurídica, logo, não é susceptível de nulidade por fraude à lei (cfr., em especial, conclusões 27.ª a 32.ª);

2.º) o acto de realização da entrada em espécie não altera a situação patrimonial do devedor, pelo que não podia ter sido praticado com a intenção de lesar o credor (cfr. em especial, conclusões 24.ª e 26.ª);

3.ª) à fraude à lei não está suficientemente concretizada no Direito vigente e por isso não é fundamento da nulidade do acto (cfr., em especial, conclusões 33.ª e 34.ª).

Antes de responder, cabe fazer duas advertências.

Primeiro, apesar de serem diversificados os problemas levantados pelos recorrentes a propósito desta questão, eles são meros argumentos / desenvolvimentos de argumentos e não genuínas questões, pelo que não cumpre tratá-las como questões; aquilo que está em causa é sempre aquela mesma questão.

Depois, todos os argumentos que pressuponham a alteração ou eliminação (por falsidade ou outras razões) de factos fixados como provados não serão – não poderão ser – atendidos, pelo exposto a propósito da questão anterior. Um bom exemplo reside nas conclusões 24.ª e 26.ª, em que é possível encontrar alegações total ou parcialmente apoiadas na falsidade do facto provado sob o número 37.

Relativamente ao primeiro grupo de argumentos diga-se que é do entendimento comum que a realização de uma entrada em espécie equivale a um acto de transmissão de bens (alienação por parte do sócio e aquisição por parte da sociedade)[30].

Mas para contrariar o argumento que realmente importa – a insusceptibilidade de nulidade do acto por fraude à lei – é suficiente recordar o disposto na norma do artigo 764.º do CC.

Diz-se nesta norma, no n.º 1, que “[o] devedor tem de ser capaz, se a prestação constituir um acto de disposição; mas o credor que a haja recebido do devedor incapaz pode opor-se ao pedido de anulação se o devedor não tiver tido prejuízo com o cumprimento” e no n.º 2, que “[o] credor deve, pelo seu lado, ter capacidade para receber a prestação; mas, se esta chegar ao poder do representante legal do incapaz ou o património deste tiver enriquecido, pode o devedor opor-se ao pedido de anulação da prestação realizada e de novo cumprimento da obrigação, na medida do que tiver sido recebido pelo representante ou do enriquecimento do incapaz”.

A norma demonstra que, quando o cumprimento tem por objecto de “actos de disposição”, ele está sujeito ao regime da invalidade (anulabilidade) dos negócios jurídicos.

Não tendo o legislador definido esta categoria de actos, a doutrina tem entendido, na sequência de Manuel de Andrade, que eles são aqueles que, incidindo directamente sobre um direito existente, se destinam a transmiti-lo, revogá-lo ou a alterar de algum modo o seu conteúdo[31]. Ora, como facilmente se conclui, o acto de cumprimento da obrigação de entrada reúne as características indicadas; qualifica-se como um acto de disposição, podendo, portanto, ser nulo ou anulável.

Ainda que assim não fosse, sempre seria aplicável a este acto o regime da invalidade dos negócios jurídicos, não deixando a norma do artigo 295.º do CC quaisquer dúvidas quanto à aplicabilidade daquele (por analogia) aos restantes actos jurídicos.

Determina-se, concretamente, neste preceito que “[a]os actos jurídicos que não sejam negócios jurídicos são aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições do capítulo precedente [artigos 285.º a 294.º do CC)]”.

Sendo o acto de cumprimento da obrigação de entrada susceptível de declaração de nulidade, a violação de certas normas jurídicas também alegada pelos recorrentes (cfr. conclusões 29.º, 30.ª e 31.ª) pura e simplesmente não se verifica.

Mais precisamente, não se verifica a violação dos artigos 3.º, n.º 1, e 33.º do CPC porque estão em juízo e têm intervenção todos os sujeitos envolvidos no conflito de interesses. Não se verifica a violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da CRP e do artigo 26.º da Lei n.º 62/2013, de 26.08 porque não foi posto em nenhum momento em causa o direito dos sujeitos acesso ao direito e á tutela jurisdicional efectiva. Não se verifica a violação dos artigos 217.º, 224.º e 280.º do CC porque não está em causa nem as modalidades da declaração nem a perfeição da declaração negocial e nem os requisitos do objecto negocial nos sentidos respectivamente adoptados em cada uma daquelas normas.

Não se verifica, tão-pouco, a violação dos artigos 64.º e 31.º e s. (incluído o artigo 35.º) do CSC e do artigo 3.º do CIRE porque não estão em apreciação os deveres fundamentais dos administradores sociais, as medidas de conservação do capital social ou a insolvência da sociedade. Não se verifica a violação dos artigos 70.º, n.º 1, 166.º e 167.º do CSC, artigo 3.º, 1, al. n), do CRCom e artigos 117.º, n.º 1, al. c), e 121.º do CIRC porque não estão em apreciação a prestação de contas ou outros actos da sociedade sujeitos a publicidade nem, muito menos, as suas obrigações fiscais.

Por fim, não se verifica a violação dos artigos 9.º, n.º 1, als. g) e h), 20.º, al. a), e 25.º e s. do CSC porque não se discutem nesta acção os elementos do contrato de sociedade ou as obrigações dos sócios e, nomeadamente, não se põe em causa que todo o sócio esteja obrigado a realizar uma entrada[32].

Em momento distinto, concentram os recorrentes os seus esforços na tentativa de demonstrar que não está verificado o pressuposto do instituto da fraude à lei – o animus fraudandi (in casu, a intenção de lesar o credor). Alegam, como se viu, que o acto de realização da entrada em espécie não altera a situação patrimonial do devedor, pelo que não existe e não pode concluir-se que exista intenção de lesar o credor No entanto, tão-pouco este segundo grupo de argumentos pode ser acolhido.

Antes de mais, diga-se que, segundo certa corrente (objectiva ou objectivista), a intenção das partes em defraudar a lei é dispensável, ou seja, não é um pressuposto da fraude à lei. A corrente tem, aliás, significativa expressão jurisprudencial.

Veja-se, por exemplo, a posição de Manuel de Andrade. Definindo os negócios em fraude à lei como “aqueles que procuram contornar ou circunvir uma proibição legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos quais a lei designadamente previu e proibiu – aqueles que por essa forma pretendem burlar a lei”, o autor expõe as teorias subjectiva (segundo a qual é essencial e bastante a intenção das partes) e objectiva (segundo a qual de nada releva esta intenção) e adere à segunda dizendo que “[c]omo princípio geral, o direito privado, em matéria perceptiva ou proibitiva, não deve curar nem cura de intenções, mas só de actos e resultados[33].

Veja-se ainda Carlos da Mota Pinto, que, não se pronunciando directamente sobre a questão, diz: “fraude à lei quando se frustre claramente a intenção legislativa, se a proibição não for aplicada[34].

Finalmente, veja-se, na jurisprudência, o que se afirma no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2009 que “[é] necessário um nexo entre o(s) acto(s) lícitos e o resultado proibido, não sendo essencial a intenção das partes em defraudar a lei, aderindo-se assim a uma concepção objectivista”. A afirmação compreende-se melhor na fundamentação: “não há fraude sem nexo, ou seja, sem que o acto lícito em si não esteja ligado ao resultado proibido. De aceitar esta conceptualização mas pondo a tónica da prescindibilidade do elemento subjectivo – “animus fraudandi” – por valer um conceito ético e objectivo de boa fé, como o que, quanto ao abuso de direito, enuncia o artigo 334.º do Código Civil (…). Esta concepção objectivista da fraude à lei foi também adoptado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Janeiro de 2005 – 04 A3915 –( '… decisivo para afirmar a ilicitude e consequente nulidade do negócio em fraude à lei é o resultado com ela obtido e não a intenção das partes.')[35].

De qualquer modo, como se explica com desenvolvimento no excerto do Acórdão recorrido acima transcrito, no caso em apreciação, não terá faltado o animus fraudandi.

Baseando-se nos factos provados (em especial, nos factos provados sob os números 14, 15, 16, 19, 34 e 36) e fazendo apelo ao disposto no artigo 349.º do CC, o Tribunal recorrido deu por assente (por presunção judicial) que a alienação por entrada em espécie do recorrente CC consubstanciava a tentativa de subtracção ou diminuição das garantias do crédito do recorrido.

As presunções judiciais são processos lógicos baseados em regras da experiência – mais precisamente processos lógicos de tipo abdutivo, ou seja, “um tipo particular de indução que tem por objecto descobrir o passado”[36]. Elas constituem um instrumento idóneo para provar certos factos – os factos de natureza psicológica que, por esta sua natureza, é especialmente difícil provar por outros meios[37], como acontece, justamente, com o animus fraudandi.

Só seria permitido a este Supremo Tribunal sindicar o uso da presunção judicial pelo Tribunal da Relação se este ofendesse alguma norma legal, padecesse de evidente ilogicidade ou partisse de factos não provados[38]. Ora, não se vislumbra – nem é invocado – que o uso da presunção judicial tenha acarretado violação de norma legal[39]. Não se detectam, tão-pouco, sinais de ilogicidade nem de exorbitância da factualidade provada. Bem pelo contrário, a presunção parte expressamente dos factos provados e corresponde a um raciocínio que respeita as regras da lógica e da experiência. Não existe, em síntese, erro ou violação de regras de direito probatório substantivo nem ilogicidade no juízo de inferência ou desconformidade com os factos provados, pelo que o resultado probatório obtido pelo Tribunal recorrido com apoio, em espacial, na presunção judicial não é sindicável por este Supremo Tribunal[40].

Acrescente-se apenas, em abono da verdade, que, ao contrário do que decorre das conclusões do recurso, as garantias do devedor não são exactamente as mesmas antes e após a prática daquele acto, pelo menos na óptica do credor. Não é, com efeito, indiferente para este que as garantias do crédito sejam constituídas por prédios ou por participações sociais.

É verdade que, na insuficiência dos restantes bens do devedor, continua a ser possível a penhora das acções, em vez dos prédios, nada pondo, aparentemente, em causa o disposto no artigo 601.º do CC. Mas este processo executivo comporta ou é susceptível de comportar dificuldades acrescidas. Considerando o tipo de sociedade em causa, é previsível, desde logo, que existam cláusulas estatutárias limitativas da transmissibilidade das acções (nominativas, como previsivelmente são as acções em causa) (artigo 328.º, n.ºs 1 e 2, do CSC). Ora, basta existir uma cláusula estabelecendo um direito de preferência a favor dos outros accionistas (artigo 328.º, n.º 5, a contrario, do CSC) [41] para o processo adquirir, de imediato, complexidade e morosidade adicionais. Depois, o valor das acções é mais “volátil” do que o da generalidade dos bens, sendo o resultado de uma venda executiva de acções, no que toca à contrapartida da aquisição, em princípio, mais incerto do que noutras situações. A satisfação do crédito tornar-se-ia mais difícil, sendo certo, à partida, que, com a realização da entrada, os direitos que o sócio CC detinha sobre 13 imóveis se “transformaram” em acções com o valor nominal de 1.450.000 euros.

Por fim, apreciando a linha de argumentação desenvolvida pelos recorrentes que se apoia na insuficiente concretização do instituto da fraude à lei no Direito positivo e na sua inaptidão para determinar a nulidade do(s) acto(s), diga-se que ela se depara com uma firme oposição da doutrina e da jurisprudência.

Diz Luís Carvalho Fernandes: “[e]m certos casos, o objecto do negócio ofende frontal ou directamente uma norma legal proibitiva; há então ilicitude directa e o negócio diz-se contra legem, Mas também pode acontecer que, perante uma proibição legal, as partes procurem obviar a esse obstáculo, contornando-o, ou seja, celebrando um negócio que permita alcançar, por via indirecta, o resultado proibido. Existe aqui um negócio em fraude à lei; trata-se, ainda, de uma situação de ilicitude, que se designa por indirecta [42].

E diz, categoricamente, António Menezes Cordeiro: “[h]oje, entendemos que a fraude à lei é uma forma de ilicitude, que envolve, por si, a nulidade do negócio (…). A fraude à lei fica, assim, disponível como mais um instrumento ao serviço da concretização do Direito[43] [44].

Como sublinha este último autor, a jurisprudência portuguesa conhece a fraude à lei e faz dela uma aplicação que não pode ser ignorada. Além dos acórdãos do Supremo Tribunal aí elencados [45], pode referir-se, para um exemplo mais recente, o Acórdão de 20.10.2009 (já mencionado), onde se conclui que “[o] legislador não delineou genericamente a figura da fraude à lei, que apenas tratou em sede de direito internacional privado e no âmbito da aplicação das normas de conflitos (cf. o artigo 21.º do Código Civil (…) Certo, porém, que esta figura pode – e deve – estender-se para além do direito internacional privado (…). O negócio jurídico celebrado com fraude à lei é nulo”.

Atente-se, por fim, na posição de Ana Filipa Morais Antunes. Diz a autora que “[a] ausência de um preceito legal explicito não prejudica a relevância jurídica do negócio em fraude à lei. Na verdade, o problema jurídico do negócio em fraude à lei transcende a existência de um ou mais concretos preceitos da lei [46]. Acrescenta adiante que, numa noção “renovada”, ele é “[u]m fundamento autónomo de ilicitude jurídica [47]. E conclui: “o fundamento normativo da nulidade do negócio em fraude à lei é o artigo 294.º do CC, preceito que sanciona o negócio contrário à lei imperativa, assim como outras hipóteses de patologia negocial não especialmente previstas na lei; numa palavra, os casos de antijuridicidade negocial, não especialmente contemplados [48].

A terminar, e estritamente em obter dictum, observa-se que, visto o caso dos autos do instituto na sua globalidade, poderia equacionar-se a aplicabilidade do instituto conhecido como “desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais”. São, de facto, vários os sinais que apontam para a hipótese de se tratar de uma situação exemplar de instrumentalização fraudulenta do veículo societário, uma daquelas em que tipicamente se aplica aquela solução[49].

Lembrando os factos provados (em especial os factos sob os números 32, 33, 34, 35 e 36), vê-se que está em causa uma sociedade em que a responsabilidade dos sócios é limitada (artigo 271.º do CSC), constituída por sócios no número mínimo legalmente exigido (cinco) (artigo 273.º, n.º 1, do CSC) e que estão todos relacionados entre si por relações de parentesco, afinidade ou intimidade, logo, uma sociedade anónima “de tipo familiar”[50]; vê-se que o sócio CC detém acções que representam uma participação maioritária (“esmagadora”) no capital social, sendo as participações dos sócios restantes participações meramente “simbólicas”; vê-se que a entrada do sócio CC foi integralmente composta de imóveis (rectius: dos direitos que ele detinha sobre os imóveis e que constituíam os seus únicos bens penhoráveis além dos que detinha sobre o hipotecado), indicando a firma social que o objecto da sociedade é a actividade de gestão imobiliária; vê-se, por fim, que a mulher do sócio CC é a administradora única da sociedade.

Não é raro, neste tipo de circunstâncias, verificar-se que o acto (de constituição da sociedade ou mesmo de realização da entrada[51]) foi praticado exclusiva ou predominantemente para “blindar” os bens que constituem a garantia patrimonial dos credores pessoais do(s) sócio(s), ou seja, para que estes ficassem impedidos de executar directamente estes bens, por força da aplicação das regras de separação patrimonial, designadamente a regra de que o património social só responde pelas dívidas sociais[52].

Mas, para aquilo que é peticionado nestes autos, os resultados não se alterariam significativamente, o que bem se compreende. Além de ser uma figura que, como a fraude à lei, é de aplicabilidade subsidiária (só deve recorrer-se a ele para o efeito de evitar a produção de resultados injustos quando não exista uma solução legal mais precisa), a desconsideração da personalidade jurídica emergiu e funcionou, durante muito tempo, como uma “válvula de segurança” do sistema para combater ou sancionar os comportamentos antijurídicos como a fraude à lei, a ofensa à boa fé ou a iniquidade[53]. Radica, pois, nos institutos (mais gerais) da fraude à lei ou do abuso do direito, não sendo mais do que uma versão adaptada destes – adaptada ao fim específico de repelir os efeitos de certos actos ilícitos praticados no universo comercial / das sociedades comerciais.



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III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.



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Custas pelos recorrentes.



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LISBOA, 12 de Setembro de 2019

                                                            

Catarina Serra (Relatora)

Bernardo Domingos

João Bernardo

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[1] Conforme certidão permanente com o código de acesso 5638-2688-2760 (disponível em https://bde.portaldocidadao.pt/evo/Services/Online/Pedidos.aspx?service=CCP).

[2] Com a rectificação ordenada por despacho proferido com data de 28 de Outubro de 2015.

[3] Com a rectificação ordenada por despacho proferido com data de 28 de Outubro de 2015.

[4] Deve dizer-se que foi particularmente difícil acompanhar o raciocínio dos recorrentes devido à prolixidade e à extensão das alegações – prolixidade e extensão estas que, apesar do disposto no artigo 639.º, n.º 1, do CPC (mandando “conclui[r] de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”), subsistem nas respectivas conclusões.

[5] A reformulação gráfica (sobretudo, supressão de espaços entre linhas) tornou-se absolutamente necessária em função do espaço ocupado pelas 34 conclusões apresentadas. A despeito do seu número final, as conclusões – repita-se – são anormalmente extensas, contendo desnecessárias transcrições (dos – de todos os – factos provados e ainda da decisão e da fundamentação do Acórdão recorrido) e camuflando divisões e subdivisões que não só dificultam a tarefa do julgador como, em bom rigor, não são consentâneas com o intuito prosseguido pelo artigo 639.º, n.º 1, do CPC.

[6] Cfr. ainda, com aparente relevância para este efeito, conclusão 5.ª das alegações.

[7] Surge em nota a seguinte interrogação do Tribunal da Relação do Porto: “Que propósito?”.

[8] Já em fase adiantada das conclusões e para estribar a sua pretensão de revogação do Acórdão recorrido e na sequência da alegação da violação de normas da lei substantiva.

[9] Sublinhado nosso.

[10] Corrige-se a referência, feita, presumivelmente pro lapso, ao artigo 185.º do CPC.

[11] Em confirmação, veja-se, por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.03.2015, Proc. 6500/07.4TBBRG.G2,S2 (disponível em http://www.dgsi.pt), onde se diz: “[a] ineptidão da petição inicial – nulidade principal que não pode ser oficiosamente suscitada e conhecida na fase de recurso”.

[12] Uma vez que a lei não lhe faz referência directa.

[13] Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 111.

[14] O disposto hoje no n.º 3 do artigo 30.º do CPC (e antes no n.º 3 do artigo 26.º) veio pôr fim à discussão doutrinal e jurisprudencial sobre a relevância da relação jurídica material para definir as partes (legítimas) da relação jurídica processual. A polémica surgiu a propósito de um caso judicial ocorrido em 1918 e foi particularmente intensa durante o Código de Processo Civil de 1939 [“a polémica Barbosa de Magalhães — Alberto dos Reis”, como a designou um dos principais intervenientes (cfr. JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 77)]. Discutia-se, mais especificamente, se o critério para aferir da legitimidade das partes (o interesse directo em accionar ou em contradizer) consistia em serem as partes os sujeitos da relação jurídica controvertida ou os sujeitos da pretensa relação jurídica controvertida, ou seja, tal como o autor a apresenta e configura na petição inicial [cfr. JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume I, cit., pp. 72 e s., ou (mais brevemente) Comentário ao Código de Processo Civil, volume 1.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1960, pp. 40 e s.]. A questão ficou resolvida com a revisão operada pelos DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, e DL n.º 180/96, de 25 de Setembro, ao Código de Processo Civil, através da qual se deu nova redacção ao art. 26.º e se consagrou a segunda teoria.

[15] Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração – Artigos 1.º a 702.º, Coimbra, Almedina, 2018, pp. 655-656.

[16] É controvertido se este é um pressuposto processual. Cfr., sobre isto, José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º - Artigos 362.º a 626.º, Coimbra, Almedina, 2018 (3.ª edição), p. 583.

[17] Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, ob. cit., loc. cit.

[18] Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, ob. cit., loc. cit.

[19]Código de acesso: 5638-2688-2760 (disponível em https://bde.portaldocidadao.pt/evo/Services/Online/Pedidos.aspx?service=CCP).

[20] Afirmam os recorrentes que “o Tribunal 'a quo' decidiu, através do acórdão de que vem o presente recurso, sem tomar posição sobre essa matéria” (alegação 2.ª).

[21] Segue-se aqui Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração – Artigos 1.º a 702.º, cit., p. 329).

[22] Por isso sendo, nomeadamente, obrigatória a constituição de advogado, entre outros, nos recursos [artigo 40.º, n.º 1, al. c), do CPC].

[23] Sobre isto cfr., por todos, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 397 e s. e pp. 431 e s.

[24] Em particular, a propósito do disposto no artigo 662.º do CPC, salienta Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra, Almedina, 2018, p. 339) que “[o] n.º 4 do artigo 662.º é perentório a determinar a irrecorribilidade das decisões através das quais a Relação exerce os poderes previstos nos n.ºs 1 e 2 (…). Portanto, o Supremo não pode julgar se a prova foi bem ou mal avaliada e se o facto foi bem ou mal dado como provado. Por ex., não é sindicável a reapreciação da prova sujeita à livre apreciação, como sejam a prova testemunhal, a prova por documento sem força probatória plena, a prova pericial e a prova por presunções judiciais”.

[25] Sobre isto cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.05.2019, Proc. 156/16.0T8BCL.G1.S2, relatado pela presente relatora (disponível em http://www.dgsi.pt).

[26] Diz-se, no Acórdão recorrido: “[n]o corpo das alegações, os recorrentes afirmam impugnar a matéria de facto dada como provada nos pontos 8, 20, 21, 22, 24, 28, 31, 37, 42, 43 e 47 (nº 2 do corpo das alegações). Porém, nas conclusões do recurso que, como é sabido, delimitam o objeto do recurso (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil), de forma implícita, os recorrentes apenas se referem aos pontos 20 (IIª conclusão), 24 (IIIª conclusão) e 31 (IVª conclusão), todos dos factos provados e de forma explícita aos pontos 42 e 43 dos mesmos factos (VIª e VIIª conclusões). Neste contexto, vista a função delimitadora do objeto do recurso desempenhada pelas conclusões das alegações (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil), o nosso labor em matéria de reapreciação da decisão da matéria de facto apenas incidirá sobre os pontos 20, 24, 31, 42 e 43 dos factos provados”.

[27] Na verdade, no artigo 30 da petição inicial, o autor refere-se erroneamente ao documento nº 9 como sendo o que comprova esta matéria, lapso que é ostensivo e que facilmente se deteta com a análise crítica da prova.

[28] Anote-se que na informação de 13 de fevereiro de 2007, o valor tributável do bem hipotecado era de € 7.906,35, passando para € 231.540,73 na informação de 23 de outubro de 2007, o que permite concluir que nesse ínterim o valor fiscal do prédio foi atualizado.

[29] Sublinhe-se que relativamente a esta fração está junta aos autos a folhas 151 e 152 cópia de certidão de inscrição matricial emitida em 23 de setembro de 2011, estando metade dessa fração então na titularidade do réu Célio, realidade registralmente comprovada pela informação da Conservatória do Registo Predial de … emitida em 27 de setembro de 2011 (folhas 195 e 196). Está também junta aos autos cópia da certidão da escritura pública de constituição da sociedade “EE – Imobiliária, SA” e na qual, além do mais, o réu CC declara subscrever cento e quarenta e cinco mil euros do capital social da aludida sociedade mediante entrada em espécie, uma das quais (a nona), respeita precisamente à fração “I”. Finalmente, da informação da Conservatória do Registo Predial de …, emitida em 19 de março de 2015, referente à fração “I” (folhas 318), resulta que foi adquirida por HH à sociedade EE – Imobiliária, SA, inscrição titulada pela apresentação 3096, de 27 de outubro de 2014.

[30] Cfr., expressamente neste sentido, entre outros, Catarina Serra, Direito Comercial – Noções fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 157, e Alexandre de Soveral Martins, “Da personalidade e capacidade jurídicas das sociedades comerciais”, in: Jorge Coutinho de Abreu (coord.), Estudos de Direito das Sociedades, Coimbra, Almedina, 2015 (12.ª edição), pp. 90-91.

[31] Cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II – Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 1983, pp. 66-67. Cfr. ainda, entre outros, Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II – Artigos 762.º a 1250.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1986, p. 8, Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de Direto dos Contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 325, e José Brandão Proença, in: Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das obrigações em geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p. 1036.

[32] Quanto à violação do artigo 128.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 62/2013, de 26.08, e dos artigos 65.º, 96.º, al. a), 97.º, n.º 1, e 99.º do CPC, alegada na mesma sequência, a sua formulação foi antecipada (3.ª questão).

[33] Cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II – Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico, cit., pp. 337 e s.

[34] Cfr. Carlos da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2005 (4.ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto), p. 557.

[35] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2009, Proc. 115/09.0TBPTL.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).

[36] A afirmação (e a sugestiva expressão) é de Luís Filipe Pires de Sousa [Prova por presunção no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 2013 (2.ª edição)] (sublinhados do autor).

[37] Neste sentido cfr., só para um exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2016, Proc. 377/09.2TBACB,L1.S1.

[38] Cfr. o Acórdão ult. cit.

[39] Relativamente às presunções judiciais, há sempre que observar o disposto no artigo 351.º do CC. Aí se estabelece que ela só é admissível “nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal”. São aplicáveis, em particular, as normas dos artigos 392.º e 393.º do CC, respeitantes à admissibilidade e à inadmissibilidade da prova testemunhal. Interpretando estas normas, é possível dizer, pela positiva, que a prova testemunhal e, consequentemente, as presunções judiciais são admissíveis sempre que não sejam directa ou indirectamente afastadas e não esteja em causa uma declaração negocial que tenha de ser reduzida a escrito ou necessite de ser provada por escrito ou um facto plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena. Ora, é manifesto que, no caso em apreço, não se configura nenhuma das hipóteses em que a lei veda o recurso à prova testemunhal e, por remissão, às presunções judiciais.

[40] Com o mesmo raciocínio a propósito das presunções judiciais, veja-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.01.2014, Proc. 208/06.5TBARC.P1.S1, ou, pela positiva, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.06.2011, Proc. 6450/05.9TBSXL.L1.S1, onde se diz que (só) “[c]abe no âmbito de um recurso de revista e nos poderes cognitivos que nele exerce o STJ controlar se a Relação extravasou os poderes de substituição ao tribunal recorrido na valoração da matéria de facto que resultam do preceituado no nº1 do art. 712º e, bem assim, se fez ou não um uso processualmente legítimo das presunções naturais, cuja substância ou conteúdo se não está, desta forma, a pretender sindicar” (disponíveis em http//www.dgsi.pt).
[41][41] Não podem ser invocadas em processo executivo as cláusulas que subordinam a transmissão o consentimento da sociedade e à existência de certos requisitos (artigo 328.º, n.º 2, als. a) e c), e artigo 328.º, n.º 5, do CSC).
[42] Cfr. Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II – Fontes, conteúdo e garantia da relação jurídica, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2001 (3.ª edição) p. 580 e p. 583 (sublinhados do autor).
[43] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II – Parte Geral – Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 2014 (4.ª edição), p. 580 e p. 583.
[44] Cfr. Ana Filipa Morais Antunes, “Negócio em fraude à lei”, cit., p. 184 (sublinhados da autora).
[45] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II – Parte Geral – Negócio Jurídico, cit., pp. 582-583.
[46] Cfr. Ana Filipa Morais Antunes, “Negócio em fraude à lei”, in: Elsa Vaz Sequeira / Fernando Oliveira e Sá, Edição do Cinquentenário do Código Civil, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2017, p. 179.
[47] Cfr. Ana Filipa Morais Antunes, ob. cit., p. 183.
[48] Cfr. Ana Filipa Morais Antunes, ob. cit., p. 184.
[49] A admitir-se este raciocínio, estando em causa o atentado a direitos de terceiros (aproveitamento de uma sociedade com o intuito de prejudicar terceiros), a situação cairia no grupo de casos de responsabilidade (Haftungdurchgriff ou Durchgriffshaftung), em conformidade com a sistematização desenvolvida pela doutrina alemã. Sobre este grupo de casos típicos cfr. Jorge Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II — Das sociedades, cit., pp. 170 e s.
[50] Trata-se de uma sociedade anónima com um pequeno número de sócios, normalmente ligados entre si por relações de proximidade, e em que a transmissão de acções não é livre [em que o contrato social prevê limites à transmissão das acções (nominativas)], indicando que a sociedade é avessa à “intromissão” de terceiros.
[51] Na realidade, a ilicitude existiria ainda que a sociedade já estivesse constituída antes.
[52] Cfr., sobre as consequências da autonomia patrimonial das sociedades comerciais, brevemente, Catarina Serra, Direito Comercial – Noções fundamentais, cit., pp. 158 e s.
[53] Cfr., por todos, Catarina Serra, “Desdramatizando o afastamento da personalidade jurídica (e da autonomia patrimonial)”, in: Julgar, 2009, n.º 9, pp. 111 e s.