Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
127/10.0JABRG.G2.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: ACORDÃO DA RELAÇÃO
AGENTE DA AUTORIDADE
AGENTE PROVOCADOR
AGRAVANTE
ASSISTENTE
ATENUANTE
AUTORIA
CAUSAS DE EXCLUSÃO DA CULPA
CAUSAS DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE
CO-ARGUIDO
COMPARTICIPAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONSTITUCIONALIDADE
CUMPLICIDADE
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
DEPOIMENTO
DEPOIMENTO INDIRECTO
DIREITO AO SILÊNCIO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
HOMICÍDIO QUALIFICADO
IMPARCIALIDADE
IMPEDIMENTOS
IN DUBIO PRO REO
JUIZ
LEITURA PERMITIDA DE AUTOS E DECLARAÇÕES
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
MATÉRIA DE DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
MÉTODOS PROIBIDOS DE PROVA
MOTIVO FÚTIL
NULIDADE
NULIDADE DA SENTENÇA
ORGÃOS DE POLÍCIA CRIMINAL
PARTES CIVIS
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PROVA
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Data do Acordão: 06/27/2012
Votação: MAIORIA COM VOTO DE VENCIDO E VOTO DE DESEMPATE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE O RECURSO DE AA E PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO DE BB
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA - CRIMES CONTRA O PATRIMÓNIO - CRIMES CONTRA A VIDA EM SOCIEDADE / CRIMES CONTRA A FAMÍLIA - CRIMES CONTRA O ESTADO / CRIMES CONTRA A AUTORIDADE PÚBLICA / DESOBEDIÊNCIA À AUTORIDADE PÚBLICA / CRIMES CONTRA A REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - SUJEITOS DO PROCESSO / JUIZ E TRIBUNAL / IMPEDIMENTOS / ARGUIDO E SEU DEFENSOR / TEMPO DOS ACTOS / NULIDADES - PROVA / MEIOS DE PROVA - SENTENÇA - RECURSOS.
Doutrina:
- Adérito Teixeira, “Depoimento Indirecto e arguido”, Revista do CEJ, 2005, p. 135 e seg..
- Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, pp. 20, 27.
- Benjamim Silva Rodrigues, Da Prova em Processo Penal - Tomo II, p. 106.
- Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, p. 220.
- Damião da Cunha, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7, fasc. 3, p. 426 e seg..
- Direito Penal, As questões fundamentais, p. 767.
- Eurico Balbino Duarte, “Prova Criminal e Direito de Defesa”, Estudos sobre a Teoria da Prova e Garantias de Defesa em Processo Criminal, p. 58 e seg..
- Fernando Gonçalves e Manuel João Alves, A Prova do Crime - Meios Legais para a sua Obtenção, p. 163 e seg..
- Fernando Silva, Direito Penal Especial Crimes contra as pessoas, p. 60 e seguintes.
- Figueiredo Dias, Direito Penal - As questões fundamentais, p.767.
- Gimbernat Ordeig, Autor y Cumplice em Derecho Penal, p.106.
- Hans Heinrich Jescheck, "Evolución del concepto jurídico penal de culpabilidad en Alemania y Austria”, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia Núm. 05 (2003).
- Jeschek, Tratado de Direito Penal, ed. Espanhola, p. 245,780.
- Simas Santos e Leal Henriques, “Código de Processo Penal”, Anotado, II vol., p. 740.
- Manzini, Trattato di Procedura Penal, p. 98.
- Margarida Silva Pereira, Os Homicídios, p. 40.
- Maria João Antunes, “Direito ao silêncio e leitura de declarações do arguido”, Sub Judice, 1992, p.25.
- Simas Santos e Leal Henriques, “Código de Processo Penal”, Anotado, II vol., p. 740.
- Teresa Serra, Homicídio Qualificado, p. 66.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 40.º, 41.º, 61.º, N.º1, ALS. C) E D), 105.º, N.º1, 120.º, 121.º, ALS. A) E D), 125.º, 126.º, N.º 2, AL. A), 127.º, 128.º, N.º1, 129.º, 138.º, 140.º, N.º3, 145.º, 249.º, 334.º, 340.º, 343.º, N.º1, 346.º, 347.º, 348.º, 356.º, N.º7, 357.º, 374.º, N.º2, 400.º,N.º1, AL. F), 410.º, N.º2, 432.º, N.º1, AL. B), 434.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 55.º, N.º2, 59.º, N.º1, 131.º, 132.º, 145.º, N.º2, 158°, Nº 2, ALÍNEAS A) E B), 161º, NºS 1, AL. B), E 2, AL. A), 169º, NºS 1, E 2, AL. A), 210º, N.º 1, 249.º, N.º1 E 2, 348.º, 359.º, N.ºS. 1 E 2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 32.º, N.ºS 1 E 2.
LEI N.º 101/2001, DE 25-08.
Referências Internacionais:
ACÓRDÃOS DO TEDH:
- OBERSCHLICK V. ÁUSTRIA DE 23.5.1991;
- HAUSCHILDT V. DINAMARCA (PLENÁRIO), DE 24.5.1989;
- DEPIETS V.FRANÇA DE 10.02.2004.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 13/10/1992;
-DE 4/10/2001, PROC. Nº 1675/01-5;
-DE 23/01/2003, PROC. N. 4627/02-5;
-DE 22/04/2004;
-DE 05/01/2005;
-DE 4/02/2005;
-DE 26/06/2006;
-DE 15/02/2007;
-DE 2/04/2008;
-DE 27/05/2010, PROC. N.º 58/04, C. J., N.º 224, TOMO II/2010.
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 680/1998;
-N.º 440/1999;
-N.º 147/2011.
Sumário :

I - O art. 40.º do CPP assume uma específica dimensão processual que tem por objectivo essencial o de assegurar uma das finalidades últimas do processo penal que é o da garantia da imparcialidade que caracteriza o processo justo a que tem direito qualquer arguido.
II - O funcionamento da tutela da imparcialidade, ínsito na reformulação operada no art. 40.º do CPP, não tem cabimento quando está em causa a mera supressão de causas de nulidade detectadas na decisão e não uma nova apreciação da matéria de facto.
III - Como decidiu o Ac. do TC n.º 147/2011 não é inconstitucional a norma da al. d) do art. 40.º do CPP (aprovado pelo DL 78/87 e alterado, por último, pela Lei 48/2007), quando interpretada no sentido de que o juiz que tenha participado em acórdão que conheceu do mérito do recurso, mas declarado nulo por inobservância de regra processual, não fica impedido de intervir na audiência destinada a julgar o mérito desse recurso.
IV - O colectivo que subscreveu a decisão recorrida não estava impedido de intervir na sua elaboração por ter participado na elaboração do primitivo acórdão do Tribunal da Relação, que se limitou a declarar nulo um segmento da prova e, consequentemente, a declarar nulo o acórdão recorrido a fim de ser substituído por um outro que não valore essa prova.
V - Como o STJ é um tribunal de revista (art. 434.º do CPP) sai fora do âmbito dos seus poderes de cognição a apreciação da matéria de facto. Se é certo que os vícios da matéria de facto ─ art. 410.º, n.º 2, do CPP ─ são de conhecimento oficioso e podem sempre constituir objecto de recurso, tal só pode acontecer relativamente ao acórdão recorrido, ou seja o acórdão do Tribunal da Relação. A decisão deste Tribunal sobre a alegação da existência de vícios da matéria de facto ocorridos na decisão da 1.ª instância tem de tomar-se por definitivamente assente, como é jurisprudência pacífica do STJ.
VI - O princípio in dubio pro reo, constitucionalmente fundado no princípio da presunção da inocência (art. 32.º, n.º 2, da CRP), só vale em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito. Aqui, a única solução correcta residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto.
VII - O princípio aplica-se, sem qualquer limitação, a todos os factos sujeitos a julgamento e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude e da culpa, às condições objectivas de punibilidade, às circunstâncias modificativas atenuantes e, em geral, a todas as circunstâncias relevantes em matéria de determinação da medida da pena que tenham por efeito a não aplicação da pena ao arguido ou a diminuição da pena concreta.
VIII - Em todos estes casos, a prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à prova completa da circunstância favorável ao arguido.
IX - O princípio in dubio pro reo encontra-se intimamente ligado ao princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP) e a sua eventual violação não envolve questão de direito (é um princípio de prova que rege em geral, ou seja, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário). Por isso, o STJ só pode sindicar a sua aplicação quando da decisão recorrida resulte que o tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.
X - O depoimento indirecto refere-se a um meio de prova e não aos factos objecto de prova, pois o que está em causa não é o que a testemunha percepcionou, mas sim o que lhe foi transmitido por quem percepcionou os factos. Assim, o depoimento indirecto não incide sobre os factos que constituem objecto de prova, mas sim sobre algo diferente, ou seja, sobre um depoimento que se ouviu.
XI - Como a validade do depoimento está condicionada à possibilidade do referenciado ser chamado a depor, o juiz deve proceder a tal chamamento, quanto mais não seja por força do princípio da descoberta da verdade material. A omissão deste dever, sem justificação, consubstancia nulidade, nos termos do art. 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.
XII - O depoimento indirecto deve ser objecto de valoração quando a testemunha referenciada comparecer, existindo, então, a necessidade de, com observância do princípio da livre apreciação da prova, conjugar e cotejar o depoimento indirecto e o depoimento directo, esclarecendo eventuais contradições ou convergência.
XIII - A testemunha referenciada no depoimento indirecto pode não comparecer ou, comparecendo, recusar-se, de forma ilegal, a prestar depoimento. Em qualquer uma dessas hipóteses, assegurado que está o princípio da imediação com a valoração da credibilidade e da fiabilidade dos depoimentos, ou do próprio comportamento processual da testemunha, os depoimentos directo e indirecto, devem ser livremente valorados.
XIV - Na disciplina legal do art. 129.º do CPP é suficiente a tentativa de realização do contraditório e não é de exigir a efectiva consumação de tal princípio para que o depoimento indirecto tenha potencialidade para ser valorado.
XV -. As pessoas a quem se ouviu algo de relevante em termos de objecto do processo podem ser testemunhas (arts. 138.º e 348.º do CPP), assistente e partes civis (arts. 145.º, 346.º e 347.º do CPP). Por isso, não há motivo que leve a adoptar uma interpretação restritiva do art. 129.º do CPP, relegando o seu campo de aplicação unicamente para as testemunhas.
XVI - O n.º 1 do art. 129.º do CPP (conjugado com o n.º 1 do art. 128.º) deve ser interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio.
XVII - O direito ao silêncio do arguido circunscreve-se a uma dimensão positiva que lhe confere a faculdade de se manter em silêncio ao longo de todo o processo e, em especial, na audiência de julgamento (arts. 61.º, n.º 1, al. d) e 343.º, n.º 1, in fine), sem que tal comportamento possa ser interpretado em seu desfavor. Colide com o princípio da legalidade da prova (art. 125.º do CPP) a atribuição ao direito ao silêncio do efeito negativo de obstaculizar qualquer depoimento sobre o que o mesmo referiu anteriormente.
XVIII - A proibição do art. 129.º do CPP visa os testemunhos que pretendam suprir o silêncio do arguido, mas não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, v.g. as providências cautelares a que alude o art. 249.º do CPP.
XIX - O relato de órgãos de polícia criminal sobre afirmações ou contribuições do arguido (v.g. factos, gestos, silêncios, reacções) de que tomaram conhecimento fora do âmbito de diligências de prova (v.g. interrogatórios, acareações) e que não o devessem ser sobre tal formalismo, bem como no âmbito de actos de investigação e meios de obtenção de prova (v.g. buscas, revistas, exames ao local do crime, reconstituição do crime, reconhecimentos presenciais, entregas controladas) que tenham autonomia técnico-jurídica constituem depoimento válido e eficaz por se mostrarem alheias à tutela dos arts. 129.º e 357.º do CPP.
XX- A indicação feita pelos arguidos à entidade policial sobre o local onde ocorreu o homicídio pode e deve ser valorada em sede de depoimento da mesma entidade policial.
XXI - O agente provocador convence outrem ao crime, determina a vontade para o acto ilícito. O agente infiltrado opera no sentido de ganhar a confiança do suspeito e, na base dessa confiança, mantém-se a par do comportamento daquele, praticando, se necessário, actos de execução em integração do seu plano, mas não assume o papel de instigador. Deste modo, como traço distintivo apresenta-se a passividade do agente infiltrado ou encoberto, o que contrasta com a iniciativa criminosa do agente provocador.
XXII - O recurso à figura do agente encoberto é legalmente possível desde que feito dentro dos limites fixados pela Lei 101/2001, de 25-08. Já o recurso à figura do agente provocador é veementemente rejeitado quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, por constituir um meio enganoso de obtenção de prova (art. 126.º, n.º 2, al. a), do CPP).
XXIII - A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação. O apelo a exemplos padrão, como exemplificadores de uma intensidade qualitativa da culpa, reflecte uma técnica de tipos abertos que apenas pode ser compreendida dentro dos limites propostos pelo princípio da legalidade.
XXIV - O julgador deve subsumir à qualificação do art. 132.º do CP apenas as condutas que, embora não abrangidas pelo perfil especificado, normativamente correspondem à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo padrão.
XXV - O motivo fútil não é tanto o que passe por dizer-se que, sendo ele de tão pouco ou imperceptível relevo, quase que pode nem chegar a ser motivo, mas sim, aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou.
XXVI - O homicídio pode ter na sua origem uma situação que face à experiência comum poderia conduzir àquele desenlace. Porém, casos existem em que o homicídio surge numa situação em que de todo não era expectável, em que são mínimos os motivos que lhe estão em causa. A prática do crime surge aqui como resultado de um processo pautado pela ilógica, ou de plena irracionalidade, em que uma culpa do agente acentuada por um alto grau de censurabilidade leva a tirar a vida a alguém por razões fúteis.
XXVII - No caso é manifesta a existência de motivo fútil da prática do crime de homicídio que, aliás, se revela na própria inexistência de um motivo que à luz dos critérios de um cidadão normal expliquem o porquê da decisão de matar. Mesmo o assegurar a impunidade ou o encobrimento de outro crime, é aqui um motivo fútil ou de importância mínima.
XXVIII - A teoria do domínio do facto é o eixo fundamental de interpretação da teoria da comparticipação. Autor é, segundo esta concepção, quem toma a execução nas suas próprias mãos de tal modo que dele depende decisivamente o se e o como da realização típica. O autor é a figura central do acontecimento.
XXIX - A essência da cumplicidade consiste na execução de acções de ajuda sem participar na decisão nem no domínio final do facto. Nos crimes dolosos é autor somente quem, por virtude da direcção com finalidade consciente do acontecimento causal vai terminar no resultado típico, ou seja é senhor da produção do resultado.
XXX - A co-autoria consiste numa divisão de trabalho que torna possível o facto. No aspecto subjectivo requer que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como co-titular da responsabilidade pela execução de todo o processo. No aspecto objectivo, a contribuição de cada co-autor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto.
XXXI - No caso cada um dos arguidos coadjuvou os outros nos actos físicos que levaram ao atirar a vítima para o rio, ou seja, existiu um acordo prévio na sequência do qual os arguidos cometeram o crime. Igualmente existiu um querer que se consubstanciou nos actos concretos que cada um praticou na sequência desse acordo prévio.
XXXII - A morte dada pelos arguidos assume-se como um acto gratuito em que quiseram afirmar o seu poder sobre uma semelhante. Profunda culpa e ilicitude a que se alia uma visão crítica sobre as perspectivas de socialização. A anomia caracterizada por uma ausência de valores redundou num acto de gravidade extrema que não permite prognósticos positivos sobre a reintegração na sociedade. Nenhuma crítica há pois a formular à pena de 23 anos de prisão pela prática do crime de homicídio do art. 132.º, n.º 1, als. e) e h), do CP.
Decisão Texto Integral:

                                          Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

 AA e BB vieram interpor recurso da decisão do Tribunal da Relação de Guimarães que confirmou a decisão de primeira instância que os condenou nas seguintes penas:

A arguida pela prática, em co-autoria, de um crime de rapto qualificado previsto e punível pelo art.º, 161º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), com referência ao art. 158°, nº 2, alíneas a) e b), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão; pela prática, em co-autoria, de um crime de roubo previsto e punível pelo art. 210º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; pela prática, em co-autoria, de um crime de lenocínio agravado previsto e punível pelo art. 169º, nºs 1, e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; pela prática, em co-autoria, de um crime de homicídio qualificado previsto e punível pelos art°s. 131° e 132°, nºs 1 e 2, alíneas g), h) e j), do Código Penal, na pena de 23 (vinte e três) anos de prisão;

            Em cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão supra referidas foi a mesma arguida condenada na pena única de 25 (vinte e cinco) anos de prisão;

O arguido pela prática, em co-autoria de um crime de rapto qualificado previsto e punível pelo art. 161º, nºs 1, al. b), e 2, alínea a), com referência ao art. 158°, nº 2, alíneas a) e b), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão; pela prática, em co-autoria, de um crime de roubo previsto e punível pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; pela prática, em co-autoria, de um crime de lenocínio agravado previsto e punível pelo art. 169º, nºs 1, e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; pela prática, em co-autoria de um crime de homicídio qualificado previsto e punível pelo art. 132°, nºs 1 e 2, alíneas g), h) e j), do Código Penal, na pena de 23 (vinte e três) anos de prisão; como autor de um crime de falsidade de depoimento previsto e punível pelo art. 359°,n.ºs 1 e 2, do Código Penal na pena de 6 (seis) meses de prisão;

            Em cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão supra referidas foi o mesmo arguido condenado na pena única de 25 (vinte e cinco) anos de prisão;

As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões das respectivas motivações de recurso onde o recorrente refere que:

1 - O Tribunal da Relação entendeu que “nenhum reparo nos oferece fazer, revelando a decisão proferida cabal enquadramento da pena encontrada para cada tipo de ilícito cometido e consequentemente aderimos aos seus fundamentos”, decidindo tout court por imodificabilidade da decisão de facto. Sendo ademais certo que a Relação pode modificar a decisão da 1.ª instância em matéria de facto.

2 - Verifica-se do texto do acórdão proferido pelo 2º Juízo Criminal do Tribunal da comarca de Barcelos, confirmado, agora por este, douto, aresto proferido pelo Tribunal da Relação, ora recorrido, que inexiste um exame crítico sobre as provas que concorreram para formar da convicção no tribunal a quo, de que o arguido se dedicou e cometeu os ilícitos de que vinha acusado.

3 - Violando, assim, o comando constitucional prescrito no artigo 32.º, n.º 5, da C. R. P.

4 - Desconhece-se, qual o fundamento de onde foi extraída semelhante ilação, de que o arguido se dedicou e fomentou os factos que lhe são imputados, por inexistência do exame crítico sobre as provas que concorreram para formar tal convicção no tribunal “a quo”.

5 - Daí que a fundamentação que Tribunal invoca para a formação da convicção quanto à matéria de facto não permite perceber a sequência lógica do raciocínio a que procedeu, partindo das provas examinadas para declarar como provados factos que resultaram do depoimento das testemunhas, CC, DD, que participaram e fomentaram os mesmos, e, não valorou outros (das mesmas).

6 - Resulta assim, que se verifica a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, a) com referência ao artigo 374.º, n.º 2, do CPP; que expressamente se invoca, com todas as consequências legais.

7 - Não há prova bastante, nenhuma directa, que sustente a condenação, proferida no douto Acórdão, pelo Tribunal “a quo” do aqui requerente. Mesmo a prova, nomeadamente, a testemunhal (é de realçar, que as testemunhas, CC e DD, merecem-nos as maiores das reservas! Não só pelos actos que praticaram, contra e com, a Dª EE, como ficaram com todas as quantias recebidas pela mesma (…) estando-se atento, nomeadamente, à postura dessas testemunhas e ao seu discurso em sede de julgamento – um entendimento entre os mesmos, um à-vontade, uma frieza, e uma clara e notória ascendência, domínio, sobre o aqui requerente, bem como, sobre os restantes arguidos constatava-se isso mesmo). Pelo que, o Tribunal “ a quo”, ao credibilizar esses testemunhos, os seus depoimentos, enferma indubitavelmente a decisão que proferiu. 

 8 - Mesmo a prova, que se refere, ao requerente, AA, situam-no, essencialmente, ao volante de uma viatura, como se de um condutor se tratasse, em termos espácio-temporais contraditórios.

9 - Efectuando assim um raciocínio meramente dedutivo com recurso a juízos presuntivos.

10 - o nosso processo penal é um processo de estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial.

11 - o art. 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.) consagra como princípio fundamental enformador do processo penal, o princípio do acusatório, prescrevendo que " o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de discussão e julgamento e os actos que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório ".

12 - no sistema acusatório, o arguido é um sujeito processual que tem intervenção em todas as fases do processo, garantindo-se-lhe o contraditório, ou seja, a possibilidade de o arguido questionar ou negar factos constantes da queixa e seu enquadramento jurídico.

13 - é o que resulta da conjugação do art. 58º nº 1 a) e c) com o nº 1 do art. 59º do C.P.P..; isto quer dizer que a constituição de arguido por iniciativa do titular da acção penal  - “é obrigatória” - nos termos dos arts. 58º e 59º nº 1, do referido diploma.

14 - a impreterível constituição de arguido, enumera o art. 61º nº 1 do C.P.P. (embora não exaustivamente), um conjunto de direitos de que o mesmo goza. Entre eles, está o direito de tomar posição sobre os factos que lhe são imputados na queixa, requerendo a realização das diligências que se lhe afigurarem necessárias - art. 61º nº 1 g) do C.P.P. - alcançando-se tal desiderato, com o interrogatório do suspeito como arguido, visto ser nesse momento que se lhe dá conhecimento da existência do processo contra si instaurado.

15 - pese embora o princípio da igualdade de “armas” só vigore tendencialmente nas fases jurisdicionais do processo, o certo é que no inquérito o arguido vê protegidos os seus direitos fundamentais com a já referida obrigatoriedade da constituição de arguido, a obrigação de se lhe dar a conhecer os seus direitos e deveres, com os direitos de petição no que respeita à produção de prova e de contradição, de confessar e recorrer, entre outros.

16 - no caso destes autos a nulidade por insuficiência de inquérito com fundamento na falta de interrogatório de – DD e CC (promovidos a agentes provocadores (encapotados), e, travestidos de testemunhas) – como arguidos, desde que em relação a eles haja suspeita fundada da prática de crime, sendo possível notificá-lo, deveria ter sido feita.

Assim sendo, verifica-se a nulidade insanável da falta de promoção do processo pelo M. P. .

17 - Considerando, mutatis mutandis, que DD e CC , não foram constituídos arguidos, bem pelo contrário, foram promovidos a agentes provocadores (encapotados), e, travestidos de testemunhas.

18 - tendo sido utilizados como agentes provocadores encapotados, a prova obtida é nula, por inadmissível, por ter sido utilizado meio enganoso, proibido por lei, já que afecta a liberdade de vontade ou de decisão dos arguidos em causa.

19 - a actividade do agente provocador não pode deixar de ser considerada ilícita e, por isso, as provas assim obtidas são provas proibidas, por inadmissíveis face, desde logo, ao artº 125º do C. P. P., ao estabelecer que, apenas, «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”.

20 - declarar nulo o acórdão, por não se ter pronunciado sobre a problemática do “agente provocador e as consequências da sua intervenção na determinação da prática do acto criminoso” – cfr. artº 668º, nº 1, al. d) do CPC, ex vi do artº 4º do CPP

21 - a promoção acusatória é uma decisão com conteúdo meramente processual, pois nela não se resolve a questão de saber se o acusado deve ou não ser punido, mas somente se se verificam os indícios suficientes, indispensáveis, para sua submissão a julgamento.

22 - o Tribunal a quo violou, por omissão, a norma constante do nº 6 do artº 32º da C.R.P. (artºs 261º, nº 1 do CPP/1929 e 126º do CPP/1987) ao ter em consideração meios proibidos de prova, por que obtidas com recurso (conversão) a “agente provocador” (os “ilícitos penais” apurado nos autos “só foi possível porque os “encapotados”, DD e CC , forneciam apoio, confiança e segurança indispensável à sua consumação”; e foram os “encapotados”, que actuaram (activamente), tendo conhecimento, de que se estava a desencadear actividades, nomeadamente, de meretrício, através dos restantes sujeitos, e que, juntamente com eles se dirigiram ao local, por eles indicado, como sendo aquele em que se iria terminar uma prestação de favores sexuais, anteriormente combinada, com o recebimento e entrega de dinheiro aos “encapotados”; tendo, como se acaba de explicar pela descrição do “iter criminis”, estas testemunhas actuado como “agentes provocadores” encapotados.

23 - na verdade, a actuação dos “encapotados”, como resulta do próprio texto do acórdão recorrido, e é confirmado pelo que consta dos autos não foi passiva, antes pelo contrário:- não integra a figura do dito agente encoberto.

24 - mostram-se, assim, violadas, nomeadamente, as normas constantes do artº 32º, nº 6 da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), e, 126º, nºs 1 e 2 al. a), do Código de Processo Penal (C.P.P.).

25 - Considerando, que a inadmissibilidade do agente provocador advém da violação do princípio democrático, ou seja, “... o da suprema dignidade da pessoa humana e o da igualdade de todos os cidadãos, igualdade perante a lei, de direitos e deveres, mas também e essencialmente, igualdade de natureza, de dignidade. “ – Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 28; cfr. artºs 1º e 2º, da CRP.

26 - em síntese, ”... a actividade do agente provocador não pode deixar de ser considerada ilícita e, por isso, as provas assim obtidas são provas proibidas, por inadmissíveis face, desde logo, ao artº 125º do Código de Processo Penal, ao estabelecer que, apenas, “são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei” ”

27 - note-se que também no presente caso se está perante arguidos sem antecedentes criminais (de relevo).

28 - em súmula: i) que, verifica-se a nulidade insanável da falta de promoção do processo pelo M. P.; ii) que são nulas as provas obtidas nos autos – porquanto o foram através de agente provocador (encapotado) – cfr. artº 32º, nº 6 da C.R.P. e 126º, nºs 1 e 2 al. a) do CPP. Em consequência, é nulo todo o processado (excepto para o efeito do nº 4 do artº 126º do C.P.P.). Há, assim, que absolver os arguidos.

29 - Resulta assim, que se verifica a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, c) do CPP; que expressamente se invoca, com todas as consequências legais.

30 - O Tribunal usando um processo racional e lógico, retirou daqueles factos uma conclusão arbitrária, recorrendo a juízos presuntivos para concluir pelos crimes e co-autoria dos mesmos.

31 - Assim, existe erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º, n.º 2, al. c). do C.P.P.), o que resulta do texto da decisão recorrida conjugado com as regras da experiência comum as quais demonstram uma realidade antagónica àquela que o Tribunal a quo presumiu.

32 - A fundamentação que Tribunal invoca para a formação da convicção quanto à matéria de facto não permite perceber a sequência lógica do raciocínio a que procedeu, partindo das provas examinadas para declarar como provados os factos que extravasam o critério do homem médio.

33 - Assim, verifica-se a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, a) com referência ao artigo 374.º, n.º 2, do C.P.P; que expressamente se invoca, com todas as consequências legais.

34 - Foram violados os artigos 410.º, n.º 2, al. c); 379.º, n.º 1, a) com referência ao artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e artigo 32.º, n.º 5, da C. R. P..

35 - o acórdão recorrido viola, por erro de interpretação, o disposto no artº 374.° nº2 do CPP quanto à exigência de um verdadeiro exame crítico da prova.

36 - Pelo que, o decidido, o recorrido acórdão violou, por erro de interpretação o disposto (artº 374.° nº 2 do CPP).

37 - A existência de, erro notório na apreciação da prova, bem como, a nulidade da prova produzida em audiência consistindo no conhecimento dos factos por, agora evitado o "ouvir dizer", para passar “depois de lhe ter dito” a pessoas determinadas (que não foram ouvidas) ou a pessoas indeterminadas (que também não o foram), - como resulta dos depoimentos do CC, DD, e, Inspector da polícia Judiciária FF) a decisão, acórdão, violou o disposto na Lei Penal Adjectiva acerca da proibição de prova, "máxime" o disposto no art.º 356. nº 7 do CPP.

38 - Ao não indicar em que elementos concretos o Tribunal se estribou para alcançar a convicção de que o telemóvel em causa estava na posse e uso, do recorrente e não a outra pessoa o douto Tribunal violou o princípio consignado no artº 374.° nº 2 do CPP precisamente pela insuficiência de fundamentação. Pelo que cometeu a nulidade cominada no artº 379.° nº 1 alínea c) do CPP

39 - Ao não declarar a inexistência de causalidade entre o facto e o sujeito activo - ou dos motivos de facto e de Direito que fundamentam decisão - ou o conteúdo da conclusão - a decisão viola, por manifesto erro interpretativo, o disposto no art.º 374.° nº 2 do CPP .´

40 - Com o exposto, temos, também, um vício que decorre do próprio texto da decisão, do douto Tribunal “a quo”, pelo que, nos termos do artº 410º-2. c) do CPP, poderá ser considerado e revisto em sede de recurso, como o presente.

41 - Não resultam provados factos que demonstram inequivocamente ter o arguido agido com um sangue frio extraordinário, não denotando, de todo, absoluta insensibilidade para com a brutalidade de uma conduta, bem como, total indiferença ao valor da vida humana e aos sentimentos dos familiares da vítima.

42 - É notório que o douto acórdão recorrido, ao afirmar lacónica e simplesmente que não se provou que o arguido tenha actuado «friamente», laborou em erro manifesto de apreciação da prova, já que desta extrai - sem justificação - conclusão em tudo contrária  normal e comum interpretação daqueles factos.

43 - Mais se vendo que tal vício decorre, evidente, do próprio texto da decisão recorrida, poderá ser considerado e revisto em sede de recurso, nos termos do artº 410º nº 2. Al:c) do CPP.

44 – Quanto à adequação jurídica dos factos apurados, quer os considerados pelo Tribunal “a quo”, quer os inconsiderados, assim, o seu enquadramento Jurídico-Penal. Então, se,

45 - perante factualidade apurada, se poderá afirmar que os arguidos cometeram semelhantes crimes, pelo que, importa analisar os seguintes tipos legais: rapto; roubo; lenocínio; coacção; homicídio, e, falsidade de depoimento.

46 - “É de excluir, desde logo e sem grandes considerações, o preenchimento das circunstâncias agravantes previstas nas alíneas d) e e). Isto porque: da privação da liberdade não resultou suicídio ou ofensa à integridade física grave da vítima; a vítima tinha 34 anos de idade, não era deficiente, doente e não se encontrava grávida”.

47 - Quanto à circunstância agravante contemplada na alínea a), atento o período temporal apurado - de “25 de Fevereiro, entre as 18 e as 19 horas, a 27 de Fevereiro de 2010”, até depois das 22h15 -, cabe julgá-la verificada.

48 - “Relativamente à circunstância agravante prevista b), afastada a ofensa à integridade física grave e a tortura, que, manifestamente, não cabem no caso, há que apreciar as demais situações previstas nessa alínea, ou seja, o tratamento cruel, degradante ou desumano.”

49 - Actualmente, “a tortura, o tratamento cruel, desumano ou degradante" são definidos no nº 3 do artigo 243º do Código Penal deste modo…”

50 - Em suma, os arguidos não cometeram, em co-autoria, um crime de rapto qualificado (agravado) nos termos do disposto nos artigos. 161º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), com referência ao artigo 158º, nº 2, alíneas a) e b), ambos do Código Penal. 

51 - Do crime de roubo: Pratica o crime de roubo quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel alheia, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir – cfr. art. 210º, nº 1, do Código Penal.

52 - Do crime de lenocínio, é questionável que o arguido, aqui requerente, tenha cometido o crime de lenocínio por meio de ameaça grave – cfr. art. 155º, nº 1, al. a), e 131º do Código Penal. Nem que, se tenha verificada a circunstância agravante prevista na al. a) do nº 2 do art. 169º.

53 - Do crime de homicídio: No caso concreto, de harmonia com a acusação em causa estaria o preenchimento das alíneas c), d), e), g), h) e j) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, que se traduzem em: c) o agente praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez; d) o agente empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima; e) o agente ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer outro motivo torpe ou fútil; g) o agente ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime; h) o agente praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum; j) o agente agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.

54 - No caso, é de excluir o preenchimento da primeira circunstância, uma vez que, já o referimos, a vítima tinha 34 anos de idade, não era deficiente, doente e não se encontrava grávida. Igual conclusão se impõe quanto à segunda, pois não se provou que os arguidos ao atirarem a EE da ponte abaixo tivessem em vista aumentar o seu sofrimento na morte.

55 - Também não se pode enquadrar o comportamento dos arguidos na citada alínea e) do nº 2 do art. 132º, dado que, tendo acusação defendido que os arguidos foram determinados pelo prazer de matar, esse facto não resultou provado.

56 - Relativamente, à circunstância prevista na alínea j) do nº 2 do art. 132. Entende-se, por não preenchida esta circunstância qualificadora – “frieza de ânimo”. Mesmo que, se considera, o preenchimento das circunstâncias previstas nas referidas alíneas g), h) e j) não determina de per si o tipo de culpa agravado.

57 - Pelo que, não se poderá integrar a prática, em co-autoria, de um crime de homicídio qualificado previsto e punível pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, alíneas g), h) e j), do Código Penal.

58 - Do crime de falsidade de declaração (depoimento). Pratica este crime, entre outras hipóteses que para o caso não relevam, o arguido que fizer falsas declarações relativamente aos antecedentes criminais, depois de ter prestado juramento e de ter sido advertido das consequências penais a que se expõe com a prestação de falsas declarações – cfr. art. 359º, nºs 1 e 2, do Código Penal.

59 - Considerando, factualidade presente nos autos, o perfil e personalidade, do recorrente, cabe reconhecer que, o mesmo, não cometeu, com dolo (nem com negligência, mesmo que, grosseira), um crime de falsidade de declaração sobre os seus antecedentes criminais. Dai, que se entenda, não cometeu, assim, o recorrente, AA, o crime previsto no citado art. 359º, nºs 1 e 2.

60 - Constatando-se, ainda, que esse erro levou à indevida aplicação, ao caso, do disposto no artº 132º, nº2. al: j) do CP, foi esta norma violada por acção, e, aquela, outra, por omissão.

61 - Termos em que, o douto Acórdão, deve ser alterado e substituído nesta parte por outra decisão que, fazendo bom uso e correcta interpretação da prova obtida, não considere verificada a aludida circunstância qualificativa do crime de homicídio: frieza de ânimo, não aplicando, ao caso, a norma violada.

Porém, sem prescindir.

62 - O crime de homicídio qualificado, sendo punível apenas a título de dolo, compatibiliza-se com este em qualquer das suas formas e, portanto, também com o dolo eventual.

63 - Tendo o crime sido cometido com dolo, mesmo que eventual, segundo a factualidade dada como provada, ou seja, a forma mais enfraquecida de dolo, esse facto não pode deixar de ter repercussões consideráveis em sede de determinação da pena.

64 - Sendo embora censurável a forma como os arguidos agiram, estando esse acréscimo de censurabilidade já reflectido na opção pelo tipo qualificado e tendo as circunstâncias desvaliosas em que os arguidos actuaram, quer as referidas ao desvalor da conduta, quer as referidas ao desvalor da atitude do agente, sido determinantes para a qualificação dos factos,

65 - não podem, as mesmas, ser novamente valoradas em sede de determinação concreta da pena, dentro dos critérios do art. 71.º do CP, sob pena de infracção do princípio da proibição de dupla valoração. O que se invoca, com todas as consequências legais.

66 - O Tribunal “a quo” usando um processo racional e lógico, retirou daqueles factos uma conclusão arbitrária.

67 - Com efeito, um facto é notório quando o juízo conhece como tal, colocado na posição do homem comum, de nível cultural médio, sem recurso a operações lógicas e cognitivas nem juízos presuntivos. Assim, o Tribunal “a quo” ao extrair daqueles elementos de prova que os crimes ocorreram – por este e, ou, aqueles, desta ou, e, daquela forma – recorreu a juízos presuntivos.

68 - O tribunal a quo, recorrido, valorou contra o arguido determinada prova, apesar da subsistência de dúvida razoável, ora por manifestamente desfavorecer o arguido nessa situação, ora por erro na apreciação da prova, afirmou a sua convicção no sentido de dar como provado contra o arguido, aqui recorrente, determinado facto relevante, quando o sentido dessa prova, extraído do material probatório de que se serviu o tribunal, era de molde a gerar uma dúvida razoável que devia ser valorizada a seu favor, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, a conclusão retirada pelo tribunal, a quo, em matéria de prova materializa uma decisão contra o arguido que não é suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.

69 - Assim, existe erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º, n.º 2, al. c). do C.P.P.), o que resulta do texto da decisão conjugado com as regras da experiência comum as quais demonstram, indiciam, uma realidade contrária àquela que o Tribunal “a quo” presumiu.

70 - Por outro lado, igualmente, afigura-se-nos que a sobredita fundamentação que Tribunal invoca para a formação da convicção quanto à matéria de facto não permite perceber a sequência lógica do raciocínio a que procedeu, partindo das provas examinadas para declarar como provados os factos que extravasam o critério do homem médio.

71 - A motivação das decisões judiciais é um autêntico momento de verdade do perfil do Juiz, que deve situar-se à margem de qualquer blindagem, no dizer de Perfecto Andrés Ibañez, in Jueces y Ponderacion Argumentativa, pág. 73.

72 - A fundamentação decisória, nos termos do art. 374.º, n.º 2, do CPP, está desenhada na lei para, pelo enunciar os pontos de facto provados e não provados, como de uma súmula dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, o julgador explicitar o processo lógico e psicológico da sua decisão, excluindo da motivação o que não é passível de justificação racional, movendo-se unicamente no âmbito do racionalmente justificável.

73 - Resulta assim, que se verifica a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, a) com referência ao artigo 374.º, n.º 2, do C.P.P.. Que expressamente se invoca, com todas as consequências legais.

74 - se, a isso, acrescer que a prova dos factos não resultou em exclusivo dos referidos depoimentos indirectos. Mas, no caso, sub iudice, foi indubitavelmente mais uns elementos (decisivos!) no conjunto das provas produzidas. E,

75 - não tendo o tribunal, a quo, agido com a prudência que a impossibilidade de ouvir a fonte impunha e de acordo com as regras da lógica e da experiência, será de concluir que a valoração dos depoimentos, nesses termos relativos, ofendeu o disposto no art. 129.º do CPP, em correlação com os direitos dos arguidos, nomeadamente, o direito de defesa, consignado no art. 32.º , n.ºs 1 e 5 da Constituição.

76 - Assim, a utilização e valoração daqueles depoimentos, é incompatível com o princípio da verdade material e a estrutura acusatória do processo penal, por contrária aos princípios da imediação e contraditório.

77 - Violando, assim, disposto no art. 129.º do C.P.P., bem com, o comando constitucional prescrito no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (C. R. P.)

78 - O Tribunal a quo não tinha, assim, suporte provatório, credível e suficiente, para considerar assentes os factos que supra se enumeraram para, em consequência, condenar o recorrente pela prática de: um crime de rapto agravado, de um crime de roubo, de um crime de lenocínio agravado, e, um homicídio qualificado.

79 - Com efeito, em Direito Penal, a prova para condenação deve ser plena, do mesmo passo que a dúvida determina a absolvição, sendo este o efeito necessário da presunção de inocência.

80 - Atendendo a que nenhum dos factos dados por provados, supra enunciados, os motivos determinantes para a formação da convicção do Tribunal “a quo” quanto à responsabilidade penal do recorrente, não têm suporte na prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento, o, ora, recorrente deveria ter sido absolvido dos crimes pelo qual foi condenado.

81 - Finalmente, ocorre que ao considerar - desta e não daquela forma, por este, ou estes, e não por outros - o tribunal “a quo” não se baseou, pois, em todos, nos elementos de prova coligidos, dado que com base nesses elementos, apenas, conclui, por meio de um juízo presuntivo.

82 - O tribunal a quo, recorrido, valorou contra o arguido determinada prova, apesar da subsistência de dúvida razoável, ora por manifestamente desfavorecer o arguido nessa situação, ora por erro na apreciação da prova, afirmou a sua convicção no sentido de dar como provado contra o arguido, aqui recorrente, determinado facto relevante, quando o sentido dessa prova, extraído do material probatório de que se serviu o tribunal, era de molde a gerar uma dúvida razoável que devia ser valorizada a seu favor, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, a conclusão retirada pelo tribunal, a quo, em matéria de prova materializa uma decisão contra o arguido que não é suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.

83 - O Tribunal ad quem, no seu acórdão, que correu, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães, determinou o seguinte: “(…) declarar nula a prova obtida através do depoimento da testemunha HH e dos depoimentos das testemunhas CC, DD mas apenas nos segmentos em que o seu conhecimento resulta exclusivamente do que ouviram dizer aos arguidos e, consequentemente, declarar nulo o acórdão recorrido, o qual deve ser substituído por outro que não valore a referida prova.”

84 - O processo reenviado (artigo 426.º do CPP) para novo julgamento relativamente aos pontos identificados (reenvio parcial), julgamento, esse, a efectuar pelo tribunal competente, nos termos do art.º 426.º - A do CPP.”

85 - Com a revisão do Código de Processo Penal, operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o regime do reenvio do processo para novo julgamento, nomeadamente, no caso de se verificarem os vícios do artigo 410.º, n.º 2 do CPP (artigo 426.º do CPP), sofreu alterações, vindo a ser expressamente consagrada a solução que já muitos, anteriormente, defendiam.

86 - Assim, perante a actual redacção do artigo 426.º - A do CPP é competente para realizar o novo julgamento, o mesmo tribunal que tiver efectuado o julgamento anterior desde que não se verifique nenhum dos impedimentos previstos no artigo 40.º do CPP.

87 - Não sendo possível a intervenção do mesmo tribunal, designadamente em função de o respectivo titular ter participado no anterior julgamento [artigo 40.º, al. c)], será competente o tribunal que se encontre mais próximo, de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão recorrida, sendo que se na mesma comarca existirem mais de dois tribunais da mesma categoria e composição é competente o tribunal que resultar da distribuição.

88 - Significa isto que o tribunal a quo, recorrido, com a composição referida, carecia, em absoluto, de jurisdição para proceder ao novo julgamento.

89 - Por isso que o acórdão recorrido está ferido de nulidade insanável, por violação das regras de composição do tribunal (art. 119.º - a) do CPP), quando não mesmo do vício da inexistência jurídica, por proferido por quem, no caso, carecia de jurisdição.

90 - tendo sido declarado “nulo o acórdão recorrido” e determinado o reenvio (ainda que parcial) para novo julgamento, decorrendo dos autos que o processo foi remetido ao Tribunal Judicial de Barcelos, Tribunal no qual havia tido lugar o primeiro julgamento, tudo levando a crer que, no mesmo, exerciam funções Magistrados judiciais diferentes daqueles que presidiram àquele. Porém, acabam por intervir no segundo julgamento os mesmos Magistrados que intervieram no primeiro e proferiram o acórdão nulo.

91 - Significa que, numa situação em que, em princípio, nada impedia que o novo julgamento fosse realizado pelo mesmo tribunal, porquanto com composição (humana) diferente daquela que havia presidido ao primeiro julgamento (nulo) – cf. artigo 426.º A, n.º 1, primeira parte do CPP – surge a efectuá-lo e, naturalmente, a proferir um novo acórdão, os mesmos Magistrados que, desde logo, careciam de jurisdição para o efeito.

92 - quer se encare o vício como inexistência, decorrente da falta de jurisdição, quer da sobredita nulidade insanável a consequência é idêntica – o da invalidade do julgamento e, logo, do acórdão recorrido (cf. artigo 122.º, n.º 1 do CPP).

93 - Pelo que, se deverá declarar nulo o julgamento, por violação das regras da alínea a) do artigo 119.º do CPP, com referência ao artigo 426.º - A, n.º 1 do mesmo diploma legal e, em consequência, invalidar esse acto e os actos subsequentes, dele dependentes, incluindo o acórdão recorrido, cabendo o novo julgamento ao tribunal que vier a ser o competente nos precisos termos previstos no artigo 426.º - A do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.

94 - Finalmente no que à medida da pena respeita verifica-se a condenação dos arguidos, ora recorrente, como autores materiais de um crime de rapto agravado, de um crime de roubo, de um crime de lenocínio agravado, e, um homicídio qualificado, em cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão, na pena única de Vinte e cinco anos de prisão, não realiza nenhum dos fins das penas, como também não é adequada à culpa.

95 - Não atendendo, assim, a todos os elementos dosimétricos do artigo 71.º, do Código Penal, a medida concreta das penas aplicadas aos recorrentes merece censura.

96 - Sem prescindir, da medida da pena - violação dos artigos 41.° e 71.° do Código Penal. A pena encontrada é elevada para o caso, (levando em linha de conta o disposto no art.º 14.° do CP e o art.º 71.° do mesmo Código), mostrando-se muito elevadas as penas parcelares como a pena única, em caso algum devendo ter sido aplicada - uma vez operado o respectivo cúmulo - pena superior a 7 anos de prisão.

97 - Na verdade, a atribuir, as penas mais acertadas deveriam ter sido: 14 meses pelo crime de rapto; 12 meses pelo crime de roubo; 6 meses pelo crime de lenocínio; 60 meses pelo crime de homicídio; 1 mês pelo crime de falsidade de declaração.

98 - Consequentemente e não correndo o concurso das circunstâncias qualificativas do crime de homicídio, ponderados ainda os demais elementos, deve ser correspondentemente desagravada a pena parcelar imposta ao arguido, por forma mais consentânea com a sua culpa, devendo ser fixada em sessenta meses de prisão.

99 - Mantendo-se no mais, o doutamente decidido em primeira instância, mormente, quanto à condenação do arguido em um mês de prisão pelo crime prática do crime de falsidade de declaração, mas sem prejuízo da reformulação do respectivo cúmulo jurídico, por forma a alcançar-se a pena unitária de Oitenta e cinco meses de prisão.

Foram violados, nomeadamente, os artigos 71.º do Código Penal, 379.º, n.º 1, c) e 410.º, n.º 2, al. a) Código de Processo Penal, 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

Termina pedindo que a decisão sob censura seja revogada e substituída por outra que reconheça as apontadas nulidades e absolva o recorrente da prática dos crimes em que foi condenado. E ainda, sem conceder - e o que, só por mera hipótese académica e de raciocínio, se pode equacionar - que em caso de se entender pela necessidade de condenação, se opte por penas menos severas, condenando-se o recorrente nas pedidas penas parcelares e, uma vez efectuado o respectivo cúmulo jurídico, na pena única de oitenta e cinco meses de prisão.

Mais afirma que, ponderando, as probidades do aqui requerente, e, tendo sido, categoricamente sentenciado, nomeadamente, nos meios de comunicação. Capaz de, como já assumiu interiormente, carrear actos e responsabilidades, por ele não perpetradas, impõe-se, como forma concretizadora de Justiça, não desterrar, mas sim resgatar um Ser humano, que em muito poderá contribuir para o bem comum

Por seu turno a recorrente apresentou as seguintes conclusões:

1. O douto Acórdão recorrido, à semelhança do Acórdão da 1ª instância, contempla juízos - no caso concreto - com os quais a recorrente, com o devido respeito, não pode concordar.

2. O objecto primordial do presente recurso é a veemente impugnação da sua condenação como co-autora dos crimes pelos quais vinha acusada e da medida da pena aplicada.

3. A vexata quaestio centra-se assim na condenação e no quantitativo aplicado em termos de medida da pena à recorrente do referido crime, que o tribunal a quo entendeu fixar mas, com o devido respeito, erradamente.

4. Entendeu o Tribunal a quo que se encontram preenchidos os elementos objetivos e subjectivos da co-autoria relativamente aos referidos ilícitos, os quais, salvo o devido respeito, conscientemente refutamos.

5. Decidindo-se então pela condenação da recorrente, em cúmulo jurídico das penas parcelares, na pena única de 25 (vinte e cinco) anos de prisão;

6. Medida da pena que se revela como excessiva e desproporcional, quer quanto aos ilícitos criminais, quer quanto aos fundamentos para a sua aplicação.

7. Não obstante a legislação penal portuguesa consagrar que o silêncio não pode prejudicar o arguido, na presente situação, e apesar da actuação da recorrente, foi a mesma condenada de forma mais pesada, salvo devido respeito, e melhor opinião em contrário, de forma excessiva, com a consequente violação de um dos mais basilares direitos dos acusados.

8. Não se conforma a ora recorrente com a sua condenação em co-autoria pelos crimes de rapto qualificado, roubo, lenocínio agravado e homicídio qualificado, pois que não se encontram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos dos referidos ilícitos.

9. Assim, na esteira do art. 26° do Código Penal, pratica os referidos crimes em co-autoria, quem tomar parte direta na execução do facto, por acordo ou conjuntamente com outros.

10. Na comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria são, assim, essenciais dois requisitos: uma decisão conjunta, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado, e uma execução igualmente conjunta. O acordo entre os agentes, pode ser expresso ou tácito, prévio ou não, à execução do facto.

11. A co-autoria consiste, assim, numa "divisão de trabalho" que torna possível o facto ou que facilita o risco.

Requer, no aspecto subjetivo, que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto (expresso ou tácito, prévio ou não à execução do facto), uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como co-titular da responsabilidade pela execução de todo o processo. A resolução comum de realizar o facto é o elo que une num todo, as diferentes partes.

No aspeto objetivo, a contribuição de cada co-autor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional).

12. O STJ tem, de há muito, consagrado a tese de que, para a co-autoria, não é indispensável que cada um dos intervenientes participe em todos os atos para obtenção do resultado pretendido, bastando que a atuação de cada um seja elemento componente do todo indispensável à sua produção.

13. A decisão conjunta pressupõe um acordo que pode ser tácito, pode bastar-se com a consciência e vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado tipo legal de crime.

14. No que concerne à condenação em co-autoria de um crime de rapto qualificado, previsto e punível pelo art. 161°, n°s 1, al. b), e 2, al. a), com referência ao art. 158°, n° 2, alíneas a) e b), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão, não se conforma a arguida/recorrente com esta decisão, uma vez que se encontram preenchidos ambos os elementos, objetivo e subjetivo, relativamente ao crime de rapto qualificado quanto à sua autoria, por parte da arguida GG, não deveria a recorrente ter sido condenada como co-autora deste crime.

15. A recorrente limitou-se a acompanhar os arguidos, GG e AA, tendo também sido acompanhados pelos Srs. CC e DD, sem que estes tivessem sido acusados de qualquer tipo de crime (ambos possuem o estatuto de testemunhas de acusação nos presentes autos!)

16. Deste modo, não pode a Recorrente conformar-se com a decisão proferida pelo tribunal "a quo", que a condenou como co-autora do crime de rapto, pelo simples facto de esta se encontrar nesse local a essa hora, fazendo tábua rasa da participação dos demais presentes!

17. Assim, e uma vez que não se encontram preenchidos os elementos objetivo ou subjetivo da co-autoria no diz respeito à arguida/recorrente, o acórdão recorrido deveria sempre ter absolvido o arguida/recorrente do crime de Rapto Qualificado.

18. No que concerne à condenação da arguida, ora recorrente, em co-autoria, de um crime de roubo previsto e punível pelo art. 210°, n° 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, não se conforma a arguida/recorrente com esta decisão, pois que, mais uma vez, encontram-se preenchidos os elementos objetivo e subjetivo, relativamente ao crime de rapto qualificado, quanto à sua autoria, por parte da arguida GG, pelo que, não deveria a ora recorrente ter sido condenada como co-autora deste crime.

19. A ora recorrente limitou-se a acompanhar os arguidos, GG e AA, tendo também sido acompanhados pelos Srs. CC e DD, sem que estes tivessem sido acusados de qualquer tipo de crime (ambos possuem o estatuto de testemunhas de acusação nos presentes autos!)

20. Deste modo, não pode a Recorrente conformar-se com a decisão proferida pelo tribunal "a quo", que a condenou como co-autora do crime de roubo, pelo simples facto de esta se encontrar nesse local a essa hora, fazendo tábua rasa da participação dos demais presentes!

21. Assim, e uma vez que não se encontram preenchidos os elementos objetivo ou subjetivo da co-autoria no diz respeito à arguida/recorrente, o acórdão recorrido deveria sempre ter absolvido o arguida/recorrente do crime de Roubo.

22. Não tendo resultado provado que existisse qualquer acordo prévio entre a ora recorrente e os arguidos relativamente a estes factos, e muito menos se provou que tivessem existido atos de execução por parte da arguida BB relativamente ao crime de Roubo.

23. No que concerne à condenação da arguida, ora recorrente, em co-autoria, de um crime de lenocínio agravado previsto e punível pelo art. 169°, n°s 1, e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; não se conforma a arguida/recorrente com esta decisão.

24. Prevê o artigo 169° n.°1 do C.P.P... "Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição, é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos."

25. Ora não se vislumbra, em que premissas o tribunal "a quo" se baseou para condenar a ora recorrente no que concerne a este crime.

26. A arguida GG tinha por hábito prostituir-se, fazendo-se acompanhar das testemunhas CC e DD, os quais lhe prestavam os seus serviços de "seguranças", sendo estes serviços remunerados com o dinheiro que esta angariava da prostituição.

27. Tendo ficado demonstrado que, quanto aos factos ocorridos neste dia, o comportamento da arguida GG, assim como os comportamentos das testemunhas CC e DD, se enquadram perfeitamente no corpo do artigo 169° n.° 1 do C.P.P.

28. Tendo existido participação direta dos referidos sujeitos neste tipo de crime, uma vez que o dinheiro angariado pela EE, e entregue à arguida GG, foi dividido com eles.

29. Pelo que, encontrando-se preenchidos, quer o elemento subjetivo, quer o elemento objetivo, relativamente ao crime de lenocínio agravado quanto à arguida GG, e às testemunhas CC e DD, deveriam estes ter sido condenados como autores deste crime.

30. Ao invés, decidiu o tribunal "a quo" condenar a arguida/recorrente como co-autora do crime de lenocínio quando a mesma apenas se limitou a ficar no carro, com a filha da EE no colo.

31. Deste modo, e uma vez que não se encontram preenchidos os elementos objetivo ou subjetivo da co-autoria no diz respeito à arguida/recorrente, o acórdão recorrido deveria sempre ter absolvido o arguida/recorrente do crime de lenocínio agravado.

32. No que concerne à condenação da arguida, ora recorrente, pela prática, em co-autoria, de um crime de homicídio qualificado previsto e punível pelos arts°. 131° e 132°, n°s 1 e 2, alíneas g), h) e j), do Código Penal, na pena de 23 (vinte e três) anos de prisão; não se conforma a arguida/recorrente com esta decisão.

33. A doutrina e a jurisprudência consideram como elementos da comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria os seguintes:

- a intervenção directa na fase de execução do crime (execução conjunta do facto);

- o acordo para a realização conjunta do facto, acordo que não pressupõe a participação de todos na elaboração do plano comum de execução do facto, que não tem de ser expresso, podendo manifestar-se através de qualquer comportamento concludente, e que não tem de ser prévio ao início da prestação do contributo do respetivo co-autor;

- o domínio funcional do facto, no sentido de "deter e exercer o domínio positivo do facto típico", ou seja, o domínio da sua função, do seu contributo, na realização do tipo, de tal forma que, numa perspetiva ex ante, a omissão do seu contributo impediria a realização do facto típico na forma planeada.

34. «A co-autoria baseia-se no princípio do atuar em divisão de trabalho e na distribuição funcional dos papéis. Todo o colaborador é aqui, como parceiro dos mesmos direitos, co-titular da resolução comum para o facto e da realização comunitária do tipo, de forma que as contribuições individuais completam-se em um todo unitário

e o resultado total deve ser imputado a todos os participantes» - cf. Johannes Wessels, Direito Penal, Parte Geral (Aspetos Fundamentais), Porto Alegre, 1976, págs. 121 e 129.

35.Deste modo, no que se refere à aqui recorrente, não se encontram preenchidos os elementos da co-autoria.

36.Não existiu qualquer acordo prévio, ou qualquer plano traçado entre os arguidos e a aqui recorrente, sobre o que iria passar-se.

37. A ora recorrente, como amiga que era dos arguidos, acompanhou-os num jantar, e em algumas saídas, como já era hábito.

38. Não tendo existido qualquer acordo entre os arguidos e a ora recorrente, sobre o destino a dar à EE.

39. Nunca a arguida/recorrente poderia suspeitar qual seria o desfecho desta situação, uma vez que por parte dos arguidos AA e GG não existiam sinais de que fossem causar algum mal à EE.

40. É convicção da arguida/recorrente que "levou por tabela", sendo apanhada por arrasto dos demais arguidos, condenada pela sua inaptidão para escolher as companhias...mas, ao que sabe, tal inaptidão não constitui - ainda - ilícito criminal!

41. Aliás, a ora recorrente não esteve na companhia dos arguidos em todas as ocasiões em que ocorreram os ilícitos, assim como não estava na casa dos arguidos GG e AA depois de ter ocorrido este ilícito.

42. Pelo que, a morte da EE não deverá ser atribuída à arguida/recorrente, pois que esta não participou ativamente para o resultado morte, nem sequer perspetivou tal resultado.

43. Deste modo, e uma vez que não se encontram preenchidos os elementos objetivo ou subjetivo da co-autoria no diz respeito ã arguida/recorrente, o acórdão recorrido deveria sempre ter absolvido o arguida/recorrente do crime de Homicídio Qualificado.

44. Ainda que assim não fosse, o que só por hipótese académica e de raciocínio de pode equacionar, a pena aplicada à arguida mostra-se excessiva, violando assim o disposto nos arts°. 41° e 71° do Código Penal.

45. Aliás, esta tese é também corroborada pela digna Magistrada do Ministério Público do Tribunal recorrido, a qual, na sua Resposta refere que: " É verdade que a arguida BB, dos três arguidos foi aquela que menos colaboração activa em todo este plano traçado pelos arguidos, mas essa situação não faz com que a mesma possa ser absolvida como pretende ou deixar de ser considerada como autora dos factos ocorridos, apenas poderá, na nossa opinião e salvo o devido respeito por opinião contrária, ter influência na medida da pena. Efetivamente, entendemos que apesar de a arguida ter efetivamente colaborado na execução deste plano que foi traçado pelos arguidos, entendemos que a pena a impor devia ter sido diferente daquela em que foram condenados os arguidos AA e GG, até pelo facto de se nos afigurar que na carta escrita ao assistente II se nota um ligeiro arrependimento quando refere: maldita a hora em que fui de carro com eles nesse dia."

46. Assim, dúvidas não restam que a decisão proferida no acórdão recorrido deve ser alterada.

Termina pedindo que se altere a decisão ora sob censura, substituindo-a por outra que absolva a recorrente da prática dos crimes em que foi condenada.

E ainda, sem conceder - e o que só por mera hipótese académica e de raciocínio se pode equacionar - que em caso de se entender pela necessidade de condenação, se opte por penas menos severas.

                 Em sede de resposta defendeu-se a manutenção da decisão recorrida.

   Neste Supremo Tribunal de Justiça o ExºMº Sr. Procurador Geral Adjunto pronunciou-se pela forma constante de proficiente parecer constante de fls .

                                                   Os autos tiveram os vistos legais.   

                                                                                *

                Em sede de decisão recorrida considerou-se provada a seguinte factualidade:

     A)

No dia 25 de Fevereiro de 2010, Quinta-feira, os arguidos decidiram aguardar EE , na Rua..., junto à residência desta, a fim de a levarem, contra a sua vontade, a acompanhá-los.

Entre as 18 e as 19 horas desse dia, quando aquela EE e a sua filha JJ, nascida em 21 de Agosto de 2004, se aproximavam da porta do prédio onde residiam, os arguidos rodearam aquela EE.

Após, os arguidos seguiram a EE até ao interior de sua casa e, aí, de modo adequado a provocar-lhe medo e inquietação, disseram-lhe que teria de os acompanhar.

Embora aquela EE não quisesse acompanhar os arguidos e o tivesse manifestado a estes, acabou por fazê-lo perante as ordens dos mesmos, o facto de a arguida GG lhe ter, por momentos, agarrado num braço e porque, chegada ao exterior do prédio, não queria assustar a sua filha, que aí se encontrava com o pai, para além de ter receado que os arguidos pudessem bater-lhes.

Assim, a EE, acompanhada da sua filha JJ, entrou no veículo Renault Clio, onde os arguidos se tinham feito transportar, e foi pelos mesmos conduzida a casa dos arguidos GG e AA, sita em Braga.

B)

Após os factos descritos em A) os arguidos ordenaram à EE que lhes entregasse os seus cartões multibanco, uma vez que previam que esta estaria para receber o ordenado que auferia como cozinheira no Patronato de Nossa Senhora da Torre.

A EE, com receio do mal que os arguidos lhe pudessem fazer ou à filha, entregou à arguida GG dois cartões Multibanco, um do Millenium BCP e um do BPI, e forneceu-lhe os respectivos códigos.

C)

 No mesmo dia (25.02.10), depois das 22.00 horas, os arguidos informaram a EE de que a mesma teria de ir prostituir-se, quisesse ou não, naquela noite, de modo adequado a provocar-lhe medo e inquietação, como sucedeu, e a fim de a levar, contra a sua vontade, a fazê-lo.

Como tivesse receio que os arguidos lhe batessem a si ou à sua filha, a EE acedeu.

Assim, os arguidos saíram de casa com a EE e com a filha desta e dirigiram-se à cidade de Vila Nova de Famalicão onde ordenaram à EE que saísse da viatura e abordasse um homem que ali se encontrava a fim de com ele manter relações sexuais, o que veio a acontecer.

Enquanto a EE manteve relações sexuais com o mencionado indivíduo, os arguidos mantiveram-se no interior da viatura com a filha desta.

A EE entrou na viatura e entregou à arguida GG a quantia de € 10 que lhe fora paga pelo serviço prestado.

Os arguidos praticaram os factos descritos com intenção de ficar com o dinheiro obtido pela EE na prestação de serviços de cariz sexual.

Nessa ocasião, depois da EE ter regressado ao carro, a arguida GG desferiu-lhe bofetadas.

D)

De seguida, dirigiram-se a casa dos arguidos GG e AA, tendo a JJ adormecido.

Uma vez em casa dos arguidos GG e AA, aí se encontrando a arguida BB, que mantinha com o marido da EE, II, um relacionamento amoroso desde há, pelo menos, 4 anos, a EE, com receio do mal que os arguidos pudessem fazer a si ou à sua filha, manteve, contra a sua vontade, relações sexuais com CC e DD que, tendo acompanhado os arguidos a Vila Nova de Famalicão e, depois, até à referida residência, foram incentivados pelo arguida GG a manterem relações sexuais com a EE.

Nessa altura, quando a EE mantinha relações sexuais com os referidos indivíduos, a arguida GG desferiu bofetadas na EE, alegando que esta fazia muito barulho.

Dormiram, nessa noite, todos na mencionada casa, tendo a EE e a filha JJ dormido com a roupa que traziam vestida.

E)

No dia 26 de Fevereiro de 2010, sexta-feira, pela manhã, os arguidos GG e AA, na execução do plano que previamente haviam delineado em conjunto com a arguida BB, dirigiram-se a casa da EE, com esta e a sua filha, e uma vez aí, contra a vontade da EE, que nada fez por saber não poder movimentar-se ou opor-se sob pena de ser agredida ou mesmo de ver a filha agredida pelos arguidos, retiraram da casa da mesma um aparelho DVD e um faqueiro, que levaram consigo e dos quais fizeram coisa sua.

Os arguidos GG e AA regressaram então a casa com a EE e a filha desta.

F)

No dia 26.02, os arguidos informaram novamente a EE de que a mesma teria de ir prostituir-se, quisesse ou não, naquela noite, de modo adequado a provocar medo e inquietação na EE, como sucedeu, e a fim de a levar, contra a sua vontade, a fazê-lo.

 Como tivesse receio que os arguidos lhe batessem a si ou à sua filha, a EE acedeu.

Assim, nesse dia, depois das 22.00 horas, voltaram a sair de casa com a EE e com a filha desta e dirigiram-se à cidade de Vila Nova de Famalicão onde ordenaram à EE que saísse da viatura e abordasse um homem que ali se encontrava para com ele manter relações sexuais, o que veio a acontecer.

Enquanto a EE manteve relações sexuais com o mencionado indivíduo, os arguidos mantiveram-se no interior da viatura com a filha desta.

Os arguidos praticaram os factos descritos com intenção de ficar com o dinheiro obtido pela EE na prestação de serviços de cariz sexual.

G)

Na madrugada do dia 27 de Fevereiro de 2010, a hora não concretamente determinada mas que sabe situar-se depois da 01h18 e antes das 02h49, os arguidos GG e AA entregaram a menor JJ ao seu pai, depois de a mãe se ter despedido da menor.

H)

No dia 27 de Fevereiro (Sábado), ao início da tarde, os arguidos GG e AA ordenaram à EE que telefonasse a ll, irmã do seu marido, bem como à mãe deste, informando-os de que decidira ficar com o namorado e deixar a filha com o pai por estar muito cansada. Mais ordenaram à EE que telefonasse a MM, sua colega de trabalho e amiga, a fim de que esclarecesse se já fora efectuado o pagamento do salário e dizendo-lhe que ia ficar com o namorado e deixava a filha com o pai.

I)

Durante o dia de 27.02, em momento não concretamente determinado mas que se sabe ter ocorrido antes das 20.00, os arguidos GG Pereira e AA agrediram a EE, nomeadamente desferiram-lhe vários golpes com um cinto de couro, causando-lhe lesões nas nádegas e coxa direita.

Além disso, os arguidos GG e AA retiraram a prótese dentária que a EE usava, a fim de que a mesma sentisse vergonha, como sucedeu.

J)

No dia 27 de Fevereiro de 2010, a hora não determinada mas que sabe situar-se após as 22h15, os três arguidos, depois de se terem deslocado com a EE até Vila Nova de Famalicão, levaram esta, de carro, até à ponte sobre o rio Cávado que une as localidades de Pousa e Areias de Vilar, em Barcelos.

Chegados à referida ponte, os três arguidos forçaram a EE a sair da viatura, agarram-na e deitaram-na da ponte abaixo, de uma altura de 13,5 metros relativamente ao leito do rio, não sem que antes a EE lhes pedisse que o não fizessem.

 Em virtude da descrita conduta dos arguidos, a EE morreu de asfixia mecânica por submersão.

Os arguidos quiseram matar a EE para evitar que a mesma os denunciasse, tendo decidido fazê-lo, pelo menos, durante a madrugada do dia 27.02.

L)

 Ao longo de todo o lapso temporal descrito (de 25 de Fevereiro, entre as 18 e as 19 horas, a 27 de Fevereiro de 2010, até depois das 22h15), a EE foi mantida pelos arguidos nos locais e condições descritas contra a sua vontade, tendo sido por eles controlada, vigiada e impedida de os abandonar.

Quando no exterior da residência, os arguidos fizeram-se sempre acompanhar da menor JJ, até à entrega da mesma ao seu progenitor, por forma a fazer significar à EE que qualquer tentativa desta se ausentar ou não agir como lhe era ordenado poderia importar risco para a vida ou integridade física da menor.

Para além disso, em todas as ocasiões, no interior da residência e fora dela, os arguidos fizeram sentir à EE que atentariam contra a sua integridade física e vida caso a mesma se não mantivesse na sua companhia.

M)

Em todas as acções que os arguidos levaram a efeito, sabiam e quiseram agir do modo descrito.

Os arguidos, ao agirem como se descreve em A), actuaram com o propósito de, sob a ameaça de atentarem contra a vida ou integridade física da EE, obrigarem esta a acompanhá-los para, dessa forma, a obrigarem a prostituir-se.

Os arguidos sabiam desde o dia 25 de Fevereiro de 2010, quando levaram a EE, contra a sua vontade, que, sob a ameaça de atentarem contra a sua vida ou integridade física e, durante o período em que a menor JJ Araújo esteve na companhia da mãe, contra a vida ou integridade física da menor, iriam obrigar aquela EE a prostituir-se e a entregar-lhes dinheiro e bens que possuísse.

Os arguidos sentiram prazer na prática dos factos acima descritos em A) a I) e, com eles, quiseram infligir à EE o maior sofrimento possível, quer físico quer psicológico.

Os arguidos tomaram a decisão de matar a EE, pelo menos, durante a madrugada do dia 27.02.05.

Agiram sempre de comum acordo e em conjugação de esforços segundo um plano traçado entre todos.

Sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

N)

No dia 13 de Março de 2010, nas instalações do Tribunal Judicial de Barcelos e no âmbito do presente inquérito, foi o arguido AA interrogado na qualidade de arguido.

Depois de advertido pela senhora juiz de instrução criminal da obrigação que tinha de responder com verdade à matéria dos seus antecedentes sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, foi por aquela perguntado, entre o mais, se alguma vez fora ou não condenado e porque crimes, tendo respondido ter sido julgado pela prática de um crime de furto do qual foi absolvido.

Porém, no dia 30 de Março de 2006, por sentença proferida no âmbito do processo comum singular n.º 603/05.7GCBRG do 1.º juízo criminal do Tribunal Judicial de Braga, o arguido foi condenado na pena de cento e cinquenta dias de multa, à taxa diária de dois euros, pela prática, em 5 de Junho de 2005, de um crime de ofensa à integridade física simples.

De tal decisão foi o arguido notificado antes de 24 de Abril de 2006, data do trânsito em julgado.

O arguido sabia e quis agir da forma descrita. Designadamente, quando prestou as mencionadas declarações, no âmbito do sobredito inquérito, o arguido sabia estar obrigado a falar com verdade quanto aos seus antecedentes criminais e quis omiti-los, mentindo à magistrada judicial que presidiu à diligência.

Sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei.

O)

Aquando dos factos a arguida GG Pereira encontrava-se capaz de avaliar a ilicitude e de se determinar por essa avaliação.

 P)

A arguida GG Pereira apresenta uma personalidade imatura, pouco diferenciada emocionalmente, influenciável, intelectualmente mal sustentada (Q.I. limite), eticamente displicente (com ausência de um referencial moral e ético), revelando traços misto dependentes e passivo-agressivos.

Q)

A arguida GG Pereira não tem antecedentes criminais.

R)

GG nasceu de um relacionamento extraconjugal do progenitor, que a perfilhou e a integrou no seu agregado familiar a partir do primeiro mês de vida. A progenitora, falecida há cerca de 3 anos, não teria condições para criá-la uma vez que se dedicava à prostituição na cidade do Porto, onde residia, raramente estabelecendo contactos com a filha. A madrasta assumiu o papel materno de forma protectora.

O processo de desenvolvimento psicossocial da arguida ficou marcado por dificuldades de aprendizagem e por problemas de saúde (epilepsia), que terão originado o seu encaminhamento para consultas de psiquiatria no Hospital de S. Marcos, onde passou a ser acompanhada com regularidade e medicada.

Em contexto escolar apresentou um comportamento indisciplinado, interagindo de forma agressiva com os professores, revelando um fraco desempenho e um elevado nível de absentismo. Tal situação motivou a sua inclusão numa turma com necessidades de apoio especial. Contudo, não completou o 8° ano de escolaridade.

Passou então a apoiar a madrasta na exploração da taberna que a família possuía na Rua ..., onde também assumia um estilo de contacto interpessoal agressivo com os clientes.

Aos 17 anos engravidou e contraiu matrimónio. A dinâmica marital foi caracterizada por disfuncionalidades decorrentes do consumo abusivo de bebidas alcoólicas e inactividade laboral do cônjuge, que afectou de forma negativa a economia familiar. Incapaz de fazer face às despesas do agregado, o casal mudou-se para junto da madrasta da arguida. A relação terminou 5 anos depois.

Iniciou a prática da prostituição em casas de alterne em Espanha, onde permanecia durante alguns períodos.

A desorganização pessoal, associada à prática da prostituição, terá estado na origem da retirada e institucionalização da filha há cerca de 3 anos e mais recentemente do filho.

À data dos factos sobrevivia dos rendimentos obtidos através da actividade da prostituição. Mantinha uma relação de união de facto com o arguido AA.

Mantinha contactos regulares com os filhos, aos quais efectuava visitas nas instituições onde se encontravam colocados.

No meio social de residência é reconhecida a ligação da arguida à actividade da prostituição, havendo um sentimento de comiseração pelo rumo de vida que tomou.

Em contexto prisional tem assumido uma conduta normativa. Mantém visitas internas mensais com o companheiro, preso preventivamente no Estabelecimento prisional Regional de Braga.

A madrasta e os irmãos continuam disponíveis para lhe prestar suporte, deslocando-se regularmente no Estabelecimento Prisional para visitá-la.

A filha de 8 anos encontra-se aos cuidados de uma tia materna e o filho de 3 anos encontra-se a cargo de outra tia materna.

S)

Aquando dos factos a arguida BB encontrava-se capaz de avaliar a ilicitude e de se determinar por essa avaliação.

T)

A arguida BB tem capacidade para se situar normativamente.

Apresenta uma personalidade indiferenciada, imatura e intelectualmente mal sustentada.

Tem uma visão de si própria benévola e grandiosa, apresenta instabilidade relacional, sentimentos de desconfiança face aos outros, sentimentos de angústia perante a perspectiva de abandono, impulsividade com passagem ao acto auto-destrutivo e rigidez comportamental.

A tendência para a mentira, o egocentrismo e a falta de empatia para com as necessidades/direitos dos outros podem constituir-se como traços de personalidade anti-sociais.

U)

A arguida BB apresenta antecedentes criminais desde 1994 pela autoria de crimes de roubo, furto, burla, falsificação, introdução em lugar vedado ao público, receptação, consumo e tráfico de estupefacientes de menor gravidade, tendo registado 4 períodos de reclusão, designadamente entre 19/03/1993 e 21/12/1993, entre 26/03/1994 e 26/06/1998, entre 22/01/1999 e 21/07/2001 e por último entre 10/10/2003 e 10/05/2004.

V)

A arguida BB foi condenada no processo comum singular nº 446/09.9 JABRG do 4º juízo criminal de Braga, por sentença de 27.05.10, transitada em julgado em 16.06.2010, pela prática, em 27.07.09, de um crime de ofensa à integridade física qualificada na pena de 1 ano e 6 meses de prisão.

X)

A arguida BB é a 11ª de 15 descendentes de um agregado familiar de modesta condição socioeconómica e cultural. O pai, metalúrgico, falecido há cerca de 6 anos, assumia um estilo educativo rigoroso, exigindo o cumprimento de horários e de regras de conduta. A mãe, falecida há sensivelmente um ano, era auxiliar de acção educativa, o que contribuiu para a estabilidade económica do agregado. Foi criada no Bairro ..., um bairro social permeável a problemáticas sociais e criminais.

O seu percurso escolar foi marcado pelo desinteresse pelas actividades lectivas, pela falta de assiduidade e pelo insucesso escolar, tendo completado o 6° ano de escolaridade aos 15 anos. Posteriormente, em contexto prisional, viria a concluir o 12° ano de escolaridade.

Após ter abandonado o ensino, integrou o mercado de trabalho como operária de uma fábrica de calçado, onde desempenhou funções durante cerca de 9 meses.

Iniciou-se no consumo de estupefacientes aos 16 anos, no contexto do relacionamento afectivo com um indivíduo toxicodependente do qual resultou um descendente. Em virtude da incapacidade revelada pela arguida para assumir o processo educativo do menor, o mesmo foi entregue à avó materna que o criou com o apoio de uma tia materna.

Efectuou tratamentos de desintoxicação através do Centro de Respostas Integradas de Braga, onde foi integrada no programa de substituição da Metadona durante o período de gestação da filha, tendo terminado o tratamento há cerca de 2 anos, altura a partir da qual terá efectuado uma paragem no consumo de estupefacientes.

À data dos factos residia com o filho de 15 anos. A filha de 7 anos havia sido institucionalizada em 2009 na sequência de maus-tratos.

A sua subsistência era assegurada com a prestação do Rendimento Social de Inserção, com uma pensão social por invalidez, com o abono de família do filho e com a remuneração obtida pela realização de alguns trabalhos de limpeza doméstica.

Habitava um apartamento de tipologia 2, que havia arrendado com o objectivo de se autonomizar da família de origem.

Mantinha um relacionamento amoroso com II. A dinâmica da relação era marcada pela instabilidade e por episódios frequentes de conflituosidade e agressões mútuas.

No meio de residência, a arguida era associada à ociosidade e inactividade profissional.

Em contexto prisional tem assumido uma conduta ajustada às normas institucionais, encontrando-se laboralmente activa no sector das oficinas. Não recebe visitas da família, que se mostra totalmente indisponível para acolhê-la ou para lhe prestar apoio económico. Beneficia de acompanhamento clínico regular, designadamente em consultas de infecciologia.

Z)

O arguido AA não apresenta qualquer patologia do foro psiquiátrico, encontrando-se o seu juízo crítico conservado tal como a capacidade de autocrítica.

AA)

O arguido AA apresenta uma abordagem cognitiva limitada e pouco elaborada, evidenciando, por vezes, processos de pensamento vagos, pouco claros e com dificuldades notórias ao nível das competências verbais e do planeamento cognitivo. (…)

Todavia, manifesta um razoável desempenho ou formulação de juízos críticos relativamente a situações ético-morais.

A estrutura da personalidade do arguido AA compreende características do tipo passivo-dependente, evidenciando um comportamento emocionalmente inseguro e instável resultante de uma conduta auto-restritiva e controlada com necessidade de aprovação social e de gratificação afectiva, mas igualmente muito influenciável e facilmente dependente dos outros.

É uma pessoa com tendência a experienciar sentimentos desagradáveis, como tristeza, melancolia, abatimento, solidão, embaraço e culpabilidade. É introvertido, reservado e evita expor-se e afirmar-se, preferindo passar incógnito nas situações sociais. No plano interpessoal, acha-se pouco à vontade na relação com os outros, é muito sensível ao ridículo e tem tendências a sentir-se inferior e envergonhado.

Possui fortes indicadores de ansiedade e impulsividade.

BB)

O arguido AA regista antecedentes criminais, tendo sido condenado no processo comum singular nº 603/05.7 GCBRG do 1º juízo criminal de Braga, por sentença de 30.03.2006, transitada em julgado em 24.04.06, pela prática, em 05.06.05, de um crime de ofensa à integridade física simples na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 2, já declarada extinta pelo pagamento.

CC)

De origem socioeconómica e cultural humilde, o arguido AA é o segundo de uma fratria de três. A sua infância e adolescência decorreram no seio do seu núcleo familiar de origem. O pai era operário numa pedreira encontrando-se presentemente na reforma. A mãe era doméstica.

O seu percurso escolar foi pautado por reprovações sucessivas, tendo apenas concluído o 4° ano de escolaridade aos 14 anos de idade, iniciando, com essa idade, actividade profissional na construção civil. Trabalhou depois alguns meses como chapeiro de automóveis. Aos 17 anos passou a desempenhar funções numa outra empresa de construção civil, em Braga, onde permaneceu cerca de uma dezena de anos.

Há sensivelmente 10 anos, depois do falecimento da progenitora, passou a trabalhar na AGERE - Empresa camarária de águas e saneamento básico. Acumulava essa actividade com a exploração de um pequeno camião que utilizava para transportes de materiais de construção.

 Em 2007, decide ir viver para a cidade de Braga mas, algum tempo depois, regressou à casa do pai.

Há cerca de ano e meio deixou de novo a casa do pai para passar a viver com a arguida GG.

À data dos factos, o arguido residia na cidade de Braga, num apartamento arrendado que partilhava com a arguida GG.

No meio social é reconhecida a determinação e persistência que coloca nas tarefas que realiza, nomeadamente na conclusão do 6° ano de escolaridade em horário pós-laboral e posteriormente o empenho em obter habilitação de condução de veículos ligeiros e pesados articulados. É igualmente reconhecido o seu espírito trabalhador, a sua dedicação e o seu espírito solícito e colaborante no plano social.

No Estabelecimento Prisional é um recluso muito trabalhador, solícito e prestável com boa imagem junto dos Técnicos e do Serviço de Segurança.

*

2. Matéria de facto não provada.

2.1. Da acusação.

Não se provaram os restantes factos constantes da acusação, designadamente que:

    - As bofetadas desferidas pela arguida GG à EE no dia 25.02.10, em Vila Nova de Famalicão, tivessem sido motivadas pelo facto de  a arguida ter achado diminuta a quantia cobrada pela EE e excessivo o tempo demorado por esta na prestação do serviço de cariz sexual.

 - Enquanto a EE mantinha relações sexuais com CC e DD a arguida BB tivesse tirado, com o seu telemóvel. Fotografias à EE a fim de as enviar ao marido desta.

 - A arguida GG, quando a EE mantinha relações sexuais com CC e DD, tivesse desferido murros na barriga da EE.

 - No dia 26 de Fevereiro de 2010, Sexta-feira, pela manhã, a arguida BB tivesse acompanhado os arguidos GG e AA à casa da EE.

- A arguida BB tivesse desferido golpes com um cinto de couro na cara, nádegas e pernas da EE, lhe tivesse dado pontapés, murros e diversas bofetadas, bem como que lhe tivesse retirado a prótese dentária.

 - No dia 27 de Fevereiro de 2010 a arguida BB tivesse ordenado à EE que telefonasse a LL e a MM.

  - A menor JJ Araújo tivesse presenciado os arguidos GG e AA a agredirem a mãe.

 - A menor JJ tivesse sido entregue ao seu pai a pedido da EE.

 - Os arguidos tivessem cortado o cabelo da EE.

- Enquanto mantiveram a EE no interior da referida residência os arguidos tivessem trancado as portas da mesma.

 - Enquanto atiravam a EE da ponte os arguidos se tivessem rido.

 - Os arguidos tivessem sentido prazer ao matar a EE.

 - Os arguidos tivessem decidido atirar a EE da ponte abaixo com a intenção de lhe causar o maior sofrimento possível na morte.

 - No dia 27 de Fevereiro de 2010 tivesse chovido intensamente por toda a  região do Minho, facto que mereceu dos meios de comunicação social alerta  quanto à aproximação de temporal.

                                                                   *

I

No que concerne aos recursos interpostos importa, em primeiro lugar, analisar a situação singular em que se impugnam causa, em sede de recurso, as penas parcelares aplicadas, bem como a pena conjunta que das mesmas resulta.

              Importa recordar, como se refere na decisão deste Supremo Tribunal de Justiça de 19-11-2009, que é o artº 432º do CPP que define a recorribilidade das decisões penais para o Supremo Tribunal de Justiça. De forma directa, nas alíneas a), c) e d), do seu nº 1; de modo indirecto, na alínea b) do mesmo número, através da referência às decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do nº 1 do artº 400º.

Estando aqui em causa um recurso interposto de um acórdão de um Tribunal da Relação proferido em recurso a norma a ter em conta é a daquela alínea b) – “Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça … b) das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pela relações, em recurso, nos termos do artº 400º”.

No caso concreto o Tribunal da Relação de Guimarães confirmou a pena conjunta bem como as penas parcelares. A hipótese concreta convoca, assim, a alínea b) do nº 1 do artº 432º que nos remete para a alínea f) do nº 1 do artº 400º. A Lei nº 48/07 alterou substantivamente esta disposição legal: se antes, era a pena aplicável o pressuposto (um dos pressupostos) da (ir)recorribilidade dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, agora esse pressuposto passou a ser o da pena concretamente aplicada.

No caso de concurso de crimes pena aplicada é tanto a pena parcelar cominada para cada um dos crimes, como é a pena conjunta. Assim, nesta hipótese só são recorríveis as decisões das relações que, incidindo sobre cada um dos crimes e correspondentes penas parcelares, ou sobre a pena conjunta, apliquem e confirmem pena de prisão superior a 8 anos.

O Tribunal da Relação de Guimarães confirmou as penas parcelares que se situam num patamar inferior àquele limite, nomeadamente em relação aos crimes de rapto qualificado previsto e punível pelo art.º, 161º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), com referência ao art. 158°, nº 2, alíneas a) e b) ao crime de roubo previsto e punível pelo art. 210º, n.º 1, do Código Penal, ) ano e 6 (seis) meses de prisão; ao crime de lenocínio agravado previsto e punível pelo art. 169º, nºs 1, e 2, al. a), do Código Penal

            Em cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão supra referidas foi a mesma arguida condenada na pena única de 25 (vinte e cinco) anos de prisão;

          Nesta conformidade, e face aos normativos citados, é irrecorrível a decisão proferida no que toca àquelas penas parcelares e apenas recorrível em relação ao crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos art°s. 131° e 132°, nºs 1 e 2, alíneas g), h) e j), do Código Penal e, também, em relação ás penas conjuntas em que o arguidos foram condenados.

II

            Alega o recorrente que, de harmonia com o disposto no art. 40 al. c) e d) do CPP, na sua redacção actual, o Colectivo que subscreve a decisão recorrida estava impedido de intervir na sua elaboração por ter participado, igualmente, na elaboração do primitivo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães.

             Efectivamente,

            Dispõe o artigo 40 do Código de Processo Penal, na redacção conferida pela Lei 48/07, que nenhum juiz pode intervir em julgamento relativo a processo em que tiver participado em decisão de recurso anterior. A norma em causa assume uma específica dimensão processual que tem por objectivo essencial o de assegurar uma das finalidades últimas do processo penal que é o da garantia da imparcialidade que caracteriza o processo justo a que tem direito qualquer arguido.

            Sobre a matéria em análise este Supremo Tribunal de Justiça já teve ocasião de se pronunciar em Acórdão de 4 de Junho de 2008 [1]. Refere-se na mesma decisão que:          Como refere Mouraz Lopes (A tutela da Imparcialidade Endoprocessual…… pag 40 e seg) se é na afirmação do princípio da imparcialidade, como um dos princípios estruturantes da jurisdição processual penal que radicará a compreensibilidade do modelo que sustenta o paradigma processual estabelecido no CPP, concretizar o mesmo princípio, agora na sua vertente de tutela, surgirá como tarefa sequencial e sobretudo fundamental.

            Sublinhar o valor essencial da imparcialidade, numa vertente global e sobretudo integrada na acepção de processo justo, não omitindo, por isso essa dimensão autónoma da imparcialidade, significa reconhecer um conjunto de situações previstas na lei que tutelem inequivocamente o direito à imparcialidade do juiz. Tal significa uma rede normativa de garantias, identificada processualmente com o regime das incompatibilidades, dos impedimentos, das recusas e das escusas do juiz no processo.

            Só a formulação e articulação de regras processuais acaba por garantir a dimensão total do princípio da imparcialidade ou seja: a) garantir um juiz idóneo que assume a posição de terceiro perante as partes processuais; b) garantir que uma parte pública exerça a acusação segundo um agir leal e segundo critérios de estrita objectividade; c) garantir que uma parte privada não condicionada no exercício dos seus direitos fundamentais possa contrapor, sobre um plano de paridade à acusação as suas razões defensivas; d) garantir um mecanismo de prova efectuado com garantia de publicidade para um controlo social da decisão; e) garantir um sistema que recuse considerar o arguido culpado antes que a sua responsabilidade seja legalmente determinada, Ou seja garantir a própria jurisdição.

            A garantia da imparcialidade do juiz no decurso do processo exige a configuração e previsão de normas que impeçam qualquer tipo de suspeita sobre o exercício da acção de julgar de modo a condicionar o juízo que este terá que proferir e o entendimento que dele tenham os cidadãos. Assim, uma rede normativa de proibições específicas decorrentes, por um lado da sua posição pessoal no processo e por outro da sua posição funcional do mesmo processo que, tendo em atenção a relevância da função jurisdicional, suscitam condicionamentos ao seu próprio exercício, surge como estrutura fundamental da garantia.

Os factos consubstanciadores de tais proibições específicas não podem, no entanto, posicionar-se aleatoriamente nos vários tipos de formas de garantia da imparcialidade, seja o impedimento, a escusa ou a recusa. Na verdade, sendo diferenciados os seus fundamentos, as suas consequências são-no ainda mais. A expansividade dessa factualidade, na medida em que se inserir numa ou noutra categoria, releva para níveis diferenciados a própria garantia da imparcialidade do juiz.

Colocar as várias "fattispecie" ou no domínio dos impedimentos ou no âmbito dos casos de escusa ou de recusa, reflecte uma diversa articulação da tutela do processo justo. Daí a relevância da integração da factualidade condicionante da imparcialidade numa ou noutra categoria.

O artigo em causa-40 do Código de Processo Penal- integra uma especifica dimensão processual que tem por objectivo essencial o assegurar uma das finalidades últimas do processo penal que é do da garantia da imparcialidade que caracteriza o processo justo a que tem direito qualquer arguido.

    

            A alteração legal na conformação do referido normativo teve em atenção não só a orientação jurisprudencial apontada pelo Tribunal Constitucional como essencialmente a jurisprudência oriunda do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

            Seguindo a exposição deste autor a Lei nº 48/2007 ao acrescentar também o impedimento do juiz que participou em qualquer recurso, ou pedido de revisão anterior, tem justificação material em alguns casos como, por exemplo, relativamente à intervenção dos mesmos juízes do tribunal de recurso que anularam uma decisão de arquivamento no julgamento do recurso sobre a condenação do arguido (acórdão do TEDH Oberschlick v. Áustria de 23.5.1991).

Todavia, a suspeita legal não parece objectivamente fundada em muitos outros casos, como, por exemplo, quando o juiz do tribunal de recurso que conhece o recurso interposto do despacho do tribunal de primeira instância de rejeição de constituição como assistente não pode intervir no recurso interposto no mesmo processo de uma decisão do Tribunal de primeira instância que não admite a intervenção de parte civil.

A este propósito é de sublinhar que o TEDH admite que o juiz do tribunal de recurso que manteve a decisão de prolongamento da prisão preventiva com isolamento solitário do arguido intervenha no julgamento do recurso interposto da decisão final (acórdão do TEDH Hauschildt v. Dinamarca (Plenário), de 24.5.1989), como admite mesmo que os mesmos juízes do tribunal de recurso que decidiram o recurso interposto contra o despacho que pronunciou o arguido intervenham no julgamento do recurso interposto contra a condenação do arguido se este recurso estava confinado a questões de direito e vícios de forma (Acórdão do TEHD Depiets v.França de 10.02.2004)

 

            É também nesta perspectiva teleológica que deve ser adaptado o discurso interpretativo da norma do artigo 40 na sua aplicação ao caso vertente. No que respeita saliente-se que a decisão do Tribunal de Relação de Guimarães se limitou a declarar nulo um segmento da prova e, consequentemente, nulo o acórdão recorrido o qual deveria ser substituído por um outro que não valore a referida prova.

A pronuncia feita na decisão proferida em primeira instância, emitida na sequência da determinação do tribunal superior, não tem subjacente um novo julgamento e uma nova produção e valoração de prova, mas tão somente a prolação de uma nova decisão que tem por pressuposto o extirpar de prova considerada nula.

O tribunal limitou-se a afastar a nulidade previamente cometida através da nova sentença proferida.

            Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 147/2011 a propósito de situação paralela: Em todos estes arestos, como no presente caso, está em causa o impedimento de o juiz intervir em novo julgamento quando participou no anterior julgamento que, tendo conhecido do mérito da causa, veio a ser considerado inválido por razões distintas da apreciação desse mérito. Em todos estes casos – em que a anulação do primitivo julgamento era devida a falta de gravação da prova na audiência (Acórdão n.º 399/2003), revogação do despacho que desentranhara a contestação e o requerimento de prova do arguido (Acórdão n.º 393/2004), anulação parcial da decisão sobre a matéria de facto (Acórdão n.º 324/2006) e necessidade de apuramento da situação económica e encargos pessoais do arguido (Acórdão n.º 167/2007) – o Tribunal considerou que o entendimento segundo o qual o juiz que participara no primeiro julgamento não estava impedido de participar no novo julgamento não violava a Constituição.

No caso dos autos, a anulação do acórdão proferido em 17.08.2009, que julgou improcedente o recurso do arguido, ficou igualmente a dever-se exclusivamente ao desrespeito de regras processuais (o acórdão fora proferido em conferência, quando o arguido havia requerido que o recurso fosse julgado em audiência).

Salientou-se, a este respeito, no Acórdão n.º 393/2004: primeiro, que na aferição da garantia de imparcialidade, quando esteja em causa a intervenção em julgamento de juiz que interveio em anteriores fases do mesmo processo, há que atender ao tipo e frequência dessa intervenção e ao momento em que, dentro de cada fase, ela ocorreu: é da conjugação destes factores que há de resultar o juízo sobre a isenção, imparcialidade e objectividade do juiz, enquanto julgador; segundo, que no que concerne à anulação de julgamentos, há que distinguir entre as anulações decorrentes de vícios intrínsecos quanto ao conteúdo da decisão tomada sobre a matéria de facto ou de erros ostensivos na valoração da prova e as anulações reflexamente determinadas por via da anulação de outros actos em consequência do cometimento de nulidades processuais decorrentes da tramitação da causa. E concluiu-se que nestas últimas situações, não constitui forçosamente violação da garantia da imparcialidade do julgador a participação no novo julgamento de juízes que integraram o colectivo que efectuou o julgamento anulado.

A fundamentação dos arestos citados – para cuja versão integral remetemos e a que aderimos – deve ser reiterada no caso em apreço.

            Sendo assim entende-se que o funcionamento da tutela da imparcialidade, ínsito na reformulação operada no artigo 40 do Código Processo Penal, não tem cabimento quando está em causa a mera supressão de causas de nulidade detectadas na decisão e não uma nova apreciação da matéria de facto. Aliás, mantendo-se como se manteve a mesma matéria, á excepção de uma fracção relativa ao depoimento indirecto, teria de ser o memo tribunal a apreciar se, face á matéria de facto previamente consolidada, mantinha o seu juízo condenatório.

            Como decidiu aquele Acórdão do Tribunal Constitucional não é inconstitucional a norma da alínea d) do artigo 40.º do Código de Processo Penal (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, e alterado, por último, pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, rectificada, por último, pela Declaração de Rectificação n.º 105/2007, de 9 de Novembro), quando interpretada no sentido de que o juiz que tenha participado em acórdão que conheceu do mérito do recurso, mas declarado nulo por inobservância de regra processual, não fica impedido de intervir na audiência destinada a julgar o mérito desse recurso

            Aliás, importa referir que, mesmo partindo do pressuposto da existência de impedimento nos termos propostos pelo recorrente, a arguição da respectiva nulidade não foi efectivada atempadamente. Na verdade, como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 2/04/2008 [2] a nulidade ora em causa não se encontra prevista em qualquer das alíneas do artigo 119º, nem se mostra cominada a sua insanabilidade em qualquer outra disposição legal, maxime no artigo 41º.

É pois uma nulidade sanável.

As nulidades sanáveis devem ser arguidas pelos interessados nos termos dos artigos 120º e 121º. Da análise daqueles preceitos resulta que o prazo de arguição da nulidade que ora nos ocupa é o de dez dias – artigo 105º, n.º 1 –, prazo que se conta a partir do momento em que o interessado tem conhecimento do impedimento do juiz ou dele devia ter tido conhecimento.

No caso vertente o recorrente podia ter tido conhecimento do impedimento dos juízes no dia em que foi notificado da nova decisão de primeira instância. Porém, o certo é que só no recurso para o Tribunal da relação o arguido suscitou a questão da ilegal participação dos juízes na decisão de primeira instância.

Assim, é manifesto que a arguição de nulidade não foi efectuada oportunamente pelo que sempre se deveria ter por sanada.

            Nesta conformidade entende-se que não existe impedimento relevante nos termos do artigo 40 do Código de Processo Penal a afectar a decisão recorrida.

III

            Como questão prévia na análise do presente recurso importa precisar que o recurso para o Supremo Tribunal visa exclusivamente o reexame das questões de direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios referidos no artigo 410º, nº 2 do CPP.

Relativamente á impugnação da matéria de facto impõe-se a reafirmação do principio de que o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista por excelência - art. 434.º do Código de Processo Penal – saindo fora do âmbito dos seus poderes de cognição a apreciação da matéria de facto. Na verdade, se é certo que os vícios da matéria de facto - artigo 410.º, n.º 2, do mesmo Código - são de conhecimento oficioso, e podem sempre constituir objecto de recurso, tal só pode acontecer relativamente ao acórdão recorrido, ou seja o Acórdão do Tribunal da Relação.

A decisão deste Tribunal sobre a alegação da existência de vícios da matéria de facto ocorridos na decisão da primeira instância tem, no caso vertente, de tomar-se por definitivamente assente como é jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal.

Saliente-se, ainda, que o reexame pelo Supremo Tribunal de Justiça exige a prévia definição (pela Relação) dos factos provados.

Nesta última hipótese, o recurso - agora, puramente, de revista - terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento de 1.ª instância), embora se admita que, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do Supremo para além do que tenha de aceitar-se já decidido definitivamente pela Relação, em último recurso, aquele se abstenha de conhecer do fundo da causa e ordene o reenvio nos termos processualmente estabelecidos.

É unicamente com este âmbito que o Supremo Tribunal de Justiça pode ter de avaliar da subsistência dos aludidos vícios da matéria de facto. Tal significa que está fora do âmbito legal do recurso a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação

Aplicando o exposto ao caso vertente verifica-se que parte das conclusões formuladas pelo recorrente se referem a uma discordância em relação á materialidade considerada provada e, nomeadamente, ao facto de se ter considerado provada a responsabilidade criminal do arguido (No que respeita é exemplificativo o ponto sete das respectivas conclusões.)

            Encontramo-nos, pois, no domínio da matéria de facto que se encontra excluída do conhecimento deste Supremo Tribunal. O exposto em nada é afectado pelas referências genéricas e abstractas que o recorrente faz em relação aos vícios do artigo 410 do Código de Processo Penal, e alusões ao catálogo das patologias processuais, mas que, em termos concretos, se consubstanciam efectivamente na divergência em relação á factualidade provada sem qualquer concretização.

                                                                     *

                      Subsumindo ao exposto á matéria das conclusões verifica-se que nestas se valoriza uma multiplicidade de razões conducentes ao apontar de patologias na decisão recorrida algumas das quais de natureza processual e, outras, de natureza substancial. Entre outros vícios o recorrente alega que não percebe a sequência lógica do raciocínio-5;  não existe prova bastante-7; o tribunal recorreu a agentes provocadores e consequentemente a meio proibidos de prova 16-30; as regras da experiência demonstram uma realidade antagónica àquela que o tribunal presumiu-31;não se percebe a sequência lógica do raciocínio-32; o tribunal não indicou elementos concretos-38; não resultam provados factos que demonstrem o sangue frio 42; o tribunal retirou uma conclusão arbitrária-66;  o tribunal, na dúvida valorou a prova contra o arguido; a utilização de depoimentos indirectos é incompatível com o principio da verdade material e a estrutura do processo e inconstitucional-76.

            Cotejando tal crítica com a matéria da decisão recorrida temos que, em primeira análise, a tarefa do Tribunal da Relação ao apreciar a impugnação produzida em termos de matéria de facto incidiu, também, sobre a forma como o Tribunal de primeira instância exprimiu a lógica dedutiva que permitiu a aceitação de determinados factos em detrimento de outros. Nomeadamente a fls 2877 e seguintes o Tribunal da Relação de Guimarães, colocado perante uma impugnação genérica que se estende praticamente a todos os factos constantes que sustentam a responsabilização criminal do arguido-confrontar fls 2953 verso- entendeu, estar perante “uma cuidadosa e bem elaborada motivação elucidativa dos passos dados”.

            Concorda-se com tal a conclusão constante da decisão recorrida mas esta não pode escamotear a circunstância de a apreciação que a mesma decisão faz sobre a impugnação da matéria de facto se refugiar, parcialmente, em conceitos formais e abstractos, evitando a concreta análise da fundamentação constante da decisão de primeira instância. A esta perspectiva não é alheio o pressuposto de que arranca o Tribunal da Relação Guimarães de que lhe cabe apenas proceder á verificação de eventuais erros que ocorram em relação a regras e princípios e não, como poderia parecer, um segundo julgamento.

            Na verdade, ao mesmo Tribunal da Relação compete tout court apreciar os pontos da matéria de facto que foram invocados por quem impugna a decisão.

 Não se ignora que a sindicância da matéria de facto se deve limitar a concretos pontos da matéria de facto, bem como a limitação imposta pela ordem natural das coisas quando o tribunal de recurso é chamado a apreciar uma prova que não é exactamente coincidente com a produzida em primeira instância o que desde logo pode resultar da evanescência do principio da imediação.

Porém, a constatação de tal estado de coisas não permite a afoita afirmação da decisão recorrida de que a sindicância do tribunal da relação em matéria de facto incide sobre os erros cometidos pela primeira instância. Àquele tribunal compete apreciar a matéria de facto impugnada e nos exactos termos em que a mesma, legalmente, o tiver sido.

 

A questão será, então, a de saber se a decisão recorrida cumpriu o seu dever de investigar de indagar de uma forma precisa e detalhada a validade da impugnação produzida em relação a concretos pontos de facto.

            A análise da mesma decisão imprime, de forma inexorável, a conclusão de que tal obrigação foi efectivamente cumprida. O Tribunal da Relação represtinou a prova produzida, justificando o motivo pelo qual logrou convencer aquela que conduziu á convicção sobre a responsabilidade criminal do arguido.

É evidente que a análise que o Tribunal da Relação efectua está condicionada pela perfeição da impugnação ou, dito por outra forma, pelo modo como o recorrente expõe as razões da sua discordância em relação á matéria de facto. No caso vertente o recorrente discorda frontalmente da matéria considerada provada que é fruto de uma inferência que a decisão de primeira instância extrai de determinados factos provados, ou seja, das ilações que o tribunal fez sobre factos indícios para extrair a conclusão que consubstancia uma presunção típica da prova indiciária.

O recorrente discorda que dos indícios, nomeadamente da prova indirecta (testemunhal e de outro tipo), se tenha extraído a conclusão de que o arguido conjuntamente e por acordo com outros (ou outras) tenha provocado a morte da vítima.

Ao fim e ao cabo o que o recorrente discorda é que da aplicação das regras da experiência se tenha concluído da forma como se concluiu não obstante a inexistência de prova directa e o uso do tão decantado direito ao silêncio.

Assim, a tarefa da decisão recorrida limitou-se á constatação de que a decisão de primeira instância, aliás bem fundamentada, não compreendia e admitia as conclusões extraídas pelo recorrente.

Em última análise o que está em causa é uma visão global e compreensiva da prova produzida. A compreensão unitária e superior efectuada pela decisão recorrida sobre a mesma prova conduziu a um convencimento que se mostra sustentado/fundamentado em termos de motivação, e sem mácula, em termos de qualquer um dos vícios do catálogo do artigo 41 do Código de Processo Penal.

                                                                   *

O recorrente imputa a falta de motivação da decisão recorrida numa crítica que pretende estender inclusive á decisão de primeira instância. Porém, a crítica formulada é incorrecta nas conclusões que apresenta.

Na verdade, momento fundamental em processo penal é o julgamento com o objectivo de produzir uma decisão que comprove, ou não, os factos constantes do libelo acusatório e, assim, concretizar, ou não, a respectiva responsabilidade criminal.

     Nessa concretização o julgador aprecia livremente a prova produzida com sujeição ás respectivas regras processuais de produção aos juízos de normalidade comuns a qualquer cidadão bem como ás regras de experiência que integram o património comum e decide sobre a de demonstração daqueles factos e, em seguida, extrai as conclusões inerentes á aplicação do direito.

     Perante os intervenientes processuais, e perante a comunidade, a decisão a proferir tem de ser clara, transparente, permitindo acompanhar de forma linear a forma como se desenvolveu o raciocínio que culminou com a decisão sobre a matéria de facto e, também, sobre a matéria de direito. Estamos assim perante a obrigação de fundamentação que incide sobre o julgador, ou seja, na obrigação de exposição dos motivos de facto e de direito que hão de fundamentar a decisão.

  A mesma fundamentação implica um exame crítico da prova que se situa nos limites propostos, ente outros, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 680/98, e que já tinha adquirido foros de autonomia também a nível do Supremo Tribunal de Justiça com a consagração de um dever de fundamentação no sentido de que a sentença há-de conter também os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse num sentido, ou seja, um exame crítico sobe as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido  

   Por essa forma acabaram por obter consagração legal as opções daqueles que consideravam a fundamentação uma verdadeira válvula de escape do sistema permitindo o reexame do processo lógico ou racional que subjaz á decisão. Também por aí se concretiza a legitimação do poder judicial contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre o qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto. 

   Igualmente é certo que a exigência de motivação emerge directamente de um dever de fundamentação de natureza constitucional que é parte integrante do próprio conceito de Estado de Direito democrático, ao menos quanto ás decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e da garantia do direito ao recurso (Constituição Anotada pag 799).

Como refere Gianformaggio motivar significa justificar. E justificar significa justificar-se dar a razão do trabalho produzido admitindo como linha de princípio a legitimidade das críticas formuladas ou seja a legitimidade de um controle.

            A exigência de motivação responde, assim, a uma finalidade do controle do discurso, neste caso probatório, do juiz com o objectivo de garantir até ao limite de possível o racionalidade da sua decisão, dentro dos limites da racionalidade legal. Um controle que não só visa uma procedência externa como também pode determinar o próprio juiz, implicando-o e comprometendo-o na decisão evitando uma aceitação acrítica como convicção de algumas das perigosas sugestões assentes unicamente numa certeza subjectiva. A concretização de tal obrigação de fundamentação em sede de motivação da sentença é formulada em termos lapidares pelo Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/1992 quando refere que : "A sentença, para além da indicação dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência ''Ou seja, "trata-se ( .. .) de referir os elementos objectivos de prova que permitam constatar se a decisão respeitou ou não a exigência de prova, por uma parte; e de indicar o íter formativo da convicção, isto é o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir, em especial na prova indiciária, comprovar se o raciocínio foi lógico ou se foi irracional absurdo, por outra".

     Também Paulo Saragoça da Mata se pronuncia sobre o tema referindo que a fundamentação das sentenças consistirá: (a) num elenco das provas carreadas para o processo que se consubstanciará;

(b) numa análise crítica e racional dos motivos que levaram a conferir relevância a determinadas provas e a negar importância a outras;

(c) numa concatenação racional e lógica das provas relevantes e dos factos investigados (o que permitirá arrolar e arrumar lógica e metodologicamente os factos provados e não provados); e,

(d) numa apreciação dos factos considerados assentes à luz do direito vigente.

Adianta o mesmo Autor que apenas desse modo se garante uma tutela judicial efectiva. Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente levante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).

A motivação existirá, e será suficiente, sempre que com ela se consiga conhecer as razões do decisor.

Sopesando a decisão recorrida é manifesto o percurso lógico ensaiado pela mesma na indagação de fundamentos da crítica formulada em sede de recurso. A motivação encontra-se efectuada de forma adequada e o que está em causa, nas palavras do recorrente, não é a sua adequação formal ás exigências da lei, mas pura e simplesmente o facto de o recorrente não concordar com as mesmas. Porém, isso não consubstancia uma falta de motivação mas sim uma discordância o que transfere a questão da adequação lógico-formal para o plano substancial.

                                                         *

Numa outra ordem de argumentos o recorrente invoca os vícios do artigo 410 nº2 alínea c)  pois que, em seu entender: o Tribunal retirou dos factos uma conclusão arbitrária-30; não declarou a inexistência de causalidade entre o facto e o sujeitos activo-40; laborou em erro manifesto na apreciação da prova-43; valorou prova contra o arguido-69 come referindo uma ausência probatória que, na sua perspectiva se verifica, corresponde a uma insuficiência da matéria de facto ou que o facto de a racionalidade da fundamentação da decisão recorrida em matéria de prova não coincidir com a sua, corresponde a um erro notório na apreciação da prova.

Importa esclarecer, reavivando posição já expressa em plurimos Acórdãos desta Secção Criminal[3] que o recurso para o Supremo Tribunal visa exclusivamente o reexame das questões de direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios referidos no artigo 410º, nº 2 do CPP. Assim, relembrando conceitos por demais sedimentados em relação ao invocado vicio da sentença importa precisar que o C.P.P. de 1987 trata os vícios previstos no artigo 410 nº2 do Código Penal como vícios da decisão, e não de julgamento. Nesta disposição estamos em face de vícios da decisão recorrida, umbilicalmente ligado aos requisitos da sentença previstos no artigo 374 nº2 do Código de Processo Penal, concretamente á exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal.

            Consubstancia-se, assim, o mesmo recurso num recurso de revista ampliada, configurando a possibilidade que é dada ao tribunal de recurso de conhecer a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a decisão de direito não encontre na mesma matéria uma base tal que suporte um raciocínio lógico subsuntivo que permita a conclusão; de verificar uma contradição insanável da fundamentação sempre que através de um raciocínio lógico conclua que da fundamentação resulta precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a contradição entre os fundamentos aduzidos; de concluir por um erro notório na apreciação da prova sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária, ou pelo menos diferente, da exposta pelo tribunal.

            Não vislumbramos na análise da decisão recorrida, e só ela releva para o fim em vista, onde é que exista uma insuficiência dos factos para a decisão de direito ou uma desconformidade entre a fundamentação e a decisão.

            O que está em causa, uma vez mais, é a diversa inferência que o recorrente faz em relação aos factos considerados provados e não se pode confundir erro notório com uma diferente convicção em termos probatórios e uma diversa valoração da prova produzida em audiência.

Como decorre da análise das suas conclusões de recurso, e já foi referido, o verdadeiro núcleo da interpelação do recorrente centra-se na sua incapacidade de acompanhar a decisão recorrida quando esta, baseada em prova indirecta, arranca para a conclusão de que foi o mesmo quem matou.

Para o recorrente a prova não permite, á face das regras da lógica, e da experiência, que o tribunal possa concluir que é sua a autoria do crime.

Não falamos, assim, de uma manifestação evidente de ilogicidade da decisão, consagrando algo de contrário ao imposto pelas normas comuns de vida, ou de uma manifesta incapacidade dos factos para suportarem uma conclusão judicial e nem tão pouco de uma incongruência entre as peças que compõem o silogismo judiciário. Do que falamos em concreto é da discordância em relação a pontos de facto considerados provados sendo certo que tal discordância está centrada na inadmissibilidade da conclusão extraída da prova á luz dos ensinamentos das regras de experiência comum.

A questão fulcral colocada pelo recorrente é exactamente esta: -existe, ou não um incorrecto entendimento das regras ministradas pela dinâmica da vida e, se existe, como configurar tal vício?

- No que concerne a este segundo ponto admite-se que, se em face das premissas que constituem a matéria de facto, o julgador ensaia um salto lógico no desconhecido dando por adquirido aquilo que não é suportável à face da experiência comum pode-se afirmar a existência do vicio do erro notório. Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis ...” (Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 740)

Como se refere em decisão deste Supremo Tribunal de Justiça de 4/02/2005 “O "erro notório na apreciação da prova" constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.

A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum". Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.

A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c). - cfr. os acórdãos deste STJ, de 7 de Janeiro de 2004, proc.3213/03, e de 24 de Março de 2004, proc. 4043/03..

Partindo de tal pressuposto importa agora sindicar a sua aplicação ao caso vertente. No que respeita a conclusão do tribunal em relação á matéria de facto é a consequência lógica da conjunção de uma pluralidade de índicos apontando para uma conclusão. Em termos criminalisticos os indícios apontam para a resposta a qualquer uma das perguntas: Quem? Como? e Porquê?

      Dito por outra forma a questão que se coloca é a de saber se, em termos de lógica normal, é correcto concluir que o recorrente e co arguidas praticaram o facto imputado com base nos elementos probatório considerados relevantes.

Falamos, assim de uma questão de prova indiciária.

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Como já tivemos ocasião de referir em diversos Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça não faz a nossa lei processual penal qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária. O funcionamento e creditação desta estão dependente da convicção do julgador que, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável.

Fundamentando-se a condenação na prova indiciária a interpretação da prova e a fixação dos factos concretos terá, também, como referência as regras gerais empíricas ou as máximas da experiência que o juiz tem de valorar nos diversos momentos de julgamento

Importa distinguir dois tipos diferentes de regra de experiência: -as regras de experiência de conhecimento geral ou, dito por outra forma, as regras gerais empíricas cujo conhecimento se pressupõe existente em qualquer pessoa que tenha um determinado nível de formação geral e, por outro lado, as máximas de experiência especializada cujo conhecimento só se pode supor em sujeitos que tenham uma formação especifica num determinado ramo de ciência, técnica ou arte.

Usando tais regras de experiência entendemos que o juiz pode utilizar livremente, sem necessidade de prova sobre elas, as regras de experiência cujo conhecimento se pode supor numa pessoa com a sua formação (concretamente formação universitária no campo das ciências sociais). O próprio ordenamento jurídico parte da liberdade do juiz para utilizar estas máximas da experiência de conhecimento geral sem que as mesmas se inscrevam no processo através da produção de prova.

As razões que fundamentam a liberdade do juiz para a utilização dos seus conhecimentos de máxima da experiência são as mesmas que impõem a desnecessidade de fixação de factos notórios. Em qualquer um destes casos o que se pede ao juiz é que utilize os seus conhecimentos sobre máximas da experiência comum sem que importe a forma como os adquiriu

A necessidade de controle dos instrumentos através dos quais o juiz adquire a sua convicção sobre a prova visa assegurar que os mesmos se fundamentam em meios racionalmente aptos para proporcionar o conhecimento dos factos e não em meras suspeitas ou intuições ou em formas de averiguação de escassa ou nula fiabilidade. Igualmente se pretende que os elementos que o julgador teve em conta na formação do seu convencimento demonstrem a fidelidade as formalidades legais e as garantias constitucionais.

As regras da experiência, ou regras de vida, como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte efectuar a generalização. Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária.

Como afirma Duran o princípio da normalidade torna-se assim o fundamento de toda a presunção abstracta. Tal normalidade deriva da circunstância de a dinâmica das forças da natureza e, entre elas, das actividades humanas existir uma tendência constante para a repetição dos mesmos fenómenos. O referido principio está intimamente ligado com a causalidade: as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos e tem justificação na existência de leis mais ou menos imutáveis que regulam de maneira uniforme o desenvolvimento do universo.

O princípio da causalidade significa formalmente que a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal. Dito por outra forma, aceite uma causa, normalmente deve produzir-se um determinado efeito e, na inversa, aceite um efeito deve considerar-se como verificada uma determinada causa. O princípio da oportunidade fundamenta a eleição da concreta causa produtora do efeito para a hipótese de se apresentarem como abstractamente possíveis várias causas. A análise das características próprias do facto permitirá excluir normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito. Provado no caso concreto tal efeito deverá considerar-se provada a existência da causa.

Do exposto resulta que o princípio da normalidade, como fundamento que é de toda a presunção abstracta, concede um conhecimento que não é pleno mas sim provável. Só quando a presunção abstracta se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respectiva valoração judicial se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.

Só este convencimento alicerçado numa sólida estrutura de presunção indiciária-quando é este tipo de prova que está em causa- pode alicerçar a convicção do julgador.

Num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção será esta que terá de prevalecer. Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com géneses em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova.

A forma como se explana aquela prova fundando a convicção do julgador tem de estar bem patente o que se torna ainda mais evidente no caso da prova indiciária pois que aqui, e para alem do funcionamento de factores ligados a um segmento de subjectividade que estão inerente aos principio da imediação e oralidade, está, também, presente um factor objectivo, de rigor lógico que se consubstancia na existência daquela relação de normalidade, de causa para efeito, entre o indicio e a presunção que dele se extrai.

Como tal a enunciação da prova indiciária como fundamento da convicção do juiz tem de se expressar no catalogar dos factos base ou indícios que se considere provados e que vão servir de fundamento á dedução ou inferência e, ainda, que na sentença se explicite o raciocínio através do qual e partindo de tais indícios se concluiu pela verificação do facto punível e da participação do arguido no mesmo. Esta explicitação ainda que sintética é essencial para avaliar da racionalidade da inferência.

*

Mas, pergunta-se, serão quaisquer uns os indícios que permitem tal inferência lógica, ou seja, quais são os requisitos que devemos exigir para que o facto indiciante permita tal operação lógica?

-No funcionamento da prova indiciária não podemos omitir a exigência da gravidade do indício a qual está directamente ligada ao seu grau de convencimento: é grave o indício que resiste ás objecções e que tem uma elevada carga de perssuasividade como ocorrerá quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. Por seu turno é preciso o indicio quando não é susceptível de outras interpretações. Mas sobretudo, o facto indiciante deve estar amplamente provado ou, como refere Tonini corre-se o risco de construir um castelo de argumentação lógica que não está sustentado em bases sólidas

Por fim os indícios devem ser concordantes, convergindo na direcção da mesma conclusão facto indiciante. Porém, uma perplexidade assalta o analista nestas áridas matérias na enumeração dos requisitos deste tipo de prova, pelo menos em face da lógica. É que ultrapassando a questão da necessidade de vários indícios, ou da suficiência de um indício, o certo é que, quando existe aquela pluralidade, coloca-se a questão do objecto em função dos quais se deve avaliar os requisitos enunciados.

Nunca é demais sublinhar que é a compreensão global dos indícios existentes, estabelecendo correlações e lógica intrínsecas que permite e avaliza a passagem da multiplicidade de probabilidades, mais ou menos adquiridas, para um estado de certeza sobre o facto probando.

*

          Pretendendo desenhar alguns dos princípios a que se refere a prova indiciária diremos que na mesma devem estar presentes condições relativas aos factos indiciadores; á combinação ou síntese dos indícios; á indiciárias combinação das inferências indiciárias; e á conclusão das mesmas

Assim

1 ) Os indícios devem estar comprovados e é relevante que esta comprovação resulte de prova directa, o que não obsta a que a prova possa ser composta, utilizando-se, para o efeito, provas directas imperfeitas ou seja insuficientes para produzir cada uma em separado prova plena

Porém, estamos em crer que a exclusão de indícios contigentes e múltiplos que não deixam dúvidas acerca do facto indiciante como prova de um facto judiciário, e pela simples circunstância de serem resultado de prova indirecta, é arbitral e ilógica e constitui um consequência de preconceitos considerando a prova indiciária como uma prova inferior

Directamente relacionada com a questão da unidade, ou pluralidade de indícios, que se examinará, situa-se a questão dos indícios periféricos ou instrumentais em relação ao facto probando. Significa o exposto que os factos indiciantes não têm de coincidir necessariamente com os que conformam o facto sujeito a julgamento, ou algum dos seus elementos, ou bem assim a autoria material do facto ilícito, mas podem tratar-se de factos que estão em conexão ou relação directa com aqueles, situando-se na sua periferia sendo indicativos da realidade do facto que se pretende provar. Isto significa que devem ser concomitantes, ou seja, que devem acompanhar-se entre si por constituir diversos aspectos fácticas de um determinado facto penalmente relevante e que, em consequência têm uma existência comum e em paralelo

2) Os factos indiciadores devem ser objecto de análise crítica dirigida á sua verificação, precisão e avaliação o que permitirá a sua interpretação como graves, o médio ou o ligeiro. Porém, e como refere Bentham, não é pela circunstância de se inscreverem nesta última espécie que os indícios devem ser afastados pois que o pequeno indicio conjugado como outros pode assumir uma importância fundamental

3) Os indícios devem também ser independentes e, consequentemente, não devem considerar-se como diferentes os que constituam momentos, ou partes sucessivas, de um mesmo facto. Framarino ilustra este último ponto com o seguinte exemplo: “uma testemunha terá visto o arguido sair precipitadamente da casa da licença de Ticio; outro tê-lo-á visto numa viela transversal á mesma casa e uma outra viu entrar no carro na mesma transeversal e ausentar-se”. Estas três declarações não servem dar a fé mais do que de um único fato do indiciário  e deste fato, por mais do que é provado de mil maneiras, nunca constituem mais do que uma única indicação “.

4) Quando não se fundamentem em leis naturais que não admitem excepção os indícios devem ser vários.

Todavia, a exigência formulada por alguns autores no sentido de existência de um determinado número de indícios concordantes não se afigura de todo razoável e antes se reconduz a uma exigência matemática de algo que se situa no domínio da lógica. De concreto pensamos que apenas se pode formular a exigência daquela pluralidade de indícios quando os mesmos considerados isoladamente não permitirem a certeza da inferência

Porém, quando o indício mesmo isolado é veemente, embora único, e eventualmente assente apenas na máxima da experiência o mesmo será suficiente para formar a convicção sobre o facto

. 5) Os indícios devem ser concordantes, ou seja, devem conjugar-se entre si, de maneira a produzir um todo coerente e natural, no qual cada facto indiciário tome a sua respectiva colocação quanto ao tempo, ao lugar e demais circunstancias. Neste aspecto Devis Echandia refere que os indícios se pesam, e não se contam, motivo pelo qual não basta somente a pluralidade já que é indispensável que, examinados em conjunto produzam a certeza sobre o facto investigado e para que isto ocorra requere-se que sejam graves que concorram harmonicamente a apontar o mesmo facto.

6) As inferências devem ser convergentes ou seja não podem conduzir a conclusões diversas.

7)- Por igual forma deve estar afastada a existência de contra indícios pois que tal existência cria uma situação de desarmonia que faz perder a clareza e poder de convicção ao quadro global da prova indiciária.

Transplantando o exposto para o caso vertente somos interpelados para a verificação de tais requisitos. No que respeita entendemos que os mesmos indícios constatados na decisão recorrida são precisos, convergentes, graves e susceptíveis de fundamentar uma inferência lógica apontando para a autoria dos crimes imputados nomeadamente o crime de homicídio.

 O tribunal considerou provado que

No dia 27 de Fevereiro de 2010, a hora não determinada mas que sabe situar-se após as 22h15, os três arguidos, depois de se terem deslocado com a EE até Vila Nova de Famalicão, levaram esta, de carro, até à ponte sobre o rio Cávado que une as localidades de Pousa e Areias de Vilar, em Barcelos.

Chegados à referida ponte, os três arguidos forçaram a EE a sair da viatura, agarram-na e deitaram-na da ponte abaixo, de uma altura de 13,5 metros relativamente ao leito do rio, não sem que antes a EE lhes pedisse que o não fizessem.

Em virtude da descrita conduta dos arguidos, a EE morreu de asfixia mecânica por submersão.

Os arguidos quiseram matar a EE para evitar que a mesma os denunciasse, tendo decidido fazê-lo, pelo menos, durante a madrugada do dia 27.02.

 

O tribunal formou a sua convicção a partir de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, depois de criticamente analisada, à luz das regras da experiência comum e da verosimilhança, naquela se incluindo:

As declarações para memória futura prestadas pela demandante/assistente JJ (cfr. fls. 658 a 662).

   As declarações do demandante/assistente II.

- as declarações de ll, cunhada da EE e representante legal da demandante/assistente JJ.

- o depoimento das testemunhas CC, DD [com exclusão, em rigorosa obediência ao determinado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.06. 11, dos segmentos "em que o seu conhecimento resulta exclusivamente do que ouviram dizer aos arguidos" - aqui se esclarecendo, ainda, que, também em cumprimento do determinado no referido acórdão, não se valorará, na integra, o depoimento da testemunha HH ] e MM.

- o depoimento da testemunha FF, inspector da Polícia Judiciária.

-  documentos de fls. 9 (print da Conservatória do Registo Automóvel referente ao veículo Renault Clio, com a matrícula ...-CD), 263/264 (certificado de matrícula do referido veículo), 248/249 (contrato de arrendamento da fracção autónoma referente ao 2° andar direito trás do prédio urbano sito na Praça ..., Braga - em que figura como arrendatário o arguido AA -), 28 (fotografia de EE), 307 (cópia do B.1. de EE), 1310 (certidão do assento de nascimento de EE, encontrando-se a fls. 737 certidão do assento de óbito), 1244 (certidão de assento de nascimento da menor JJ Araújo),1495 a 1497 (carta da arguida BB datada de 21.03.10 e dirigida ao demandante/assistente II) e 1577 a 1579 (relativo ao internamento da menor JJ Araújo, às 02h49 do dia 27.02, no Hospital de Braga).

- relato de diligência externa de fls. 17/18;

- relato de diligência externa de fls. 83/84.

- reportagem fotográfica de fls. 113, 114, 118 a 120 (as fotografias de fls. 115 a 117 não foram valoradas pelas razões que infra se explanarão a propósito da não valoração do relato de diligência externa de fls. 81 e 82).

- reportagem fotográfica de fls. 130 a 134.

- reportagem fotográfica de fls. 266 a 268.

- reportagem fotográfica de fls. 283 a 296.

- reportagem fotográfica de fls. 317 a 318.

- documento de fls. 749,750 e listagem da SIBS de fls. 751 a 756.

- auto de apreensão de fls. 238.

- auto de fls. 238 relativo à apreensão do telemóvel com o IMEI 359350032139440 com o cartão SIM 912222014 (no documento de fls. 3 do apenso A a arguida GG Pereira é identificada como a titular do telemóvel como o referido IMEI)

- auto de fls. 256 relativo à apreensão do telemóvel com o IMEI 359122011181130 com o cartão SIM 912 222043 (a arguida GG Pereira é identificada como a titular do telemóvel como o referido IMEI, sendo o seu utilizador o arguido AA, como decorre da leitura do auto de apreensão - o telemóvel foi entregue à PJ pelo pai do arguido).

- auto de fls .. 68 relativo à apreensão do telemóvel com o IMEI 359726002583083 com o cartão SIM nº 910781388 (telemóvel apreendido na posse da arguida BB Vidal).

- autos de fls. 344 e 346 relativos à apreensão dos telemóveis das testemunhas DD e CC.

- listagem do tráfego dos telemóveis dos arguidos e das testemunhas DD e CC com os registos da localização celular (BTS) desses telemóveis - cfr. Apenso A.

- listagem dos conteúdos e relatórios dos telemóveis apreendidos - cfr. Apenso B.

- relatório de autópsia de fls. 976 a 987.

- relatório do exame médico-legal psiquiátrico e da avaliação de psicologia forense à arguida GG Pereira - cfr. fls. 805 a 819 e 885.

- relatório do exame médico-legal psiquiátrico e da avaliação de psicologia forense à arguida BB Vidal - cfr. fls. 820 a 838 e 889.

- relatório do exame médico-legal psiquiátrico ao arguido AA - cfr. fls. 891 e 892.

- relatório da Avaliação Psicológica ao arguido AA - cfr. fls. 16,17 a 1620.

E, finalmente, somos chegados à noite do dia 27.02.

Concentremo-nos nos meios de prova a que o tribunal atendeu.

A testemunha CC declarou que: estava combinado que no sábado iam todos outra vez a Famalicão; quando se preparava para ir para Famalicão apercebeu-se que tinha deixado as chaves no carro; demoraram uma hora a Ir buscar as chaves suplentes; nesse intervalo estiveram sempre em contacto, por telemóvel, com a GG; quando estavam a chegar a Braga a GG voltou a contactá-los; foram a uns bares; o irmão recebeu um telefonema da GG; na sequência desse telefonema foram a casa da GG; aí encontraram a GG e o AA; depois da conversa mantida com esses arguidos foram (ele, o irmão e um sobrinho, que os acompanhava) até à ponte de Pousa; aí chegados pareceu-lhe ouvir qualquer coisa; deram uma volta, ouviu outra vez um barulho e depois mais nada.

A testemunha DD declarou que: estavam (ele, o irmão e um sobrinho) nuns bares da Universidade quando recebeu um telefonema da GG; na sequência desse telefonema foram a casa da GG; estava lá a GG e o AA; depois da conversa mantida com esses arguidos foram até à ponte de Pousa; quando chegaram à ponte o irmão e o sobrinho disseram que ouviram uma voz; procuraram até de manhã.

Impõe-se, aqui, esclarecer que os depoimentos prestados pelas duas referidas testemunhas relativamente aos factos da noite do dia 27.02 não se circunscreveram ao que acima se reproduziu.

Na verdade, a testemunha CC relatou o que lhe foi dito pela arguida GG nos contactos telefónicos que com ela manteve - onde estava, com quem estava, o que estavam a fazer e para onde regressavam -, o que a mesma disse ao irmão no telefonema que fez para este último quando estavam nos bares e, por fim, o que essa arguida e o arguido AA lhe contaram e ao irmão quando se deslocaram a casa dos mesmos (o que eles e a arguida BB tinham feito quando, acompanhados da EE, se deslocavam de Vila Nova de Famalicão para Braga).

Por sua vez, a testemunha DD relatou o que lhe foi dito pela arguida no telefonema que a mesma lhe dirigiu e o que ela e o arguido AA lhe contaram e ao irmão quando ambos se deslocaram à casa desses arguidos. Sucede, porém, que, tendo este colectivo no acórdão anteriormente proferido valorado, pelas razões expendidas nesse acórdão e com a prudência e cautelas aí mencionadas, esses segmentos dos depoimentos das duas referidas testemunhas, na sequência dos recursos interpostos desse acórdão, o Tribunal da Relação de Guimarães, no acórdão de 06.06.2011, declarou nula a prova obtida através dos depoimento dessas duas testemunhas nos segmentos em que o seu conhecimento resulta do que ouviram dizer aos arguidos, por ter considerado que tais segmentos constituem depoimentos indirectos, argumentando que esses segmentos só poderiam ser valorados por este tribunal verificado determinado circunstancialismo, ou seja, se o tribunal "a quo". Após esses depoimentos, tivesse chamado os arguidos neles mencionados a "pronunciarem-se", dando-lhes a possibilidade de os contraditar, se assim o entendessem, pois, lê-se nesse douto acórdão, se tivesse sido dada essa possibilidade aos arguidos, caso entendessem manter a recusa em pronunciar-se sobre os factos, a impossibilidade de ouvir as "fontes" estaria verificada e, consequentemente, "os depoimentos daquelas duas testemunhas poderiam ser valorados como meio de prova ( ... )".

Pois bem, reaberta a audiência, após a remessa dos autos à primeira instância, este tribunal chamou, como resulta da acta da sessão de julgamento do dia 05.09.2011, os arguidos GG, AA e BB a pronunciarem-se sobre os mencionados segmentos dos depoimentos das testemunhas CC e DD, tendo os arguidos mantido a recusa em pronunciar-se sobre os factos.

Desta feita, cumprido o circunstancialismo a que alude o douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, parece-nos ter sido eliminado o obstáculo que, segundo aquele acórdão, impedia este tribunal de valorar os dois referidos depoimentos, na parte em que as testemunhas CC e DD relataram o que, na noite do dia 27.02, lhes foi dito pelos arguidos GG e AA.

Todavia, porque no acórdão de 06.06.2011 do Tribunal da Relação de Guimarães expressamente se determinou que, no novo acórdão a proferir por este tribunal, a referida prova não fosse valorada, em estrito cumprimento desse acórdão não se valorará os abordados segmentos dos depoimentos das duas referidas testemunhas.

Isto dito, analisemos as demais provas produzidas, conjugando-as com os depoimentos das duas identificadas testemunhas, com exclusão daqueles segmentos - "em que o seu conhecimento resulta exclusivamente do que ouviram dizer aos arguidos".

Iniciando, a EE foi vista, pela última vez, na companhia dos arguidos GG e AA, por volta das 20.00 do dia 27.02 (cfr. depoimento da testemunha CC), sendo que na madrugada do dia 28.02, quando as testemunhas CC e DD se deslocaram a casa dos arguidos GG e AA, a EE já aí não se encontrava.

Nas duas noites anteriores (nas noites de 25 para 26.02 e de 26.02 para 27.02) os arguidos GG, AA e BB levaram a EE até Vila Nova de Famalicão a fim de a mesma aí se prostituir.

E, agora quanto à noite de 27.02, temos que a presença da arguida GG [como decorreu do depoimento das testemunhas CC e DD, o arguido AA acompanhava sempre a arguida GG a Famalicão, conduzindo o carro onde se faziam transportar, o que também resulta dos factos passados nas noites anteriores; falaremos mais tarde da arguida BB] em Vila Nova de Famalicão nessa noite é confirmada pelos registos da localização celular (BTS) do respectivo telemóvel (encontrando-se na área da BTS de Famalicão Norte, a arguida GG recebeu uma chamada, às 22.15, da testemunha DD, que, no momento, se encontrava na área da BTS de Braga Fujacal).

Ou seja, tal como nas duas noites anteriores, há, na noite de 27.02, uma deslocação de Braga para Vila Nova de Famalicão, após o que se segue o regresso a Braga, para casa dos' arguidos GG e AA, que, na madrugada de 28.02, aí foram vistos pelas testemunhas CC e DD, mas, desta vez, sem a EE.

Nessa madrugada, após a conversa com os arguidos GG e AA, as testemunhas CC e DD deslocaram-se até à ponte de Pousa [a testemunha FF, inspector da Polícia Judiciária, declarou que as testemunhas CC e DD indicaram a ponte onde, depois da conversa que tiveram, na madrugada do dia 28.02, com os arguidos GG e AA, se deslocaram durante essa madrugada (veja-se o relato de diligência externa de fls. 82/83 datado de 12.03.10 referente à diligência de reconhecimento do local efectuada com a testemunhas CC e DD, relato esse confirmado em audiência por estas duas testemunhas e pela testemunha FF)] e, aí chegados, à primeira pareceu-lhe ouvir qualquer coisa, sendo que, depois de terem dado uma volta, ouviu outra vez um barulho e depois mais nada.

Ora, na dia 12.03., pelas 13.00, foi encontrado, nas margens do Rio Cávado, 45 metros a jusante (ou seja, rio abaixo, na corrente do rio) da ponte  indicada pelas testemunhas CC e DD, um casaco, que veio a ser identificado (em audiência pelo demandante/assistente II e pela testemunha MM) como sendo da vítima - cfr. reportagem fotográfica de fls. 130 a 134.

Por fim, no dia 21.03.10, foi encontrado, nas margens do Rio Cávado, a jusante da ponte indicada pelas testemunhas CC e DD e do local onde foi encontrado o casaco, o corpo da EE.

A rematar a testemunha FF, já identificada, declarou que, no seguimento da denúncia apresentada pelo sogro da vítima, fizeram diligências na casa dos arguidos GG e AA e constataram que a mesma estava abandonada (veja-se o relato de diligência externa de fls. 1 7/18 datado de 02.03.10 referente à diligência efectuada na Praceta..., Braga, relato esse confirmado em audiência pela testemunha FF, e o documento de fls. 248/249).

Este súbito abandono da casa por parte dos dois referidos arguidos indicia claramente um propósito de fuga.

Enfim, não obstante a inexistência de prova directa do homicídio, pois que os arguidos se remeteram ao silêncio e ninguém os viu a cometer o crime, as abordadas provas testemunhais, documentais e periciais, conjugadas entre si e apreciadas de acordo com as regras da experiência, permitiu ao tribunal extrair a conclusão, segura, de que os arguidos GG Pereira e AA praticaram os factos que deram origem à morte da EE.

Acresce que a morte da EE é incompatível com qualquer outra hipótese factual verosímil, que nunca ninguém, nem os próprios arguidos, tentou conceber.

De facto, impõe-se relembrar todos os actos já abordados [rapto, subtracção - de dinheiro (€40 e as inúmeras tentativas de levantamento de outras somas) e bens da vítima -, a prática coagida da prostituição, a entrega da menor JJ ao pai durante a madrugada do dia 27.02, os telefonemas do dia 27.02 - idóneos a tranquilizar os familiares e conhecidos da EE sobre os motivos daquela entrega (já que esse acto era incompatível com a afeição da mãe para com a filha) e, bem assim, para o futuro desaparecimento da mesma - e as agressões físicas] perpetrados pelos arguidos que antecederam o homicídio e repetir que a EE foi vista, pela última vez, na companhia dos arguidos GG e AA, por volta das 20.00 do dia 27.02, sendo que na madrugada do dia 28.02, quando as testemunhas CC e DD se deslocaram a casa daqueles arguidos, a EE já aí não se encontrava.

Resumindo, foram todos os enunciados elementos probatórios inseridos num todo, mormente de carácter temporal (o que se passou antes e o que se passou depois, pois que o "antes" e o "depois" inter-relacionam-se na produção de uma significação de conjunto), que estruturaram a convicção do tribunal.

E, para que não restem dúvidas, na formação dessa convicção não valorou o tribunal o relato de diligência externa de fls. 81/82 (referente à diligência efectuada. no dia 11 .03, pelos arguidos GG e AA na companhia dos inspectores da polícia judiciária) e o depoimento da testemunha FF, inspector da Polícia Judiciária, que interveio nessa diligência) por ter entendido, pelas razões que se passam a enunciar, que não o podia fazer.

Desde logo, cumpre salientar que não existe no processo qualquer auto de reconstituição dos factos.

Na verdade, por despacho de 19.03.10, a fls. 208/209, foi considerada conveniente a reconstituição dos factos. Todavia, os arguidos, notificados, não se mostraram dispostos a colaborar nessa diligência.

Feito este esclarecimento, verifica-se que aquilo que existe no processo, a fls. 81/82, é o relato de um reconhecimento por parte dos arguidos GG e AA do local onde foi praticado o crime de homicídio.

Essa diligência, levado a cabo depois dos suspeitos GG e AA terem sido constituídos arguidos e sem que os mesmos tenham sido assistidos durante a mesma por defensores, não foi reduzida a auto e, como se sabe, é esse o instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais - dr. art. 99° do Código de Processo Civil certo que os arguidos gozam do direito (que não se vê ter sido prescindido pelos arguidos GG e AA) de serem assistidos por defensor em todos os actos processuais em que participem - dr. art. 61°, nº 1, aI. f). do Código de Processo Penal.

Continuando, aquela diligência externa de reconhecimento - indicação do local do crime - baseou-se evidente e exclusivamente em declarações dos arguidos.

Logo, ela constitui a confissão da autoria dos factos, in loco.

Assim, a diligência em apreço não pode valer como reconstituição do facto, antes e tão só, como declarações (informais, pois que não reduzidas a auto) dos arguidos.

Em suma, os resultados obtidos com a referida diligência externa, assentes exclusivamente nas declarações dos arguidos aos inspectores da Polícia Judiciária, não se podem ter como validamente adquiridos.

E, não existindo qualquer hipótese de serem lidas aquelas declarações, pois que, repetimos, não constam de auto, decorre, de forma necessária, que quem, a qualquer título participou na sua recolha, não pode ser inquirido sobre o conteúdo delas.

Com efeito, por decorrência do princípio da legalidade do processo consagrado no artigo 2° do Código de Processo Penal, não podem ser valorados os depoimentos dos órgãos se polícia criminal sobre conhecimentos que tiverem obtido através de depoimentos cuja leitura seja proibida ou que deveriam ter sido reduzidos a auto e não foram [cfr Germano Marques Da Silva. in"Curso de Processo Penal".I1.Lis boa.1993.pág.140j.

Encerrada a questão, passamos a descrever os meios de prova que nos conduziram à formação da nossa convicção quanto à participação da arguida BB no crime de homicídio.

Recordemos, para começar, que a arguida BB mantinha há, pelo menos, mais de um ano um relacionamento amoroso com o marido da vítima e, bem assim, que alguns dias antes do famigerado dia 25.02 a arguida e o marido da vítima tinham-se desentendido e, na sequência desse desentendimento, aquele vinha pernoitando há já alguns dias à porta da casa da arguida, até que, no dia 24.02, a vítima acedeu a que o marido fosse dormir em sua casa (lendo-se, a propósito, no relatório da avaliação psicológica forense de fls. 828 a 838 que é de "admitir" que a arguida "se sentiria enraivecida (quem sabe, vingativa)").

Ou seja, dos três arguidos, era a arguida BB quem mais interesse tinha no desaparecimento da EE.

Relembremos, também, que o tribunal se convenceu, pelas razões já suficientemente enunciadas, da comparticipação da arguida nos crimes que antecederam o homicídio.

Tenha-se, ainda, presente que nas noites de 25.06 (de 25 para 26.02) e 26.02 (de 26 para 27.02) a arguida BB acompanhou os arguidos GG e AA na deslocação, com a vítima, a Vila Nova de Famalicão, certo que,  tal como nos foi dito pela testemunha DD para explicar a presença da arguida BB nessas duas noites em Vila Nova de Famalicão, a mesma estava interessada numa parte do salário da vítima e quem tinha o cartão bancário da  vítima era a arguida GG.

Serve isto para dizer que o motivo que justificou a presença da arguida BB nas noites anteriores (na deslocação a Vila Nova de Famalicão) mantinha-se válido para a noite do dia 27.02.

Pois bem, a presença da arguida BB em Vila Nova de Famalicão na noite de 27.02 é confirmada pelos registos da localização celular (BTS) do respectivo telemóvel (encontrando-se na área da BTS de Famalicão Sul, a arguida recebeu, entre as 21.58 e as 22.03, 5 SMS e, encontrando-se na área da BTS de Famalicão Norte, efectuou, às 22.15, uma chamada) - dr. Apenso A.

E, se dúvidas ainda existissem. temos agora os SMS trocados entre as duas arguidas no dia 28.02, entre as 15.08 e as 16.32, encontradas no telemóvel da arguida GG - dr. Apenso B.

No último desses SMS, à mensagem da arguida GG onde a mesma escreve "Amiga não digas a ninguém a noite falamos conseguiste dormir", a arguida BB responde "Não até as 6 da manha. Claro k não tas doida? É para sempre segredo. ok".

Sugestivo é, ainda, o SMS enviado, no dia 11.03, pela arguida BB (ouvida, pela primeira vez, na Polícia Judiciária, nesse dia, às 9h30) para um número não identificado, com o seguinte teor: "Tas a ver o pk de k não dá? Já fizemos de tudo para tarmos juntos e não ficamos ... Pk? Gosto de ti mas já sinto vergonha de andar kontigo. Até amanhã".

o que antecede, articulado entre si e com as regras da experiência, inserido no âmbito temporal (o que se passou antes) em causa, foi bastante para fundar a convicção do tribunal relativamente aos correspondentes factos imputados à arguida BB.

Cabe, ainda, referir que o tribunal ficou suficientemente convencido que os arguidos (os três) tomaram a decisão de matar a EE, pelo menos, durante a madrugada do dia 27.02.05.

Na verdade, essa tomada de decisão infere-se, claramente, daquela entrega da menor JJ Araújo ao pai na madrugada do dia 27.02. após a 0 1 h 18, e do teor dos telefonemas que a EE foi obrigada a fazer durante o dia 27.02 (transmitindo aos familiares e seus conhecidos uma razão - decidiu ficar com o namorado, precisava de descansar - idónea a explicar e a tranquilizá-los para o seu futuro desaparecimento).

Note-se, quanto à arguida BB, que, na madrugada do dia 27.02 (noite de 26.02 para 27.02), a mesma acompanhou os arguidos GG e AA, com a vítima e a filha desta, a Vila Nova de Famalicão, deslocação essa que, como decorre do acima já explanado, antecedeu aquela entrega, certo que, como foi referido pelo demandante/assistente II, a arguida BB tomou conhecimento da entrega da menor, uma vez que, disse o assistente, estava [já estava, precisamos nós) em casa, acrescendo, a tudo isto, a participação directa da arguida no homicídio ocorrido na noite do dia 27.02.

Impõe-se ainda dizer que, face a todo o comportamento anterior dos arguidos e à gravidade subjacente a esse comportamento, não nos restaram dúvidas de que aqueles quiseram matar a EE para evitar que esta os denunciasse.

Aliás, a forma encontrada para tirarem a vida à EE reflecte isso mesmo: o lançamento, a uma altura de 13,5 metros, da vítima de uma ponte ao rio era adequado não só a causar-lhe a morte mas, também, a fazer  desaparecer o corpo.

Resta-nos fazer referência aos factos provados enunciados nas alíneas L) e M), o facto constante da alínea L) traduz as conclusões lógicas que se extraem de todos os outros anteriores.

Quanto ao facto da alínea M), tratando-se de factos relativos à imputação subjectiva, assente a autoria, sob a forma de comparticipação, nos crimes, aquela imputação resulta, perante tudo o que acima se expôs, irrefutável, cabendo referir que o modo desapiedado como os arguidos trataram a vítima ao longo do descrito período temporal [como se fosse de um objecto - veja-se a conversa mantida entre a arguida GG e a testemunha NN na noite de 25.02 para 26.02 (não querem ir com ela) ou de uma sua escrava - deslocando-a de Braga para Famalicão, acompanhada da filha; obrigando-a a prostituir-se; agredindo-a com um cinto] até a lançarem da ponte denota que quiseram infligir-lhe o maior sofrimento possível, quer físico, quer psíquico, sentindo prazer na prática dos correspondentes factos.

Por fim, quanto ao facto enunciado na alínea N), atendeu-se ao auto de 10 interrogatório judicial de fls. 149 a 161 e ao certificado de registo criminal do arguido junto a fls. 1534.

*

Quanto à imputabilidade e às características da personalidade dos arguidos atendeu-se aos relatórios dos exames médico-legal psiquiátricos e da avaliação de psicologia forense de fls. 805 a 819 e 885 (arguida GG), 820 a 838 e 889 (arguida BB ), ao relatório do exame médico-legal psiquiátrico ao arguido AA, a 891 e 892, e ao relatório da avaliação psicológica feito a este último arguido e junto a fls. 1617 a 1620.

De referir que, não obstante nos relatórios dos exames médico-legal psiquiátricos efectuados às arguidas GG e BB se tenha, inicialmente, concluído por uma proposta de imputabilidade diminuída, posteriormente, nas informações complementares de fls. 885 e 889, essa proposta não foi reiterada, nem, diga-se, o foi na avaliação de psicologia forense, esclarecendo-se, naquelas informações complementares, que as arguidas não sofrem de qualquer anomalia psíquica grave, certo que a imputabilidade diminuída traduz-se na comprovada existência de uma anomalia psíquica que torna duvidosa ou pouco clara a compreensibilidade das conexões objectivas de sentido que ligam o facto à pessoa do agente e, consequentemente, problematizam a determinação da culpa [cfr Figueiredo Dias, ia "Direito Penal" Parte Geral. Tomo J. Questões Fundamentais. e in "A Doutrina Geral do Crime". 2' ed. pág. 566 e ss.], O que, como decorre da leitura dos exames forenses, não é o caso das arguidas (nem, note-se, o caso do arguido AA).

                                                                    *

 Face a tal repositório, e conforme se referiu. a única questão resiliente e essencial na análise dos autos, é a de saber se a inferência feita pelo tribunal em termos de conclusão do facto indiciado comporta, ou não, uma violação de qualquer regra da experiência.

            A resposta é a nosso ver decididamente negativa. E negativa, não por uma questão de exclusão de partes afastando qualquer outra possibilidade que não o homicídio, mas essencialmente pelo conjunto da prova testemunhal e outros meios de obtenção de prova que situam a vítima com os seus algozes em todo o período durante o qual decorreram os factos relatados. E se dúvidas existissem sobre o tipo de tratamento infligido á vitima as lesões por esta apresentadas são um seu claro indício e testemunho eloquente. 

A vítima estava acompanhada dos arguidos naquelas circunstâncias de tempo lugar e modo, nomeadamente quando do seu homicídio, e se estes entenderam por bem resguardar-se no prudente silêncio é uma questão que só aos mesmos afecta não invalidando, minimamente, a conclusão de que a morte da EE só poderia ter sobrevindo em consequência da sua actuação e no culminar de todo um processo de aniquilamento psicológico e físico da vítima no qual as pulsões mais primárias dos arguidos tiveram a primazia.  

Para um cidadão comum é evidente que, não obstante a ausência de prova directa, a prova indiciária aponta, de forma insofismável, no sentido de que os arguidos provocaram a morte.

Aliás, nem sequer estamos perante um único indicio que, por mais forte que seja importa sempre uma ponderação da sua falibilidade, mas estamos perante uma convergência de indícios.

Ao fim e ao cabo o recorrente persiste num erro comum na prática judiciária dos nossos tribunais que é o de renegar qualquer outra prova que não a directa, ignorando que a prova indirecta ou indiciária pode assumir exactamente o mesmo valor, senão superior.

       

IV

Invoca, ainda, o recorrente a sua discordância em relação á forma como foi abordada a questão da aplicação do princípio “in dubio pro reo”.

Estamos em crer que a questão foi indevidamente colocada. Na verdade, o princípio in dubio pro reo, constitucionalmente fundado no princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (artigo 32º, nº 2, da Constituição), vale só, evidentemente, em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito. Aqui, a única solução correcta residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto.

Relativamente, porém, ao facto sujeito a julgamento o princípio aplica-se sem qualquer limitação e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude e da culpa, às condições objectivas de punibilidade, bem como às circunstâncias modificativas atenuantes e, em geral, a todas as circunstâncias relevantes em matéria de determinação da medida da pena que tenham por efeito a não aplicação da pena ao arguido ou a diminuição da pena concreta, Em todos estes casos, a prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido

Conforme refere Figueiredo Dias a sindicância do respeito pelo principio em causa configura uma questão de direito pois que se trata de um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão de direito que cabe, como tal, na cognição do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações ainda que estas conheçam apenas de direito. Nem contra isto está o facto de dever ser considerado como princípio de prova:- mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma "questão de direito" para efeito do recurso de revista.

Pronunciando-se sobre questão em apreço este Supremo Tribunal tem assumido, genericamente, o entendimento de que tal principio se encontra, intimamente ligado ao da livre apreciação da prova (artº 127º, do C.P.Penal) do qual constitui faceta e este último apenas comporta as excepções integradas no princípio da prova legal, ou tarifada, ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum.

De tal pressuposto emerge a conclusão de que o aludido princípio "in dubio pro reo” se situa em sede estranha ao domínio cognitivo do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista (ainda que alargada) por a sua eventual violação não envolver questão de direito (antes sendo um princípio de prova que rege em geral ou seja quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário), o que conduz a esta outra asserção de que o Supremo Tribunal de Justiça tão só está dotado do poder de censurar o não uso do falado princípio se, da decisão recorrida, resultar que o tribunal "a quo' chegou a um estado de dúvida patentemente insuperável e que perante ele, e mesmo assim, optou por entendimento decisório desfavorável ao arguido. Este Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.

Não se verificando a hipótese referida resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista. (Ac. de 23/01/2003, proc. n. 4627/02-5).

Como se viu, a primeira instância não ficou em estado de dúvida quanto à ocorrência de qualquer facto, afastando decididamente a invocação do arguido E não tendo ficado em estado de dúvida, não cabe a invocação do princípio in dubio pro reo.

V

    Do  principio do contraditório e depoimento indirecto

Afirma o recorrente que os depoimentos indirectos constituíram um elemento relevante no conjunto da prova sendo certo que o mesmo é incompatível com o principio da verdade material e a estrutura do processo acusatório.

Certamente existe lapso na invocação feita pois que o tribunal é exaustivo no afastar de qualquer depoimento ou segmento de depoimento susceptível de violar o artigo 129 do CPP. Refere expressamente a decisão recorrida que o depoimento das testemunhas CC, DD [com exclusão, em rigorosa obediência ao determinado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.06. 11, dos segmentos "em que o seu conhecimento resulta exclusivamente do que ouviram dizer aos arguidos" - aqui se esclarecendo, ainda, que, também em cumprimento do determinado no referido acórdão, não se valorará, na integra, o depoimento da testemunha HH ] e MM.

E, para que não restem dúvidas, na formação dessa convicção não valorou o tribunal o relato de diligência externa de fls. 81/82 (referente à diligência efectuada. no dia 11 .03, pelos arguidos GG e AA na companhia dos inspectores da polícia judiciária) e o depoimento da testemunha FF, inspector da Polícia Judiciária, que interveio nessa diligência) por ter entendido, pelas razões que se passam a enunciar, que não o podia fazer.

Desde logo, cumpre salientar que não existe no processo qualquer auto de reconstituição dos factos.

Na verdade, por despacho de 19.03.10, a fls. 208/209, foi considerada conveniente a reconstituição dos factos. Todavia, os arguidos, notificados, não se mostraram dispostos a colaborar nessa diligência.

Feito este esclarecimento, verifica-se que aquilo que existe no processo, a fls. 81/82, é o relato de um reconhecimento por parte dos arguidos GG e AA do local onde foi praticado o crime de homicídio.

Essa diligência, levado a cabo depois dos suspeitos GG e AA terem sido constituídos arguidos e sem que os mesmos tenham sido assistidos durante a mesma por defensores, não foi reduzida a auto e, como se sabe, é esse o instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais - dr. art. 99° do Código de Processo Civil certo que os arguidos gozam do direito (que não se vê ter sido prescindido pelos arguidos GG e AA) de serem assistidos por defensor em todos os actos processuais em que participem - do art. 61°, nº 1, aI. f). do Código de Processo Penal.

Continuando, aquela diligência externa de reconhecimento - indicação do local do crime - baseou-se evidente e exclusivamente em declarações dos arguidos.

Logo, ela constitui a confissão da autoria dos factos, in loco.

Assim, a diligência em apreço não pode valer como reconstituição do facto, antes e tão só, como declarações (informais, pois que não reduzidas a auto) dos arguidos.

Em suma, os resultados obtidos com a referida diligência externa, assentes exclusivamente nas declarações dos arguidos aos inspectores da Polícia Judiciária, não se podem ter como validamente adquiridos.

E, não existindo qualquer hipótese de serem lidas aquelas declarações, pois que, repetimos, não constam de auto, decorre, de forma necessária, que quem, a qualquer título participou na sua recolha, não pode ser inquirido sobre o conteúdo delas.

Com efeito, por decorrência do princípio da legalidade do processo consagrado no artigo 2° do Código de Processo Penal, não podem ser valorados os depoimentos dos órgãos se polícia criminal sobre conhecimentos que tiverem obtido através de depoimentos cuja leitura seja proibida ou que deveriam ter sido reduzidos a auto e não foram [cfr Germano Marques Da Silva. in"Curso de Processo Penal".I1.Lis boa.1993.pág.140j.

 

 Importa ainda precisar que, para além de, em concreto, a decisão recorrida assumir a irrelevância daqueles depoimentos indirectos, não é pelo facto de ser indirecto que, automaticamente, o depoimento está votado á irrelevância

            Sobre tal matéria entende-se que adquirida relevância que assumem as exigências da contraditoriedade, e do princípio da imediação, num processo penal de sistema acusatório compreende-se a irrelevância que, em princípio, é conferida ao depoimento indirecto. Na verdade, como referem Fernando Gonçalves e Manuel João Alves (A Prova do crime-Meios legais para a sua obtenção pag 163 e seg.) para que o debate, ou discussão, entre a acusação e a defesa, em que se traduz o princípio da contraditoriedade, cumpra plenamente a sua função de contribuição para o esclarecimento dos factos e consequente descoberta da verdade material, toma-se necessário que os depoimentos incidam sobre factos concretos e não sobre o que se ouviu dizer ou o que se diz, bem como a presença física da testemunha e do arguido durante o julgamento, por forma a puder existir, a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base de decisão, em que se traduz, o princípio da prova imediata, maxime da imediação.

            A essência da prova testemunhal reside, assim, na circunstância de a mesma se referir ás declarações que efectua uma pessoa sobre o que percebeu pessoal e directamente. A prova testemunhal caracteriza-se pela sua imediação com o acontecimento que se presenciou visual ou auditivamente.

            O depoimento indirecto refere-se a um meio de prova, e não aos factos objecto de prova, pois que o que está em causa não é o que a testemunha percepcionou, mas sim o que lhe foi transmitido por quem percepcionou os factos. Assim, o depoimento indirecto não incide sobre os factos que constituem objecto de prova, mas sim sobre algo de diferente, ou seja, sobre um depoimento que se ouviu.

            Uma vez que a prova testemunhal tem como referência o princípio da imediação, e do contraditório, não admiram as reservas suscitadas pelo depoimento indirecto em que está ausente a relação de imediação entre a testemunha e o objecto por ele percebido. Tais reservas não se situam apenas nos sistemas processuais penais contemporâneos pois que, no direito romano, não se admitia a testemunha de ouvir dizer.

            Pronunciando-se sobre o tema, e de uma forma radical, Manzini (Trattato di Procedura Penal pag 98), afirma que "as atestações indirectas, os conhecimentos reflexos, os depoimentos por ter ouvido dizer, não têm carácter de testemunho, senão que apenas podem ser consideradas como elementos inseguros de informação, através dos quais se pode eventualmente chegar ao verdadeiro testemunho” E, resumindo as objecções fundamentais, acrescenta: "Com efeito, em tais depoimentos a percepção sensorial que interessa à prova, não é do depoente, senão de quem a manifestou ao mesmo depoente. E o confidente, que seria a verdadeira testemunha, se não é imaginário, escapa à responsabilidade do que disse se o outro não o revela, e se subtrai também à valoração de sua credibilidade; além do facto de que o que se conta de “boca em boca” se altera e se deforma progressivamente.”

                                                                *                                                 

Estando a validade do depoimento condicionada á possibilidade de o referenciado ser chamado a depor é evidente que sobre o juiz existirá o dever de proceder a tal chamamento quanto mais não seja porque tal lhe é imposto pelo próprio principio da descoberta da verdade material. A omissão de tal dever, sem justificação, pode consubstanciar uma nulidade nos termos do artigo 120 nº 2 alínea d).

Existem situações, como é o caso da manifesta falta de credibilidade do depoimento de quem diz que ouviu, em que se torna evidente a desnecessidade de proceder á audição da testemunha de quem se diz que ouviu e, assim, encontra-se justificado o não chamamento com a sequente proibição de valoração de prova. Refere Adérito Teixeira (Depoimento Indirecto e arguido Revista do CEJ 2005 pag 135 e seg) que uma outra condição de admissibilidade do depoimento indirecto reside na necessidade de o tribunal chamar a depor a testemunha-fonte, como forma de garantir a fiabilidade suficiente da prova em apreço. A utilização pelo legislador do verbo "pode", não deixa de significar um poder-dever, inscrito no conteúdo da tarefa de prossecução da verdade material. Com efeito, a expressão básica da 'proibição de valoração do depoimento indirecto reside precisamente na circunstância de o julgador não "chamar" a testemunha-fonte. Ainda assim, a formulação, em jeito de faculdade, explicita inequivocamente um poder não vinculado às pretensões das partes (não sendo direito destas), em consonância com a regra geral do art. 340º do CPP, além de assegurar a eventualidade de o tribunal evitar diligências dilatórias e descontinuidade da audiência, por estar suficiente­mente esclarecido com a restante prova, de modo a inexistir razão para a utilizabilidade do depoimento indirecto ou a produção do directo.

De resto, não é inócuo o requisito de o tribunal chamar a testemunha-fonte a depor para estabelecer um efeito de dissuasão efectivo nas estratégias processuais de falar por interposta pessoa ou demarcando-se e desresponsabilizando-se do que se diz e, bem assim, evitar que se façam juízos na base do diz-que-disse.

O depoimento indirecto será objecto de valoração quando a testemunha referenciada comparecer, existindo, então, a necessidade de, com observância, do principio da livre apreciação da prova, conjugar e cotejar o depoimento indirecto e o depoimento directo, esclarecendo, e concluindo, sobre eventuais contradições ou convergência.

A mesma testemunha referenciada no depoimento indirecto pode não comparecer ou, comparecendo, recusar-se, de forma ilegal, a prestar depoimento. Em qualquer uma dessas hipóteses assegurado que está o princípio de imediação com a valoração da credibilidade e fiabilidade dos depoimentos, ou do próprio comportamento pessoal processual da testemunha, os depoimentos directo e indirecto, deverão ser livremente valorados.

Na disciplina legal do artigo 129 é suficiente a tentativa de realização do contraditório e não é de exigir a efectiva consumação de tal princípio para que o depoimento indirecto tenha potencialidade para ser valorado. Tal entendimento encontra-se por alguma forma consagrado no Acórdão do Tribunal Constitucional nº440/99 o qual conclui que o artigo 129º, nº 1 (conjugado com o artigo 128º, nº 1) do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido.

                                                                      *             

  V

Do Depoimento indirecto e arguido

Por uma questão de precisão conceptual importa agora analisar o posicionamento tomado pelo primeiro acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães bem como pelo tribunal de primeira instância.

  Referiu este em sede de motivação: E, para que não restem dúvidas, na formação dessa convicção não valorou o tribunal o relato de diligência externa de fls. 81/82 (referente à diligência efectuada. no dia 11 .03, pelos arguidos GG e AA na companhia dos inspectores da polícia judiciária) e o depoimento da testemunha FF, inspector da Polícia Judiciária, que interveio nessa diligência) por ter entendido, pelas razões que se passam a enunciar, que não o podia fazer.

Desde logo, cumpre salientar que não existe no processo qualquer auto de reconstituição dos factos.

Na verdade, por despacho de 19.03.10, a fls. 208/209, foi considerada conveniente a reconstituição dos factos. Todavia, os arguidos, notificados, não se mostraram dispostos a colaborar nessa diligência.

Feito este esclarecimento, verifica-se que aquilo que existe no processo, a fls. 81/82, é o relato de um reconhecimento por parte dos arguidos GG e AA do local onde foi praticado o crime de homicídio.

Essa diligência, levado a cabo depois dos suspeitos GG e AA terem sido constituídos arguidos e sem que os mesmos tenham sido assistidos durante a mesma por defensores, não foi reduzida a auto e, como se sabe, é esse o instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais - do. art. 99° do Código de Processo Civil certo que os arguidos gozam do direito (que não se vê ter sido prescindido pelos arguidos GG e AA) de serem assistidos por defensor em todos os actos processuais em que participem - do. art. 61°, nº 1, aI. f). do Código de Processo Penal.

Continuando, aquela diligência externa de reconhecimento - indicação do local do crime - baseou-se evidente e exclusivamente em declarações dos arguidos.

Logo, ela constitui a confissão da autoria dos factos, in loco.

Assim, a diligência em apreço não pode valer como reconstituição do facto, antes e tão só, como declarações (informais, pois que não reduzidas a auto) dos arguidos.

Em suma, os resultados obtidos com a referida diligência externa, assentes exclusivamente nas declarações dos arguidos aos inspectores da Polícia Judiciária, não se podem ter como validamente adquiridos.

E, não existindo qualquer hipótese de serem lidas aquelas declarações, pois que, repetimos, não constam de auto, decorre, de forma necessária, que quem, a qualquer título participou na sua recolha, não pode ser inquirido sobre o conteúdo delas.

Com efeito, por decorrência do princípio da legalidade do processo consagrado no artigo 2° do Código de Processo Penal, não podem ser valorados os depoimentos dos órgãos se polícia criminal sobre conhecimentos que tiverem obtido através de depoimentos cuja leitura seja proibida ou que deveriam ter sido reduzidos a auto e não foram [cfr Germano Marques Da Silva. in"Curso de Processo Penal".I1.Lis boa.1993.pág.140j.

O artigo 129 do CPP reporta-se a uma proibição de valoração do depoimento indirecto relativo a pessoas determinadas. Estas pessoas a quem se ouviu algo de relevante em termos de objecto do processo podem ser testemunhas-artigos 138 e 348-assistente e partes civis-artigos 145 346 e 347.

Em relação ao depoimento do assistente, bem como das partes civis, não se vislumbra qualquer motivo que leve a adoptar uma interpretação restritiva do presente artigo, relegando o seu campo de aplicação unicamente em relação ás testemunhas, pois que em relação a qualquer uma daqueles intervenientes processuais são exactamente as mesmas as razões que levam a admitir a valoração da prova produzida em sede de depoimento indirecto, ou seja, a efectiva aplicação do principio da imediação e a possibilidade do exercício do contraditório.

 Questão distinta é da valoração da prova produzida em sede depoimento indirecto quando está em causa o que foi ouvido ao arguido. Na verdade, a efectivação do principio da imediação tem de ser conjugada com princípios de igual dignidade constitucional como é o caso do direito ao silêncio que integra o catálogo das garantias de defesa a que alude o artigo 32 da Constituição da República Portuguesa. Pressuposto desse direito ao silêncio é, todavia, a existência de um inquérito e a condição de arguido.

            Se o “ouvir dizer” do arguido pode gerar, e gera, complexas questões jurídicas em que se equaciona a protecção de direitos fundamentais com a funcionalidade da justiça penal, igualmente é exacto que a própria condição, e estatuto, do ouvinte determina a configuração de algumas dessas questões.

            Assim, se a testemunha referência (por contraposição a testemunha fonte) é um cidadão normal que ouviu algo do arguido a questão que desde logo se coloca é a da aplicabilidade do artigo em causa. Segundo Paulo Pinto de Albuquerque (ibidem pag.361) não é admissível como meio de prova tal depoimento pois que ás limitações do regime de depoimento indirecto decorrentes do principio constitucional da imediação acrescem, no caso de depoimento de ouvir dizer a arguido, as limitações decorrentes do direito constitucional do arguido ao silêncio consagrado entre as garantias de defesa do artigo 32 nº1 da Constituição da República   

 Não concordamos com tal entendimento pois que, em nosso entender, o direito ao silêncio do arguido circunscreve-se a uma dimensão positiva que lhe confere a faculdade de se manter em silêncio ao longo de todo o processo e, em especial, na audiência de jul­gamento (arts. 61.°, º1, al. d) e 343.°, nº1, in fine), sem que tal com­portamento possa ser interpretado em seu desfavor, numa concretização do direito à não auto-incriminação e presunção de inocência de que aquele beneficia.

É certo que tal dimensão do direito ao silêncio tem, para alguns autores (v.g. Maria João Antunes “Direito ao silêncio e leitura de declarações do arguido” Sub Judice 1992 pag 25) uma correspondência negativa que se traduz para os outros sujeitos processuais de que, mesmo que o arguido não tenha optado por exercer aquele direito no inquérito ou instrução, se o fizer em julgamento, nada do que disse anteriormente poderá ser lido na audiência ou constituir objecto de depoimento indirecto (art. 357.°, nº 1 e 2).  Porém, estamos em crer que a atribuição a tal direito ao silêncio do arguido o efeito negativo de obstaculizar qualquer depoimento sobre o que o mesmo referiu anteriormente não tem fundamento legal e colide com o principio da legalidade da prova a que alude o artigo 125 do Código de Processo Penal.

Partindo do pressuposto de que nada impede o depoimento de testemunha sobre o que ouviu ao arguido importa perguntar como pode o arguido ser "testemunha-fonte" ou, por outras palavras, como pode o arguido intervir enquanto pessoa a quem a testemunha de referência “ouviu dizer” para que se cumpra o condicionamento do nº1 do art. 129.°.No que respeita, e como refere Adérito Teixeira (ibidem)  “Acima de tudo, pesa o argumento de que a posição processual do arguido é irremediavelmente incompatível com a qualidade de "testemunha" na mesma pessoa e no mesmo processo, como decorre do confronto das normas - com interesse para o cerne deste debate - previstas no art. 61.°, nº 1 al. c), art. 140.° nº 3 e art. 343.° nº 1 com as normas do art. 131.°, nº 1 e 2, art. 132.°, nº 1 al. b), c) e d) e art. 145.° nº 2 (com a inerente responsabilidade penal cominada nos arts. 359.°, nº 2, e 348.° do CP).

De resto, a propósito do mesmo crime no mesmo processo, o arguido nunca pode, a um só tempo, deter essa qualidade e ser também testemunha (contra si próprio ou contra outros arguidos). E se é assim, sempre, no processo em que seja arguido, também em sede de produção de depoimento indirecto não se pode ficcionar que passaria a ser testemunha (fonte).

Além disso, para efeitos da aplicação do art. 129, n° 1, do CPP, o arguido, "transmutado" em pessoa-fonte do conhecimento, jamais poderia assegurar o procedimento, legal e dogmático, que constitui a condição de admissibilidade e valoração do depoimento indirecto”

Na lógica de tal argumentário, com o qual se concorda, não faz sentido "chamar" a depor quem já se encontra no processo ou sempre ali esteve; do mesmo modo que, estando presente o arguido (mas remetido ao silêncio) ou estando ausente, será um contra-senso "chamá-lo" para se pronunciar sobre o depoimento indirecto, quando tal não sucede relativamente à prova directa mesmo que julgado na ausência (v.g. art. 334.° do CPP) Além do mais, ainda que o arguido esteja presente ou compareça, este não tem - como sucede com as "pessoas determinadas" (testemunhas, assistentes ou partes civis) - o dever de prestar declarações. Na verdade o arguido, não tem o dever de colaboração com o tribunal para a descoberta da verdade porquanto não é "objecto de prova" que imponha a sua sujeição a todo e qualquer acto de prova, nem é "meio de prova" que consinta a dupla qualidade de arguido-testemunha.

            Aliás, em face do estatuto de arguido não é expectável que este sirva de "garante" (quer preste declarações quer se remeta ao silêncio) no que concerne à razão de ciência e credibilidade da testemunha de lhe ouvir-dizer; nem que se estabeleça uma imediação efectiva da prova (já que aquele não é meio de prova nem é desinteressado); nem que se observe (sem fazer-de-conta) o princípio do contraditório. 

Por conseguinte, face ao disposto no art. 129.° do CPP, revela-se inaplicável, quer sob o ponto de vista jurídico quer sob o ponto de vista operativo, a admissibilidade de o arguido funcionar como "testemunha-fonte" relativamente a quem alguém diz ter ouvido certas afirmações. O que jamais quer dizer que o arguido esteja impedido de se pronunciar, enquanto tal, pois que sempre o poderá fazer (sobretudo, como acto de defesa).

É, assim, evidente a convergência de conclusão sobre a inaplicabilidade do artigo 129 á figura do arguido quer se arranque do pressuposto do direito ao silêncio, quer se apele ao estatuto do arguido e á interpretação literal do preceito. Porém, atribuído ao direito ao silêncio a conformação positiva que acima se expôs, não se vislumbra qual o motivo pelo qual não seja susceptível de uma livre apreciação do juiz o depoimento produzido em relação ao que se “ouviu dizer” ao arguido, ou seja, não se alcança razão para se classificar como ilegal tal produção de prova 

            Apelando novamente ao autor supracitado sendo inaplicável o artigo 129 de duas uma: ou fica precludida a possibilidade de se utilizarem os depoimentos indirectos que reproduzam conversas com o arguido (via de exclusão); ou são os mesmos admitidos e valorados com fundamento diverso do art. 129.° do CPP (via de inclusão).

A primeira via mostra-se alheia a uma visão psico-sociológica da realidade que nos dá conta que muito do conhecimento das pessoas, em geral, resulta do que se ouviu às pessoas com quem se relacionam, não fosse a comunicação o grande "veículo" de ligação e regulação interpessoal! Não admitir no cenário da produção da prova o que o arguido disse após o crime, ou durante a sua execução ou mesmo em momento anterior - trazido à boca de cena por testemunhas indirectas e também, obviamente, pelo arguido se entender falar - levaria a que se julgasse um crime de "surdos-mudos" já que apenas a materialidade dos factos contariam.

Precisamente aqui entronca a outra via que, convocando princípios e regras gerais, sufraga a admissibilidade do meio indirecto de prova com a disposição do art. 125.° sobre a legalidade /liberdade de prova, uma vez que não se vê que o mesmo resulte proibido se a norma de condicionamento legal é inaplicável, sediando a valoração do mesmo no plano da livre apreciação da prova consagrada no art. 127º do CPP. Na verdade, julgo valer para os casos de conversas "informais", em geral, com o arguido, a posição adoptada pelo Tribunal Constitucional, expressa no Ac. 440/99, nos termos da qual "o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido".   

Há, assim, que concluir que o artigo 129º, nº 1 (conjugado com o artigo 128º, nº 1) do Código de Processo Penal, deve ser interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio e, ainda, que tal interpretação não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido.

                                                             *

VI

Arguido e Órgão de Policia Criminal

Uma outra questão suscitada centra-se no depoimento do órgão de polícia criminal que “ouviu dizer ao arguido”.

No caso vertente a questão fundamental é esta: a indicação feita á entidade policial do local onde foi praticado o crime de homicídio constitui um depoimento informal e insusceptível de ser valorado como prova. De uma forma um pouco mais abrangente a indicação feita á entidade policial do local onde colocou a bomba que vai deflagrar a curto espaço, matando transeuntes inocentes, constitui um depoimento prestado á revelia de principio fundamentais inerentes á sua defesa ou é uma indicação essencial em termos preventivos e de investigação criminal que vai muito para além do depoimento informal.

O depoimento do arguido pode assumir diversa conformação consoante o momento e as circunstâncias a que se reporta, ou seja, as denominadas conversas "informais" mantidas com o arguido reconduzem-se a três campos distintos: a.) em primeiro lugar situam-se aqueles casos que dizem respeito às afirmações percepcionadas pelo órgão de polícia criminal, enquanto cidadão comum, em momentos da vida quotidiana e nas exactas circunstâncias em que qualquer cidadão pode escutar tais declarações (porventura, sem saber do crime cometido ou em preparação e sem suspeita prévia do seu "interlocutor"); b) no outro extremo surgem as afirmações proferidas por ocasião ou por causa de actos processuais de recolha de declarações (maxime, à saída, no decurso ou antes do interrogatório); c.) por último surgem aqueles casos, de índole intermédia, relativos a conversas (indicações de localização de produto do crime ou de outros suspeitos, explicações do facto, etc.) tidas com os membros de um órgão de policia criminal no decurso de certos actos processuais de ordem material ou de investigação "no terreno" (buscas, vigilâncias, resgate de sequestrados, socorro às vítimas, etc.), bem como em acções de prevenção e manutenção da ordem pública e são aqueles confrontados com a ocorrência de um crime, em flagrante ou não.

Quanto ao primeiro leque de situações, não se vislumbra qualquer razão para não se considerar como válidos os argumentos expendidos a propósito da generalidade dos testemunhos indirectos em que se conclui pela inaplicabilidade da norma do art. 129.° quando a "pessoa-fonte" seja o arguido, valorando-se o depoimento "indirecto" do órgão de policia criminal, despojado dessa qualidade, como de qualquer testemunha.

Tal convicção é, aliás, reforçada em relação ás declarações e conduta percepcionadas ao arguido numa fase prévia á sua constituição como tal. Como refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/02/2007 pressuposto do direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido. A partir da constituição do arguido enquanto tal, ele assume um estatuto próprio, com deveres e direitos, entre os quais, o de não se auto-incriminar. A partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente.

Contudo, de forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia. Nesta fase não há ainda inquérito instaurado, não há ainda arguidos constituídos. É uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto. As informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo (pode até não vir a haver, como por exemplo se o crime for semi-público e não for apresentada queixa).

Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito.

O que o art. 129º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249º do CPP.

Na verdade, só a partir do momento em que a suspeita passa a ser razoavelmente fundada se impõe a suspensão imediata do acto e a constituição formal como arguido nos termos do artigo 59 nº1 do Código Penal. Até esse momento o processo de obtenção de diversas declarações, incluindo as do então suspeito, e posterior arguido, logra cobertura legal nos termos dos artigos 55 nº2 e 249 º1 e 2 a) e b) do mesmo diploma.

            A constituição de arguido constitui, assim, um momento, uma linha de fronteira na admissibilidade das denominadas “conversas informais”, pois que é a partir daí que as suas declarações só podem ser recolhidas, e valoradas, nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas, ou quaisquer outras provas, recolhidas informalmente. Consequentemente, não é admissível o depoimento que se reporte ao contacto entre a autoridade policial e o arguido durante o inquérito, quando há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais, testemunhando a “confissão” informal, ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual, para os actos a realizar no inquérito.

Precisa-se, assim, que a proibição do artigo 129 do Código Penal visa os testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, mas não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249º do CPP. Na verdade, nestas providências a autoridade policial procede a diligências investigatórias, no âmbito do inquérito, em relação a infracção de que teve noticia.

Sobre a mesma incumbe o dever de, nos termos do art. 249º do CPP, praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime”. Estas “providências cautelares” são fundamentais para investigar a infracção, para que essa investigação tenha sucesso. E daí que a autoridade policial deva praticá-las mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária para investigar (art. 249º, nº 1).

Nessa fase não há ainda inquérito instaurado, não há ainda arguidos constituídos. É uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto. As informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito.

A questão do depoimento de autoridades policiais em relação a declarações prestadas no processo não tem relevância prática em virtude da proibição de produção de prova a que se reporta o artigo 356 nº7 do CPP

Relativamente ás restantes situações de intervenção de órgãos de policia criminal importa precisar que a admissibilidade do testemunho do agente do órgão de policia criminal está directamente conexionada com o nº 7 do artigo 357 do Código de Processo Penal. Consequentemente, importa que se convoquem os conceitos de “declarações formais” e “conversas informais” como termos da equação a formular

 Como refere Damião da Cunha (Revista Portuguesa de Ciência Criminal ano 7 fasc 3 pag 426 e seg.) não parece ser possível conceber a existência processual de «conversas informais» entre o arguido e qualquer entidade processual. A função dos órgãos de polícia criminal é o de importar para o processo todos os elementos que lhes advenham de declarações do arguido - além de que vale aqui o princípio “quod non est in auto, non est in mundo” ; pela especial posição processual do arguido não pode, no que toca às suas declarações, subsistir qualquer diferenciação de importância e, por isso, as «conversas» serão sempre formais.

 Afirma o mesmo Autor que …aliás, a especial posição dos órgãos de polícia criminal - nomeadamente o facto de actuarem na dependência funcional e sob directa direcção do Ministério Público - implica uma impossibilidade conatural de se aceitarem conversas informais (e, para mais, um poder de definição quanto à (in)formalidade de tais «conversas). De facto, se, como legalmente é admitido, ou até mesmo imposto, fosse o Ministério Público a recolher, na fase de inquérito, as declarações do arguido, parece óbvio que, nesta hipótese, não subsistiriam dúvidas quanto ao carácter formal das declarações (de resto, mesmo que por hipótese académica existissem conversas informais com o Ministério Público, nunca este iria prestar testemunho sobre o conteúdo daquelas). Ora, devendo os órgãos de polícia criminal pautar-se, na sua actuação, tanto quanto possível pelos mesmos critérios por que se pauta o Ministério Público, parece claro que não podem aqueles deter poderes que a este (como de resto ao Juiz de instrução, na fase de instrução) não cabem.

A possibilidade conferida aos órgãos de polícia criminal de poderem (excepto se deliberadamente pretenderem escapar à proibição de leitura) não formalizar declarações prestadas pelo arguido, atinge também a posição processual do próprio arguido.

Efectivamente só podem ser consideradas as declarações do arguido prestadas, no âmbito e decurso de certo processo, em acto próprio para o efeito, de resto, redigidas em auto, de onde se possa extrair ilações sobre a regularidade do procedimento (v.g. se o arguido foi advertido de que tem, entre outros, o direito ao silêncio, se foi assistido por defensor; se lhe foram comunicados os motivos da detenção e os factos que se lhe imputam, etc.) e a versão dos factos que melhor se ajusta à sua defesa, naquela altura.

 Decorre do exposto que o agente de órgão de policia criminal que tiver recebido declarações, e tais declarações são aquelas a que se reporta o procedimento formal e processual adequado, não pode ser inquirido como testemunhas sobre o seu conteúdo- artigo 356 nº 7 do CPP. Porém, e aqui reside uma destrinça essencial na proibição em causa, falamos das declarações formais que estão no processo, ou das declarações informais, que, devendo estar no processo por imposição processual legal, efectivamente não estão e, como tal, inexistem.

Todavia, além destas situações existe uma ampla probabilidade de situações e realidades extra processuais em que a colaboração do arguido por actos, e palavras, surge como instrumento adequado da investigação criminal e, muitas vezes integrado num acto processual válido e relevante. Para Damião da Cunha (ibidem) a proibição de reprodução de afirmações do arguido tem um conteúdo amplo que exclui todas as situações de declaração formal, ou informal, (No mesmo sentido Eurico Balbino Duarte-Prova Criminal e Direito de Defesa, estudos sobre a Teoria da Prova e Garantias de Defesa em Processo Criminal pag 58 e seg).

É outra a perspectiva de Adérito Teixeira (ibidem) para quem, e contrariamente à presunção de inocência que tem uma dimensão endoprocessual e outra extra-processual, o direito ao silêncio (e seus efeitos) vale apenas no âmbito do processo. Fora deste e dos seus actos, o silêncio ou a declaração não tem aquela tutela pois que rege a liberdade de expressão e inerente responsabilidade do que se afirma, ou deixa de afirmar, para todas as pessoas quer estejam quer não estejam constituídas arguidas. Adianta o mesmo Autor que, de outro modo, a prática de um crime transformar-se-ía num acto constitutivo de direitos (de liberdade de expressão) em escala a que os demais cidadãos só poderiam aspirar colocando-se em situação idêntica; e, no plano da investigação criminal, quaisquer afirmações - do tipo "matei" e "vou queimar o corpo", ou "roubei", ou "vendi droga", etc. - deveriam ser tomadas como declarações não sérias, porquanto, no limite, não poderiam inserir-se processualmente como princípio de prova que conduz a outras provas e se transmitem umas e outras às fases posteriores do processo (à luz de princípios da conservação da prova ou de força consumptiva de decisões da autoridade judiciária). 

Nesta perspectiva não se vislumbra, assim, qualquer impedimento, ou proibição de depoimento que incide sobre aspectos, orais ou materiais, des­critivos ou impressivos, narrativos ou conclusivos, que a lei não obriga a estar registados em auto ou, ainda, relativamente a diligências ou meios de obtenção de prova que tenham autonomia material e jurídica, quer quanto ao meio de prova que geram (v.g. escuta telefónica de declarações de arguido, transcritas, cuja leitura do auto é permitida, não obstante no original da declaração estar a oralidade), bem como quanto a afirmações não retratáveis em auto que o arguido tenha proferido na ocasião da realização de diligências e meios de obtenção de prova (e que contextualizam ou explicitam uma infinitude de pormenores, aparentemente, de ínfima relevância).

            Efectivamente, as questões mais polémicas relacionadas com as declarações do arguido inscrevem-se neste terceiro quadro de situações assinaladas. Relativamente ás mesmas, desde que inexista obrigação legal de redução a escrito, um conjunto de actos de investigação e as afirmações do arguido "de contextualização" - quer posteriores à perpetração do crime, quer concomitantes, quer anteriores -, não se vislumbra razão bastante para não poderem ser reproduzidas por agente de órgãos de policia criminal (ou de qualquer outra pessoa), sendo certo que não inte­gram a proibição do nº 7 do art. 356.° do CPP. De outro modo, a inadmissibilidade de relatos sobre informações, ou afirmações, pres­tadas por arguidos, perante órgão de policia criminal, em sede de meio processual de prova com autonomia ou quando do depoimento de órgão de policia criminal sobre a descrição do modo como os mesmos meios de obtenção de prova decorreram - em favor, ou em desfavor, da versão daqueles -, levaria a tornar o depoimento do órgão de policia criminal um delicado exercício de “gincana” verbal ou filigrana juridica, fazendo perder a compreensão e sentido do seu depoimento.

Assumiria contornos de irracionalidade a proibição de depoimento sobre elementos essenciais da realidade sociológica a que o mesmo depoimento se reporta e nas quais a informação ou a afirmação produzidas pelo arguido teve um contributo (v.g a informação do arguido sobre o local onde se encontra, em perigo de vida, o raptado; a informação do arguido sobre o local onde se encontra a bomba prestes a explodir) igualmente é exacto que a mesma proibição, segmentando o conhecimento numa visão processual atomística e caótica, negaria a descoberta da verdade material a pretexto de um invocado direito ao silêncio numa dimensão negativa do mesmo que, para além de insustentável em termos constitucionais, colocaria em causa a funcionalidade do processo penal

A propósito da interpretação da lei, alargando o domínio da proibição a qualquer noticia que tenha a sua génese na pessoa do arguido o mesmo Adérito Teixeira chama á colação o exemplo da alegação do arguido que, sobre uma busca sem mandado, diz que não deu consentimento, nem escrito nem oral, podendo os agentes do OPC explicitarem o circunstancialismo em que aquele foi prestado; ou tendo sido o arguido, no rescaldo do crime, a dar a indicação à polícia (ou a outra pessoa) onde estava a droga ou o cadáver, objecto da conduta criminosa e determinante para a respectiva localização, não relevar como prova aquela afirmação, reproduzida por via indirecta perante o silêncio do arguido, poder-se-ia, estranhamente, discutir um tráfico ou um homicídio em que fosse necessário ficcionar a inexistência de produto estupefaciente ou de cadáver, atento o efeito-à-distância.

É exactamente neste sendo que se deve interpretar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/01/2005 quando refere que..Nesta perspectiva de compreensão, e vista a dimensão da reconstituição do facto como meio de prova autonomamente adquirido para o processo (artigo 150º do CPP), e a integração (ou confundibilidade) na concretização da reconstituição de todas as contribuições parcelares, incluindo da arguido, que permitiram, em concreto, os termos em que a reconstituição decorreu e os respectivos resultados, os órgãos de polícia criminal que tenham acompanhado a reconstituição podem prestar declarações sobre os modo e os termos em que decorreu; tais declarações referem-se a elementos que ganham autonomia, e como tal diversos das declarações do arguido ou de outros intervenientes no acto. Todavia - adverte-se - por força da necessária documentação processual da reconstituição, este meio deve bastar-se por si próprio enquanto meio de prova adquirido para o processo, e deve dispensar, no rigor das coisas, confirmações ou adjunções complementares¸ não estando, no entanto excluído que os intervenientes, possam prestar esclarecimentos sobre a concreta natureza e os precisos termos em que se decorreu a reconstituição.(no mesmo sentido Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26/06/2006 e 22/04/2004) 

Conclui-se, assim, que o relato de agentes dos órgãos de policia criminal sobre afirmações e contribuições informatórias do arguido - tal como de factos, gestos, silêncios, reacções, etc - de que tomaram conhecimento fora do âmbito de diligências de prova produzidas sob a égide da oralidade (interrogatórios, acareações etc.) e que não o devessem ser sobre tal formalismo bem como no âmbito das demais diligências, actos de investigação e meios de obtenção de prova (actos de investigação proactiva, buscas e revistas, exames ao lugar do crime, reconstituição do crime, reconhecimentos presenciais, entregas controladas, etc) que tenham autonomia técnico-jurídica constituem depoimento válido e eficaz por se mostrarem alheias ao âmbito de tutela dos artigos 129 e 357 do Código.

            No caso vertente a indicação feita pelos arguidos á entidade policial sobre o local onde ocorreu o homicídio poderia, e deveria, ser valorada em sede de depoimento da mesma entidade policial a quem tal depoimento foi prestado pelo que tal a sua não valoração poderia consubstanciar um erro notório na apreciação da prova não fora o caso de tal interpretação restritiva constante da decisão de primeira instância, e confirmada pelo Tribunal da Relação, ter subjacente a primeira decisão, transitada em julgado, do Tribunal de Relação de Guimarães.

 VI

Invoca o recorrente que as testemunhas DD e CC não foram constituídos como arguidos devendo sê-lo, tendo actuado como agentes provocadores.

Existe alguma confusão na interpelação do recorrente. Na verdade, como refere Fernanda Palma, o agente provocador é o verdadeiro instigador de um crime tentado, ou consumado, praticado com a intenção de obter provas contra alguém que tem uma carreira criminosa e, provavelmente, voltará a praticar crimes.

O que é inaceitável na figura do agente provocador é o facto de, sem ele, o crime não se verificar naquelas condições de tempo, lugar e modo. Ao agente provocador não falta a intenção de praticar o crime, pelo menos na forma tentada. O seu dolo não é afastado pelo facto de, em última análise, pretender a punição do delinquente que é autor material do crime.
            A fronteira entre agente encoberto e agente provocador pode parecer ténue, mas é inultrapassável. Prevenir e provar um crime ou desencadeá-lo em nome de uma possibilidade futura são realidades diversas.

Importa traçar uma distinção entre aquele que por vezes com risco da própria contribui para eficiência do combate á criminalidade e aquele que provoca o próprio crime e a subtil aproximação que, por vezes alguns autores ensaiam, é confundir realidades diametralmente opostas[4]

Como refere Costa Andrade (Costa Andrade in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal pag 220) “homens de confiança” são todas as testemunhas que colaboram com as instâncias formais de perseguição penal, tendo como contrapartida a promessa da confidencialidade da sua identidade e actividade. Cabem aqui tantos os particulares como os agentes das instâncias formais, nomeadamente da polícia (Untergrundfahnder, under cover agent, agentes encobertos ou infiltrados), que disfarçadamente se introduzem naquele submundo ou com ele entram em contacto; e quer se limitem à recolha de informação (Polizeíspitzel, detection), quer vão ao ponto de provocar eles próprios a prática do crime (polizeiliche Lopckspitzel, agent provocateur, entrapment)»

O agente provocador convence outrem ao crime, determina a vontade para o acto ilícito; o agente infiltrado opera no sentido de ganhar a confiança do suspeito e, na base dessa confiança, mantém-se a par do comportamento daquele, praticando, se necessário, actos de execução em integração do seu plano, mas não assume o papel de instigador; o agente encoberto aparece com uma posição exterior ao crime e ao criminoso, ou seja, nem provoca nem se insere no âmbito das relações de confiança do investigado. Só o agente provocador se inclui nos "meios enganosos" a que se refere a al. a), do n.º 2, do art. 126º, do CPP[6].

Como traço de distintivo destas figuras apresenta-se a passividade do agente infiltrado, ou encoberto, que contrasta com a iniciativa criminosa do agente provocador.

O recurso à figura do agente encoberto é legalmente possível entre nós desde que feito dentro dos limites fixados pela Lei n.° 101/2001 de 25 de Agosto.

Já o recurso à figura do agente provocador é veementemente rejeitado quer pela doutrina, quer pela jurisprudência na esteira daquela, por constituir um meio enganoso de obtenção de prova (artigo 126º/2 a) do CPP).

É, assim, liminar a conclusão de que para que possamos afirmar que estamos perante a figura do agente provocador é imperioso que esta pessoa se apresente aos olhos do agente criminoso como alguém da sua confiança, não desconfiando em momento algum que a mesma seja um agente da autoridade ou alguém a seu mando e que e com a sua actuação que é apanágio do agente infiltrado, instigue o agente a cometer o crime, que de outra forma não seria cometido».

Na hipótese vertente a materialidade considerada provada em circunstância alguma permite concluir que da parte das testemunhas em causa existiu esse convite, ou instigação, á prática do crime pelo que não estão verificadas as características básicas associadas à actuação do agente provocador. Como bem se nota na matéria considerada provada os crimes imputados resulta de um acordo préviamente desenhado entre os arguidos. Represtinando os factos considerados provados:

Os arguidos, ao agirem como se descreve em A), actuaram com o propósito de, sob a ameaça de atentarem contra a vida ou integridade física da EE, obrigarem esta a acompanhá-los para, dessa forma, a obrigarem a prostituir-se.

Os arguidos sabiam desde o dia 25 de Fevereiro de 2010, quando levaram a EE, contra a sua vontade, que, sob a ameaça de atentarem contra a sua vida ou integridade física e, durante o período em que a menor JJ esteve na companhia da mãe, contra a vida ou integridade física da menor, iriam obrigar aquela EE a prostituir-se e a entregar-lhes dinheiro e bens que possuísse.

Os arguidos sentiram prazer na prática dos factos acima descritos em A) a I) e, com eles, quiseram infligir à EE o maior sofrimento possível, quer físico quer psicológico.

Os arguidos tomaram a decisão de matar a EE, pelo menos, durante a madrugada do dia 27.02.05.

Agiram sempre de comum acordo e em conjugação de esforços segundo um plano traçado entre todos.

Não se rejeita a perplexidade, e, bem pelo contrário, se questiona a circunstância de a actuação destas duas testemunhas-II e NN- suscitar grande ambivalência, bem expressa nas circunstância de as mesmas terem um contacto persistente com a vitima que se encontrava numa situação de privação de liberdade e coacção e sujeita a um tratamento degradante da sua condição humana.

As mesmas testemunhas são tratadas, processualmente, em termos assépticos como se o estado em que se encontrava a vítima, objecto de um crime permanente de rapto, fosse algo de perfeitamente exógeno e eventualmente revestido de normalidade. A violência física exercida sobre a vítima, e perfeitamente visível, e sua sujeição a uma privação de liberdade quando da sua sujeição a um trato sexual simultâneo com estas duas testemunhas é ignorado em sede acusatória.

Aliás, bem aprofundadas as coisas, o próprio comportamento do marido da vítima oferece as maiores reservas sendo certo que num primeiro momento não só permitiu o rapto da sua esposa como mentiu sobre as circunstâncias em que o mesmo ocorreu.

Tais circunstâncias para além de demonstrarem a baixeza de carácter e a natureza anómica da personalidade de alguns dos intervenientes do drama vivido pela vítima não nos deixa, todavia, margem para a ensaiada tentativa de invocação de proibição de prova pretendida pelo recorrente.

É certo que o recorrente pretende que aquelas testemunhas deveriam ser arguidos e, caso o fossem, nunca poderiam depor contra os recorrentes. Tal afirmação incorre em dois erros: em primeiro lugar não é ao tribunal de julgamento que compete apreciar sobre os juízos de legalidade e oportunidade formulados por quem, legalmente, detem o exercício da acção penal e, por outro lado o facto de alguém ser coarguido não impede a prestação de depoimento.

Esclarecendo o nosso pensamento a propósito desta ultima afirmação permitimo-nos revisitar o que a propósito escrevemos oportunamente em decisão deste Supremo tribunal de Justiça:

O artigo 133  alude, nos seus números 1 e 2, ao conceito “co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos” e “arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo”. A situação de co-arguido   resulta da circunstância de se responder criminalmente com juntamente com outrem que detém a mesma qualidade A conexão processual a que se alude resulta da aplicação do artigo 24 do Código de Processo Penal.

 A separação de processos, que fundamenta o impedimento constante do número 2 do normativo é aquela que radica na aplicação do artigo 30 mesmo diploma. Neste último caso, de separação de processos, é condição de admissibilidade do depoimento a circunstância de existir um consentimento expresso por parte da potencial testemunha (e arguido no processo separado).

Na verdade, enquanto que, no caso de conexão, o impedimento não impede a prestação de depoimento como arguido, no caso de separação tal já não é admissível. Subjacente ao impedimento decretado pela norma está a incompatibilidade natural entre as duas posições processuais, o que resulta do respectivo estatuto jurídico.

                                                            *

Como refere Medina de Seiça (O Conhecimento Probatório do Arguido pag 35 e seguintes) a justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha encontra a sua razão de ser essencial na ideia de protecção do próprio co-arguido. Fazendo apelo á formulação do Supremo Tribunal Federal alemão (BGH), «não é nenhum princípio da ordenação processual que a verdade tenha de ser investigada a todo o preço», pelo que se sublinha que um dos mais marcantes limites à investigação passa pelo respeito da liberdade de declaração que o Estado tem de reconhecer aos diversos participantes processuais, sob pena de a "verdade" alcançada ser comunitariamente insuportável.

 A proibição de o arguido ser ouvido como testemunha, enquanto limitação ou exclusão dos mecanismos de constrangimento inerentes à prova testemunhal (juramento, dever de responder com verdade penalmente sancionado), constitui uma expressão do privilégio contra a auto-incriminaçáo, como decorre do art. 14.°, n° 3, alínea g), do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 onde se refere que «qualquer pessoa acusada de uma infracção criminal terá direito, em plena igualdade, pelo menos às seguintes garantias: ( ... ) a não ser forçada a testemunhar contra si própria ou a confessar-se culpada».

 O impedimento expresso no artigo, adianta o Autor citado, não se traduz, apenas, na limitação ao testemunho contra si próprio por parte do arguido, na medida em que o seu direito a não responder abrange todas as perguntas que lhe sejam feitas, independentemente do conteúdo intrínseco da resposta. O alargamento do impedimento – ou seja, o alargamento do direito do arguido ao silêncio e a não ser punido por crime de falsas declarações - ao próprio co-arguido emerge desta matriz da garantia contra a auto-incriminação, enquanto expressão privilegiada do direito de defesa, entendida neste contexto como a exigência de assegurar ao co-arguido o direito a «defender-se não provando através do testemunho sobre facto de outro, circunstância que poderia comprometer a própria posição processual».Consubstancia-se aqui, tal como no direito ao silêncio do arguido tout court, a consagração do impedimento representa uma renúncia por parte do Estado à «colaboração forçada» na investigação e condenação de factos criminosos de quem é alvo precisamente dessa investigação.

                                                             *

 Importa sublinhar a importância da diferença de estatutos pois que, enquanto o arguido dispõe do direito ao silêncio-art. 61.ºnº1 d); não está obrigado a responder, pelo que a sua recusa não configura o crime de desobediência p. e p. art.348ºCP e não está obrigado a responder com verdade, não preenchendo com tal conduta a tipicidade do crime de falsas declarações p. e p. art.359º do Código Penal a testemunha não pode recusar-se a responder, a menos que alegue que da resposta pode resultar a sua responsabilidade penal-art.132º nº2-e tem o dever de responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas-art. 132.ºnº1d) CPP

Segundo Medina de Seiça (ibidem pag 35 e seg) o arguido dispõe de um completo direito ao silêncio relativamente aos factos objecto da sua imputação (art. 61º, nº 1, alínea c)), o que constitui uma das mais acabadas expressões das suas garantias de defesa (reconhecimento do direito a não ser obrigado a contribuir para a sua própria condenação), e que a lei tutela cominando uma drástica proibição de vaio ração desfavorável do silêncio total (art. 343º nº 1) ou parcial (art. 345.°, nº 1). Diversamente, recai sobre a testemunha o dever de «responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas» (art. 132.°, nº 1, alínea d). Isto é, a testemunha deve prestar toda a informação que possuir relacionada com o tema do interrogatório e que tenha significado para a decisão. E embora tal dever cesse quando a testemunha «alegar que das respostas resulta a sua responsabilização penal» (art. 132.°, nº 2), a garantia resultante deste preceito não é equiparável à do arguido:

 Acentue-se que a testemunha apenas pode invocar que existem segmentos de declaração que a podem fazer incorrer em responsabilidade penal.

Consequentemente, existe uma situação de desvantagem para a testemunha que «não pode simplesmente recusar a resposta» sem fazer apelo à emergência do perigo que da sua resposta pode resultar para a sua posição em termos de responsabilização criminal, ou seja, sem publicitar esse perigo que é sintoma de suspeita.

 Por outro lado o direito a recusar a resposta encontra-se dependente de um conjunto de pressupostos que traduz a diversidade de posições jurídicas entre arguido e testemunha. Assim, diversamente do que sucede para o arguido - que goza de um direito ao silêncio - a garantia da testemunha contra a auto-incriminação, não permite, regra geral, recusar o depoimento na sua totalidade, mas tão só relativamente a perguntas determinadas pois que o exercício do direito de recusar a resposta está sempre limitado às perguntas, ou temas, que possam fazer nascer o perigo da sua responsabilidade penal. Por seu turno o arguido pode inclusive nada declarar sobre factos que lhe sejam favoráveis.

                                                           *

Numa síntese das questões suscitadas pela aplicação deste segmento da norma refere Medina de Seiça (obra citada pag 66) que em primeiro lugar o âmbito do impedimento deve determinar-se atendendo ao nexo existente entre as imputações dos vários arguidos (hoc sensu, conceito material de co-arguido). Nexo que pode afirmar-se quando as imputações digam respeito ao mesmo crime ou a crime conexo (cf. art. 133.°, nº 2), independentemente de entre os processos dos arguidos existir ou ter existido comunhão processual. Para a determinação do critério delimitador de crime conexo, que deve perspectivar-se considerando a razão de ser do impedimento, é metodologicamente operatório o recurso aos casos de conexão de crimes previstos no art. 24.° para a chamada conexão de processos e que constituem o elemento integrador normal do conceito de crime conexo para efeitos do impedimento. Podem, no entanto, ocorrer outras situações que, não determinando, embora, a conexão de processos nos termos do art. 24.°, justifiquem a aplicação do impedimento. Por último, nos casos em que existe comunhão processual entre os arguidos, estes não se encontram impedidos de testemunhar relativamente aos factos autónomos de outro arguido, isto é, factos que não apresentem o nexo determinante do impedimento (o mesmo crime ou crime conexo).

Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional  TC 304/2004 “A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial uma ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento … que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare, o também chamado privilégio contra a auto-incriminação.”

Existe, assim, manifesto lapso na argumentação expendida pelo arguido pois que, sendo certo que o mesmo não indica o processo conexo em que se fundamenta para sustentar a sua arguição, também é exacto que, se existisse tal conexão de processos, o impedimento a que alude o artigo 133 do Código de Processo Penal é uma garantia do próprio arguido e um aval da liberdade do seu depoimento. A eventual existência de uma proibição de prova sempre estaria suprida pelo consentimento na prestação de declarações na qualidade de testemunha-artigo 126 nº3 do diploma citado.

 Saliente-se aliás que, em nosso entender, a pendência de processo-crime num outro país é irrelevante para o funcionamento da referida proibição de prova pois que as razões que lhe estão subjacentes não têm aplicabilidade nessa circunstância.

 

Aliás, admitindo, por mera hipótese, a existência de declarações de co arguido nem por isso teriam validade as referências do arguido apostrofando por uma limitação do valor probatório de tais declarações. Na verdade conforme já referimos em anteriores decisões deste Supremo Tribunal de Justiça relativamente ao valor probatório das declarações do arguido importa referir o teor de algum posicionamento doutrinal que se suscitou anteriormente á Lei 48/2007 sobre o valor das declarações do arguido como meio de prova.

Assim, para Rodrigo Santiago “as declarações assim prestadas por um ou mais dos co-arguidos – na decorrência, repete-se, de co-arguição – não podem validamente ser assumidas como meio de prova relativamente aos outros; servindo tais declarações, única e exclusivamente, como meio de defesa do arguido ou arguidos que as tiverem prestado – art.º 343.º, n.º 2 do CPP” (Reflexões sobre as declarações do arguido RPCC Ano 4 fascículo 1 página 27). Arrancava tal assunção opiniativa de um eixo fundamental:-a consideração de que o silêncio do arguido não poderia, em circunstância alguma, desfavorecê-lo. Todavia, o mesmo silêncio acabaria por prejudicar tal sujeito processual de forma efectiva, caso se aceitassem, como meio de prova as declarações do co-arguido, porquanto se o mesmo estivesse disposto a declarar, bem poderia ter abalado a eficácia da convicção atribuída a quem, com verdade, ou contra a verdade, concordou em prestar declarações. Na mesma lógica argumentativa se referia que o silêncio nunca podia desfavorecer o arguido sendo o exercício do direito ao silêncio a concretização do princípio da presunção de inocência ligado agora directamente ao princípio da preservação da dignidade pessoal.

A culminar tal raciocínio afirmava-se que, atribuindo a lei a faculdade do arguido não estar presente em julgamento, a prestação de declarações por parte dos co-arguidos presentes não poderia ser contraditada pelos ausentes. Assim, segundo os defensores de tal posição poder-se-ia afirmar a validade das seguintes regras processuais em relação aos depoimentos dos arguidos:

1-Os co-arguidos estão reciprocamente impedidos de ser testemunhas, adentro do mesmo processo, em caso de co-arguição e nos limites desta, como decorre do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 133 do Código de Processo Penal;

2-Não estão, todavia, impedidos de produzir prova - a chamada prova <por declarações do arguido> - mesmo no decurso da audiência de julgamento, nos termos dos artigos 140 e seguintes, como decorre, entre outros, do disposto nos artigos 343 e 345, todos do Código de Processo Pena. Porém,

3-as declarações assim prestadas, maxime as que o forem em audiência de julgamento, por um ou mais dos co-arguidos - na recorrência, repete-se, de coarguição - não podem validamente ser assumidas como meio de prova relativamente aos outros,

4-servindo tais declarações, no âmbito da coarguição, única e exclusivamente como meio de defesa pessoal do arguido ou arguidos que as tiverem prestado artigo 343 n º 2 do Código de Processo Penal. Logo,

5-se da motivação da sentença, nos termos do artigo 374. o, n, °2, in fine, do referido diploma, constar que as declarações dos co-arguidos - verificados os supostos premonidos nas conclusões 1ª e 3ª, isto é, a circunstância da coarguição - contribuíram irrestritamente para a formação da convicção do Tribunal, verifica-se uma situação de nulidade do julgamento, por violação do disposto nos artigos 323 alínea j) e 327 n.° 2, entre outros, todos do Código de Processo Penal. (Confrontar por todos R.Santiago -local citado)

Numa outra linha de orientação, menos assertiva, se situavam aqueles que integram as declarações do arguido num "tertium genus", admitindo a sua valoração, desde que acompanhada por outros meios de prova.

A este propósito, Teresa Beleza refere que o depoimento do co-arguido, não sendo, em abstracto, uma prova proibida em Direito Português, é no entanto um meio de prova particularmente frágil, que não deve ser considerado suficiente para basear uma pronuncia; muito menos para sustentar uma condenação" (in Rev. Min. Publico, n°74, Pág.58). Outros autores entendiam que as declarações do co-réu deviam ser corroboradas, isto é o julgador teria de se socorrer de outros meios de prova que lhe permitiam confirmar a credibilidade das mesmas ('Medina de Seiça, in O conhecimento probatório do co-arguido Pág 212 e segs.) concluindo, também, que, quando as declarações dos réus, referentes a co-réus não se encontravam corroboradas por qualquer outra prova o tribunal deveria entender que não constituíam prova suficiente dos factos relatados, dando-os como não provados (José Luis Vasquez Sotelo, in Presuncion de Inocencia del Imputado e Intima Conviccion del Tribunal pag 134).”

O eixo do posicionamento jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça radica na ideia de que, fundamentalmente, o que está em causa é a posição interessada do arguido, que, assumido o seu impedimento para depor como testemunha, não obsta a que preste declarações, nomeadamente para esclarecer o tribunal sobre a sua responsabilidade criminal numa postura de colaboração na procura da verdade material. Sendo um meio de prova legal cuja admissibilidade se inscreve no artigo 125 do Código de Processo Penal as declarações do co-arguido podem, e devem, ser valoradas no processo.

Como referem Leal Henriques e Simas Santos (Código de Processo Penal Anotado I volume pag 947) “Parece-nos, contudo, que a interpretação correcta deverá repousar na consideração de que o arguido, só porque o é, não estará sem mais impedido de prestar declarações no próprio processo em que se encontra envolvido. O legislador pretendeu, em primeira linha, construir no Código a figura do arguido, assegurando-lhe todos os meios de defesa mesmo através de si próprio, pelo que, se o entender necessário à sua defesa, poderá usar o amplo direito que lhe assiste a ser ouvido. E a defesa desta posição leva a que o arguido ou co-arguido não possam ser ouvidos no mesmo processo ou processos conexos como testemunhas, ou seja como intervenientes que não só são obrigados a prestar declarações, como a fazê-lo com verdade (art.º 91.º) por tal ser incompatível com a sua posição de interessados no desfecho do processo e com o seu direito ao silêncio. …..De notar que no mesmo n.º 1 deste artigo, nas als. b) e c), e por identidade (parcial) de razões, também os assistentes e as partes civis estão impedidos de depor como testemunhas, interessados que também são no mesmo desfecho.

É assim a especial posição do arguido que dita o impedimento do mesmo a depor como testemunha dado o seu estatuto especial, nada porém obstando a que preste declarações, nomeadamente para se desonerar ou atenuar a sua responsabilidade.

Subscrevemos tal entendimento adiantando ainda que, em nosso entender, importa precisar alguns conceitos. Na verdade uma coisa são proibições de prova que são verdadeiros limites á descoberta da verdade, barreiras colocadas á determinação dos factos que constituem objecto do processo e outra, totalmente distinta a valoração da prova. Nesta ultima está implícita uma apreciação da credibilidade da prova produzida em termos legais.

Portanto a questão que se coloca é tão só saber se é válida processualmente a admissibilidade do depoimento do arguido que incrimina os restantes co-arguidos. A resposta é, quanto a nós, frontalmente afirmativa e dimana desde logo da regra do artigo 125 do Código Penal que dispõe que são admitidas as provas que não forem proibidas por lei; por outro lado não se sente qualquer apoio numa interpretação rebuscada da Constituição que aponte a inconstitucionalidade de uma tal interpretação.

Bem pelo contrário, a consideração de que o depoimento do arguido que é, antes do mais, um cidadão no pleno uso dos seus direitos, reveste á partida de uma “capitis diminutio” só pelo facto de ser arguido ofende o principio constitucional da igualdade dos cidadãos. Portanto a questão que se coloca neste caso é, como em relação a todos os meios de prova, uma questão de credibilidade do depoimento do co-arguido.

Esta credibilidade só pode ser apreciada em concreto face ás circunstâncias em que é produzida. O que não é admissível é a criação de regras abstractas de apreciação da credibilidade retornando ao sistema da prova tarifada, opção desejada pelo sistema inquisitorial. Assim, dizer em abstracto e genericamente que o depoimento do coarguido só é válido se for acompanhado de outro meio de prova é uma subversão das regras da produção de prova sem qualquer apoio na letra ou no espírito da lei.

A admissibilidade do depoimento do arguido como meio de prova em relação aos demais coarguidos não colide minimamente com o catálogo de direitos que integram o estatuto inerente àquela situação e está adequada á prossecução de legítimos, e relevantes, objectivos de política criminal, nomeadamente no que toca á luta contra criminalidade organizada.

 Não está em causa o principio do “nemo tenetur se ipsum accusare” que deriva desde logo da tutela jurídico constitucional de valores ou direitos fundamentais como a dignidade humana, a liberdade de acção e a presunção de inocência em geral referenciados como a matriz jurídico constitucional do principio. Para garantir a sua eficácia e reforçar a consistência do seu conteúdo material a lei impõe às autoridades judiciárias, ou órgãos de policia criminal, perante os quais o arguido é chamado a prestar declarações o dever de esclarecimento ou advertência sobre os direitos decorrentes daquele principio (confr a v. g. arts. 58 nº2,. 61 nº1, aI. a); 141 nº 4. 343 nº1) e a sua eficácia é assegurada através da sanção da proibição de valoração.

A proibição de valoração fundada no respeito pelo silêncio que o arguido adoptou como a melhor estratégia processual e, como é evidente, não poderá repercutir-se na prova produzida por qualquer outro meio legal que venha a responsabilizar criminalmente o arguido. Seria necessária uma visão fundamentalista, e unilateral, do processo penal defender que o exercício do direito ao silêncio tivesse potencialidade para inquinar todo o meio de prova que, não obstante a sua regularidade, viesse a demonstrar a falência de tal estratégia de silêncio.

É evidente que, tal como em relação ao depoimento da vítima, é preciso ser muito cauteloso no momento de pronunciar uma condenação baseado somente na declaração do coarguido porque este pode ser impulsionado por razões aparentemente suspeitas tal como o anseio de obter um trato policial, ou judicial favorável, o ânimo de vingança, ódio ou ressentimento ou o interesse em auto exculpar-se mediante a incriminação de outro ou outros acusados. Para dissipar qualquer dessas suspeitas objectivas é razoável que o coarguido transmita algum dado externo que corrobore objectivamente a sua manifestação incriminatória com o que deixará de ser uma imputação meramente verbal e se converte numa declaração objectivada e superadora de uma eventual suspeita inicial que pesa contra a mesma. Assim, estamos em crer que é importante, em sede de credibilização do depoimento que o mesmo seja corroborado objectivamente.

Não se trata de, á partida, criar, em termos abstractos, uma exigência adicional ao depoimento do coarguido incriminatório dos restantes arguidos em termos de admissibilidade como meio de prova, entrando, como já se afirmou, num zona de uma inadmissível prova tarifada, mas sim de uma questão de credibilidade daquele depoimento em concreto.

Será, pois, a nível de valoração em concreto do depoimento produzido que se coloca a questão da relevância do depoimento do arguido. Como refere Carlos Clement Duran a imputação que um coacusado realiza contra outro coacusado tem o grande atractivo de que a faz quem aparece como um directo conhecedor do facto em juízo e incluso nada perde, ou ganha, ao incriminar o coacusado porque, assim, está a assumir a sua própria responsabilidade penal. Porém, pelo seu próprio peso específico já que as possibilidades defensivas do incriminado são reduzidas, importa um juízo crítico rigoroso sobre o valor de tal imputação e que permita concluir que a incriminação que a mesma contem não corresponde a um interesse espúrio. Compreende-se, assim, a importância que se atribui ao facto de tais manifestações incriminatórias estarem acompanhadas de algum dado ou elemento de carácter objectivo que lhes dê credibilidade e devam ser uniformes e reiteradas, evidenciando a credibilidade do acusado que as realiza.

Na esteira do Autor citado entendemos que a credibilidade do depoimento incriminatório do coarguido está na razão directa da ausência de motivos de incredibilidade subjectiva o que, na maioria dos casos, se reconduz á inexistência de motivos espúrios e á existência de uma auto inculpação. Igualmente assume uma real importância a concorrência de corroborações periféricas objectivas que demonstrem a verosimilhança da incriminação.

É evidente que tal argumentação será menos aceitável para quem, nos processos de grande criminalidade organizada, aposta numa defesa dos arguidos baseada no seu silêncio conjunto por uma questão de estratégia processual. Porém, estamos em crer que o eixo fundamental da mesma questão reside no facto de o depoimento incriminatório estar sujeito ás mesmas regras de outro e qualquer meio de prova, ou seja, a sua sujeição á regra da investigação; da livre apreciação e do princípio in dubio pro reo. Assegurado que esteja o funcionamento de tais princípios e o exercício do contraditório, nos termos preconizados pelo artigo 32 da Constituição, nenhum argumento subsiste á validade de tal meio de prova.

Aliás, a partir do momento em que o arguido depõe no exercício do seu direito de defesa é evidente que as suas palavras têm uma dupla conotação. Sendo emergentes de um inviolável direito de defesa elas são também um meio de prova. Não é possível, em termos práticos, separar aquela realidade concreta que é o depoimento do arguido considerando ora como um exercício legítimo de um direito ora como meio de prova.

Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 133/2010 de 14 de Abril de 2010  o arguido, cada arguido, é senhor da decisão, que deve ser inteiramente livre e esclarecida, de prestar ou não prestar declarações. E isso quer os factos lhe sejam imputados apenas a si, quer respeitem também a outros arguidos. Cada arguido decide, como melhor lhe convier, se presta ou não declarações. E se as prestar serão valoradas, quanto a todos os factos sobre que versem, de acordo com o princípio da liberdade objectiva do juízo de prova. De modo algum, a circunstância de as declarações de um dos arguidos poderem ser valoradas contra os demais afecta a livre decisão destes de optarem pelo silêncio. Pode é a estratégia destes revelar-se menos adequada, mas isso é inerente à normal evolução da produção de prova. Pode suceder com esse ou com qualquer outro meio de prova, que os arguidos que exercem o direito ao silêncio acabem por ver-se na necessidade ou conveniência de modificar essa opção face à evolução da produção da prova.

….Seguramente que, submetidas a estas exigências de exame crítico e fundamentação acrescidas, as declarações do co-arguido são meio probatório idóneo de um processo penal de uma sociedade democrática. O processo penal destina-se à realização da justiça penal e seria comunitariamente insuportável negar valor probatório a declarações provindas de quem tem com os factos em discussão maior proximidade apenas pela circunstância de ser seu autor um dos arguidos quando essas declarações são emitidas livremente e, num escrutínio particularmente exigente, se conclui não haver razão para duvidar da sua correspondência à realidade.       

Conclui a mesma decisão com a afirmação de que decisivo é que o arguido contra quem tais declarações sejam feitas valer não tenha sido impedido de submetê-las ao contraditório…..

 

Face ao exposto é manifesto face á materialidade considerada provada que inexiste qualquer fundamento para não aceitar o depoimento das testemunhas em causa e se, eventualmente, os contornos da sua intervenção concreta foram outros, que não os considerados na decisão recorrida, é certo que o recorrente teve oportunidade de o esclarecer, mas preferiu usar o essencial direito ao silêncio com as inerentes consequências.

VI

Como tivemos ocasião de afirmar em Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2010 a qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa.[5]

Refere Silva Dias [6] a verificação do exemplo padrão do n° 2 do art. 132° não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. Tal indício não mais do que isso e tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas.

Indubitavelmente que o apelo a exemplos padrão, como exemplificadores de uma intensidade qualitativa da culpa, reflecte uma técnica de tipos abertos que apenas pode ser compreendida dentro dos limites por alguma forma propostos pelo principio da legalidade.

Assim, o julgador deverá subsumir à qualificação do artigo em causa apenas as condutas que, embora não abrangidas pelo perfil especificado, normativamente correspondem á estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo padrão.

Outro entendimento não podia decorrer do pressuposto de que nos encontramos perante uma qualificação assente no tipo de culpa. O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da acção, quer numa motivação especialmente desprezível 

Nas palavras de Margarida Silva Pereira[7]  a caracterização do art. 132° do CP passa pela intersecção de três eixos fundamentais, a saber: a exclusão da aplicação automática; a aferição da qualificação por um critério de culpa no sentido de que se utilize os parâmetros consagrados e tipificados para aquilatar se no caso concreto existe de igual forma uma culpa especial e a permissão do recurso á analogia pois que ao juiz cabe sempre a possibilidade de construir em concreto os pressupostos da afirmação de uma especial censurabilidade, ou perversidade, os quais, embora não subsumíveis aos exemplos padrão, constituem, ainda assim, a demonstração de uma especial intensidade da culpa. Todavia, importa salientar que a valoração da culpa operada pelo art. 1321 do CP não aparece desligada de uma ilicitude qualitativamente mais intensa. Como refere a Autora citada o que o legislador comanda não é que se considere uma culpa sem suporte de ilicitude aumentada, mas sim que de tal ilicitude maior não se retirem quaisquer efeitos a menos que se acompanhe de um acréscimo de culpa. A ilicitude superior é aqui um pressuposto de culpa[8] 

 

O artigo 132 do Código Penal define o tipo de crime de homicídio qualificado constituindo uma forma agravada de crime em relação em relação ao tipo do artigo 131 do mesmo diploma. Objectivamente o tipo de crime assenta nos mesmos factos dos que estão previstos no artigo 131 funcionando a qualificação assente na combinação de um critério de culpa com a técnica dos exemplos padrão.

O critério da qualificação está definido no nº1 do artigo 132 e consiste em tirar a vida a outrem em circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade. Algumas das circunstâncias que são susceptíveis de revelar especial censurabilidade, ou perversidade, estão enumeradas no nº1 do mesmo normativo.

A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contem elementos da culpa que integra factores relativos á actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobe a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. Em suma, o agente actua culposamente quando realiza um facto ilícito podendo captar o efeito de chamada de atenção da norma na situação concreta em que desenvolveu a sua conduta e, possuindo uma capacidade suficiente de auto controlo, e poderia optar por uma alternativa de comportamento.

O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputará especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e á especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação  [9]

                                                                        *

Dentro da enumeração elencada pelo recorrente, susceptível de conduzir á qualificação no caso vertente, foi elencada a circunstância de o homicídio praticado se destinar a encobrir um outro crime ou assegurar a impunidade; o facto de ter sido praticado por mais duas pessoas e a frieza de ânimo com reflexão sobre os meios empregados ou persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas .

É evidente que, para além da dúvida sobre o tempo que mediou entre a decisão de matar e a consumação do acto ou sobre a finalidade pretendida, o que coloca em crise a qualificação á luz de tais alíneas, existe o factor objectivo, e inultrapassável, de o crime de homicídio ser cometido por três pessoas. Tal facto objectivo reveste-se, depois, e em concreto, de um índice de uma maior culpabilidade quando verificamos que a vítima era uma pessoa indefesa, e debilitada psicologicamente, autenticamente na mão dos seus algozes.

 Aliás, dentro do catálogo exemplificativo daquele normativo qualificativo é, quanto a nós, manifesto no caso vertente a existência de motivo fútil da prática do crime de homicídio que, aliás, se revela na própria inexistência de um motivo que á luz dos critérios de um cidadão normal expliquem o porquê da decisão de matar. Mesmo o assegurar da impunidade, ou o encobrimento de outro crime, é aqui um motivo fútil de ou de importância mínima.

Na verdade, o motivo "frívolo, leviano, a “ninharia” é o que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida", o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado; o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática.

O vector fulcral que identifica o "motivo fútil" não é pois tanto o que passe por dizer-se que, sendo ele de tão pouco ou imperceptível relevo, quase que pode nem chegar a ser motivo, mas sim, aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou:- no fundo, em essência, o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade, sendo que esta pressupõe um motivo por ela rotulável e que dela e por ela se envolva (Ac. do STJ de 4/10/2001, proc. nº 1675/01-5).

O crime de homicídio constitui uma violação do bem mais precioso de qualquer pessoa que é a própria vida e, como tal, será sempre inadmissível. Porém, o processo causal que leva á consumação de tal crime, isto é, a dinâmica de emoções e sentimentos que lhe esta associada assume uma policromia por tal forma plurifacetada que, necessariamente, terá de lhe corresponder uma maior, ou menor, compreensão da sua génese. Por outras palavras dir-se-á que, sendo sempre o objecto da mais viva reprovação jurídico criminal, o homicídio pode ter na sua origem uma situação que face á experiência comum poderia conduzir àquele desenlace (v.g. o confronto extremo para desagravo da honra: a defesa de bens que se consideram essenciais).

Porém, casos existem em que o homicídio surge numa situação em que de todo não era expectável porquanto os motivos que lhe estão na causa são mínimos; são razões menores. A prática do crime surge aqui como resultado de um processo pautado pela ilógica, ou de plena irracionalidade, em que uma culpa do agente acentuada por um alto grau de censurabilidade leva a tirar a vida a alguém por razões fúteis.

 O que está em causa é o primitivismo dos actos de quem retorna ás origens pré-históricas reconhecendo apenas a lei da força e do mais forte como único factor.

No caso vertente, inexistindo qualquer processo de perturbação psíquica susceptível de afectar a capacidade dos arguidos de reger a sua vontade de acordo com a realidade percepcionada é manifesto que o quadro factual descrito revela um primitivismo de reacções em que emergem as pulsões mais primárias perante uma vítima indefesa e prostrada.

Á face do cidadão médio o quadro descrito consubstancia uma a ausência de racionalidade ou, dito por outras palavras, uma ausência de um processo compreensível que minimamente convoque a lógica como explicação da conduta do arguido.

Está, assim, perfeitamente justificada a integração na alínea e) e h) do artigo 132 do Código Penal que, aliás, não consubstancia qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos imputados.

                                                                                                                                                                                            

VII

Especificamente em relação ao recurso da recorrente BB importa não esquecer a matéria de facto considerada provada e, nomeadamente que:

No dia 27 de Fevereiro de 2010, a hora não determinada mas que sabe situar-se após as 22h15, os três arguidos, depois de se terem deslocado com a EE até Vila Nova de Famalicão, levaram esta, de carro, até à ponte sobre o rio Cávado que une as localidades de Pousa e Areias de Vilar, em Barcelos.

Chegados à referida ponte, os três arguidos forçaram a EE a sair da viatura, agarram-na e deitaram-na da ponte abaixo, de uma altura de 13,5 metros relativamente ao leito do rio, não sem que antes a EE lhes pedisse que o não fizessem.

 Em virtude da descrita conduta dos arguidos, a EE morreu de asfixia mecânica por submersão.

Os arguidos quiseram matar a EE para evitar que a mesma os denunciasse, tendo decidido fazê-lo, pelo menos, durante a madrugada do dia 27.02.

Em todas as acções que os arguidos levaram a efeito, sabiam e quiseram agir do modo descrito.

……………...

Os arguidos tomaram a decisão de matar a EE, pelo menos, durante a madrugada do dia 27.02.05.

Agiram sempre de comum acordo e em conjugação de esforços segundo um plano traçado entre todos.

Sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Contrapõe a recorrente que:

. A recorrente limitou-se a acompanhar os arguidos, GG e AA, tendo também sido acompanhados pelos Srs. CC e DD, sem que estes tivessem sido acusados de qualquer tipo de crime (ambos possuem o estatuto de testemunhas de acusação nos presentes autos!)

 Deste modo, não pode a Recorrente conformar-se com a decisão proferida pelo tribunal "a quo", que a condenou como co-autora do crime de rapto, pelo simples facto de esta se encontrar nesse local a essa hora, fazendo tábua rasa da participação dos demais presentes!

A primeira ideia é a evidência de que as conclusões da recorrente não colhem qualquer apoio na matéria de facto considerada provada o que, só por si, levariam ao soçobrar da sua pretensão. Porém, por uma questão de maior precisão importa reavivar a posição já sustentada em anteriores decisões deste Supremo tribunal de Justiça.

Na verdade, 

Numa concepção restritiva do conceito de autoria só é autor quem realiza, por si mesmo, a acção típica, enquanto que a simples contribuição para a produção do resultado, mediante acções distintas das típicas, não pode fundamentar a imputação da autoria. Nesta perspectiva o estabelecimento de formas especiais de participação, como a instigação e a cumplicidade, significa que a punibilidade se amplia a acções situadas fora do tipo embora que, de acordo com este, apenas se deveria penalizar quem, pessoalmente, cometeu a infracção. Os outros intervenientes, que só determinaram o autor a realizar o facto punível, ou o auxiliaram, teriam que ficar impunes se não existissem os especiais preceitos penais relativos á comparticipação.

Ao conceito restritivo de autor opõe-se o conceito extensivo, sobretudo com a finalidade de colmatar as lacunas de punibilidade que implicava a aplicação daquele primeiro conceito. O fundamento dogmático desta teoria é a ideia da equivalência de todas as condições na produção do resultado a qual serve de base á teoria da “condição sine qua non”. Nesta perspectiva é autor todo aquele que contribuiu para causar o resultado típico sem que a sua contribuição para a produção do facto tenha que consistir numa acção típica.

 

Á face do direito penal português e, nomeadamente do artigo 26 do Código Penal, a teoria do domínio do facto é o eixo fundamental de interpretação da teoria da comparticipação. Iniciada por Lobe, e impulsionada essencialmente por Roxin, tem como ponto de partida o conceito restritivo de autor com a sua vinculação ao tipo legal.

Autor é, segundo esta concepção, e de forma sintética e conclusiva, quem domina o facto, quem dele é "senhor", quem toma a execução "nas suas próprias mãos" de tal modo que dele depende decisivamente o “se” e o “como” da realização típica; nesta precisa acepção se pode afirmar que o autor é a figura central do acontecimento. Assim se revela e concretiza a procurada síntese que faz surgir o facto como unidade de sentido objectiva subjectiva: ele aparece, numa vertente como obra de uma vontade que dirige o acontecimento e, noutra vertente, como fruto de uma contribuição para o acontecimento dotada de um determinado peso e significado objectivo.

Como refere Figueiredo Dias [10] o critério do domínio do facto deve restringir a sua validade, segundo Roxin, aos "delitos dolosos gerais", sem dúvida a esmagadora maioria dos crimes contidos na parte especial dos códigos penais que ele apelidou, consequentemente, delitos de domínio. "Senhor" do facto é, nestes delitos, aquele que domina a execução típica, de tal modo que a ele cabe papel director da iniciativa, interrupção, continuação e consumação da realização, dependendo estas, de forma decisiva, da sua vontade. A uma concretização desta ideia serve, adianta o mesmo Mestre, o nosso próprio sistema legal, pelo menos na medida em que o artigo 26° individualiza e distingue a autoria imediata, a autoria mediata e a co-autoria.

            Correspondendo a tal trilogia de formas de autoria existem, na verdade, três tipos diversos de domínio do facto:- O agente pode dominar o facto desde logo na medida em que é ele próprio quem procede a realização típica; quem leva a cabo o comportamento com o seu próprio corpo (é o chamado por Roxin domínio da acção que caracteriza a autoria imediata). Mas, pode, também, dominar o facto, e a realização típica, mesmo sem nela fisicamente participar, quando domina o executante através de coacção, de erro ou de um aparelho organizado de poder (quando possui o domínio da vontade do executante que caracteriza a autoria mediata). Como pode, ainda, dominar o facto através de uma divisão de tarefas com outros agentes, desde que, durante a execução, possua uma função relevante para a realização típica (possuindo o que Roxin chamou o domínio funcional do facto que constitui o signo distintivo da co-autoria)

            Equacionando até que ponto a teoria do domínio de facto oferece um critério utilizável para distinguir o autor do cúmplice escreve Gimbernat Ordeig [11] tentando traçar uma síntese geral:- Para Welzel, “o autor final é o senhor de sua decisão e da realização deste, e, com ela, do senhor do seu facto que conforma na sua existência e no seu ser -assim com uma finalidade consciente. O domínio do facto corresponde ao que realiza, com finalidade consciente a sua decisão da vontade. Por seu turno co-autoria é a autoria cuja especialidade consiste na circunstância em que o domínio do facto não reside num indivíduo, mas reside conjuntamente em vários… O domínio do facto corresponde aqui a um poder comum a todos: não a um indivíduo, nem tão pouco a diversos indivíduos em concreto, mas todos juntos são titulares da decisão, constituindo a actividade de cada um, conjuntamente com a dos demais, em virtude da conexão de sentido dada pela decisão comum de acção num todo unitário.

            A essência da cumplicidade consiste na execução de acções de ajuda sem participar na decisão nem domínio final do facto. Nos crimes dos dolosos é autor somente quem, por virtude da direcção com finalidade consciente do acontecimento causal vai terminar no resultado típico, ou seja é senhor da produção do resultado.

Para o V. Weber, o domínio do facto significa que o autor “determina se e como o facto irá acontecer;  Niese pensa de que há autoria quando “o agente… detém a direcção final da causalidade no mundo exterior; Maurach escreve que “o domínio do facto é ter em mãos, dolosamente, o desenvolvimento típico do evento, a possibilidade de que está consciente o agente de direcção final e conformadora do tipo. O domínio do facto é assumido por todo o cooperante que está na situação real, de que está consciente, de deixar correr, parar ou interromper, seja qual seja o seu comportamento, a realização do tipo. O domínio do facto é a direcção final do acontecimento típico típico; Gallas defensor também deste conceito do autor, afirma que a “autoria significa que relação do agente com um processo do acontecimento e ao resultado deste, que faz aparecer o evento total como o seu facto e o resultado como “sua” obra. Esta relação ocorre tanto quanto o agente, por meio da colocação - planificadamente dirigida dos meios apropriados (adequados ao resultado) tem o facto “nas mãos”, domina o processo até o resultado, quer intervenha directamente quer use outro como mero instrumento; Autor é - _ escreve Bockelmann quem, conjuntamente com outro, condicionou de tal forma o comportamento deste outro na sua própria planificação do facto que dirige. Sax define que para que exista o domínio do facto é preciso que o sujeito apareça segundo a imagem objectivamente apreensível do processo do acontecimento como senhor do acontecimento cujas rédeas teve na sua mão.

Quando uma pluralidade de agentes comparticipa num facto - e é só nesse caso que assume relevo prático-normativo a distinção dos papeis de cada um perante a execução - nem sempre é fácil definir e autonomizar com exactidão, mesmo em consideração apenas dos chamados "delitos de domínio”, o contributo de cada um para a realização típica. Mas, como refere Figueiredo Dias, nem por isso se dirá com razão tratar-se aqui de um "conceito indeterminado", como tal imprestável para a aplicação do direito penal no momento de fundamentação da responsabilidade. O que sucede, sim, é que não deparamos aqui com um conceito fixo, definitório e apto a subsunção. Correcto é qualificá-lo, afirma o próprio Roxin, como um conceito aberto, isto é, de um parâmetro regulativo, cujo conteúdo é susceptível de adaptar-se as variadíssimas situações concretas da vida a que se aplica e que só na aplicação alcança a sua medida máxima de concretização.

De acordo, ainda, com o Professor Figueiredo Dias há nesta matéria da autoria, em todo o caso, uma asserção que deve reputar-se fundamental: a de que ela é, mais que uma decorrência, verdadeiramente um elemento essencial do ilícito típico. Por isso, a unidade de sentido da autoria, por um lado, participa da natureza do ilícito pessoal, do ilícito que é "obra de uma pessoa"; por outro lado liga-se indissoluvelmente a realização do tipo como exigência primária do princípio da legalidade.

O facto aparece, assim, como a obra de uma vontade que se dirige para a produção de um resultado. Porém, não só é determinante para a autoria a vontade de direcção, mas também a importância objectiva da parte do facto assumida por cada interveniente. Daí resulta que só possa ser autor quem, segundo a importância da sua contribuição objectiva, comparte o domínio do curso do facto.

Resulta daqui, e em primeiro lugar, que a realização pessoal, e plenamente responsável, de todos os elementos do tipo fundamenta sempre a autoria Este é, também, o sentido do artigo 26 do Código Penal ao apontar aquele que realiza por si mesmo o delito.

Importa, ainda, salientar que o conceito não pode limitar-se, como pretendia a teoria objectivo formal, á a realização de uma acção típica no estrito sentido literal. A interpretação dos tipos revela a descrição da acção, quando o resultado se produz pela actuação conjunta de várias pessoas, deve entender-se de um modo material que flexibilize o sentido literal. Por isso, o tipo, em certas condições, pode ser realizado também por aqueles que, pese embora não executarem uma acção típica em sentido formal, detêm o domínio do facto porque o comparticipam.

É neste sentido que releva a exigência a todos os intervenientes que comparticipem na decisão conjunta de realizar o facto, porque só de esta forma podem participar no exercício do domínio do facto. Para além disso cada um deverá adicionar objectivamente uma contribuição para o facto que, pela sua importância, resulte qualificado para o resultado e caracterize, em todo o caso, mais além de uma mera acção preparatória. Sem embargo, importa referir que, atendendo á "divisão de papéis" mais apropriada ao fim proposto, pode ocorrer na co-autoria uma contribuição para o facto que não entra formalmente no marco da acção típica suficiente para castigar por autoria. Basta que se trate de una parte necessária da execução do plano global dentro de una razoável "divisão de trabalho (domínio funcional do facto)

A co-autoria consiste, assim, numa "divisão de trabalho" que torna possível o facto ou que facilita o risco. Requer, no aspecto subjectivo que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como co-titular da responsabilidade pela execução de todo o processo. A resolução comum de realizar o facto é o elo que une num todo as diferentes partes.

No aspecto objectivo, a contribuição de cada co-autor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional).

O necessário subjectivo da co-autoria é a resolução comum de realizar o facto. Unicamente através da mesma se justifica a imputação recíproca de contribuições fácticas.

Não basta um consentimento unilateral, senão que devem "actuar todos em cooperação consciente e querida" Um acordo de vontades em que se fixa a distribuição de funções graças á qual deve obter-se, com as forças unidas o resultado perseguido em comum. Aliás, a forma como se faz a repartição de papéis deverá revelar que a responsabilidade pela execução do facto impende sobre todos os intervenientes.

                                                                  *

Conforme a definição legal (artigo 26°), várias pessoas podem ser co-autores, tomando parte directa na execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros. Sublinhe-se que, na distinção entre a autoria singular imediata e a co-autoria, o autor singular executa o facto por si mesmo, enquanto o co-autor toma parte directa na sua execução - e fá-lo por acordo ou juntamente com outro ou outros.

Na co-autoria não precisa cada um dos agentes de realizar totalmente o facto correspondente à norma penal violada, podendo executá-lo só parcialmente. Na co-autoria várias pessoas dividem as tarefas e na fase executiva cada uma presta a sua contribuição para o êxito do plano comum.

Por outro lado, para caracterizar a decisão conjunta não parece bastar a existência de um qualquer acordo entre os comparticipantes - acordo que em regra existe também entre o autor e o cúmplice, - exigindo uns que todos os co-autores tenham uma "incondicional vontade de realização do tipo"; - impondo outros que o papel desempenhado por cada um revele objectivamente a sua participação no domínio do facto. Deste último ponto de vista, o essencial residirá então no segundo requisito da autoria: o exercício conjunto do domínio (funcional) do facto. Um domínio funcional do facto que existirá quando o contributo do agente - segundo o plano de conjunto - põe, no estádio da execução, um pressuposto indispensável ã realização do evento intentado, quando, assim, "todo o empreendimento resulta ou falha".

Em resumo, é indispensável uma decisão conjunta e uma execução conjunta da decisão. O acordo entre os agentes pode ser expresso ou tácito, prévio ou não à execução do facto.

O Supremo Tribuna de Justiça tem, desde há muito, consagrado a tese segundo a qual, para a co-autoria, não é indispensável que cada um dos intervenientes participe em todos os actos para obtenção do resultado pretendido, já que basta que a actuação de cada um, embora parcial, seja um elemento componente do todo indispensável à sua produção. A decisão conjunta pressupondo um acordo, que, sendo necessariamente prévio, pode ser tácito, pode bastar-se com a existência da consciência e vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado tipo legal de crime [a consciência e vontade unilateral de colaboração poderão integrar uma autoria paralela]. As circunstâncias em que os arguidos actuaram nos momentos que antecederam o crime podem ser indício suficiente, segundo as regras da experiência comum, desse acordo tácito; já no que diz respeito à execução, não é indispensável que cada um deles intervenha em todos os actos ou tarefas tendentes ao resultado final, basta que a actuação de cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do resultado.

No caso concreto, e conforme consta da transcrição feita, existiu um acordo prévio na sequência do qual os arguidos cometeram o crime. Cada um dos mesmos coadjuvou os outros nos actos físicos que levaram ao atirar a vítima para o rio procurando dar-lhe a morte.

Conforme se referiu o elemento subjectivo da co-autoria é a resolução comum de realizar o facto. Vontade consciente, e querida, na sequência da qual se partilham as tarefas e, consequentemente, se assumem as inevitáveis responsabilidades. No caso vertente existiu esse querer que se consubstanciou nos actos concretos que cada um praticou na sequência do acordo prévio.

                     A recorrente foi co-autora do crime pelo qual foi condenada.

                                                          

VIII

            Importa, assim, verificar se, na esteira do afirmado pelo recorrente, existe uma incorrecta valoração na medida da pena aplicada ao arguido a qual pressupõe uma indagação prévia sobre a finalidade que se propõe a mesma pena Na verdade se é certo que a fixação da pena dento dos limites do marco punitivo é uma acto de discricionariedade judicial igualmente é exacto que tal discricionariedade não é livre, mas sim vinculada aos princípios individualizadores que, em parte, não estão escritos, mas que radicam na própria finalidade da pena.

            Como refere Jeschek o ponto de partida da individualização penal é a determinação dos fins das penas pois que só arrancando de fins claramente definidos é possível determinar os factos que relevam na respectiva ponderação. Aqui, é preciso, em primeiro lugar, readquirir a noção da importância fundamental que assume a justa retribuição do ilícito, e da culpa, compreendendo o princípio da culpa quer uma função fundamentadora, quer uma função limitadora da mesma pena. Ao mesmo nível que a retribuição justa situa-se o fim da prevenção especial.

Por consequência a pena deve ponderar, também, a forma de contribuir para a reinserção social do arguido e de não prejudicar a sua posição social para além do estritamente inevitável. Esta exigência está plasmada na fórmula de Kohlrausch sobre a prevenção especial “Na individualização da pena o tribunal deve considerar os meios necessários para reconduzir o arguido a uma vida ordenada e ajustada á lei”.

            Salienta Jeschek que, na prevenção especial, se contem a protecção da comunidade face ao delinquente perigoso o que é, frequentemente, esquecido.

            Por fim a prevenção geral é um fim indispensável da pena pois que esta deve ser ponderada por forma a neutralizar os efeitos do delito como exemplo negativo para a comunidade e deve contribuir, simultaneamente, para fortalecer a sua consciência jurídica assim como a satisfazer o pedido de justiça por parte do circulo de pessoas afectadas pelo delito e pelas suas consequências (confirmação da ordem jurídica).

Estamos em crer que é nunca é demais acentuar o papel da culpa como critério fundamentador da medida da pena, ao invés da preponderância que alguns, entre os quais Jakobs, outorgam á prevenção geral, colocando-a acima da retribuição da culpa pelo delito quando é esta, na realidade, que justifica a intervenção penal. Na verdade, as normas deveriam “ser reafirmadas na sua própria existência como um fim em si mesmas” enquanto o agente, pelo contrário, tem direito a esperar, e espera, sobretudo uma resposta ao facto injusto e culposo que cometeu. Realçando-se a prevenção como critério fundamental desvanece-se, com prejuízo da justiça individual, a orientação que o Direito penal faz da responsabilidade do agente pela sua acção.

Sem embargo, a culpa e a prevenção residem em planos distintos. A culpa responde á pergunta de saber de se, e em que medida, o facto deve ser reprovado pessoalmente ao agente, assim como qual é a pena que merece. Só então se coloca a questão, totalmente distinta da prevenção. Aqui há que decidir qual a sanção que parece apropriada para introduzir de novo o agente na comunidade e para influir nesta num sentido social-pedagógico.

A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente a finalidade da mesma.[12]

 A restrição do princípio da culpa á função de “meio para a limitação da pena” é o ponto central na interpretação deste conceito transmitida por Claus Roxin. Por tal forma pretende o mesmo autor fazer a teoria jurídico-penal da culpa “independente do livre arbítrio” . Por seu turno, tal conceito de culpa, restringido ao papel de margem superior da pena, é o fundamento da nova categoria sistemática de “responsabilidade”, na qual se fundiu a culpa do autor com a necessidade preventiva da pena.

A isto pode-se objectar, reafirmando o ensinamento de Jeschek, que a culpa, se é o limite superior da pena, também deve ser co-decisivo para toda a determinação da mesma que se encontre abaixo daquela fronteira. Aliás, e fundamentalmente, ao limitar-se a fixação concreta da pena a fins preventivos, a decisão do juiz perde o ponto de conexão com a qualificação ética do facto que é julgado, e a pena, por esse facto perde também todo a possibilidade de influir a favor daqueles objectivos de prevenção.

Só apelando á profundidade moral da pessoa se pode esperar tanto a ressocialização do condenado como também uma eficácia socio-pedagógica da pena sobre a população em geral. A renúncia ao critério da culpa para a pena concreta é um preço demasiado alto por evitar o problema da liberdade na teoria da culpa[13]

  

            Em termos dogmáticos é fundamento da individualização da pena a importância do crime para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente do crime por ter praticado o mesmo delito (conteúdo da culpa).

            Não obstante, estes dois factores básicos para a individualização da pena não se desenvolvem paralelamente sem relação alguma. A culpa jurídico-penal afere-se, também, em função da ilicitude; na sua globalidade aquela encontra-se substancialmente determinada pelo conteúdo da ilicitude do crime a que se refere a culpa.

            A ilicitude e a culpa são, assim, conceitos graduáveis entendidos como elementos materiais do delito. Isto significa, entre outras coisas, que a intensidade do dano, a forma de executar o facto a perturbação da paz jurídica contribuem para dar forma ao grau de ilicitude enquanto que a desconsideração; a situação de necessidade; a tentação as paixões que diminuem as faculdade de compreensão e controle; a juventude; os transtornos psíquicos ou erro devem ser tomados em conta para graduar a culpa.

      A dimensão da lesão jurídica mede-se desde logo pela magnitude e qualidade do dano causado, devendo atender-se, em sentido atenuativo ou agravativo, tanto as consequências materiais do crime como as psíquicas. Importa, ainda, considerar o grau de colocação em perigo do bem jurídico protegido quer na tentativa quer nos crimes de perigo. 

A medida da violação jurídica depende, também, da forma de execução do crime. A vontade, ou o empenho empregues na prática do crime são, também, um aspecto subjectivo de execução do facto que contribui para a individualização. A tenacidade e a debilidade da vontade constituem valores angulares do significado ambivalente da vontade que pode ser completamente oposto para o conteúdo da ilicitude e para a prevenção especial. [14]

                                                                     *

    O conteúdo da culpa ocupa o lugar preferencial entre os elementos fácticos de individualização da pena que o Código Penal coloca como directriz da actuação do juiz. Os motivos e objectivos do agente, a atitude interna que se reflecte no facto e a medida da infracção do dever são todos eles circunstâncias que fazem aparecer a formação da vontade do agente a uma luz mais ou menos favorável e, como tal, minoram ou aumentam o grau de reprobabilidade do crime.

            Não deve equiparar-se a atitude interna do agente com o seu carácter, mas deve entender-se como um posicionamento actual referido ao delito concreto o que corresponde á formação da vontade na execução daquele. Também a atitude interna do arguido deve ser valorada conforme as normas da ética social (v.g. posição de indiferença face ao bem jurídico protegido, escassa reprobabilidade do facto por circunstancias externas, predisposição neurótica, erro de proibição, situação passional inevitável ou transtorno mental agudo.

Para a individualização da pena, tanto na perspectiva da culpa como da prevenção- é essencial a personalidade do agente que, não obstante, só pode ter-se em conta para a referida individualização quando mantenha relação com o facto.

            O círculo de elementos fácticos de individualização de pena amplia-se substancialmente mediante a consideração da vida anterior do agente e a conduta posterior ao delito. Esta ampliação é indispensável para relacionar de uma maneira de uma forma que seja justo e previna a comissão de delitos.

A conduta posterior ao delito pode constituir um elemento importante a propósito da culpa e da perigosidade do arguido.

                                                                            *

            Face a esta explanação de natureza teórica, e que apenas pode relevar como premissa na lógica que nos leva á individualização da pena no caso concreto, impõe-se, agora, a consideração das circunstâncias singulares que este revela. Uma primeira conclusão que se impõe, face á argumentação do recorrente, é de que foram valorados os factores de medida da pena que justificam o aumento da pena aplicada.

             Uma culpa intensa, e profunda, revelando um peregrinar pela vida á revelia do respeito por normas básicas de convivência e pela lei. A actuação dos arguidos revela um profundo desprezo pela Vida, bem supremo e valor essencial no relacionamento entre os cidadãos.

             Adita-se uma ilicitude num grau intenso, revelado pela forma como se desprezou a dignidade humana da vítima e se foi indiferente á sua debilidade e prostração. A morte dada pelos arguidos assume-se como um acto gratuito em que estes quiseram afirmar o seu poder de darem a morte a uma sua semelhante.

          Profunda culpa e ilicitude a que se alia uma visão algo critica sobre as perspectivas de socialização. A anomia caracterizada por uma ausência de valores redundou num assumir de uma acto de uma gravidade extrema que não permite prognósticos positivos sobre o apelo a uma reintegração na sociedade  

            Relevam, ainda, as necessidades de prevenção geral expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de infracções em que está em causa o valor nuclear É imperioso que a comunidade esteja certa de que as violações dos laços mais básicos de relação social sejam penalizados com adequada punição e, por tal forma, se tenha a noção de que a Vida é um valor intocável.

            Importa aqui sublinhar que de forma alguma os recorrentes podem ser prejudicados por uma remessa ao silêncio, evitando qualquer pronúncia sobre os factos imputados. Porém, também não pode deixar de se pode escamotear a importância atenuativa que, em abstracto, consubstancia uma assunção límpida e vertical da responsabilidade que efectivamente exista.

                     Não se vislumbra nenhum factor de medida da pena de natureza atenuativa

        Nestes termos nenhuma crítica há a formular á pena de vinte e três anos de prisão aplicada a cada um dos recorrentes pela prática do crime de homicídio previsto e punido nos termos do artigo 132 nº1 e a alíneas e) e h) do Código Penal.

Importa agora operar o cumulo jurídico de tais penas com as dos restantes crimes crimes imputados ao arguido e nomeadamente um crime de rapto qualificado previsto e punível pelo art. 161º, nºs 1, al. b), e 2, alínea a), com referência ao art. 158°, nº 2, alíneas a) e b), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão; pela prática, em co-autoria, de um crime de roubo previsto e punível pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; pela prática, em co-autoria, de um crime de lenocínio agravado previsto e punível pelo art. 169º, nºs 1, e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; como autor de um crime de falsidade de depoimento previsto e punível pelo art. 359°,n.ºs 1 e 2, do Código Penal na pena de 6 (seis) meses de prisão.

Sopesando a culpa e ilicitude global dos actos praticados afigura-se ajustada a pena conjunta de vinte e cinco anos de prisão.

Relativamente á recorrente BB importa também elaborar o cúmulo jurídico em relação ás restantes penas em que foi condenada nos seguintes termos: um crime de rapto qualificado previsto e punível pelo art.º, 161º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), com referência ao art. 158°, nº 2, alíneas a) e b), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão; pela prática, em co-autoria, de um crime de roubo previsto e punível pelo art. 210º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; pela prática, em co-autoria, de um crime de lenocínio agravado previsto e punível pelo art. 169º, nºs 1, e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.

Importa, todavia, sublinhar que se a actuação da mesma arguida é convergente e coincidente dos seus co-arguidos no que toca ao crime de homicídio já no que toca aos restantes crimes a sua actuação, inserindo-se no plano previamente congeminado, apresenta laivos de uma menor intensidade de culpa expressa aliás pela circunstância de estar relegada, em algumas circunstâncias, a um papel mais secundário. Nestes termos, e sopesando a intensidade da culpa e ilicitude globais, condena-se a mesma na pena conjunta de vinte e três anos de prisão.

Termos em que

            Nestes termos se julga improcedente o recurso interposto por AA e parcialmente procedente o recurso interposto por BB condenado a mesma na pena conjunta de vinte e três anos de prisão.

            Custas a cargo do recorrente.

            Taxa de justiça 6 UC

Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes (“Voto vencido. Atenta a gravidade dos factos, o grau elevadíssimo da culpa e as exigências de prevenção, face às penas singulares aplicadas julgaria improcedente o recurso da arguida (…)”).
Pereira Madeira (“com voto de desempate”).

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[1] Proc. n.º 1126/08 -3.ª Secção Santos Cabral (relator)


[2] Relator Juiz Conselheiro Oliveira Mendes
[3] Processo 4463/07
[4] Benjamim Silva Rodrigues in Da Prova em Processo Penal - Tomo II, pág. 106, refere que ambos «de forma ocultada ou disfarçada, assumem as vestes (semelhantes às) dos criminosos que se pretendem investigar».

[5]   Supremo Tribunal de Justiça, Secção Criminal, Acórdão de 27 Mai. 2010, Processo Processo 58/04 Colectânea de Jurisprudência, N.º 224, Tomo II/2010
[6] Confrontar Augusto Silva Dias "Crimes contra a vida e a integridade física" pág. 27
[7] Margarida Silva Pereira" Os Homicídios " pág. 40
[8] No mesmo sentido Fernando Silva Direito Penal Especial Crimes contra as pessoas pág 60 e seguintes; Augusto Silva Dias obra citada pág 20 e seg. Para Teresa Serra- Homicídio Qualificado pág 66- a verificação das circunstâncias previstas no n° 2 do art. 132° seja ela relativa ao facto ou à culpa do agente, significando um amento da culpa ou da ilicitude, só constitui um indicio da existência de especial censurabilidade ou perversidade que fundamenta a moldura penal agravada do homicídio qualificado.
[9] Regelbeispiele lhes chama Jeschek (tratado paga 245) considerando que os exemplos padrão não constituem elementos qualificativos do tipo, mas regras de aplicação de pena. A particularidade dos exemplos regulados é dupla. Por um lado a concorrência dos elementos constantes do exemplo representa só um indício para a apreciação dum caso especialmente grave. 0 juiz pode recusar o efeito indiciário se uma valoração global do facto e do agente revela que o concreto conteúdo do ilícito e da culpa do facto, apesar da realização dos elementos constitutivos do exemplo regulado, não diferem essencialmente da média dos casos da correspondente classe de delito que se apresentam normalmente.
[10] Direito Penal As questões fundamentais pag 767
[11] Autor y Cumplice em Derecho Penal pag 106
[12] Não se ignora, realça Jeschek, a relevância na Alemanha uma interpretação que pretende conceder ao principio da culpa exclusivamente a função de limite superior da pena, enquanto que para precisar a mesma pena concreta só os aspectos preventivos devam ser decisivos Assim se indicava no § 59,  1° do Projecto alternativo de 1966 que “ a culpa pelo facto determina o limite superior da pena”, enquanto que a sua dimensão no caso particular se rege unicamente por objectivos de prevenção.
 Como justificação, os autores do Projecto argumentaram, de forma negativa, que “queriam prevenir a ideia de retribuição. O Código Penal alemão, sem embargo, não seguiu este Projecto, mas, pelo contrário, converte a culpa no § 46, 1°, 1°no “fundamento para a fixação da pena” e, com isso, não só em fronteira superior da medida da pena, mas também em principio decisivo para a fixação da pena concreta. A razão de ser desta decisão do legislador reside no facto de a pena não dever estar só ao serviço das finalidades preventivas mas, em primeiro lugar, ao serviço da retribuição da culpa, ou seja, a sanção está marcada pelo pensamento de que através dela “o agente experimenta a merecida resposta de desaprovação da comunidade jurídica ao facto ilícito e culposo por ele cometido”.
[13] Hans Heinrich Jescheck, "Evolución del concepto jurídico penal de culpabilidad en Alemania y Austria Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia Núm. 05 (2003) -
[14] Conf. Jeschek  Tratado de Direito Penal” ed espanhola pag 780