Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8284/07.7TBBRG.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PAULO SÁ
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
REQUISITOS
NULIDADE
USO PARA FIM DIVERSO
CÂMARA MUNICIPAL
DESPESAS DE CONSERVAÇÃO DE PARTES COMUNS
Data do Acordão: 02/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO ADMINISTRATIVO - PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO - LICENCIAMENTO OU AUTORIZAÇÃO DAS OPERAÇÕES DE LOTEAMENTO URBANO, OBRAS DE URBANIZAÇÃO E OBRAS PARTICULARES.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE.
Doutrina:
- ABÍLIO NETO, Manual da Propriedade Horizontal, 3.ª Edição, 2006, pp. 29, 30, 81 e 82.
- HENRIQUE MESQUITA, “A propriedade horizontal no Código Civil Português”, Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXIII, pp. 94-95, nota 41, 130.
- JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, colecção TESES, Almedina, Coimbra, p. 297.
- MARCELO CAETANO, Direito Administrativo, I, p. 417 e II, p. 1028.
- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição revista e actualizada, p. 269; Vol. III, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, pp. 401, 411, 412.
- SANDRA PASSINHAS, A assembleia dos condóminos e o administrador na propriedade horizontal, 2ª edição, Almedina, Coimbra, pp. 49 e 50.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 280.º, 281.º, 294.º, 350.º, N.º2, 1306.º, N.º1, 1414.º, 1415.º, 1416.º, 1418.º, N.º3, 1420.º, N.º1, 1421.º, 1424.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 1429.º-A.
CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 266.º, N.º 1.
REGULAMENTO DE LICENCIAMENTO DE OBRAS PARTICULARES, APROVADO PELO DEC-LEI 445/91, DE 20 DE NOVEMBRO, ALTERADO PELO DEC-LEI 250/94, DE 15 DE OUTUBRO: - ARTIGO 28.º, N.º1.
REGULAMENTO GERAL DAS EDIFICAÇÕES URBANAS (RGEU): - ARTIGO 50.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 23-11-2004, IN WWW.DGSI.PT ;,
- DE 12.09.2013, PROCESSO N.º 3271/03.7TBOER.L1.S1.
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ASSENTO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 10 DE MAIO DE 1989.
Sumário :

I - Há nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, quando faltam os requisitos exigidos no art. 1415.º do CC e ainda outros requisitos, de natureza administrativa – a que subjazem interesses de ordem pública –, designadamente a não conformidade entre o fim ou utilização conferido, no referido título, a cada fracção ou parte comum e o fim ou utilização que consta no projecto aprovado pela câmara municipal.
II - Compete exclusivamente ao título constitutivo da propriedade horizontal a definição do estatuto jurídico das diversas partes do edifício.
III - Tendo sido respeitado o fim ou destino constante do projecto aprovado para determinado espaço, é indiferente que, no título constitutivo da propriedade horizontal, tal espaço integre as partes comuns do edifício ou se inclua no sector das fracções autónomas.
IV - O facto das três caves, segundo o projecto de construção, se destinarem a estacionamento ou a estacionamento privativo dos condóminos, não exclui a possibilidade das construtoras, no título constitutivo da propriedade horizontal, as autonomizarem, como fizeram, erigindo-as em 61 fracções autónomas, para estacionamento automóvel.
V - A construção de uma garagem privativa a ocupar o lugar de garagem existente e ainda parte da caixa dos elevadores, de natureza comum, embora implique alteração do projecto construtivo, não comporta desconformidade que ponha em causa interesses de natureza e ordem pública (segurança e solidez das edificações) e, em segunda linha, interesses privados dos condóminos na utilização dos elevadores e do espaço destinado a aparcamento.
VI - Em matéria de repartição da responsabilidade pelas despesas a efectuar com as partes e serviços comuns, a natureza supletiva do art. 1424.º do CC permite a fixação de critérios diversos dos assentes no valor das fracções, atendendo, por exemplo, à sua localização ou destino ou ao uso que lhes seja dado, nada impedindo que, no caso de a iluminação de uma garagem privativa depender de uma ligação ao sistema de iluminação das zonas comuns, seja estipulada, no estatuto do condomínio, a participação nas despesas por parte do condómino utilizador em quantia diversa dos restantes.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – AA intentou, na Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Braga, acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma ordinária, contra BB e mulher CC, DD, EE e mulher FF, Banco GG, S.A, HH e mulher II, JJ, Caixa KK, LL, MM e mulher NN, OO e mulher PP, QQ e mulher RR, Banco SS, S.A e TT e mulher UU, pedindo:

a) que seja declarada a nulidade parcial da escritura de constituição da propriedade horizontal do prédio de cujas fracções Autores e Réus são proprietários, quanto à descrição da fracção “…” na parte em que integra na mesma “uma garagem privativa na cave para recolha de veículo automóvel”, substituindo-a por “lugar na garagem comum da cave”;

b) a condenação dos 13.ºs Réus a demolir a edificação que envolve a garagem privativa, a fechar a abertura do portão que lhe dá acesso com materiais idênticos aos da parede comum onde foi aberto, bem como a reconstruir as caixas destinadas aos elevadores, restituindo a cave do prédio à configuração constante da planta objecto de licenciamento; e

c) que seja ordenado o cancelamento do registo no que respeita à descrição da fracção “…” na parte em que refere “uma garagem privativa na cave para recolha de veículo automóvel”, substituindo-a por “lugar na garagem comum da cave”.

A fundamentar este pedido alegou, em suma:

É proprietária da fracção “…” do prédio urbano, composto de cave, rés-do-chão e quatro andares, sito actualmente na ..., para onde tem os números …, … e … de polícia e ..., para onde tem os números … e … de polícia, da freguesia de Braga, o qual foi constituído em propriedade horizontal por escritura pública outorgada em 05-‑01-1988 pelos 5.ºs Réus (HH e FF), que eram então seus proprietários.

Nessa escritura foi declarado, nomeadamente, que a fracção “…” (actualmente pertencente aos 13.ºs Réus EE e UU) era composta de uma garagem privativa na cave para recolha de um veículo automóvel, a qual foi aí edificada e envolvida em paredes de cimento e tijolo, ocupando um espaço de 18 m2, com uma abertura para acesso directo ao exterior onde foi colocado um portão em metal, com vista a garantir a exclusividade da utilização pelo seu proprietário.

Esta escritura de constituição de propriedade horizontal foi, porém, elaborada em desconformidade com o licenciamento administrativo da mesma que previa que a cave destinada a garagem fosse comum e não autorizava a construção daquele espaço privativo fechado, que se encontra a ocupar zonas de manobra e aparcamento, bem como destinadas às caixas de elevador que, por tal razão, não chega à cave do prédio, como fora previsto no licenciamento.

Esta desconformidade e a circunstância da garagem privativa não reunir as condições de individualização e autonomia previstas no art.º 1415.º do Cód. Civil determina a nulidade parcial do título constitutivo.

Os 13.ºs Réus TT e UU contestaram, nos termos de fls. 267 a 271, alegando que adquiriram a fracção “…” aos 5ºs Réus HH e FF, por escritura pública outorgada no dia 21-03-1989, da qual fazia parte integrante a referida garagem privativa que, na data da aquisição, já existia na cave e que foi construída por estes últimos.

Declinaram, assim, qualquer responsabilidade na eventual desconformidade entre a escritura de constituição da propriedade horizontal e as plantas, imputando-a aos 5ºs Réus, vendedores e construtores do imóvel, pugnando, com este fundamento, pela sua ilegitimidade.

Excepcionaram, ainda, a prescrição do direito, por se encontrarem na posse titulada e de boa-fé da referida garagem há mais de quinze anos, tendo ainda invocado a respectiva aquisição por usucapião.

Por fim, impugnaram a factualidade alegada pela Autora respeitante ao uso por si dado à garagem e alegaram que a mesma não impede a circulação de pessoas e veículos, nem a realização de manobras.

Concluíram, pedindo a improcedência total da acção e a procedência das excepções por si invocadas.

A A. replicou, pugnando pela legitimidade dos Réus contestantes e pela improcedência da excepção de prescrição, já que o prazo de prescrição ordinário é de 20 anos e a nulidade pode ser invocada a todo o tempo.

Acrescentou, ainda, que estes Réus não podem opor-lhe a posse e aquisição do direito de propriedade sobre a garagem, uma vez que até ao registo da presente acção não haviam registado esta aquisição, tendo ainda impugnado a factualidade invocada na contestação respeitante à posse.

Por fim, requereu a intervenção principal de ZZ e mulher AAA e de BBB e mulher CCC, por se tratarem dos actuais proprietários das fracções “…” e “…”, respectivamente.

A intervenção principal provocada dos identificados proprietários foi admitida, não tendo pelos mesmos sido apresentado articulado.

Os 13.ºs Réus treplicaram, invocando que a Autora actua com abuso de direito.

Constatado o falecimento do 10.º Réu, OO, procedeu-se à habilitação dos respectivos sucessores (a sua viúva e aqui também 10.ª Ré PP e o filho de ambos DDD), por sentença proferida a fls. 19 e 20 do apenso A.

O despacho saneador foi elaborado e no mesmo foram julgadas improcedentes as excepções de ilegitimidade e de prescrição.

De seguida, foi seleccionada a matéria assente e a base instrutória, a qual mereceu a resposta constante dos autos.

Realizada a audiência de julgamento, no final foi proferida sentença, a julgar totalmente improcedente a acção e, em consequência, a absolver os RR. dos pedidos.

A A. interpôs recurso de apelação, sem êxito, já que a Relação julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença.

De tal acórdão veio a A. interpor recurso de revista, recurso que foi admitido.

A recorrente apresentou as suas alegações, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:

1ª) Está comprovado que a autorização municipal para a constituição da propriedade horizontal impunha que a cave se destinasse a espaço amplo comum para garagem

2ª) Como espaço amplo comum para garagem, previa-se que cada condómino titular de fracções com direito de aparcamento de viatura, poderia circular sem limitação na garagem comum, e aparcar o seu veículo, indistintamente em qualquer dos locais disponíveis que mais lhe conviesse, sem que se reservasse qualquer privilégio ou vantagem de designação fixa de um espaço para um determinado condómino;

3ª) Está comprovada a profunda desconformidade emergente da edificação da “garagem privativa da fracção “…”, na zona licenciada para espaço amplo comum para garagem, pois, quanto à titularidade dessa utilização a mesma sofre uma profunda alteração – deixa o referido espaço de estar afecto ao uso comum para estar afecto ao uso e propriedade de um só condómino

4ª) Daqui resulta, uma evidente e gravosa desconformidade entre a configuração da cave no licenciamento municipal e a que lhe veio a ser dada pela escritura de propriedade horizontal na subtracção à garagem de uso comum, para edificação de uma garagem privativa e fechada

5ª) Como se provou, com a desconformidade, licença/título, ficou impossibilitada a circulação e manobra de veículos na zona onde foi implantada e que foi licenciada para ser um espaço comum

6ª) Quando no art.º 1418.º n.º 2 alínea a) alude ao “fim” a que se destina cada fracção ou parte comum, pretende-se precisamente que seja fixado em relação a cada espaço do prédio, não só o tipo de uso que se vai fazer do espaço (habitação, arrumos, estacionamento de veículo) mas ainda se esse uso é reservado apenas a um dos condóminos ou a todos indistintamente

7ª) Se se entende que “o ponto fulcral reside na falta de conformidade entre o fim ou utilização que, relativamente a determinado espaço, consta do projecto aprovado, e o fim ou utilização que é conferido a esse espaço pelo título constitutivo da propriedade horizontal” (Ac. STJ de 23/11/2004, in www.dgsi.pt, doc. SJ200411230035386), a falta de conformidade é evidente quando se desvia para a utilização exclusiva de um condómino uma parte do edifício destinada a zona comum de usufruto de todos indistintamente;

8ª) Resultando provado que edificação da dita garagem privativa se estende para uma zona onde fora licenciada a colocação das caixas de elevadores, ocupando e vedando esse espaço, a alteração do fim a que se destina o espaço não é aqui só quanto à titularidade comum ou privada do uso do mesmo, mas do próprio tipo de utilização

9ª) Passar a garagem privada de recolha uma zona destinada às caixas dos elevadores é uma gritante desconformidade entre o fim constante da autorização administrativa para a constituição da propriedade horizontal e a escritura notarial respectiva para os efeitos da nulidade cominada no n.º 3 do art.º 1418.º do CCiv;

10ª) A nulidade prevista no n.º 3 do art.º 1418.º do CCiv decorre ope legis da verificação de divergência entre o fim estabelecido para uma fracção ou zona comum na escritura da propriedade horizontal e no projecto aprovado pela entidade pública competente sem que o legislador estabeleça qualquer restrição ou condicionamento complementar para a declaração de nulidade;

11ª) A edificação da garagem privativa em questão, sobre o local destinado às caixas dos elevadores no licenciamento municipal inviabilizando a montagem e funcionamento de tais equipamentos, independentemente de ser ou não obrigatória a existência de elevadores no prédio em questão, configura sempre desconformidade intolerável entre os requisitos do licenciamento municipal e a escritura de constituição da propriedade horizontal, determinando a nulidade parcial desta;

12ª) Resultando provado que “a iluminação da garagem depende de uma ligação ao sistema de iluminação das zonas comuns” não tendo sequer sido prevista ligação de alimentação eléctrica particular para a dita garagem privativa, resulta que a mesma não reúne sequer as condições de isolamento e autonomia que o art.º 1415.º do CCiv exige para as fracções autónomas, determinando também por isso a nulidade parcial do título constitutivo no que respeita à “privatização” descrita, por via do disposto no art.º 1416.º n.º 1 do CCiv;

13ª) O pedido de condenação dos actuais titulares da fracção em causa, na demolição da vedação da garagem privativa e reposição do estado amplo da garagem comum como licenciado, é consequência do dever emergente da declaração de nulidade, de reposição do status quo anterior à realização do negócio declarado nulo nos termos do disposto no art.º 289.º do CCiv;

14ª) Não decorre de qualquer responsabilidade civil extracontratual emergente de acto ilícito de ante-possuidor da fracção;

15ª) Provada a desconformidade licença/escritura quanto ao uso e destino do espaço em causa, há nulidade parcial do título que importa a sua redução pela eliminação da “garagem privativa” da descrição da fracção “…”, mantendo-se o espaço amplo para garagem na cave nas zonas comuns do edifício;

16ª) Violou a decisão recorrida o disposto nos art.ºs nos art.ºs 1415.º, 1416.º n.ºs 1 e 2, 1418.º e 1421.º n.º 1 c) e n.º 2 d) todos do CCiv.

Pede, em consequência, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que julgando a acção provada e procedente, declare a nulidade parcial do título constitutivo, no que respeita à inclusão da “garagem privativa” na fracção “…”, com a sua passagem à zona comum de cave ampla para garagem, e condene os RR. nos pedidos formulados na petição inicial.

Houve resposta dos recorridos TT e mulher.

Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A) De Facto

Foi dada como assente a seguinte matéria de facto:

1. Por escritura pública outorgada em 5 de Janeiro de 1988, no 1.º Cartório Notarial de Braga, foi constituída a propriedade horizontal do prédio urbano composto de cave, rés-do-‑chão e quatro andares, sito no lugar do ... ou ..., actualmente ..., para onde tem os números …, … e … de polícia e ..., para onde tem os números … e … de polícia, da freguesia de Braga (São …), na data omisso na matriz predial [A) dos factos assentes];

2. A escritura foi outorgada pelos Réus HH e esposa II, na qualidade de donos e legítimos possuidores do mencionado prédio [B) dos factos assentes];

3. Foi então declarado que o prédio reunia os requisitos necessários para que fosse instituído o regime da propriedade horizontal, sendo constituídas 12 fracções autónomas que são distintas e isoladas entre si [C) dos factos assentes];

4. Foram descritas as 12 fracções autónomas, designadas pelas letras A a M, sendo as designadas pelas letras E a M com um lugar de garagem comum da cave, para recolha de veículo automóvel, com ressalva da fracção …, relativamente à qual ficou a constar que se compunha de: “terceiro andar direito, lado poente, para habitação, com uma garagem privativa na cave para recolha de um veículo automóvel, a que atribuem o valor relativo de cem mil avos e o valor venal de trezentos contos.” [D) dos factos assentes];

5. A propriedade horizontal constituída pela escritura pública foi inscrita no registo predial sob o n.º … [E) dos factos assentes];

6. Por escritura pública de compra e venda outorgada em 25 de Julho de 1988, no 2.º Cartório Notarial de Braga, o chamado BBB declarou comprar e os Réus HH e esposa II declararam vender a fracção autónoma designada pela letra … do indicado prédio […) dos factos assentes];

7. Por escritura pública de compra e venda outorgada em 28 de Setembro de 1988, no 2.º Cartório Notarial de Braga, a Autora declarou comprar e os Réus HH e esposa II declararam vender a fracção autónoma designada pela letra … do indicado prédio [G) dos factos assentes];

8. Por escritura pública de compra e venda outorgada em 21 de Março de 1989, no 2.º Cartório Notarial de Braga, o Réu TT declarou comprar e os Réus HH e esposa II declararam vender a fracção autónoma designada pela letra … do indicado prédio […) dos factos assentes];

9. Por escritura pública de compra e venda outorgada em 31 de Outubro de 2007, no Cartório Notarial de Vila Verde, do notário EEE, ZZ declarou comprar e LL, com o consentimento da esposa FFF, declarou vender a fracção autónoma designada pela letra … do indicado prédio […) dos factos assentes];

Em 14/11/2007 foi efectuado o registo da presente acção na Conservatória do Registo Predial, em averbamento à inscrição da fracção autónoma designada pela letra …, do indicado prédio […) dos factos assentes];

10. Em 19/12/2007 foi efectuado o registo da aquisição da mesma fracção …, a favor do Réu TT [K) dos factos assentes];

11. No processo de verificação das condições para a constituição da propriedade horizontal do prédio identificado em 1) encontra-se certificado pela Câmara Municipal de Braga que o mesmo é constituído por doze fracções autónomas, sendo quatro destinadas a estabelecimentos comerciais e oito a habitação, sendo a cave comum para garagens (resposta ao facto 1.º da base instrutória);

12. No espaço comum da cave foi edificada uma garagem com cerca de 18 m2 de espaço bruto construída em paredes de cimento e tijolo (resposta aos factos 2.º e 3.º da base instrutória);

13. Foi aberto um acesso directo dessa garagem ao exterior em local onde, no projecto licenciado, se previa uma parede de alvenaria de tijolo através da parede de suporte do edifício (resposta ao facto 4º da base instrutória);

14. Esse acesso é constituído por uma abertura com 2,60 m de largura por 2,10 m de altura, na qual foi colocado um portão em metal basculante, permitindo o acesso exclusivo à garagem privativa assim edificada (resposta aos factos 5.º, 6.º e 7.º da base instrutória);

15. Do projecto camarário licenciado consta que a cave, com uma área de implantação de 15 x 15 metros, é composta por um núcleo central com uma área de 3,15 x 6 metros, onde se localizam a caixa de escadas e elevadores, sendo o demais espaço amplo destinado a garagem (resposta ao facto 9.º da base instrutória);

16. Foram previstas duas aberturas nas extremidades para acesso directo à zona comum de acesso automóvel a este e aos restantes prédios (resposta ao facto 10.º da base instrutória);

17. A única construção licenciada na cave é um rectângulo formado por quatro paredes no centro da cave, destinado a caixa de escadas e caixa de dois elevadores (resposta ao facto 11.º da base instrutória);

18. A garagem privativa foi construída entre os dois portões, prologando-se as suas paredes laterais desde a parede comum da entrada, entre dos dois portões, até ao local das caixas de escadas, ocupando parcialmente a zona destinada às caixas de elevadores (resposta aos factos 12.º, 13.º e 14.º da base instrutória);

19. Quem desce as escadas de acesso do r/c à cave encontra a porta de acesso à garagem privativa em lugar das caixas de elevadores (resposta ao facto 15.º da base instrutória);

20. A edificação da garagem privativa determinou a impossibilidade de circulação e manobra de veículos na zona onde foi implantada (resposta ao facto 16.º da base instrutória);

21. A iluminação da garagem depende de uma ligação ao sistema de iluminação das zonas comuns (resposta ao facto 17.º da base instrutória);

22. Os Réus TT e esposa, por si e seus arrendatários, encontram-se no uso e fruição da garagem privativa desde 21/3/1989, ininterruptamente, com o conhecimento de todos, sem oposição de ninguém, para além da aqui Autora e na convicção de serem donos (resposta aos factos 18.º, 19.º, 20.º, 21.º e 22.º da base instrutória);

23. A aludida garagem tem 18 m2 de espaço bruto e as seguintes dimensões interiores: 4,30m x 3,20m + 1,40m x 1,30m (zona ocupada da caixa de elevador), totalizando uma área útil interior aproximada de 15,58 m2 e foi construída pelo Réu HH (resposta aos factos 23.º e 24.º da base instrutória);

24. O portão do lado esquerdo da aludida garagem dá acesso a três lugares de estacionamento, incluindo o correspondente à fracção … e o portão do lado direito dá acesso a três lugares de estacionamento (resposta aos factos 25.º e 26.º da base instrutória).

B) De Direito

1. A recorrente suscita as seguintes questões:

a) Nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal;

b) Dever de demolição e de reposição da garagem como espaço comum.

2. As fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal, sendo certo que só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública (arts. 1414.º e 1415.º do Código Civil, doravante, apenas CC).

A nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal está consagrada no artigo 1416.º do mesmo código, para o caso de o mesmo ter sido exarado sem os requisitos exigidos.

A par destes requisitos do art.º 1415.º do CC (as diversas fracções que o integrem formem unidades independentes, que sejam distintas e isoladas entre si, que disponham de saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública e que pertençam ou venham a pertencer a proprietários diversos), foi-se consolidando o entendimento de que a falta de outros requisitos, de natureza administrativa, designadamente a prévia existência de um projecto aprovado pela câmara municipal, no qual se encontre definido o destino a dar a cada fracção ou às partes comuns poderiam determinar a mesma nulidade (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, p. 401, defenderam que a alteração da finalidade constante do projecto não implica nulidade, citando no mesmo sentido o Ac. do S.T.J., de 21-12-1982, in BMJ n.º 322.º, pp. 333 e ss).

Finalmente, dispõe o art.º 1418.º do CC:

“1 – No título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.

2 – Além das especificações constantes do número anterior, o título constitutivo pode ainda conter, designadamente:

a) Menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum;

b) Regulamento do condomínio, disciplinando o uso, fruição e conservação, quer das partes comuns, quer das fracções autónomas;

c) Previsão do compromisso arbitral para a resolução dos litígios emergentes da relação de condomínio.

3 – A falta da especificação exigida pelo n.º 1 e a não coincidência entre o fim referido na alínea a) do n.º 2 e o que foi fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente determinam a nulidade do título constitutivo.”

Este n.º 3, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de Outubro, acolheu a doutrina do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Maio de 1989 – agora com o valor dos Acórdãos uniformizadores de jurisprudência, nos termos dos art.ºs 732.º-A e 732.º-B, do Código de Processo Civil, ex vi do art.º 17.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro – segundo o qual “Nos termos do artigo 294.º do Código Civil, o título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao atribuir a parte comum ou a fracção autónoma do edifício, destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela câmara municipal.”.

E assim acontece porque, tanto a fixação inicial do fim a que se destinam as fracções, como a ulterior alteração do seu uso contendem, em primeira linha, com interesses de natureza e ordem pública, e, em segunda linha, com interesses privados.

De facto, é evidente que os interesses subjacentes a toda esta disciplina são os interesses públicos prosseguidos pelas câmaras municipais.

Nos termos do artigo 266.º, n.º 1, da Constituição da Republica Portuguesa (CRP), a Administração Pública visa a prossecução do interesse público e, como ensina JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA (Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, colecção TESES, Almedina, Coimbra, p. 297), “a única garantia de que assim seja efectivamente em cada acto concreto praticado pela Administração é a de que não seja deixada casuisticamente ao seu autor a definição e a escolha do interesse a prosseguir. Tal opção, continua o referido professor, deve anteceder lógica e cronologicamente a definição das situações jurídico-‑administrativas concretas”.

 De acordo com as citadas normas legais, as câmaras municipais não escolhem discricionariamente o interesse público a prosseguir, pois este está predeterminado em função de critérios gerais, como sejam os da urbanização, estética, segurança e equilíbrio económico das construções que licenciam.

Mas sendo essa a razão de ser de tal exigência, a especificação feita num projecto de construção, no sentido de que a cave do edifício a construir se destinar a estacionamento não pode condicionar a futura organização da propriedade horizontal, impondo designadamente a inclusão dessa cave no elenco das respectivas partes comuns.

Para a lei, o ponto fulcral reside na falta de conformidade entre o fim ou utilização que, relativamente a determinado espaço consta do projecto aprovado pela Câmara Municipal, e o fim ou utilização que a esse espaço é conferido pelo título constitutivo da propriedade horizontal.

Por tudo isto é que o artigo 294.º do CC considera como nulos os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo, aqui equiparada a norma de interesse e ordem pública, tal como ensinam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (obra citada, volume I, 4.ª edição revista e actualizada, p. 269).

Como referido nas instâncias compreende-se que assim seja, já que “A destinação de um piso a determinado fim está intimamente conexionada com as condições de segurança exigidas na construção dos edifícios e que variam em função do tipo de utilização previsto (vid. o Regulamento de Segurança e Acções para Estruturas de Edifícios e Pontes, aprovado pelo DL n.º 235/83, de 31-5, cujo art. 35.º, ao definir as sobrecargas em pavimentos, distingue entre utilizações em que a concentração de pessoas é o elemento preponderante e as utilizações em que o elemento preponderante não é a concentração de pessoas). (...) Assim o exige o interesse público consubstanciado na indispensável salvaguarda da segurança e solidez das edificações.” (cfr. ABÍLIO NETO, Manual da Propriedade Horizontal, 3.ª Edição, 2006, pp. 81 e 82).

Do mesmo modo, “se a fracção se destina a estabelecimento comercial terá de preencher os requisitos fixados no Regulamento Geral de Higiene e Segurança no Trabalho nos Estabelecimentos Comerciais (Decreto-Lei n.º 243/86, de 20-8)”, etc. etc.

Ou seja, o que o n.º 3 do art.º 1418.º veda, sob pena de nulidade, é que se estabeleça, no título constitutivo da propriedade horizontal, como fim a que se destina cada fracção ou parte comum, algo de diferente do que foi fixado no projecto aprovado pela entidade competente.”

Mas já não a definição do estatuto jurídico das diversas partes do edifício – correspondentes às diversas fracções, ou comuns – em divergência do constante do projecto aprovado.

Tal definição, e para além do que resulta directamente da lei – cfr. art.º 1421.º, do Código Civil – é da estrita esfera do título constitutivo da propriedade horizontal, o qual, nas palavras de HENRIQUE MESQUITA “A propriedade horizontal no Código Civil Português”, Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXIII, pp. 94-95, nota 41, é “um acto modelador do estatuto da propriedade horizontal e as suas determinações têm natureza real.“

Trata-se de um dos poucos casos em que aos particulares se permite, através de negócios de conteúdo normativo, fixar o regime dos direitos reais (cfr. art.º 1306.º, n.º 1, do CC) o qual deixa, assim, de ser um regime integralmente taxativo – neste sentido PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, obra citada, vol. III, p. 411.

Sendo que a circunstância de lugares de estacionamento numa cave, que, no projecto aprovado, se não mostravam individualmente afectos a específicas fracções autónomas, ter ficado, num caso, a integrar, de acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal, uma fracção autónoma, com especificações e características de “garagem privativa” em nada contende com a definição do fim ou utilização de tais lugares, como estacionamento, no mesmo projecto.

No acórdão deste Tribunal de 12.09.13, proferido no processo n.º 3271/03.7TBOER.L1.S1 afirmou-se que o Assento de 10.05.89 «versou sobre um caso em que houve violação do destino de fracção autónoma, em infracção a projecto aprovado por uma Câmara Municipal.

Como afirma Rui Vieira Miller – obra citada – págs. 87 e 88 – em anotação ao art. 1416.º do Código Civil, em alusão ao direito anterior:

“Não existia nele preceito correspondente.

O não se enunciarem, na lei anterior, as consequências da falta dos requisitos legalmente exigidos para a constituição da propriedade horizontal, resultava talvez do facto de, conforme os §§ 1.º e 2.º do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 40 333, a existência desses requisitos ter que ser previamente afirmada pela câmara municipal – mediante vistoria ou através de aprovação do projecto da obra – ou por vistoria judicial.

O sistema era, porém, imperfeito porque apenas tinha consequências negativas – a proibição de constituir a propriedade horizontal – sem abrir qualquer solução para a situação decorrente de cada caso. …[…].

Com efeito – escreveu sobre esse problema Armando Guerra (…) – a única solução possível é a de “se ter de considerar o acto nulo quanto à disposição visando a instituir a propriedade horizontal, ficando os respectivos interessados em mero regime de compropriedade no imóvel, na proporção instituída, se tal tiver sido declarado, ou, em caso de omissão, a que se averigue que corresponda à intenção do testador, ficando em comum e partes iguais, desde que esse apuramento não seja possível fazer-se”.

O referido autor, comentando o Assento antes citado, e o regime de nulidade parcial que prevê, escreve na pág. 91:

 “Acresce que a verificação da nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal não tem ainda a consequência assinada, como regra, no art. 289.º – a restituição ao estado anterior – mas antes implica uma conversão legal do negócio jurídico viciado (neste sentido, Henrique Mesquita, ob., cit., pág. 276, e R.D.E.S., cit. pág. 88, nota 27; Ribeiro Mendes, loc. cit., pág. 52.) – situação que, por exemplo, também se verifica nos casos dos arts. 946.º, nº 2, e 2251.º, n.º 2 – independentemente das condições expressas no art. 293.º, uma vez que o prédio em relação ao qual se pretendeu instituir o regime da propriedade horizontal ficará necessariamente sujeito ao da compropriedade, correspondendo a cada condómino a quota equivalente à percentagem ou permilagem que o título invalidado lhe tivesse atribuído ou, na sua falta, ao valor da fracção que nele lhe tivesse sido destinada.

É certo que este regime de compropriedade poderá ser afastado pelos interessados estabelecendo um outro que, nesse caso, porém, resultará não já da nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, mas de outro negócio jurídico autónomo”.

Abordando a questão da nulidade parcial do título e suas consequências – Abílio Neto, in “Manual da Propriedade Horizontal”, 2006 – págs. 29 e 30 – escreve:

“Quando ocorra essa hipótese, a sanção deste art. 1416.º – subordinação ao regime de compropriedade – deve ser aplicada apenas às fracções constituídas com ofensa da lei, passando, assim, a vigorar entre os titulares dessas mesmas fracções o regime da compropriedade. Entre os restantes, nada impedirá, em princípio, que continue a vigorar o regime da propriedade horizontal, com as correcções e ajustamentos impostos por aquela conversão (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª ed., pág. 402, e Henrique Mesquita, A Propriedade Horizontal, em Rev. Dir. Est. Sociais, XXIII, 1976, pág. 88, nota 26; em sentido divergente, vid. Ac. RP, de 26.1.1993).

Assim, se se instituir como fracção autónoma cada local de estacionamento separado dos restantes apenas por um traço ou um risco de tinta, faltam os requisitos da distinção, independência e o isolamento de cada fracção em relação às outras, requisitos fundamentais nos termos do disposto nos arts. 1414.º e 1415.º do Código Civil. Portanto esta propriedade horizontal não vale enquanto tal, pelo que os compradores das fracções autónomas – apartamentos e lojas – não são donos dessas fracções, mas comproprietários de todo o espaço das garagens, na percentagem ou permilagem igual à da sua fracção, em relação a todo o prédio”.

A expressão “a falta de requisitos legalmente exigidos” que consta no art. 1416.º, n.º 1, do Código Civil, abrange não só os enumerados no art. 1415.º, mas também os “concretizados pelas competentes autoridades camarárias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas”, que são de interesse e ordem pública.

A ofensa a preceitos regulamentares do interesse geral e ordem pública, portanto, imperativos, implica nulidade, nos termos do art. 294.º do Código Civil. – Ac. da Relação de Lisboa, de 26.1.1993, JTRL00002367, in www.dgsi.pt

Analisando uma situação de discrepância entre o título constitutivo da propriedade horizontal, a vistoria camarária e à situação de facto existente à data em que adquiriu a fracção …, que, segundo o Autor, lhe confere um lugar de aparcamento na cave, lugar que é recusado pela administração do condomínio e condóminos (réus na acção), em função do facto provado de que por causa de obras na cave apenas existe espaço para cinco veículos afirma-se aí:

«A lei coloca, assim, o acento tónico na falta de conformidade entre o fim ou a utilização que, relativamente a determinado espaço, consta do projecto aprovado pela entidade pública e o fim ou a utilização que a esse espaço é dado no título constitutivo da propriedade horizontal.

Daí que, não sendo desrespeitado esse fim ou destino assinalado no projecto para determinado espaço, seja indiferente que o mesmo, no título constitutivo da propriedade horizontal, integre as partes comuns do edifício ou faça parte do elenco das fracções autónomas do mesmo (todas ou apenas algumas).

No caso em presença, não ocorrerá esse desrespeito, uma vez que o título define a cave com espaço de estacionamento, sendo indiferente que, do projecto camarário, conste que o espaço de estacionamento é para as seis fracções.»

E continua:

«…uma coisa é o destino ou uso a dar a um compartimento, que se funda em razões de natureza estritamente técnica ligadas à segurança do edifício, e outra, bem diferente, a definição jurídico-real do mesmo compartimento, matéria que compete exclusivamente ao título constitutivo da propriedade horizontal, nos termos daquele art. 1418.º do Código Civil.

E daí o também ser lícito afastar a presunção do n.º 2 do art. 1421.º do Código Civil, afectando as partes aí referidas a uma ou outra fracção autónoma ou, inclusivamente, autonomizando-as, se as mesmas, para isso, reunirem os requisitos legais necessários – (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª ed., p. 411).

(...).

O art. 1418.º do Código Civil estabelece que o título constitutivo deve conter menções obrigatórias, aquelas a que alude o n.º 1, e facultativas, como decorre do n.º 2 – “Além das especificações constantes do número anterior, o título constitutivo pode ainda conter, designadamente.”

Abílio Neto, in “Manual da Propriedade Horizontal”, 3.ª edição, em anotação ao artigo citado a fls. 81 escreve:

‘“Obteve, desde modo, consagração expressa na lei a opinião já antes defendida por uma parte significativa quer da doutrina (v.g., Henrique Mesquita, A Propriedade Horizontal no Código Civil Português, em RDES, ano XXIII, 1976, pág. 93, nota 38; Borges de Araújo, Propriedade Horizontal, 1968, pág. 53; Carlos Chagas, A Propriedade Horizontal e os Notários, em Rev. Not., 1986, 3.º-334), quer da jurisprudência (vid., por todos, o Ac. Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.5.1999, em anotação ao art. 1416.º), segundo o qual se deveria considerar como meramente facultativa a indicação, no título constitutivo da propriedade horizontal do destino de cada uma das fracções e/ou das partes comuns, uso ou destino esse que tanto poderia resultar da descrição do prédio e/ou das fracções, como das características internas do espaço da fracção ou até do conjunto urbanístico em que o edifício se insere ou da sua localização.

Tem agora redobrada pertinência o seguinte passo de Borges de Araújo, A Propriedade Horizontal e o Notariado, 1990, pág. 36: “não considerou o nosso Código Civil relevante para efeito de constituição de propriedade horizontal a destinação do edifício a determinado fim, como também não exigiu que o destino constitua menção obrigatória no respectivo título constitutivo. Deste modo estaremos perante uma menção facultativa, embora de profundas repercussões na esfera dos direitos e obrigações dos condóminos. Na verdade se a escritura não especificar o fim a que o edifício é destinado, não carecerão os condóminos de autorização dos restantes para darem às suas fracções o uso que entenderem. Bastar-lhe-á obter as autorizações administrativas que eventualmente forem necessárias. Mas, se no título constitutivo for fixado o destino, já os condóminos terão não só de obter as mesmas autorizações administrativas, como ainda de solicitar o acordo dos outros condóminos para dar às suas fracções uso diverso do fim a que estiverem destinadas por disposição expressa do título constitutivo”.

Tanto a fixação inicial do fim a que se destinam as fracções, como ulterior alteração do seu uso contendem, em primeira linha, com interesses de natureza e ordem pública, e, em segunda linha, com interesses privados».

No sentido exposto, recorreu o acórdão atrás citado à jurisprudência do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2004, in www.dgsi.pt, onde se colocava a questão bem mais extrema que a destes autos de, «no projecto aprovado pela Câmara Municipal, as três caves se destinarem a "estacionamento" ou "estacionamento automóvel dos condóminos" tendo as rés construtoras, no momento da constituição da propriedade horizontal erigido tais caves em fracções autónomas, tendo-se considerado tal facto não implicar nulidade, do título constitutivo, desde que não seja desrespeitado o fim ou destino indicado no projecto (estacionamento de automóveis), pronunciando-se em apoio dessa posição a “jurisprudência pacífica e uniforme deste Supremo (Ac. S.T.J. de 12-6-91, Bol. 408-552; Ac. S.T.J. de 21-5-96, proferido na revista nº 55/96, da 1ª Secção; Ac. S.T.J. de 23-11-99, proferido na revista nº 879/99, da 6ª Secção; Ac. S.T.J. de 13-2-01, Col. Ac. S.T.J., IX, 1º, 113).’”»

Neste acórdão, em fundamentação da decisão, afirmou-se:

«Nos termos do art. 2.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Dec-lei 38382, de 7-8-51, a execução da obras e trabalhos a que se refere o art. 1º do mesmo diploma, não pode ser concretizada sem prévia licença das Câmaras Municipais.

E o art. 6.º do mesmo Regulamento impõe que nos projectos de novas construções e reconstruções, ampliação e alteração de construções existentes sejam sempre indicados o destino da edificação e a utilização prevista para os diferentes compartimentos.

Tais exigências têm uma motivação de natureza estritamente técnica, relacionada com as condições de segurança exigidas na construção dos edifícios, condições essas que variam em função do tipo de utilização prevista (Abílio Neto, Direitos e Deveres dos Condóminos da Propriedade Horizontal, pág. 17 e 18).

Mas sendo essa a razão de ser de tal exigência, a especificação feita num projecto de construção no sentido de que as caves do edifício a construir se destinam a estacionamento ou a estacionamento privativo dos condóminos, não pode condicionar a futura organização da propriedade horizontal, impondo designadamente a inclusão dessas caves no elenco das respectivas partes comuns.

Para a lei, o ponto fulcral reside na falta de conformidade entre o fim ou utilização que, relativamente a determinado espaço, consta do projecto aprovado pela Câmara Municipal, e o fim ou utilização que a esse espaço é conferido pelo título constitutivo da propriedade horizontal.

Tendo sido respeitado o fim ou destino constante do projecto aprovado para determinado espaço, é indiferente que, no título constitutivo da propriedade horizontal, tal espaço integre as partes comuns do edifício ou se inclua no sector das fracções autónomas.

Com efeito e tal como se decidiu no citado Acórdão deste Supremo de 12-6-‑91, "uma coisa é o destino ou o uso a dar a um compartimento, o que, se funda em razões de natureza estritamente técnica ligadas à segurança do edifício, e outra, bem diferente, a definição jurídico-real do regime do mesmo compartimento, matéria que compete exclusivamente ao título constitutivo da propriedade horizontal.

Como resulta do art. 1418.º do Código Civil, é no título constitutivo que serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma que estas fiquem devidamente identificadas.

Daí que seja lícito, no título, afastar a presunção que decorre do n.º 2, do art. 1421.º, do mesmo diploma, afectando as partes aí referidas ou apenas alguma delas a uma ou outra fracção autónoma ou, inclusivamente, autonomizando-as, se as mesmas, para isso, reunirem os necessários requisitos legais".

Neste sentido, também opinam Pires e Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed. pág. 411).

Tudo isto, sem que se viole o que consta do projecto quanto ao destino da coisa, dado que este é compatível com qualquer dos regimes adoptados para a mesma, no título constitutivo da propriedade horizontal.

Pois bem.

In casu, foi respeitado o projecto de construção e mantido o destino das caves: estacionamento automóvel.

Por isso, é de concluir que o facto das três caves, segundo o projecto de construção, se destinarem a estacionamento ou a estacionamento privativo dos condóminos, não exclui a possibilidade das construtoras, no título constitutivo da propriedade horizontal, as autonomizarem, como fizeram, erigindo-as em 61 fracções autónomas, para estacionamento automóvel.

Não foram violadas quaisquer normas imperativas.

Na verdade, o autor nem sequer alegou, na petição inicial, que tais fracções não reúnam os requisitos previstos no art. 1415.º do C.C., para constituírem unidades independentes.

O invocado art. 28.º n.º 1, do Regulamento de Licenciamento de Obras Particulares, aprovado pelo dec-lei 445/91, de 20 de Novembro, alterado pelo dec-lei 250/94, de 15 de Outubro, ao determinar que o alvará de licença de utilização especifica obrigatoriamente o uso a que se destinam as edificações, também não obsta à conclusão a que se chegou.

 

O uso a que se destinam as três caves não foi alterado, nem se encontra em desconformidade com os projectos aprovados, nem com as respectivas licenças de construção, pois sempre foi destinado a estacionamento automóvel.

A alteração dos destinatários ou da definição da situação jurídico-real dos locais de estacionamento não é motivo para se considerar que houve uma alteração ou modificação do seu uso.»

Voltando ao caso em apreço, é tempo de concluir.

Nem no Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), atrás citado nem no diploma que o substituiu (Regime Jurídico da Urbanização e Edificação – RJUE, introduzido pelo D.L 555/99 e objecto de várias alterações), se encontra qualquer norma que, cometa às câmaras municipais a qualificação dos espaços e/ou definição da titularidade dos mesmos.

Mas a afectação constante do título constitutivo terá que ser respeitada enquanto estatuto da coisa e resulta como direito real de uso (SANDRA PASSINHAS, A assembleia dos condóminos e o administrador na propriedade horizontal, 2ª edição, Almedina, Coimbra, pp. 49 e 50.

Ou, como afirmam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (obra citada, vol. III, p 412:

“A situação jurídica do imóvel, como objecto de um direito real é definida pelo título de que este emerge e não por qualquer negócio com eficácia meramente obrigacional nem, muito menos pelo projecto de construção do edifício, ainda que aprovado pela administração pública.

E MARCELO CAETANO in Direito Administrativo, I, p. 417 e II, p. 1028 a licença administrativa, indispensável para a celebração da também necessária escritura de constituição ou modificação do titulo da propriedade horizontal não é mais do que um acto administrativo (permissivo) que autoriza o exercício do direito que o seu titular possui sobre a coisa (….) não atribuindo aos condóminos direitos que porventura não tenham nem se lhes impondo, imperativamente contra direitos que já possuam”.

Por outro lado, importa sublinhar que, a lei, ao consignar no artigo 1421.º, n.º 2, do C. Civil que as garagens e outros locais de estacionamento se, «presumem-se comuns», remeteu, em primeira linha, para a vontade manifestada na constituição da propriedade horizontal a dilucidação da natureza desse espaço e dispôs para a sua ausência, estabelecendo uma presunção ilidível (art.º 350.º, n.º 2 do CC).

Por outras palavras o legislador, cônscio do problema que o desenvolvimento urbanístico, a existência de grandes blocos (habitacionais, de escritórios, etc.) e o incremento do parque automóvel criam em termos de parqueamento e à circulação automóvel, não quis que o espaço nesses prédios destinado a garagens fosse imperativamente parte comum, que imperativamente sobre ele houvesse direito de compropriedade dos condóminos (CC, art.º 1420.º, n.º 1).

E admitiu mesmo a possibilidade de o título constitutivo afectar ao uso exclusivo de um dos condóminos certas zonas comuns.

Todavia esta afectação exclusiva deve respeitar o fim previsto no art.º 1418.º, n.º 3, do CC, pois não se pode empregar a coisa para fim diferente daquele a que se destina. De facto, um condomino não pode privar os outros do uso a que igualmente têm direito da coisa comum.

No caso em apreço, não se coloca a questão da inexistência de projecto e de licença camarária já que o projecto foi apresentado, constando do respectivo processo camarário de verificação das condições para a constituição da propriedade horizontal que o prédio em questão estava descrito como sendo constituído por doze fracções autónomas (quatro destinadas a estabelecimentos comerciais e oito a habitacão), enquanto que a cave seria comum para garagem.

E a constituição da propriedade horizontal respeita a utilização prevista a autorizada administrativamente, sendo que do respectivo título ficou a constar que a cave se destinaria a garagens.

Nem sequer se pode aqui falar de autonomização do lugar de garagem da fracção …, tratando-se apenas de, numa parte comum, destinar um espaço a determinada fracção autónoma, em regime de utilização exclusiva, permitindo-lhe a sua vedação.

Todavia das peças desenhadas e plantas que instruíram o processo camarário da construção e licenciamento do edifício bem como da factualidade provada (ver arts 10º, 12º, 13º, 14º e 22º) resulta claramente que a garagem privativa foi construída ocupando, não apenas o lugar de garagem ali existente, mas também parte da caixa dos elevadores.

Ora, os elevadores servem para elevar ou descer verticalmente, pessoas ou cargas.

A sua natureza comum resulta de cumprirem a mesma função que as escadas. É parte comum não só a cabine, mas também os restantes elementos que o compõem, motores, contrapesos, cabos, portas, caixa do elevador e o fosso.

A afectação da parte das caixas do elevador a garagem implica alteração do projecto construtivo, mas não comporta desconformidade que ponha em causa os interesses de natureza e ordem pública supra referidos (salvaguarda da segurança e solidez das edificações) e, em segunda linha, os interesses privados dos condóminos.

A primeira afirmação não carece de demonstração, porquanto não afecta a construção e segurança do imóvel.

O interesse privado na utilização do elevador também não resulta violado, uma vez que a existência dos elevadores apenas é obrigatória para a parte habitacional dos prédios, nos termos previstos no art.º 50.º do RGEU, em vigor à data da constituição da propriedade horizontal: Em todas as edificações destinadas a habitação com mais de quatro pisos acima do da entrada é obrigatória a instalação de um ascensor de utilização permanente, com capacidade proporcionada ao número de habitantes, no mínimo correspondente a quatro pessoas. Quando o número de pisos for superior a cinco, sempre que não haja monta-cargas utilizável por pessoa, é obrigatória a instalação de um monta-cargas para objectos, com a capacidade mínima de 100 quilogramas, permanentemente utilizável e que sirva todos os pisos.

No caso em apreço, falta, ainda, alegação e prova de factos concretos que permitam concluir pela intenção dos condóminos em colocar em funcionamento o elevador para a cave e de ter sido a construção da garagem privativa que a inviabilizou.

Resultou demonstrado que a construção da garagem privativa não afecta de forma significativa a fruição pelos demais condóminos do espaço destinado a aparcamento, nem as manobras necessárias ao estacionamento, entrada e saída.

Também não implica qualquer distorção relevante o facto de a iluminação da garagem privativa depender de “uma ligação ao sistema de iluminação das zonas comuns”.

 

É que ao Regulamento de Condomínio cabe disciplinar o uso, fruição e conservação das partes comuns, sem exclusão do modo de repartição da responsabilidade pelas despesas a efectuar com as partes e serviços comuns – art.º 1429-A do CPC.

Neste campo, a lei não coloca limites de natureza imperativa à repartição das despesas. Ao invés, atenta a natureza supletiva do art. 1424.º do CC, é legítima a fixação de critérios diversos dos assentes no valor das fracções, atendendo, por exemplo, à sua localização ou destino ou ao uso que lhes seja dado.

Por exemplo há um regime próprio para as despesas relativas aos lanços de escada e para as partes comuns do prédio que sirvam exclusivamente alguns dos condóminos. Assim, nos termos do n.º 3 do art.º 1424.º as despesas relativas a essas partes ficam a cargo dos condóminos que delas se servem. Afinal, o modo de repartição das despesas constitui matéria de interesse meramente particular, não havendo motivos para considerar que o estabelecimento de um regime diverso do supletivo integre a violação de normas ou interesses de ordem pública (arts. 280.º e 281.º do CC).

 

Em suma a obrigação de contribuir para as estas despesas é como HENRIQUE MESQUITA refere no estudo citado, p. 130, “uma típica obrigação propter rem, decorrente não de uma relação creditória autónoma mas antes do próprio estatuto do condomínio”.

Pelo que, no caso em apreço, nada impede que no dito estatuto do condomínio do prédio em causa seja estipulada a participação nas despesas por parte deste condómino em quantia diversa dos restantes.

 

Diga-se de passagem que a parte material ou técnica da construção da dita garagem e licenciamentos ou falta deles se encontram reguladas nos preceitos regulamentares das construções urbanas cuja observância e supervisão cumpre, prima facie, às câmaras municipais nos termos das leis em vigor. Por sua vez, encontra-se fora de causa – nesta sede e oportunidade – a eventual sindicância da legalidade das obras efectuadas, se, em violação do projecto aprovado, ou a apreciação da actuação da Câmara Municipal, na fiscalização do respeito do projecto.

Insistindo os recorrentes na demolição em consequência da nulidade do título constitutivo é patente que, a inexistência dessa nulidade, implica ficar prejudicada a demolição dela emergente.

III Termos em que se acorda em julgar improcedente o recurso de revista interposto, mantendo o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.



Lisboa, 11 de Fevereiro de 2014

Paulo Sá (Relator)

Garcia Calejo

Helder Roque