Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5837/19.4T8GMR.G2.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
UNIÃO DE FACTO
PRESCRIÇÃO
PERDA DO DIREITO DE RECORRER
MATÉRIA DE FACTO
CASO JULGADO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADE
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I - A obrigação de restituir ancorada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à coisa alheia apenas nasce quando ocorre a verificação cumulativa dos seguintes três requisitos:

1.º Tem de existir um enriquecimento, que consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, que tanto pode constituir um aumento do ativo patrimonial como uma diminuição do passivo, com origem num negócio jurídico, como num ato jurídico não negocial ou num simples ato material.

2.º O enriquecimento não apresenta causa justificativa, que tanto pode ser por a mesma nunca ter ocorrido, como por ter deixado de existir, apesar de inicialmente existir. A causa justificativa do enriquecimento sem causa não tem uma definição legal concreta, mas podemos acolher como princípio geral de que a mesma não existe quando, de acordo com a lei, o enriquecimento deva pertencer a outra pessoa. Para aferirmos se tal ocorre, devemos efetuar sempre um juízo direcionado para o caso concreto, pois o mesmo depende sempre da fonte de que emerge, e deve ser interpretado e integrando a lei à luz dos factos apurados.

3.º A obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento tenha ocorrido à custa de quem requer a restituição, isto é, é exigida uma correlação entre o enriquecimento e o empobrecimento, pois que o benefício obtido pelo enriquecido deve decorrer de um prejuízo ou desvantagem do empobrecido.

II - A par destes requisitos não podemos deixar de considerar a subsidiariedade deste instituto, qual se mostra expressamente plasmada no art. 474.º do CC.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

       

I - Relatório

1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, formulando os seguintes pedidos:

«a-) Ser declarado e reconhecido que foi o A. que, com dinheiro exclusivamente seu, proveniente e debitado da conta de colaborador DO ..., da CEMG, pagou todas as prestações do capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do contrato de mútuo supra descrito no artigo 4.º, que financiou a aquisição das fracções autónomas supra descritas no artigo 1.º, de que o A. e a Ré são comproprietários;

b-) Ser a Ré condenada a pagar ao A. a quantia de €45.602,46, correspondente a metade de todas as prestações do capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do contrato de mútuo supra descrito no artigo 4.º, que o A. pagou à CEMG com dinheiro exclusivamente seu até Agosto de 2019;

c-) Ser a Ré condenada a pagar ao A. a quantia, a apurar em liquidação de sentença, corresponde a metade de todas as prestações do capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do contrato de mútuo supra descrito no artigo 4.º, que o A. vier a pagar à CEMG, desde Setembro de 2019 até ao cumprimento e liquidação integral do dito contrato de mútuo;

d-) Todas aquelas quantias acrescidas de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento».

Alegou, em síntese, que:

- Autor e Ré são comproprietários das frações autónomas ... e ... do prédio urbano identificado na petição inicial, adquiridas pelo Autor em 21.09.2001 por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, direito esse declarado na sentença proferida no processo n° 8241/15...., no qual foi ainda declarada dissolvida a união de facto entre Autor e Ré, com efeitos a partir de 31.12.2014;

- através da dita escritura pública, o Autor e a Caixa Económica Montepio Geral celebraram ainda um contrato de mútuo que financiou a aquisição das duas frações e todas as prestações da amortização do empréstimo foram debitadas da conta do Autor, de que é o único titular, sendo as prestações pagas com dinheiro exclusivamente seu;

- o Autor pagou: até 31.12.2014, € 69.309,61; até agosto de 2019, € 91.204,92; após a dissolução da união de facto e até agosto de 2019, € 21.895,52; após agosto de 2019 e até 21.09.2021, o Autor continuará a pagar montante que oportunamente liquidará em execução de sentença;

- apesar de só ser titular de metade das frações autónomas, o Autor sempre pagou e continuará a pagar sozinho todas as prestações inerentes ao contrato de mútuo, o que gera um enriquecimento injustificado da Ré à custa do património daquele.

2. Citada, a Ré veio contestar, impugnando os factos alegados pelo Autor, sustentando que as frações em referência não foram compradas com o dinheiro obtido por via do contrato de mútuo, dinheiro esse que foi utilizado no exclusivo interesse do Autor; invocou a exceção de caso julgado, face ao decidido nos processos nº 8241/15...., 1961/14.... e 4939/16...., e a exceção de prescrição, por à data da citação terem decorrido quase 5 anos desde a data da dissolução da união de facto, bem como a falta de alegação de um pressuposto do instituto do enriquecimento sem causa.

Em reconvenção, pediu a condenação do Autor a pagar-lhe a quantia de €116 650,00, acrescida de juros, alegando a existência de um crédito seu perante o Autor, por força de negócios praticados aquando da união de facto e por o Autor ter pago dívidas suas com dinheiro da Ré.

3. Replicou o Autor, respondendo à matéria de exceção e impugnando os factos articulados pela Ré.

4. Realizou-se a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, que julgou verificada a exceção de autoridade de caso julgado e o seu efeito preclusivo decorrente da sentença proferida no processo n° 8241/15...., absolvendo a Ré da instância, e que não admitiu a reconvenção por não se verificarem os respetivos pressupostos de admissibilidade.

5. Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação do saneador-sentença, na parte em que julgou verificada a exceção de autoridade de caso julgado, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães julgado improcedente o recurso e, em consequência, confirmada a decisão recorrida.

6. O Autor interpôs recurso de revista, tendo o Supremo Tribunal de Justiça revogado o acórdão recorrido e determinado o prosseguimento dos autos.

7. Remetidos os autos à 1ª instância, foi proferido despacho a definir o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.

8. O Autor deduziu incidente de liquidação, informando que já liquidou integralmente o contrato de mútuo, no período de 1/09/2019 a 21/09/2021, no montante de €9 918,64, sustentando que metade, €4 909,32, é da responsabilidade da Ré, tendo esta respondido no decurso da audiência de julgamento.

9. Realizada a audiência final, foi proferida sentença, tendo o dispositivo o seguinte teor: «julga[r] a ação parcialmente procedente e, consequentemente:

- declara que foi o A. que com dinheiro proveniente do seu vencimento, debitado da sua conta, pagou ao Banco Montepio todas as prestações de capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do contrato de mútuo que financiou a aquisição das fracções autónomas de que A. e R. são comproprietários;

- absolve a R. do demais peticionado.»

10. Inconformado com esta decisão, o Autor interpôs recurso de apelação.

11. O Tribunal da Relação de Guimarães veio a “julgar procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a sentença e condena-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 50.511,78 (cinquenta mil, quinhentos e onze euros e setenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento”.

12. Inconformada, a Ré veio interpor recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª Na presente ação, o autor AA demandou a ré BB, pedindo a condenação desta a reconhecer que foi ele autor quem, com dinheiro exclusivamente seu, pagou todas as prestações de capital, juros, impostos, seguros e outras despesas inerentes a um contrato de mútuo bancário por ele celebrado com o Montepio Geral, e, em consequência desse reconhecimento, a pagar-lhe metade desse valor, correspondente à aquisição de duas frações autónomas, uma vez que, sendo essas frações compropriedade de ambos e vivendo ambos à data da aquisição em união de facto “era e é obrigação da Ré cumprir, conjuntamente com o A, a obrigação assumida para com a CEMG, isto é, pagar metade de todas as despesas e prestações do contrato de mútuo que financiaram a aquisição das frações”.

2ª. A ré contestou, impugnando os factos alegados na petição e sustentando que nada deve ao autor do preço dessas frações, pois estas foram compradas e pagas, não com o dinheiro desse mútuo bancário, pois este foi utilizado no exclusivo interesse do autor, mas sim com dinheiro dela própria e com dinheiro das economias comuns geradas na união de facto, alegando também que, de qualquer modo, se existisse qualquer obrigação da ré de restituir ao autor o que quer que fosse, a mesma estaria prescrita, porquanto a união de facto foi declarada cessada em .../.../2014, e a ação deu entrada em juízo em 22/10/2019, ou seja, quase 5 anos após aquela cessação, quando o art. 482º do CC determina que “o direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de 3 anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável”.

3ª. Discutida a causa, foi produzida sentença que apenas declarou que foi o autor que com dinheiro proveniente do seu vencimento pagou ao Montepio todas as prestações de capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do contrato de mútuo, mas absolveu a ré do pedido, porquanto:

a) Na sequência de decisão já anteriormente produzida entre as partes e em processo cuja sentença transitou em julgado, estava assente que “a ré entregou ao autor quantia não concretamente apurada para pagamento do preço das frações e a restante parte não concretamente apurada do preço das frações foi paga pelo autor, mas à custa de economias geradas na união de facto”, pelo que as partes regularam, por essa forma entre si, o modo de comparticipação na aquisição dos imóveis;

b) O autor não provou qualquer vantagem de carácter patrimonial emergente daquele mútuo e de que a ré pudesse beneficiar, traduzida no aumento do seu ativo, ou numa diminuição do seu passivo ou numa poupança de despesas por parte dela, pelo que não ficou provado qualquer enriquecimento do património da ré à custa do património do autor, nem ficou provado nenhum dos outros requisitos do enriquecimento sem causa, como seja a ausência de causa justificativa;

c) Ainda, porém, que se tivesse provado o enriquecimento do património da ré, em correlação com o empobrecimento do património do autor, a ação nunca podia proceder, por falta de alegação e prova por parte do autor de que “tinha contribuído para a aquisição do património no pressuposto da manutenção da vida em comum na manutenção da união de facto”;

d) Não ocorreu a alegada prescrição do direito do autor, porquanto este não reconhecia a situação de união de facto, e foi condenado por sentença de 27/11/2017 a reconhecê-la e declará-la cessada a reconhecê-la, e a reconhecer a sua cessação, pelo que só a partir dessa data “teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, pelo que à data da entrada da presente ação em juízo e à data da citação da ré (22/10/2019 e 27/10/2019 respetivamente) o prazo de 3 anos que alude o art. 482º do CC não havia ocorrido”.

4ª. Inconformado, o autor interpôs recurso dessa decisão, tendo o acórdão recorrido, revogando a decisão da 1ª Instância, julgado procedente o recurso, e, em consequência, condenado a ré a pagar ao autor metade do valor do mútuo por ele autor exclusivamente contraído, ou seja, a quantia de €50.511,78, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral pagamento, o que se abonou nas seguintes razões:

a) Provou-se a existência de enriquecimento da ré (porque “uma parte do preço resultou de meios monetários da ré e a restante parte do preço foi paga pelo autor” (o que é uma grosseira inverdade: a outra parte do preço foi paga pelo autor, mas com dinheiro dele e da ré), tendo este, relativamente ao mútuo, pago integralmente o que era devido “exclusivamente à custa do seu património” – o que também não é verdade: foi pago à custa do património  comum a autor e ré); comprovou-se a existência desse enriquecimento à custa do autor; comprovou-se a ausência de causa justificativa para o enriquecimento;

b) “Tendo autor e ré, enquanto viviam em união de facto, adquirido em partes iguais a propriedade de duas frações autónomas, mas o pagamento do preço global de 19.000.000$00 sido financiado por um empréstimo bancário no montante de 18.000.000$00, cujas prestações de capital, juros, e demais encargos inerentes ao contrato de mútuo foram exclusivamente suportadas pelo património próprio do autor, assiste a este, com base no instituto do enriquecimento sem causa, a restituição pela ré do valor correspondente a metade dos valores suportados pelo autor”;

c) Não é legal a exigência feita pela sentença, em cujos os termos “era necessário que o autor tivesse alegado também que tinha contribuído para a aquisição do património no pressuposto da manutenção da vida em comum, na manutenção da união de facto que reconhecidamente não alegou”, pois “o apontado facto não integra qualquer dos requisitos do enriquecimento sem causa”, pelo que “no âmbito dos autos o autor não tinha de alegar e provar que contribuiu para a aquisição das duas frações autónomas no pressuposto da manutenção da união de facto”;

d) Tendo o autor recorrido da decisão da 1ª Instância relativa à alegada prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa, não há lugar a decisão nessa parte, porquanto em 1ª Instância “a exceção perentória da prescrição foi decidida favoravelmente ao autor que assim não ficou vencido quanto à mesma e nenhum interesse tem em impugnar a sua decisão, o que terá feito apenas por mero lapso”.

5ª. É inaceitável a decisão do acórdão recorrido, quer por ter erradamente interpretado o direito, quer por ser uma peça manifestamente incongruente, por impossibilidade de compatibilizar a decisão no sentido da procedência, quer com os factos alegados, quer com os factos que se deram por provados, porquanto:

a) As instâncias deram por provado, na fixação da matéria de facto, que as frações em referência não foram compradas com dinheiro obtido por via do contrato de mútuo, dinheiro esse que foi utilizado pelo autor em seu exclusivo proveito, porquanto consideraram ter-se antes provado que “a ré entregou ao autor quantia não concretamente apurada para pagamento do preço das frações e a restante parte não concretamente apurada do preço das frações foi paga pelo autor à custa de economias geradas na união de facto” (facto 22 transcrito do processo n.º 8241/15.... do Juízo Central Cível ... – Juiz ...), facto que é incompatível com a afirmação do acórdão recorrido, de resto sem qualquer suporte factual, segundo a qual “o pagamento do preço global de 19.000.000$00 foi financiado por um empréstimo bancário no montante de 18.000.000$00”, pelo que congruentemente não é possível deixar de reconhecer que a ré já pagou ao autor, e até já lhe tinha pago quando a ação foi proposta tudo o que porventura podia dever-lhe, pelo que a decisão recorrida ao decidir como decidiu, enferma de nulidade nos termos do art. 615 n.º 1 c) do CPC, de cujo conhecimento, que agora se impõe, basta para a ação ser julgada sem mais não provada e improcedente;

b) É manifestamente errada a afirmação do acórdão recorrido segundo a qual não seria necessário ao autor alegar, para poder provar, que “tinha contribuído para a aquisição do património no pressuposto da manutenção da vida em comum, da manutenção da união de facto” pois, bem pelo contrário, a jurisprudência tem entendido, de forma que supomos, aliás, unânime, que é condição de demonstração do enriquecimento sem causa, para além das referidas no art. 473º do CC, “que o autor alegue e prove que as deslocações patrimoniais se verificaram no pressuposto, entretanto desaparecido, da continuação e subsistência da união de facto” (cfr. entre muitos o acórdão do STJ de 20/03/2014, processo n.º 2152/09.5TBBRG.G1.S1 da 6ª Secção, acessível em www.dgsi.pt), pelo que também nessa parte se pode considerar que o acórdão recorrido cometeu uma nulidade, nos termos do art. 615º n.º 1 c) do CPC, por ter apreciado de questão de que não podia tomar conhecimento, porque tão pouco se tratava de qualquer condição alegada, nulidade essa cujo conhecimento impõe também, mercê da sua verificação, que a ação tenha, só por isso, de ser julgada improcedente e não provada;

6ª. No entanto, a entender-se que ambas essas situações, ou alguma delas, não é tecnicamente de considerar como integrando os apontados vícios de nulidade, mas constituem antes erros de julgamento, devem de qualquer forma esses vícios ser então tratados como erros de julgamento, sempre com idêntico resultado: a necessária improcedência da ação.

7ª. Sendo embora exato que a exceção da prescrição do direito invocado pelo autor foi julgada improcedente em 1ª Instância, (embora, tenha de reconhecer-se que, dessa decisão a ré não podia recorrer, pois não foi vencida) afigura-se que as instâncias erradamente julgaram, porquanto o art. 482º do CC dispõe que “o direito à restituição por enriquecimento sem causa prescreve no prazo de 3 anos a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete” e não, como foi entendimento das instâncias, que esse direito prescreve a partir da data do trânsito em julgado da sentença que condenou o autor a reconhecer que vivera com a ré em união de facto e que essa união de facto fora dissolvida, pois não é o trânsito em julgado dessa sentença que permite ao autor tomar conhecimento do direito, uma vez que os factos de onde esse conhecimento resulta são factos pessoais seus e de que, apesar de mentirosamente os negar, teve, evidentemente, imediato conhecimento, pelo que à data da entrada da ação em juízo e à data da citação da ré (respetivamente 22/10/2019 e 27/10/2019), qualquer eventual direito estava mais que prescrito, porque o prazo de exercício do mesmo se iniciara há mais de 5 anos, em 31/12/2014 (de resto, cumpre lembrar que com a contestação a ré juntou o documento n.º 4 datado de 01/08/2005, em que a Junta de Freguesia de residência das partes atesta, a requerimento do autor, que ele vive há mais de 10 anos “no regime de união de facto com BB”).

8ª. Sem prescindir do que vem de ser sumariado, é manifesto, salvo o devido respeito, que, sendo o instituto do enriquecimento sem causa, de utilização residual, subsidiária, apenas quando ao empobrecido não for facultado outro meio de ressarcimento, é manifesto que esse outro meio no caso existia, e, ainda que não existisse, nem estava provado qualquer enriquecimento da ré à custa do autor, nem a ausência de qualquer causa justificativa para o enriquecimento, porquanto:

a) O contrato de mútuo invocado pelo autor foi celebrado por escritura pública, e nele figuram apenas como partes o autor e a entidade bancária mutuante, sendo a ré absolutamente alheia e estranha a semelhante contrato, pelo que não há qualquer meio técnico de estender os efeitos do mútuo a quem não interveio no contrato;

b) O autor manifestamente exclui na sua alegação a possibilidade legal de invocar o enriquecimento sem causa, porque, tendo este natureza subsidiária, invoca a existência de uma obrigação contratual da ré que, se existisse, excluía a possibilidade dessa invocação, ao sustentar que (art. 18º da petição inicial) “era e é obrigação da ré cumprir, conjuntamente com o A. a obrigação assumida para com a CEMG”, pois se assim fosse a obrigação da ré teria natureza contratual, com cabimento no art. 524º do CC (que, diferentemente da restituição fundada na falta de causa, estabelece que o devedor que satisfizer o direito do credor, para além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra os condevedores na parte que a estes compete), pelo que nem sequer seria admissível recurso ao instituto de que o autor se subsidiou;

c) A ação, movida com base no enriquecimento sem causa só podia ser intentada se não houvesse outra possibilidade legal de tentativa de ressarcimento do autor, o que não é o caso, visto que o autor invoca uma relação contratual de onde decorreria o dever da autora o ressarcir, circunstância que, por o autor não ter provado o mútuo, nem a extensibilidade dos seus efeitos à ré, é quanto basta para impedir a procedência do recurso, pois sempre seira indiferente que a ré tivesse ou não provado a sua versão, porque a regra da decisão aplicável é o art. 342º n.º 1 do CC que impõe que a decisão seja contrária àquele que invoca determinado direito, mas não o prova (cfr. a lição de Diogo Leite Campos, em “A subsidiariedade da obrigação de restituir o enriquecimento”, pág. 303 e ss, e, entre outros, os acórdãos do STJ de 22/04/1985, BMJ346,254 e de 14/05/1996, Col. Jurisp. STJ, IV, 2, pág. 70).

d) Ao integrar factualmente os requisitos de que depende o enriquecimento sem causa, o acórdão recorrido sustenta que, reconhecendo afinal o que consta do facto 22, “subsiste factualmente que uma parte do preço resultou de meios monetários da ré e restante parte do preço foi paga pelo autor”, o que é absolutamente incongruente com a decisão, pois se uma parte do preço estivesse paga, nunca a ré podia ser condenada a pagar a totalidade do preço, ou seja, metade deste;

e) Mas, pior ainda, certo é que o facto transcrito no art. 22º citado não permite sequer sustentar que o autor pagou do seu bolso qualquer parcela de preço, pois o que aí se diz quanto ao autor é que este pagou uma parte do preço, mas “à custa de economias geradas na união de facto”, ou seja, com dinheiro que era comum a ele e à ré.

9ª. Sem prescindir, a incongruência e impossibilidade manifesta da condenação da ré também se evidencia da constatação de que o acórdão recorrido aceita que a ré já pagou um parte do preço não determinada, tendo a restante parte do preço sido paga com dinheiro da sociedade conjugal, pelo que se agora for condenada a pagar mais metade das despesas inerentes ao empréstimo bancário, está a pagar por duas vezes aquilo que em princípio deveria: o preço das frações já o pagou no passado, o reembolso do empréstimo é uma duplicação do preço, equivalente monetariamente ao que já pagou, pelo que não pode ter de o pagar outra vez.

10ª. As afirmações do acórdão recorrido segundo as quais “o empréstimo concedido ao autor (…) financiou a aquisição das frações autónomas de que A e R são comproprietários, ou seja, foi utilizado no pagamento do respetivo preço global” e “o autor pagou substancialmente mais do que metade do preço das duas frações do que resultou uma desproporção face à sua cota na compropriedade que é de metade” não tem qualquer suporte na matéria de facto provada, nem podem sequer, na economia dessa matéria de facto, corresponder à verdade, pois bastaria fazer contas de somar para perceber que semelhante empréstimo à ré em nada beneficiou, de onde nunca se podia provar qualquer enriquecimento seu, nem tão pouco a ausência de causa justificativa do mesmo.

E conclui: “deve revogar-se a decisão recorrida, e confirmar-se a decisão da 1ª Instância, ou seja, absolver-se a ré da condenação sofrida em consequência da decisão do acórdão recorrido”.

13. O Autor contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª A contradição geradora de nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido diferente;

2.ª Tal não sucede quando, como no caso dos autos, a fundamentação adoptada no douto acórdão recorrido está em consonância com a decisão final;

3.ª Os pressupostos do enriquecimento sem causa podem agrupar-se em pressupostos positivos e pressupostos negativos:

a. São pressupostos positivos: (i) o enriquecimento; (ii) o suporte do enriquecimento por outrem; (iii) e correlação entre o enriquecimento e o suporte do enriquecimento por outrem.

b. São pressupostos negativos: (i) a ausência de causa justificativa; (ii) a ausência de outro meio de o credor ser indemnizado ou restituído; (iii) e a ausência de norma que negue o direito à restituição ou atribua outros efeitos ao enriquecimento.

4.ª Não é requisito do enriquecimento sem causa que a deslocação patrimonial tenha ocorrido na perspectiva de uma situação que não se veio a verificar, tanto mais que uma alegação desta natureza nos poderia conduzir a outros institutos jurídicos, relacionados com os vícios determinantes da vontade.

5.ª Não é essa a causa de pedir da presente acção e nem tal foi alegado pelo Autor (nem tinha de ser), tanto mais que, conforme se alegou na petição inicial e resultou provado, o Autor continuou a pagar sozinho as prestações do capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do contrato de mútuo que financiou a aquisição das fracções autónomas, mesmo depois da cessação da união de facto, numa altura em que tal alegado “pressuposto” tão pouco se poderia verificar ou ser cogitado.

6.ª Só com o trânsito em julgado da sentença proferida na acção n.º 8241/15...., em 13/12/2018, o A. poderia tomar conhecimento do direito que lhe competia e da pessoa do responsável, pelo que, tendo intentado a presente acção 22/10/2019, não tinha ainda decorrido o prazo de prescrição de 3 anos;

7.ª A considerar-se extensível aos unidos de facto o art.º 318.º, al. a) do Código Civil, só a partir de 13/12/2018 começaria a correr o prazo da prescrição de 3 anos, que em 22/10/2019 ainda não tinha decorrido;

8.ª A obrigação de restituir o enriquecimento não prescreve (art.º 482.º do Código Civil) enquanto o empobrecido tiver outro meio de ser restituído ou outra forma de ser indemnizado pelo seu prejuízo - uma vez que só se conta a partir da data em que o empobrecido tomou conhecimento do direito que lhe assiste por este fundamento, não abarca o período em que, com boa fé, tiver utilizado sem êxito outro meio de ser indemnizado ou restituído;

9.ª Tal conclusão é imposta pela circunstância da obrigação fundada no enriquecimento sem causa ter natureza subsidiária (art.º 474.º do Código Civil);

10.ª Independentemente do fundamento jurídico invocado pelo A. na acção n.º 8241/15...., a citação da Ré para os seus termos exprime, de forma clara e directa, a intenção do A. em ver-se declarado o único proprietário das ditas fracções autónomas, donde, considerando-se interrompido o prazo de prescrição com a interposição da aludida acção e só tendo o mesmo reiniciado em 13/12/2018, mister é concluir que tendo o A. intentado a presente acção 22/10/2019, não tinha ainda decorrido o prazo de prescrição de 3 anos;

11.ª Do conjunto da factualidade apurada decorre, em termos gerais, terem A. e a Ré vivido em união de facto, no decurso da qual adquiriram a propriedade das fracções identificadas em 1) dos factos provados, na proporção de metade cada um, na qual residiram até data não concretamente apurada de 2014.

12.ª Resulta ainda da factualidade provada a circunstância de as fracções adquiridas pelo A. e pela Ré se destinarem à sua habitação, no contexto da união de facto que mantinham;

13.ª E que a aquisição em causa foi feita com recurso a um empréstimo bancário do qual apenas o A. se constituiu mutuário e devedor, sendo certo que, as prestações do capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do referido contrato de mútuo, desde o seu início e até ao seu terminus, foram sempre debitadas directamente do vencimento do A., funcionário bancário do Banco mutuante, sendo depois depositado o remanescente do seu vencimento na conta que sempre foi e continua a ser exclusivamente titulada por este;

14.ª Considerando que as aludidas fracções autónomas são compropriedade do A. e da Ré, na proporção de ½ cada um, mas apenas aquele (o A.) pagou na íntegra as prestações do capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do referido contrato de mútuo, que financiou a aquisição, temos que ocorreu uma transferência patrimonial da esfera jurídica do A. para a esfera jurídica da Ré, que viu o seu património enriquecido à custa do empobrecimento do património do A.;

15.ª O empobrecimento do A. e correspondente enriquecimento da Ré corresponde a ½ de todas as prestações do capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do referido contrato de mútuo que o A. pagou sozinho e na íntegra, apesar de só ser proprietário de ½ das ditas fracções autónomas;

16.ª O enriquecimento dá-se a favor de uma pessoa quando o seu património se valoriza, podendo consistir na aquisição de um benefício de carácter patrimonial, revestindo a forma de aumento do activo ou na poupança de despesas;

17.ª O processo de inventário em consequência do divórcio, instaurado para partilha do património comum do dissolvido casal, é norteado pelo objectivo de conseguir um equilíbrio no rateio final, ou seja, que nenhum dos ex-cônjuges, após a partilha, fica prejudicado em relação ao outro;

18.ª Tendencialmente, no inventário devem ser solucionadas todas as questões emergentes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges com influência na partilha do património comum, designadamente as que respeitam à liquidação das compensações devidas pelo pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges suportado apenas por um deles.

19.ª Por isso, o inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros;

20.ª A partilha envolve a satisfação dos créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro, uma vez que o artigo 1689.º, n.º 3, do Código Civil estabelece que esses créditos são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.

21.ª Quando um dos cônjuges paga com bens próprios dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer e esse crédito é exigível no momento da partilha dos bens do casal;

22.ª Não existe no ordenamento jurídico português normas legais directamente aplicáveis ou por analogia que regulem os efeitos patrimoniais da cessação da união de facto em termos similares às do inventário subsequente a divórcio, nos termos das conclusões 19 a 23;

23.ª Face à ausência de consequências de índole patrimonial da dissolução da união de facto, o convivente que tenha pago sozinho o crédito bancário contraído com vista à aquisição de determinado imóvel destinado à habitação dos dois conviventes e que apenas seja reconhecido como seu comproprietário, na proporção de ½, tem de ter forma de ver o seu património compensado pelo património do outro convivente;

24.ª E essa compensação, não sendo viáveis outras soluções jurídicas (v.g., sociedade de facto, compropriedade, contrato de trabalho), só pode operar através do instituto do enriquecimento sem causa;

25.ª No contexto global das relações entre as partes ao longo do período de tempo em que durou a união de facto, a prova de que os contributos da Ré para as despesas comuns fariam nascer, a seu favor, um contra-crédito, a compensar com o crédito do A., derivado do pagamento das prestações dos empréstimos dos autos, não se basta com a mera alegação e demonstração de que, em acção de reivindicação anterior (referimo-nos ao processo n.º 8241/15....), fundada na posse, tenha ficado provado que o A. e Ré tinham encomia comum e comunhão de todas as despesas, ou de que a Ré entregou ao A. quantia não concretamente apurada para pagamento do preço das fracções e a restante parte não concretamente apurada do preço das fracções foi pago pelo Autor à custa de economias geradas na união de facto;

26.ª Bem andou o Tribunal da Relação de Guimarães ao julgar a acção procedente e consequentemente condenar a Ré a pagar ao A. a quantia de €50.511,78, correspondente a ½ de todas as quantias que o A., com dinheiro exclusivamente seu, descontado directamente do seu vencimento, pagou para liquidação das prestações do capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do contrato de mútuo descrito nas alíneas C), D) e E) dos factos provados.

E conclui pela improcedência do recurso.

14. Cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pela Ré / ora Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

 - das nulidades do acórdão recorrido nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC (conclusão 5.ª);

- da prescrição do direito ao enriquecimento sem causa (conclusão 7.ª);

- do preenchimento dos pressupostos do enriquecimento sem causa (conclusões 8.ª, 9.ª e 10.ª).

III. Fundamentação

1. As instâncias deram como provados os seguintes factos (após as alterações efetuadas pelo Tribunal da Relação):

1.A. O A. e a R. são comproprietários, em partes iguais, das seguintes fracções autónomas, situadas na Rua ..., freguesia ..., do concelho ...:

a -) Fracção autónoma designada pelas letras “BR”, habitação tipo T2, no ... andar, terceira fase, pertencendo-lhe uma garagem na sub-cave com o número 27, descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...71-BR e inscrito na matriz sob o artigo ...03;

b -) Fracção autónoma designada pela letra “H”, garagem número 28 na subcave, terceira fase, descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...71-H, e inscrito na matriz sob o artigo ...03.

1.B. A compropriedade do A. e da R., em partes iguais, nas ditas fracções autónomas, foi declarada por sentença de 27/11/2017, já transitada em julgado, proferida na acção de processo comum n.º 8241/15...., que correu termos pelo Juízo Central Cível ... (Juiz ...), onde se decidiu “julgar a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência, declarar que o Autor e a Ré viveram em união de facto, em comunhão de mesa e habitação, e adquiriram, na proporção de metade cada um, a propriedade das fracções supra identificadas em I-1 dos factos provados”.

1.C. As ditas fracções autónomas foram adquiridas por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, lavrada a fls. 50 a 52 verso, do livro n.º ...78..., do extinto ... Cartório Notarial ..., em 21/09/2001, tendo o A. declarado comprar à sociedade comercial denominada “C..., Lda.”, que declarou vender as referidas fracções pelo preço global de 19.000.000$00 (dezanove milhões de escudos).

1.D. Através da referida escritura pública, o A. e a Caixa Económica Montepio Geral (CEMG) celebraram ainda um contrato de mútuo, que se rege pelas seguintes cláusulas: “CLÁUSULA 1.ª “O segundo outorgante confessa-se devedor à CEMG da quantia de DEZOITO MILHÕES DE ESCUDOS, que neste acto dela recebe a título de empréstimo, para aquisição da fracção autónoma designada pelas letras “BR”, através identificada, que se destina, exclusivamente, à sua habitação própria e permanente; “CLÁUSULA 2.ª “1. O capital mutuado vence juros à taxa anual decorrente do ACTV/sector bancário, neste momento fixada em dois virgula um um dois cinco por centro (taxa contratual determinada com base na taxa nominal anual de dois vírgula zero nove dois três por cento), actualizável nos termos previstos na cláusula primeira do documento complementar anexo. “2. Para efeito do disposto no art.º 5.º, do Decreto-Lei n.º 220/94, de 23 de Agosto, declara-se que a taxa anual efectiva (TAE), na presente data, de dois vírgula dois quatro por cento, conforme cálculo efectuado nos termos do mesmo diploma. “CLÁUSULA 3.ª “1. O empréstimo será amortizado em duzentas e quarenta prestações mensais, constantes e sucessivas de capital e juros, cada um no montante de oitenta e quatro mil oitocentos e oitenta e sete escudos, a primeira com vencimento trinta dias após esta data e as restantes em igual dia dos meses seguintes ou no último dia do respectivo mês se neste não houver dia correspondente. “2. Estas prestações e todas as despesas que a CEMG faça por conta da parte devedora, serão debitadas na conta de depósito à ordem número um zero – dois zero – um, do balcão da CEMG em Quintã considerada para efeitos de crédito da retribuição do devedor, o qual, para o referido débito, dá neste momento o necessário consentimento. “CLÁUSULA 4.ª “1. Para garantia do integral cumprimento das obrigações assumidas no presente contrato, a parte devedora constitui a favor da CEMG, hipoteca voluntária sobre as fracções “BR” e “H” atrás identificadas e ora adquiridas. “(…)”.

1.E. Empréstimo ao qual foi atribuído o n.º ....

1.F. Na acção de processo comum n.º 8241/15...., que correu termos pelo Juízo Central Cível ... (Juiz ...) foi ainda decidido “declarar judicialmente dissolvida a referida união de facto entre Autor e Ré, com efeitos a partir de 31 de Dezembro de 2014”.

1.G. Nos termos das cláusulas do contrato de mútuo supra descrito, que o A. celebrou com a CEMG, “as prestações e todas as despesas que a CEMG faça por conta da parte devedora, serão debitadas na conta de depósito à ordem número um zero – dois zero – um, do balcão da CEMG em Quintã considerada para efeitos de crédito da retribuição do devedor, o qual, para o referido débito, dá neste momento o necessário consentimento”.

1.H. Todas as prestações do capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do referido contrato de mútuo foram sempre debitadas e pagas directamente da conta de colaborador, actualmente com o n.º DO ..., de que o A. é e sempre foi único titular, as quais eram descontadas da retribuição/vencimento daquele, que era à data gerente bancário da CEMG.

1.I. Até 31 de Dezembro de 2014, data dos efeitos da dissolução da referida união de facto, o A. pagou a quantia global de €69.309,61, assim discriminada: Capital: €54.333,40; Juros: €9.287,97; Imposto Selo: €539,70; Juros Mora: €0,33; Seguros: €4.998,72; Outras Despesas: €149,49.

1.J. E até Agosto de 2019 o A. pagou a quantia global de €91.204,92, assim descriminada: Capital: €74.968,10; Juros: €9.299,22; Imposto Selo: €539,70; Juros Mora: €0,33; Seguros: €6.248,08; Outras Despesas: €149,49.

1.K. O A. já restituiu integralmente ao Banco Montepio a quantia mutuada, tendo entregue entre 01/09/2019 e 21/09/2021, o montante de 9.818,64 €, correspondente a capital, juros, despesas, seguros e outros;

Factos provados na sentença proferida no processo n.º 8241/15.... do Juízo Central Cível ..., J..., com interesse para a presente decisão

1.L. “(…) 6. Por documento datado de 22 de Março de 2000, Autor e Ré declararam prometer comprar a C... Lda., em comum e partes iguais, uma fracção autónoma situada na Rua ..., designada por “Habitação tipo T- Dois, no ... andar na Terceira Fase”, fracção essa constituída por dois quartos, sala comum, despensa, hall de entrada, dois quartos de banho e garagem individual e correspondente à supra referida identificada em 1, sob as letras “BR”.

(…)

10. Autor e Ré viviam como se marido e mulher fossem, partilhando o mesmo leito.

11. Tendo economia comum e comunhão de todas as despesas.

12. O Autor é empregado bancário do Montepio Geral.

(…)

19. Chegada a altura de fazer a escritura de compra a C... Lda., no entanto, o Autor abordou a Ré dizendo a esta que, ao contrário do que estava previsto, a fracção autónoma teria de ser escriturada para o nome dele próprio, e não para o nome de ambos.

20. A Ré anuiu a que, conforme o Autor pretendia, as fracções viessem a ficar apenas em nome deste, tendo ambos convencionado que só ficavam em nome do Autor.

21. Autor e Ré estabeleceram o seu novo domicílio e morada na Rua ....

22. A Ré entregou ao Autor quantia não concretamente apurada para pagamento do preço das fracções e a restante parte não concretamente apurada do preço das fracções foi pago pelo Autor à custa de economias geradas na união de facto.

(…)

24. Desde data não concretamente apurada do ano de 2014, o Autor deixou de partilhar o leito e a mesa com a Ré, e de manter qualquer relação sexual ou de qualquer outro tipo com esta;

25. Desde essa altura, o Autor jamais voltou a residir na casa de morada de família, deixando de partilhar a habitação.»

Factos provados na sentença proferida no processo n.º 1961/14.... do Juízo Local Cível ..., J..., com interesse para a presente decisão:

7. O Réu [aqui A.] pediu à A. [aqui R.] a importância necessária para pagar a sisa devida pela transmissão, e que teria de ser paga previamente à escritura, e a A. [aqui R.] entregou-lhe a respetiva importância, através do cheque nº...42, datado de 20/09/2001, passado à ordem da Direção Geral do Tesouro, e no montante de 532.100$00.”.

2. Das nulidades do acórdão recorrido nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil (conclusão 5.ª)

A Recorrente invoca que o Acórdão recorrido padece da nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, porquanto As instâncias deram por provado, na fixação da matéria de facto, que as frações em referência não foram compradas com dinheiro obtido por via do contrato de mútuo, dinheiro esse que foi utilizado pelo autor em seu exclusivo proveito, porquanto consideraram ter-se antes provado que “a ré entregou ao autor quantia não concretamente apurada para pagamento do preço das frações e a restante parte não concretamente apurada do preço das frações foi paga pelo autor à custa de economias geradas na união de facto” (facto 22 transcrito do processo n.º 8241/15.... do Juízo Central Cível ... – Juiz ...), facto que é incompatível com a afirmação do acórdão recorrido, de resto sem qualquer suporte factual, segundo a qual “o pagamento do preço global de 19.000.000$00 foi financiado por um empréstimo bancário no montante de 18.000.000$00”, pelo que congruentemente não é possível deixar de reconhecer que a ré já pagou ao autor, e até já lhe tinha pago quando a ação foi proposta tudo o que porventura podia dever-lhe, pelo que a decisão recorrida ao decidir como decidiu, enferma de nulidade nos termos do art. 615 n.º 1 c) do CPC, de cujo conhecimento, que agora se impõe, basta para a ação ser julgada sem mais não provada e improcedente;

O art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC preceitua que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

É jurisprudência pacífica no STJ, as nulidades da decisão são vícios estruturais e intrínsecos da decisão, reportados à construção lógica e própria da sentença, não sendo confundíveis com um eventual erro de julgamento, seja de facto ou de direito. Em concreto, a nulidade prevista na al. c) mostra-se verificada quando os fundamentos de facto ou de direito conduziriam a uma decisão diferente daquela a que o tribunal chegou, ou quando na decisão de facto ou de direito haja alguma resposta ou afirmação cujo sentido não seja apreensível, não sendo possível conseguir apreender o sentido da decisão. Mas, esta ininteligibilidade não se refere aos argumentos decisórios mas sim à própria decisão, cf. neste sentido os Ac. do STJ de 9/03/2022 (Revista n.º 4345/12.9TCLRS-A.L1.S1), Ac. do STJ 19/06/2018 (Revista n.º 2876/14.5T8BRG.G1.S1) e Ac. do STJ de 31/03/2022 (Revista n.º 812/06.1TBAMT.P1.S1).

A Recorrente, salvo o devido respeito, confunde os factos e os conceitos, bem como a realidade associada a estes. A circunstância de ter sido dado como provado que a ré entregou quantia não determinada ao Autor para o pagamento de imóvel e que este também o pagou com o dinheiro seu, em nada contende ou bule com a afirmação “o pagamento do preço global de 19.000.000$00 foi financiado por um empréstimo bancário no montante de 18.000.000$00”, pois o pagamento do imóvel subentende-se o pagamento do empréstimo bancário, sendo que não ficou provado, ao contrário do que a Ré afirma, que o Autor tenha gasto o dinheiro do empréstimo em seu proveito. Mas ficou provado no ponto D) que o empréstimo teve como destino o pagamento das frações autónomas.

Ademais, a afirmação que a Recorrente invoca estar em contradição é um mero argumento do acórdão e não a decisão final, pelo que não estamos perante uma verdadeira oposição entre a fundamentação e a decisão final (dispositivo), pois só esta é suscetível de integrar a previsão do artigo 615.º, n.º 1 al. c), do Código de Processo Civil.

Por fim, não vislumbramos que a decisão final proferida padeça da invocada nulidade, nem por oposição entre os fundamentos e a decisão, quer por obscuridade, ou ambiguidade, porquanto, no Acórdão recorrido, não tropeçamos com qualquer vício no raciocínio lógico do julgador. A fundamentação do acórdão é perfeitamente apreensível, a qualquer normal declaratário, sendo, igualmente, compatível com o teor da decisão final.

Mais invoca a recorrente que É manifestamente errada a afirmação do acórdão recorrido segundo a qual não seria necessário ao autor alegar, para poder provar, que “tinha contribuído para a aquisição do património no pressuposto da manutenção da vida em comum, da manutenção da união de facto” pois, bem pelo contrário, a jurisprudência tem entendido, de forma que supomos, aliás, unânime, que é condição de demonstração do enriquecimento sem causa, para além das referidas no art. 473º do CC, “que o autor alegue e prove que as deslocações patrimoniais se verificaram no pressuposto, entretanto desaparecido, da continuação e subsistência da união de facto” (cfr. entre muitos o acórdão do STJ de 20/03/2014, processo n.º 2152/09.5TBBRG.G1.S1 da 6ª Secção, acessível em www.dgsi.pt), pelo que também nessa parte se pode considerar que o acórdão recorrido cometeu uma nulidade, nos termos do art. 615º n.º 1 c) do CPC, por ter apreciado de questão de que não podia tomar conhecimento, porque tão pouco se tratava de qualquer condição alegada, nulidade essa cujo conhecimento impõe também, mercê da sua verificação, que a ação tenha, só por isso, de ser julgada improcedente e não provada.

A Recorrente enquadra este apontado vício na mesma al. c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, sendo certo, porém, que também refere que o Acórdão apreciou questão que não podia tomar conhecimento.

Pela forma como a Recorrente coloca a questão consideramos que pretende que a sua pretensão seja analisada à luz da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil. Este normativo preceitua o seguinte, é nula a sentença sempre que o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Esta nulidade não se reporta aos fundamentos considerados pelo tribunal para a prolação de decisão, nem aos argumentos esgrimidos, aferindo-se antes pelos limites da causa de pedir e do pedido, cf. Ac. do STJ de 29/03/2022 (Revista n.º 19655/15.5T8PRT.P3.S1). Na verdade, esta nulidade apenas se verifica nas situações em que o juiz conhece de questões que não fazem parte do objeto do recurso, não podendo as questões confundir-se com os argumentos, sendo uma sanção para a violação do disposto no artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o qual prescreve, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, cf., neste sentido, o Ac. do STJ de 20/05/2021 (Revista n.º 1765/16.3T8BRG-K.S1).

O descontentamento da Recorrente não pode ser enquadrável em qualquer nulidade prevista no artigo 615.º do Código de Processo Civil, uma vez que o Acórdão recorrido tratou da questão trazida pelo Autor, na apelação, como objeto de recurso, a questão do enriquecimento sem causa e respetivos pressupostos, o que o Acórdão recorrido analisou e concluiu de forma lógica e racional, sendo um mero argumento aquilo a que a Autora se refere, É manifestamente errada a afirmação do acórdão recorrido segundo a qual não seria necessário ao autor alegar, para poder provar, que “tinha contribuído para a aquisição do património no pressuposto da manutenção da vida em comum, da manutenção da união de facto”. Não constitui qualquer excesso de pronúncia, nem se afigura qualquer ininteligibilidade da decisão, no Acórdão recorrido. Porém, saber se existe ou não erro de julgamento na decisão em crise é algo que em seguida será apreciado, nos termos delimitados pela Recorrente.

Devem, assim, ser consideradas improcedentes as nulidades do Acórdão recorrido, invocadas pela Recorrente.

3. Da prescrição do direito ao enriquecimento sem causa (conclusão 7.ª)

Alega a Recorrente que, apesar de não ter apelado, e ter sido o Autor quem impugnou a decisão da 1.ª instância, mal andaram as instâncias ao considerar que direito ao enriquecimento sem causa prescreve a partir da data do trânsito em julgado da sentença que condenou o autor a reconhecer que vivera com a ré em união de facto e que essa união de facto fora dissolvida, pois não é o trânsito em julgado dessa sentença que permite ao autor tomar conhecimento do direito, uma vez que os factos de onde esse conhecimento resulta são factos pessoais seus e de que, apesar de mentirosamente os negar, teve, evidentemente, imediato conhecimento, pelo que à data da entrada da ação em juízo e à data da citação da ré (respetivamente 22/10/2019 e 27/10/2019), qualquer eventual direito estava mais que prescrito, porque o prazo de exercício do mesmo se iniciara há mais de 5 anos, em 31/12/2014 (…).

No caso, verifica-se que, em sede de apelação, o Autor recorreu desta parte da decisão, tendo o Acórdão recorrido decidido nos seguintes termos, Por conseguinte, a exceção perentória de prescrição foi decidida favoravelmente ao Autor, ora Recorrente, que assim não ficou vencido quanto à mesma e nenhum interesse tem em impugnar a sua decisão, o que terá feito apenas por mero lapso.

Sendo assim, tal matéria não constitui uma questão a decidir no âmbito do presente recurso.

Na verdade, o Acórdão recorrido não conheceu desta parte do recurso, da prescrição do direito ao enriquecimento sem causa, porquanto entendeu que o apelante não tinha interesse em recorrer.

A prescrição do direito do Autor é um dos fundamentos da defesa da Recorrente, o qual improcedeu na 1.ª instância, pelo que, em sede de apelação, deveria a Recorrente ter, através do recurso subordinado, ou através da ampliação do objeto do recurso, requerido o conhecimento da exceção perentória que invocou.

Ao não ter recorrido desta parte da decisão, em sede de apelação, ainda que de forma subordinada, e porque o Acórdão recorrido não conheceu do mérito desta questão, a ora Recorrente perdeu o direito a recorrer desta parte da decisão (artigo 632.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), cf., neste sentido, o Ac. do STJ de 29/01/2014 (Revista n.º 357/11.8TBEVR.E1.S1), I - Se a recorrente se conformou com a parte da decisão da 1.ª instância que lhe atribuiu o incumprimento definitivo e culposo do contrato, não pode vir no recurso de revista defender que tal incumprimento estaria justificado pela excepção do não cumprimento do contrato, nos termos do art. 428.º do CC, bem como pela impossibilidade do seu cumprimento, imputando agora o incumprimento a terceiro, pois aceitou aquela parte da decisão, o que implica a renúncia ao respectivo recurso e a perda do direito de recorrer. (…).

Assim, esta parte do recurso improcede.

4. Do preenchimento dos pressupostos do enriquecimento sem causa (conclusões 8.ª, 9.ª e 10.ª)

Invoca a Recorrente que o Autor, na petição inicial, alega uma relação contratual entre ambos decorrente do mútuo bancário extensível à Autora, que o Autor não logrou provar, pelo que seria esse o fundamento da sua pretensão e não o enriquecimento sem causa.

Nos dias que correm a família com proteção constitucional, nos termos do artigo 36.º da CRP, é quer a família constituída através do matrimónio, quer a que se funda na união de facto.

O n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, alterada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto, consagra a seguinte noção de união de facto, “é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.

Porém, não consagrou o legislador nem definiu o âmbito dos efeitos patrimoniais dos unidos de facto, designadamente quanto aos bens dos membros da união de facto, as regras sobre a administração e disposição desses bens, bem como as dívidas contraídas por cada um dos membros, e bem assim a liquidação e partilha do património, em virtude da dissolução da união.

Têm sido a Doutrina e a Jurisprudência, esta através da análise dos casos concretos, que, ao longo destes anos, têm vindo a disciplinar os efeitos patrimoniais da cessação da união de facto.

Conforme refere Jorge Duarte Pinheiro (In O Direito da Família Contemporâneo, 6.ª edição, Lisboa, AAFDL, 2019, p. 537), uma vez que o regime patrimonial do casamento é constituído por algumas normas excecionais, não se mostra possível a sua aplicação analógica ao regime de união de facto (cf. artigo 11.º do Código Civil).

- Também Telma Carvalho (In A união de facto: a sua eficácia jurídica, AAVV, Comemorações dos 35 anos do Código Civil, p. 231-233) comunga desta opinião.

E, tem sido entendimento dominante neste STJ que às relações patrimoniais advenientes da cessação da união de facto são aplicáveis as regras do enriquecimento sem causa, cf., entre outros, os seguintes Acs. do STJ de 3/05/2018 (Revista n.º 175/05.2TBALR.E1.S1), de 4/07/2019 (Revista n.º 2048/15.1T8STS.P1.S1), de 17/06/2021 (Revista n.º 1129/18.4T8PDL.L2.S1).

O instituto do enriquecimento sem causa tem assento legal no art. 473.º do CC, que dispõe o seguinte:

“1 - Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou

2 - A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.

De acordo com os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela (In Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., págs. 427/431), a obrigação de restituir ancorada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à coisa alheia apenas nasce quando ocorre a verificação cumulativa dos seguintes três requisitos:

1.º Tem de existir um enriquecimento, que consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, que tanto pode constituir um aumento do ativo patrimonial como uma diminuição do passivo, com origem num negócio jurídico, como num ato jurídico não negocial ou num simples ato material.

2.º O enriquecimento não apresenta causa justificativa, que tanto pode ser por a mesma nunca ter ocorrido, como por ter deixado de existir, apesar de inicialmente existir.

A causa justificativa do enriquecimento sem causa não tem uma definição legal concreta, mas podemos acolher como princípio geral de que a mesma não existe quando, de acordo com a lei, o enriquecimento deva pertencer a outra pessoa (cf., neste sentido; Prof. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina Coimbra, 4.ª ed., pág. 408). Para aferirmos se tal ocorre, devemos efetuar sempre um juízo direcionado para o caso concreto, pois o mesmo depende sempre da fonte de que emerge, e deve ser interpretado e integrando a lei à luz dos factos apurados.

3.º A obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento tenha ocorrido à custa de quem requer a restituição, isto é, é exigida uma correlação entre o enriquecimento e o empobrecimento, pois que o benefício obtido pelo enriquecido deve decorrer de um prejuízo ou desvantagem do empobrecido.

A par destes requisitos não podemos deixar de considerar a subsidiariedade deste instituto, qual se mostra expressamente plasmada no artigo 474.º do Código Civil, de acordo com o qual “não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.

Daqui resulta que o empobrecido apenas pode recorrer a este instituto jurídico quando inexistam outros meios de reação legal a que possa recorrer.

Conforme referem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela (In ob. cit., pág. 433) “a subsidiariedade da acção de enriquecimento tem, no entanto, de ser entendida em termos hábeis. Pode originariamente a lei não permitir o exercício da acção de enriquecimento, em virtude de o interessado dispor de outro direito e, posteriormente, facultar o recurso àquela acção, em consequência da caducidade desse direito”.

Como se afirma no já citado Acórdão do STJ, de 4/07/2019 (Revista n.º 2048/15.1T8STS.P1.S1), para se reconhecer a obrigação de restituir sustentada no enriquecimento, não é suficiente que se demonstre a obtenção duma vantagem patrimonial, à custa de outrem, sendo ainda exigível mostrar que não exista uma causa justificativa para essa deslocação patrimonial, quer porque nunca a houve, por não se ter verificado o escopo pretendido, ou, porque, entretanto, deixou de existir, devido à supressão posterior desse fundamento, importa também anotar que a falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elemento constitutivo do direito à restituição, impondo-se, assim, ao demandante que reclama a restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da demonstração dos respectivos factos constitutivos que contém a falta de causa justificativa desse enriquecimento, conforme decorre das regras estatuídas no direito substantivo civil acerca do ónus da prova (…).

No Acórdão do STJ, de 24/03/2017 (Revista n.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1) escreveu-se, para o que ora releva, o seguinte: “Essa deslocação patrimonial, quando realizada, sem causa justificativa, obriga à restituição que tem por objecto o que for, indevidamente, recebido, ou o que for recebido, por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (art. 473.º, n.º 2, do CC). Prevêem-se aí, numa enumeração exemplificativa destinada a dar uma linha de rumo interpretativa, três situações especiais de enriquecimento desprovido de causa: condictio in debiti (repetição do indevido), condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir) e condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto)[1].

A noção de falta de causa do enriquecimento[2] é, contudo, muito controvertida e difícil de definir, inexistindo uma fórmula unitária que sirva de critério para a determinação exaustiva das hipóteses em que o enriquecimento deve considerar-se privado de justa causa. Perante tais dificuldades, há que saber, em cada caso concreto, «se o ordenamento jurídico considera ou não justificado o enriquecimento e se portanto acha ou não legítimo que o beneficiado o conserve»[3] ou, então, se «o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, ou se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa”[4].

Pode, assim, dizer-se que «o enriquecimento carece de causa, quando o Direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios jurídicos, justifique a realizada deslocação patrimonial», hipótese em que a lei «obriga a restabelecer o equilíbrio patrimonial por ele rompido, por não desejar que essa vantagem perdure, constituindo o «accipiens» no dever de restituir o recebido». Deste modo, operando-se deslocação patrimonial mediante uma prestação, a causa há-de ser a relação jurídica que essa prestação visa satisfazer, e se esse fim falta, a obrigação daí resultante fica sem causa.”.

Os argumentos da Ré para a improcedência da pretensão do Autor são os seguintes:

a) Uma vez que na p.i. o Autor invoca que a Ré tinha a obrigação de cumprir conjuntamente com o Autor a obrigação assumida perante a CEGM, o Autor está a excluir da sua alegação a possibilidade de invocar o enriquecimento sem causa, pois assenta a responsabilidade da Ré nos termos do artigo 524.º do Código Civil;

b) O Acórdão padece de incongruência pois aceita que a Ré pagou determinada parte do preço não determinada e que a outra parte foi paga com dinheiro pela sociedade conjugal, sendo o reembolso do empréstimo ao Autor uma duplicação do pagamento;

c) Não ocorreu qualquer enriquecimento da Ré nem ocorreu qualquer ausência de causa justificativa em face daquilo que ficou provado na ação n.º 8241/15.....

O Autor, na petição inicial, configurou a sua pretensão com base no enriquecimento sem causa, conforme facilmente se comprova pelo teor dos artigos 16, 17, 18 e 21, pois apesar de não indicar quaisquer normativos legais, refere expressamente que baseia o seu pedido no seu empobrecimento, e no correspondente enriquecimento da ré, em virtude dos pagamentos que fez, com dinheiro exclusivamente seu, no mútuo que contraiu para aquisição das duas frações autónomas que ambos são comproprietários em partes iguais.

A referência que faz à obrigação de pagamento que impende sobre a Ré, não é aquela que advém do disposto no artigo 524.º do Código Civil, pois em momento algum foi tal enquadramento jurídico equacionado nos autos, pelas instâncias. Mais acresce que, conforme ficou provado, a Ré não foi parte no contrato de mútuo, pelo que nenhuma obrigação sobre si recaia perante a CEMG. O Autor funda o seu pedido na obrigação que impenderá sobre a Ré de lhe restituir metade das quantias que suportou para a aquisição de dois bens imóveis em compropriedade, no pressuposto da união de facto que existiu entre eles e que que cessou em 31/12/2014.

Da factualidade provada resulta que o Autor e a Ré viveram em união de facto, a qual cessou em .../.../2014, sendo ambos comproprietários em partes iguais de duas frações autónomas melhor identificadas nos autos. Para aquisição destas frações, o Autor celebrou um contrato de mútuo com a CEMG, tempo pago à CEMG a seguinte quantia global à CEMG, € 101 023,56, cfr. factos provados sob os pontos A) a K).

Mais ficaram provados factos que resultaram da ação n.º 8241/15.... do Juízo Central Cível ..., J..., (Facto L)) e da ação n.º 1961/14.... do Juízo Local Cível ..., J....

Para apreciação deste argumentário da Ré, devemos atender ao ficou decidido no Ac. do STJ de 16/12/2021 (Revista n.º 5837/19.4T8GMR.G1.S1), na sequência de recurso do saneador sentença proferido nos presentes autos e que julgou procedente a autoridade do caso julgado do proc. n.º 8241/15.... do Juízo Central Cível ..., J..., tendo decidido não se verificar qualquer excepção de caso julgado, nem qualquer autoridade de caso julgado decorrente da decisão final proferida na ação 8241/15.0…,  que seja preclusiva do conhecimento do objeto da presente ação, impõe-se revogar  o acórdão recorrido, determinando o prosseguimento dos autos para apreciação do respetivo mérito.

Neste acórdão, foi expressamente entendido que os pedidos deduzidos pelo Autor, na presente ação, não estão abrangidos pelos efeitos da autoridade do caso julgado material daqueloutra ação, pelo que não está o tribunal impedido de julgar a pretensão do autor. Em concreto, apresentou a seguinte fundamentação: Nos presentes autos, o autor, invocando o  reconhecimento feito na ação nº 8241/15 de que ele e a ré adquiriram, na proporção de metade cada um, a propriedade das fracções supra identificadas (cfr. artigos 1º e 2º, da petição inicial) e alegando ter sido ele quem, com dinheiro exclusivamente seu, pagou e continuará a pagar todas as prestações de capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do contrato de mútuo que financiou a aquisição das  fracções autónomas, que foram objeto daquela primeira ação, e que, nessa medida, houve um  empobrecimento do seu património, em metade de todas as referidas quantias, com o correspondente enriquecimento da ré que, sendo titular de 50% das referidas fracções, nunca pagou qualquer destas quantias (cfr. artigos 3º a 21º da petição inicial), pede que seja  reconhecido que foi o autor quem, com dinheiro exclusivamente seu, proveniente e debitado da sua conta, pagou todas referidas prestações e a condenação da ré no pagamento de metade de todas elas.

Ou seja, diferentemente do que aconteceu na ação nº 8241/15, em que a causa de pedir assentou na aquisição do direito de propriedade sobre as mencionadas fracções, a causa de pedir invocada na presente ação radica no enriquecimento sem causa previsto no at. 473º, do C. Civil.

E ainda que naquela ação tenha sido apreciada a questão da contribuição monetária de cada uma das partes para a compra das fracções em causa, a verdade é que essa apreciação foi feita tendo em vista a eventual demonstração do direito de propriedade do autor e/ou da ré, mas já não na perspetiva do eventual enriquecimento sem causa da ré, pelo que os efeitos jurídicos pretendidos com essa factualidade em cada uma das ações são totalmente diferenciados e perfeitamente autónomos.

Com efeito, enquanto que na primeira ação discutiram-se os efeitos reais dessa matéria factual quanto ao reconhecimento de uma situação de compropriedade e respetiva atribuição de quotas aos consortes, na presente ação discutem-se os efeitos obrigacionais decorrentes desses mesmos factos no sentido alegado pelo autor de que houve um enriquecimento do património da ré à custa do seu empobrecimento e sem causa justificativa.

Ora, desta fundamentação resulta claramente que os factos que aí foram considerados provados visaram a demonstração do direito de propriedade do Autor e da Ré sobre as frações, nada impedindo o ora Autor de nesta ação vir provar que foi com o seu dinheiro que pagou em exclusivo o contrato de mútuo para aquisição das frações autónomas.

E, é jurisprudência maioritária neste STJ que os fundamentos de facto de uma ação não estão abrangidos pelo caso julgado, tão só a decisão de mérito, cf., neste sentido, o Ac. do STJ de 8/11/2018 (Revista n.º 478/08.4TBASL.E1.S1), I - A autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreva, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, ainda que não integralmente idêntico, de modo a obstar a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa. II - Embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado. III - Assim, a eficácia de autoridade de caso julgado pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos ou efeitos jurídicos que se apresente como pressuposto indiscutível do efeito prático-jurídico pretendido em ação posterior no quadro da relação material controvertida aqui invocada. IV - Os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram. V - Nessa medida, embora tais juízos probatórios relevem como limites objetivos do caso julgado material nos termos do art. 621.º do CPC, sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo. VI - De resto, os factos dados como provados ou não provados no âmbito de determinada pretensão judicial não se assumem como uma verdade material absoluta, mas apenas com o sentido e alcance que têm nesse âmbito específico. Ademais, a consistência dos juízos de facto depende das contingências dos mecanismos da prova inerentes a cada processo a que respeitam, não sendo, por isso, tais juízos transponíveis, sem mais, para o âmbito de outra ação.; e bem assim entre outros o Ac. do STJ, de 14/01/2021, Revista n.º 3935/18.0T8LRA.C1.S1, e o Ac. do STJ de 11/11/2021, (Revista n.º 1360/20.2T8PNF.P1.S1).

Ora, desta forma, os factos que resultaram provados em virtude das duas referidas ações não se impõem com a força de caso julgado nos presentes autos, valendo apenas nos termos em que resultaram provados naqueloutras ações. Aqui, apenas estão provados porque ali resultaram provados e aquele facto em concreto, resultou provado apenas para sustentar a compropriedade das frações naquela ação, não se sobrepondo aos factos provados nos presentes autos.

Contudo, no caso presente, consta da ata da audiência final que “… o Autor e a Ré aceitam neste processo toda a matéria considerada provada e não provada nas sentenças proferidas nos outros identificados nos autos”.

E disso deu nota a sentença proferida no Tribunal de 1.ª instância (cf. fls. 482v.º do processo físico).

Pelo que, no caso presente, nos temos de ater a todos os factos dos processos que as instâncias deram como provados, como expressamente consta da sentença do Tribunal de 1.ª instância.


Vejamos se se encontra provado o enriquecimento da Ré e o correspondente empobrecimento do Autor, como este alega.

O Tribunal de 1.ª instância proferiu sentença, sendo o dispositivo do seguinte teor:

“Pelo exposto, o Tribunal julga parcialmente procedente a acção e, consequentemente:

- declara que foi o A. que com dinheiro proveniente do seu vencimento, debitado da sua conta, pagou ao Banco Montepio todas as prestações de capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do contrato de mútuo que financiou a aquisição das fracções autónomas de que A. e R. são comproprietários;

- absolve-se a R. do demais peticionado.”

E nessa sentença encontra-se a seguinte fundamentação (da matéria de facto):

“Concluímos então que, apesar do dinheiro entregue ao Banco pelo A. ser descontado do montante do seu vencimento auferido enquanto colaborador do mesmo Banco (o que se compreende, sendo o A. perante o Banco único mutuário), já entre as partes a colaboração de cada um no pagamento da aquisição dos imóveis foi distinta.

Efectivamente, a R. entregou ao A. quantia não concretamente apurada para pagamento do preço das fracções e a restante parte não concretamente apurada do preço das fracções foi suportada à custa de economias geradas na união de facto, sendo isto o que resultou apurado no processo n.º8241/15.....

Ou seja, as partes estabeleceram essa forma de comparticipação na aquisição dos imóveis, figurando o A. perante o Banco como o obrigado mutuário, pagando-lhe as prestações através do desconto no seu vencimento, mas recebendo da R. uma quantia não apurada por conta do preço da aquisição dos imóveis e quantias provenientes da economia gerada na união de facto.”


E desta fundamentação resulta a conclusão do Tribunal de 1.ª instância de que foi o Autor que com dinheiro proveniente do seu vencimento, debitado da sua conta, pagou ao Banco Montepio todas as prestações de capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do contrato de mútuo que financiou a aquisição das frações autónomas de que Autor e Ré são comproprietários, mas com isto o Tribunal de 1.ª, por tudo o que havia dito, não decidiu que foi com o dinheiro do Autor que as frações foram adquiridas (mas somente que o dinheiro para pagamento saiu de uma conta bancária do Autor).


O Tribunal da Relação de Guimarães, contudo, veio a revogar a sentença e condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de €50 511,78, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

E o Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão recorrido, refere:

“Sucede que o Tribunal recorrido declarou no dispositivo da sentença que «foi o A. que com dinheiro proveniente do seu vencimento, debitado da sua conta, pagou ao Banco Montepio todas as prestações de capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do contrato de mútuo que financiou a aquisição das fracções autónomas de que A. e R. são comproprietários».

Esta parte da sentença não foi impugnada, pelo que transitou em julgado, impondo-se a esta Relação.

Por conseguinte, na análise dos fundamentos do recurso, tem de se partir do pressuposto que se mostra definido na sentença: o empréstimo concedido ao Autor, no valor 18.000.000$00 (dezoito milhões de escudos), «financiou a aquisição das fracções autónomas de que A. e R. são comproprietários», ou seja, foi utilizado no pagamento do respetivo preço global, que era, recorde-se, de dezanove milhões de escudos.

E também está demonstrado, e judicialmente declarado, que «foi o A. que com dinheiro proveniente do seu vencimento, debitado da sua conta, pagou ao Banco Montepio todas as prestações de capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do contrato de mútuo».

Significa isto que o Autor cumpriu integralmente as obrigações emergentes do contrato mútuo, pois, além do mais, restituiu integralmente ao Banco Montepio a quantia mutuada (v. K) e liquidou os demais acréscimos contratualmente exigíveis.

Com efeito, resultou provado que todas as prestações do capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do referido contrato de mútuo foram sempre debitadas e pagas diretamente da conta de que o Autor é e sempre foi único titular, as quais eram descontadas da retribuição/vencimento daquele, enquanto empregado da CEMG:

- até 31.12.2014, o Autor pagou a quantia global de €69.309,61 (v.I);

- até Agosto de 2019, o Autor pagou a quantia global de €91.204,92 (v.J);

- Entre 01.09.19 e 21.09.2021, pagou o montante de €9.818,64 (v.K).

Esse dinheiro era próprio do Autor, pelo que todas as prestações foram liquidadas exclusivamente à custa do seu património.

É neste quadro factual que o Autor pretende que a Ré seja condenada a pagar-lhe, com fundamento em enriquecimento sem causa, metade do valor global que suportou no âmbito do contrato de mútuo que financiou a aquisição da propriedade das frações, ou seja, a quantia de €50.511,78.”


Ora, da análise dos autos, resulta que o Tribunal da Relação de Guimarães não fez a interpretação mais correta do que se decidiu na sentença do Tribunal de 1.ª instância nem atendeu a todos os factos provados.

Em primeiro lugar, a parte do dispositivo da sentença, como refere no Acórdão recorrido, que declarou que «foi o A. que com dinheiro proveniente do seu vencimento, debitado da sua conta, pagou ao Banco Montepio todas as prestações de capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do contrato de mútuo que financiou a aquisição das fracções autónomas de que A. e R. são comproprietários» não se mostra impugnado pelas partes.

Contudo, esta decisão do Tribunal de 1.ª instância não tem o alcance que lhe deu o Tribunal da Relação de Guimarães.

Nessa sentença apenas se refere que foi com o dinheiro proveniente do seu vencimento, debitado da sua conta, que o Autor procedeu ao pagamento ao Banco Montepio todas as prestações de capital, juros, impostos, seguros e outras despesas do contrato de mútuo que financiou a aquisição das frações autónomas de que Autor e Ré são comproprietários, até porque foi o Autor quem celebrou o contrato de mútuo (não figurando a Ré nem na aquisição das frações nem no contrato de mútuo), sendo certo que não se reporta ao pagamento do preço.

Como é bem explicita a sentença na sua fundamentação (da matéria de facto).


Perante a matéria de facto provada, não é possível outra interpretação, porquanto se encontra provado que:

- chegada a altura de fazer a escritura de compra, o Autor abordou a Ré dizendo a esta que, ao contrário do que estava previsto, a fração autónoma teria de ser escriturada para o nome dele próprio, e não para o nome de ambos;

- A Ré anuiu a que, conforme o Autor pretendia, as frações viessem a ficar apenas em nome deste, tendo ambos convencionado que só ficavam em nome do Autor;

- A Ré entregou ao Autor quantia não concretamente apurada para pagamento do preço das frações e a restante parte não concretamente apurada do preço das frações foi pago pelo Autor à custa de economias geradas na união de facto.


Ora, só podemos concluir destes factos que o pagamento do preço da aquisição das frações autónomas ocorreu com contributo da Ré (esta entregou ao Autor quantia não concretamente apurada do preço) e a parte restante não concretamente apurada do preço das frações foi pago pelo Autor à custa de economias geradas na união de facto.


Daqui se conclua que o preço da aquisição das frações autónomas foi pago pelo Autor e pela Ré, não se mostrando demonstrado nem o enriquecimento da Ré nem o empobrecimento do Autor.


Deste modo, não estando demonstrados os pressupostos do enriquecimento sem causa, o recurso tem de proceder, repristinando-se a decisão do Tribunal de 1.ª instância.

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em conceder a revista, e, consequentemente, em revogar o Acórdão recorrido, repristinando-se a sentença do Tribunal de 1.ª instância.

Custas pelo Recorrido.



Lisboa, 14 de março de 2023




Pedro de Lima Gonçalves

   

Maria João Vaz Tomé


António Magalhães






Sumário:

I. a obrigação de restituir ancorada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à coisa alheia apenas nasce quando ocorre a verificação cumulativa dos seguintes três requisitos:

1.º Tem de existir um enriquecimento, que consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, que tanto pode constituir um aumento do ativo patrimonial como uma diminuição do passivo, com origem num negócio jurídico, como num ato jurídico não negocial ou num simples ato material.

2.º O enriquecimento não apresenta causa justificativa, que tanto pode ser por a mesma nunca ter ocorrido, como por ter deixado de existir, apesar de inicialmente existir.

A causa justificativa do enriquecimento sem causa não tem uma definição legal concreta, mas podemos acolher como princípio geral de que a mesma não existe quando, de acordo com a lei, o enriquecimento deva pertencer a outra pessoa

Para aferirmos se tal ocorre, devemos efetuar sempre um juízo direcionado para o caso concreto, pois o mesmo depende sempre da fonte de que emerge, e deve ser interpretado e integrando a lei à luz dos factos apurados.

3.º A obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento tenha ocorrido à custa de quem requer a restituição, isto é, é exigida uma correlação entre o enriquecimento e o empobrecimento, pois que o benefício obtido pelo enriquecido deve decorrer de um prejuízo ou desvantagem do empobrecido.

II. A par destes requisitos não podemos deixar de considerar a subsidiariedade deste instituto, qual se mostra expressamente plasmada no artigo 474.º do Código Civil.


[1]

[2] Cfr. sobre as várias noções e modalidades de causa, com relevância jurídica, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2012, 7ª edição, págs. 263 a 271.

[3] Cfr. neste sentido, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, págs. 199 e 200.

[4] Cfr. neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Volume I, 4ª edição, págs. 454 e sgts e Diogo Leite de Campos, A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir e Enriquecimento, págs. 317 e 412.