Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
376/19.6T8EPS-A.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: HABEAS CORPUS
INTERNAMENTO COMPULSIVO
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDA A PROVIDÊNCIA DE HABEAS CORPUS
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIA PATRIMONIAL / MEDIDAS DE COACÇÃO / MODOS DE IMPUGNAÇÃO / HABEAS CORPUS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL.
Doutrina:
- António João Latas e Fernando Vieira, Notas e Comentários à Lei de Saúde Mental, Coimbra Editora, 2004, p. 177 e ss.;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, I, p. 508;
- Pedro Soares de Albergaria, A Lei da Saúde Mental, Anotado, Almedina, 2006, p. 75.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 222.º, N.º 2, ALÍNEAS A) E C) E 223.º.
LEI DE SAÚDE MENTAL (LSM), APROVADA PELA LEI N.º 36/98, DE 24-07: - ARTIGOS 9.º, 12.º, N.º 1, 26.º, N.ºS 1 E 2, 27.º, N.º 1, 31.º E 32.º, N.º 1.
Sumário :
I - O pedido de “habeas corpus” a que se reporta o art. 31.° da LSM tem o seu campo de aplicação limitado aos casos de privação da liberdade de qualquer internando antes da intervenção de um juiz com vista à confirmação (judicial) da medida de internamento (art. 26.° da LSM), reservando-se as normas gerais dos artigos 222.° e 223.° do CPP para as situações de privação de liberdade decorrentes dessa confirmação, com observância do mecanismo processual enunciado nesse último normativo, observadas que sejam as necessárias adaptações, tudo por força da remissão do art. 9.° da LSM.
II - Atendendo ao fundamento da al. a) do n.º 2 do art. 222.° do CPP, o mesmo está excluído, não sendo de pôr em causa nem a ordem da autoridade administrativa sanitária competente de condução à urgência psiquiátrica do internando, nem o seu cumprimento posterior coercivo pela autoridade policial, nem a decisão de confirmação do internamento pelo juiz competente e, daí, que inexista qualquer ilegalidade na privação da sua liberdade.
III - Para lá de a privação da liberdade no âmbito de um internamento compulsivo de urgência não se dever a qualquer acto arbitrário do juízo jurisdicional, uma vez motivada dentro dos casos e condições que a lei prevê, importa deixar claro que o “habeas corpus” não é um recurso de uma decisão processual.
IV - Enquanto garantia fundamental de tutela da liberdade assume-se como providência extraordinária e expedita, não lhe cabendo reapreciar a decisão de privação da liberdade que, no caso, seria a decisão judicial de confirmação e manutenção do internamento compulsivo de urgência do requerente enquanto portador de anomalia psíquica, com vista a ser dado início ao processo de internamento compulsivo e à prolação da decisão final a que alude o art. 27.°, n.º 1, da LSM.
V - Essa sindicância só ao recurso ordinário compete, cuja admissibilidade legal está, de resto, contemplada no n.º 1 do art. 32.° desse diploma.
VI - A providência de “habeas corpus” não é, por isso, o meio próprio para impugnar o mérito da decisão confirmatória da privação da liberdade a que se reporta o n.º 2 do art. 26.° e/ou sindicar os pressupostos do internamento plasmados no art. 12.°, n.º 1, ex vi n.º 1 do art. 22.°, da LSM.
VII - O fundamento da al. c) do n.º 2 do art. 222.° do CPP tem-se de todo inaplicável ao caso dos autos, dado que após confirmação do internamento no prazo legal de 48 horas (art. 26.°, n.º 2, da LSM), outro prazo não decorreu que tome ilegal a privação da liberdade do ora requerente.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA veio através da sua defensora, nos termos do art.º 31.º da Lei de Saúde Mental – LSM (Lei n.º 36/98, de 24.07), perante o Juízo de Competência Genérica de ... – Juiz 1 (que num primeiro momento declinou a sua competência em razão do território, mas que depois acabou por assumi-la), requerer a concessão da providência de habeas corpus, invocando a ilegalidade da privação da liberdade, decorrente da falta de pressupostos legais para o decretamento do seu internamento compulsivo de urgência, conforme alegou na respectiva petição, cujo teor se transcreve:

“A) DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL

1. [N]o artigo 31.º da Lei de Saúde Mental indica-se que o requerimento de habeas corpus deve ser apresentado no tribunal da área onde o portador se encontrar [a imediata libertação].

2. Pese embora o Internando se encontrar na ..., o que é certo é que existe este processo em curso e, por uma questão de gestão processual, o requerimento é apresentado neste juízo de competência.

3. Caso, porventura, se entenda que é o Tribunal Judicial da Comarca de ... competente para o conhecimento do presente requerimento, em nome do aproveitamento dos autos, requer-se que seja ordenada a sua remessa imediata para o mesmo.

B) DOS FUNDAMENTOS

4. O AA tem 27 anos e, conforme consta do seu historial clínico, o mesmo sempre padeceu de uma anomalia psíquica.

5. Foi, há cerca de uma semana, privado, sem fundamento, da sua liberdade.

6. A restrição a este Direito Fundamental é desproporcional e inadmissível pelo que se apresenta o competente habeas corpus em virtude de privação da liberdade ilegal.

7. A aqui signatária reuniu nesta segunda-feira com o Internando e com a sua progenitora na Casa de Saúde ... em ....

8. Nenhum dos dois (Internando e progenitora) compreendia muito bem a natureza do processo, tendo sido, aparentemente, preterida a prestação da informação ao Internando e o esclarecimento ao mesmo acerca dos motivos que ditam a sua privação de liberdade (cfr. artigo 11.º n.º 2 alínea b) da Lei da Saúde Mental).

9. Desde já se destaca que o Internando se apresenta muitíssimo assustado, afastado da sua área de residência e com medo do que lhe pode acontecer nesta Casa de Saúde (não tem culpa, naturalmente, da doença de que padece – e que reconhece).

10. O que está em causa nestes autos, com todo o devido respeito, não é a doença de que padece o Internando porque este reconhece a sua existência e padece (e vive!) com a mesma desde que nasceu,

11. pese embora o desconhecimento pelos médicos da verdadeira razão de ser da patologia que o mesmo sofre...

O que é certo é que, e com todo o devido respeito,

12. não existe, de facto, proporção neste internamento: não existe grau de perigo justificativo nem a medida aplicável se encontra moldável à protecção do bem jurídico em causa,

13. o que, desde logo, implica que o mesmo nem pudesse, sequer, ser determinado.

14. Urge questionar:

a. Que situação de perigo foi criada?

b. Que bens jurídicos foram violados?

c. Qual o valor desses bens jurídicos?

d. Quem se tutela?

e. Qual a natureza dos bens jurídicos alegadamente violados?

15. E mais:

a. Qual a recusa do Internando?

b. O mesmo deixou de realizar o tratamento ambulatório?

c. Qual a razão de não ter sido submetido a um internamento voluntário?

d. Alguém explicou a esta família o verdadeiro quadro clínico?

e. Qual o fundamento para um internamento?

f. Qual o tratamento médico que se prevê ser aplicado ao Internando?

g. O mesmo não estava submetido a tratamento?

16. Do que é transmitido o tratamento realizado ao Internando é o mesmo que estava a fazer em casa,

17. com a agravante de que na Casa de Saúde onde se encontra, e com o máximo respeito por esta instituição, o mesmo vive num cenário de medo e solidão.

Ora,

18. O Internando no dia, salvo erro, 6 de Junho de 2019 compareceu no Hospital para uma consulta com a sua médica designada.

19. A mesma, nesse dia, não decretou nenhuma medida de acompanhamento,

20. não decretou nenhum internamento,

21. não lhe alterou a prescrição medicamentosa.

22. Ao invés, sabendo que o Internando tem sérios traumas com a intervenção na sua vida da Guarda Nacional Republicana, foi ordenado no dia 7 de Junho um mandado de condução à urgência psiquiátrica.

23. O que veio a contar com a intervenção da GNR no dia 10 de Junho de 2019,

24. tendo o AA sido sujeito a medida de internamento compulsivo no dia 11 de Junho de 2019.

25. Ou seja, o estado do AA era tão grave que apenas 5 dias depois houve a sua condução ao Hospital Psiquiátrico...

26. Vejamos que nos termos do artigo 8.º da Lei de Saúde Mental, o internamento compulsivo (como o foi) só poderia ser determinado se fosse a única garantia para a submissão a tratamento do internado.

27. O Internando está submetido a tratamento, que cumpre, e vive nesta situação desde que nasceu,

28. sendo acompanhado por diversos médicos e auxiliado pela sua mãe, que apesar da dureza da doença, o compreende e lhe dá o carinho e afecto que o mesmo necessita.

29. Aliás, no período que antecede a este internamento o Internando revelava melhorias e estabilização no seu estado de saúde: e não nenhum agravamento ou alegada deterioração aguda do seu estado.

30. O Internando não apresenta qualquer perigo para si ou para terceiros, em cumprimento do tratamento em regime ambulatório (que realiza).

31. A medida de internamento compulsivo é uma medida agressiva e priva os indivíduos da liberdade,

32. neste caso colocando este Internando na possibilidade de ver o seu estado de saúde agravado: o local onde se encontra está a destruir o mesmo emocionalmente o que, na condição do Internando, a instabilidade emocional é um facto de risco acentuado na evolução da patologia.

Veja-se que,

33. O Internando foi deslocalizado de toda a sua esfera de vida,

34. desligado de tudo aquilo que conhece e está profundamente perturbado com esta situação.

35. O Internando não se recusa a um internamento, desde que de facto justificado e explicada a razão do regime ambulatório não poder ser suficiente às necessidades do Internando: o que se vislumbra do relatório clínico junto aos autos, porquanto o mesmo não expõe que houve qualquer recusa de internamento (nem mesmo quais as razões e fundamentos do mesmo).

36. O Internando foi colocado compulsivamente numa Casa de Saúde o que, em certa medida, se encontra em detrimento do disposto no artigo 3.º alínea c) da Lei da Saúde Mental que prevê que: “o tratamento de doentes mentais em regime de internamento ocorre, tendencialmente, em hospitais gerais”.

37. Se o Internando não se opõe, desde que a sua situação seja susceptível de um internamento – coisa que nunca foi explicada nem ao Internando nem a nenhum dos seus familiares – este internamento compulsivo não podia, sequer, ser decretado.

38. Ainda assim, com o seu decretamento, não se compreende como é que o Internando não o foi num hospital geral,

39. numa área, até, mais próxima da sua residência.

40. Nunca olvidando que nos parece, com todo o devido respeito, que o regime ambulatório era apto às necessidades do Internando e que, nessa circunstância, o internamento teria sempre que ser substituído pelo regime ambulatório.

41. Até porque aparentemente o tratamento por medicamento continua a ser o mesmo que o Internando realizava em casa...

42. Só com a diferença que não é a mãe que o acompanha mas sim uma solidão interrompida, às vezes, pela visita de enfermeiros.

43. Nos termos do artigo 10.º da Lei da Saúde Mental o Internando tem o direito processual de oferecer provas e de requerer as diligências que se lhe afigurem necessárias, o que já realizou no âmbito do processo que se encontra em curso.

Em suma,

a. Não existiu qualquer urgência na situação clínica do AA.

b. Não existiu qualquer perigo para o próprio.

c. Não existiu qualquer perigo para terceiro.

d. Não existe prova de que o internamento compulsivo é a única forma de garantir a submissão a tratamento do internado.

e. Não existe proporcionalidade na situação jurídica do Internando com a aplicação da medida de internamento compulsivo.

f. Não existe prova de que a situação clínica do AA não se manteria estável com o regime ambulatório.

g. Não foi esclarecido ao AA, nem à mãe, a razão da privação da liberdade do mesmo.

h. O AA não se recusou à submissão a nenhum tratamento.

44. Assim, analisadas as condições legais previstas na Lei da Saúde Mental não se encontram reunidos os pressupostos para o internamento compulsivo ser aplicado ao AA,

45. pelo que deverá ser ordenada a sua imediata libertação.”

*

2. O Exmo. Juiz, de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 223.º do CPP, ex vi art.º 9.º da LSM, prestou a seguinte informação:

“AA apresentou habeas corpus em por privação de liberdade ilegal, enquadrando-o segundo o disposto no art.º 31º da LSM, nos termos constantes do seu requerimento de fls. 2 a 6, que se dá integralmente por reproduzido.

Quanto ao habeas corpus decorrente de privação de liberdade do portador de anomalia psíquica, dispõe o art.º 31º da LSM o seguinte:

“1 - O portador de anomalia psíquica privado da liberdade, ou qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, pode requerer ao tribunal da área onde o portador se encontrar a imediata libertação com algum dos seguintes fundamentos:

a) Estar excedido o prazo previsto no artigo 26.º, n.º 2;

b) Ter sido a privação da liberdade efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

c) Ser a privação da liberdade motivada fora dos casos ou condições previstas nesta lei.”

No caso concreto, AA encontra-se internado na Casa de Saúde ..., em ....

Com verdadeiro interesse para a apreciação do habeas corpus invocado, alega o requerente o seguinte:

“Não existiu qualquer perigo para o próprio.

Não existiu qualquer perigo para terceiro.

Não existe prova de que o internamento compulsivo é a única forma de garantir a submissão a tratamento do internado.

Não existe proporcionalidade na situação jurídica do Internando com a aplicação da medida de internamento compulsivo.

Não existe prova de que a situação clínica do AA não se manteria estável com o regime ambulatório.

Não foi esclarecido ao AA, nem à mãe, a razão da privação da liberdade do mesmo.

O AA não se recusou à submissão a nenhum tratamento.” Dispõe o artigo 12.º da Lei de Saúde Mental, aprovada pela Lei 36/98, de 24.07, que «o portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico pode ser internado em estabelecimento adequado». Nada nos autos é alegado quanto à inadequação do estabelecimento em que o requerente se encontra internado (devendo entender-se como tal um hospital ou instituição análoga que permita o tratamento do portador de anomalia psíquica, como é o caso), pelo que seguiremos adiante. Conforme resulta da al. a), do artigo 7º, da Lei de Saúde Mental, internamento compulsivo deve considerar-se o internamento por decisão judicial do portador de anomalia psíquica grave, que só pode ser determinado quando for a única forma capaz de garantir a submissão a tratamento do internando, desde que proporcional ao grau de perigo e ao bem jurídico em causa, devendo findar logo que cessem os fundamentos que lhe serviram de base, conforme resulta do artigo 8º, nºs 1 e 2. Do mandado de condução à urgência psiquiátrica, resulta a determinação do requerente ser conduzido à urgência psiquiátrica do Hospital de ... pelas seguintes razões: “De acordo com a médica psiquiátrica que o acompanha em consulta externa, o Sr. AA Fonseca apresenta-se descompensado, com actividade delirante, alterações de comportamento e má adesão ao plano de tratamento. Realizado relatório de avaliação clínico-psiquiátrica, aí consta que “O doente tem antecedentes de acompanhamento psiquiátrico neste hospital por psicose e está medicado com antipsicótico, que tem cumprido desde a última semana por imposição da mãe”. Mais se refere, ali, que o mesmo se encontra “Sem insight para o quadro clínico e para a necessidade de cumprir o tratamento” e “trata-se de um doente com patologia psiquiátrica grave, sem crítica para a doença ou a necessidade de tratamento, com risco para o próprio e para terceiros”.

Tendo já sido realizada novo relatório de avaliação clínico-psiquiátrica, por dois psiquiatras que não intervieram no relatório anterior, do mesmo resulta que o requerente “foi internado compulsivamente nesta Casa de Saúde em 11 de Junho de 2019, através do serviço de urgência do hospital de ..., por surto psicótico.

Encontra-se no mesmo estado clínico referido no anterior relatório, mantendo delírio místico e persecutório com total ausência de insight, recusando que esteja doente e que necessite do presente tratamento.

Assim mantêm-se para já os critérios que motivaram o seu internamento compulsivo, devendo o mesmo ser mantido”.

Assim, dos referidos relatórios periciais, subtraídos à apreciação do julgador, é patente a existência de perigo para o próprio e para terceiros por via da anomalia psíquica de que padece, que neste momento se encontra descompensada.

A sua total ausência de insight e recusa da necessidade de tratamento é a única forma de garantir a submissão do requerente a tratamento, que, diremos nós, nunca seria possível, no presente momento, com o tratamento do requerente em regime ambulatório.

O que nos remete para o afastamento, em concreto, de qualquer desnecessidade, inadequação ou desproporcionalidade da medida de internamento aplicável.

De tudo o exposto entende-se ser patente o presente habeas corpus manifestamente infundado, e que a privação da liberdade não foi motivada fora das condições previstas na Lei de Saúde Mental, não sendo a detenção do requerido ilegal”.

*

3. Convocada a Secção Criminal e notificado o M.º P.º e a Defensora teve lugar a audiência, nos termos dos art.ºs 223.º, n.º 2 e 435.º, do CPP.

*

4. Cumpre, pois, conhecer e decidir a questão suscitada, de saber se a situação de privação de liberdade em que se encontra o requerente, enquanto internando portador de anomalia psíquica, enferma de ilegalidade que imponha a sua imediata libertação.

*

II. Fundamentação

1. Considerando a informação prestada nos termos do art.º 223.º do CPP e os elementos juntos aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

a) – A autoridade de saúde pública do Agrupamento de Centro de Saúde ...-... em 7 de Junho de 2019 emitiu um “Mandado de Condução à Urgência Psiquiátrica” do Hospital de ..., com vista ao internamento compulsivo de urgência do ora requerente, ao abrigo do disposto nos art.ºs 12.º e 22.º e n.ºs 1 e 2 do art.º 23.º da LSM, dado que, de acordo com a médica psiquiatra que o acompanha em consulta externa, o mesmo apresenta-se descompensado, com actividade delirante, alterações de comportamento e não adesão ao plano de tratamento;

b) – Cumprido o mandado pela GNR de ..., segundo indica o requerente, em 10 de Junho de 2019, em 11 de Junho de 2019, na avaliação clínico-psiquiátrica do serviço de urgência de psiquiatria do Hospital de ..., efectuada no mesmo dia, concluiu-se que “trata-se de um doente com patologia psiquiátrica grave, sem crítica para a doença ou a necessidade de tratamento, com risco para o próprio e para terceiros.

Pelo exposto, encontram-se reunidos critérios para internamento compulsivo ao abrigo da Lei de Saúde Mental. Foi internado na Casa de Saúde ..., em ..., em regime compulsivo. Foi acompanhado pela GNR de ...”;

c) – Comunicada ao tribunal, nesse mesmo dia, a indicação hospitalar de internamento compulsivo do ora requerente, nesse próprio dia o respectivo juiz proferiu decisão de manutenção do internamento, além do mais diligenciando pelo início do respectivo processo de internamento compulsivo.

*

2. A providência de habeas corpus em geral tem tutela constitucional no art.º 31.º da Constituição da República Portuguesa, que dispõe:

1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos. 

3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.

Na expressão de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, Anotada, I, pág. 508) essa medida “consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal [ou, mais genericamente, contra a privação da liberdade] sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos art.ºs 27.º e 28.º (…). Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”.

É sabido que, como providência excepcional, o habeas corpus, constitui um mecanismo expedito que visa pôr termo imediatamente à situação de privação de liberdade manifestamente ilegal, sendo a ilegalidade dessa privação directamente verificável a partir dos factos documentados no respectivo processo.

O seu escopo visa somente apreciar se existe privação ilegal da liberdade e, em consequência, ordenar, ou não, a libertação imediata, no caso, do internando.

O n.º 3, alín. f), do art.º 27.º dessa Lei Fundamental excepciona do princípio de que ninguém pode ser privado de liberdade a não ser em consequência de uma condenação penal, o caso de “internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmando por autoridade judicial competente”.

Dado o internamento compulsivo consubstanciar uma privação de liberdade e porque o habeas corpus se assume como garantia privilegiada do direito à liberdade, o legislador acolheu o instituto no art.º 31.º da LSM, que sob a epígrafe de “habeas corpus em virtude de privação de liberdade ilegal”, dispõe:                                                                                                   

1 - O portador de anomalia psíquica privado da liberdade, ou qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, pode requerer ao tribunal da área onde o portador se encontra a imediata libertação com algum dos seguintes fundamentos:

a) Estar excedido o prazo previsto no artigo 26.º, n.º 2;

b) Ter sido a privação da liberdade efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

c) Ser a privação da liberdade motivada fora dos casos ou condições previstas nesta lei.”

Trata-se de um elenco taxativo, a fazer jus ao carácter excepcional da providência de habeas corpus.

Embora haja quem sustente que tal preceito acolheu o instituto quer na modalidade referenciada ao CPP de detenção ilegal dos art.ºs 220.º e 221.º, quer de prisão ilegal dos art.ºs 222.º e 223.º (António João Latas e Fernando Vieira, Notas e Comentários à Lei de Saúde Mental, Coimbra Editora, 2004, pág. 177 e ss.), da letra da lei resulta que o seu conteúdo, em especial o teor dos n.ºs 2 a 4, foi decalcado do habeas corpus em virtude de detenção ilegal referido naqueles art.ºs 220.º e 221.º com a diferença, ressalvada no art.º 30.º, n.º 1 da LSM, de a competência material para a respectiva apreciação caber, não ao juiz de instrução criminal (art.º 220.º, n.º 1), mas ao juiz de competência genérica criminal da área de residência do internando.

Daí ser de entender que o art.º 31.º tem o seu campo de aplicação limitado aos casos de privação da liberdade de qualquer internando antes da intervenção de um juiz com vista à confirmação (judicial) da medida de internamento (art.º 26.º da LSM), reservando-se as normas gerais dos art.ºs 222.º e 223.º do CPP para as situações de privação de liberdade decorrentes dessa confirmação, com observância do mecanismo processual enunciado nesse último normativo, observadas que sejam as necessárias adaptações, tudo por força da remissão do art.º 9.º da LSM, essa sendo a situação dos autos.

E, assim, atendendo ao fundamento da alín. a) do n.º 2 do  art.º 222.º do CPP, o mesmo está excluído, não sendo de pôr em causa nem a ordem da autoridade administrativa sanitária competente de condução à urgência psiquiátrica do internando, nem o seu cumprimento posterior coercivo pela autoridade policial, nem a decisão de confirmação do internamento pelo juiz competente e, daí, que inexista qualquer ilegalidade na privação da sua liberdade.

Também o fundamento da alín. b) do n.º 2 do art.º 222.º do CPP se não preenche.

Coincidente na sua abrangência com o da alín. c) do n.º 1 do art.º 31.º da LSM, sobre ele discorreu Pedro Soares de Albergaria (A Lei da Saúde Mental, Anot., Almedina, 2006, pág. 75) nos seguintes termos: “[j]á a previsão da alín. c) é passível de gerar erro de interpretação face à ilusão de elasticidade que poderia decorrer do seu conteúdo relativamente indeterminado. Não faltaria quem, face ao texto da norma, assimilasse qualquer discordância sobre o bem fundado da privação da liberdade a uma motivação fora dos casos ou condições previstas na lei e por aí procurasse lançar mão deste meio em lugar, por exemplo, do recurso cabível. Limitar o instituto [de habeas corpus] à sua função excepcional passa, pois, por uma correcta interpretação restritiva, a qual apenas considera que a privação da liberdade desborda dos casos ou condições previstas na lei quando assume a natureza de um acto arbitrário, isto é, quando se mostre de todo destituído de título legal ou grosseiramente não se enquadrar no título legal invocado. Pense-se na hipótese de o juiz determinar o internamento ainda quando a avaliação psiquiátrica negue a existência de qualquer psicopatologia, juízo que aliás lhe é subtraído”.

Nada mais acertado.

Para lá de a privação da liberdade não se dever a qualquer acto arbitrário do juízo jurisdicional, uma vez motivada dentro dos casos e condições que a lei prevê, importa deixar claro que o habeas corpus não é um recurso de uma decisão processual. Enquanto garantia fundamental de tutela da liberdade assume-se como providência extraordinária e expedita, não lhe cabendo reapreciar a decisão de privação da liberdade que, no caso, seria a decisão judicial de confirmação e manutenção do internamento compulsivo de urgência do requerente enquanto portador de anomalia psíquica, com vista a ser dado início ao processo de internamento compulsivo e à prolação da decisão final a que alude o art.º 27.º, n.º 1, da LSM.

Essa sindicância só ao recurso ordinário compete, cuja admissibilidade legal está, de resto, contemplada no n.º 1 do art.º 32.º desse diploma.

A providência de habeas corpus não é, por isso, o meio próprio para impugnar o mérito da decisão confirmatória da privação da liberdade a que se reporta o n.º 2 do art.º 26.º e/ou sindicar os pressupostos do internamento plasmados no art.º 12.º, n.º 1, ex vi n.º 1 do art.º 22.º, da LSM, como essa é a pretensão do requerente ao pugnar pela sua imediata libertação com fundamento em que “analisadas as condições legais previstas na Lei da Saúde Mental não se encontram reunidos os pressupostos para o internamento compulsivo ser aplicado ao AA” (sic).

Finalmente, o fundamento da alín. c) do n.º 2 do art.º 222.º do CPP tem-se de todo inaplicável ao caso dos autos, dado que após confirmação do internamento no prazo legal de 48 horas (art.º 26.º, n.º 2, da LSM), outro prazo não decorreu que torne ilegal a privação da liberdade do ora requerente.

Em suma, a situação de internamento de urgência por anomalia psíquica em que o requerente se encontra foi apreciada, no sentido da sua manutenção, dentro do prazo legal, por entidade competente (juiz), a qual por sua vez havia sido ordenada por entidade igualmente competente (autoridade de saúde pública) e mostra-se legalmente motivada e mantida sem exclusão de qualquer prazo legal, pelo que se conclui pela falta de fundamento bastante para que possa ser deferida a providência requerida, razão por que soçobra (art.ºs 223.º, n.º 4, alín. a) do CPP e 9.º da LSM).

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III. Decisão

Face ao exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus requerida.

Custas pelo requerente, com a taxa de justiça de 3 UC.

*

Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Junho de 2019

Francisco Caetano

Carlos Almeida

Manuel Braz