Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A011
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
SERVIDÃO
SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
PRÉDIO RÚSTICO
ÁGUAS
ÁGUAS PARTICULARES
AQUISIÇÃO DE DIREITOS
TÍTULO CONSTITUTIVO
Nº do Documento: SJ200503030000116
Data do Acordão: 03/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 1183/04
Data: 09/29/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico, as águas são partes componentes dos respectivos prédios.

II - Quando desintegradas, adquirem autonomia e são consideradas, de per si, imóveis.

III - Considera-se justo título de aquisição das águas das fontes e nascentes, conforme os casos, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões.

IV - O direito à água que nasce em prédio alheio, conforme o título da sua constituição, pode ser um direito ao pleno uso da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes, por conseguinte, às necessidades deste.

V - No primeiro caso, a figura constituída é a do direito de propriedade da água; no segundo é a da servidão.

VI - A constituição de um direito de propriedade da água depende da existência de um título capaz de a transferir.

VII - A constituição de uma servidão resulta da existência de um dos meios referidos no art. 1547 do C.C.

VIII - A constituição de um direito de servidão sobre a água, por destinação do pai de família, nos termos do art. 1549 do C.C., verifica-se no momento em que os prédios pertencentes ao mesmo dono se separam quanto ao seu domínio, ficando a pertencer a proprietários diferentes.

IX - A ressalva da declaração oposta à constituição da servidão, no momento em que os prédios ou fracções do prédio se separam quanto ao seu domínio, deve constar de documento, não bastando para o efeito uma simples declaração oral.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 2-3-00, "A" e mulher B instauraram a presente acção ordinária contra a ré C, com base nos factos alegados na petição inicial, onde pedem:

a) - seja declarado e reconhecido o direito de propriedade dos autores sobre os quatro prédios mencionados no art. 1º da petição, que adquiriram pela escritura de compra e venda de 5-8-92;

b) - seja declarada e reconhecida a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade dos autores sobre a água da mina a que se referem os arts 11º a 14º da mesma peça e a respectiva servidão de aqueduto, a favor dos ditos prédios dos autores e onerando o prédio da ré (Lote nº 93), aludido no art.12;

c) - seja a ré condenada a reconhecer os direitos indicados nas alíneas anteriores;

d) - seja a ré condenada a repor a mina e respectivos óculos de ar e luz na situação anterior, de forma à água correr livremente com o mesmo caudal;

e) - seja a ré condenada a abster-se da prática de quaisquer actos que atentem contra os referidos direitos dos autores.

A ré contestou, concluindo pela absolvição do pedido e requerendo a intervenção principal da Câmara Municipal de Fafe, como sua associada, intervenção que foi admitida.

A Câmara Municipal de Fafe aderiu à contestação apresentada pela ré.

Houve réplica.

Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou as rés na totalidade do pedido.

Apelou a ré C e a Relação de Guimarães, através do seu acórdão 29-9-04, julgou procedente a apelação e revogou a sentença recorrida para, em sua substituição, declarar e reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre os prédios mencionados no art. 1º da petição, mas absolvendo as rés dos restantes pedidos.

Agora, foram os autores que recorreram de revista, onde concluem:
1 - O Supremo Tribunal de Justiça deve exercer censura sobre o uso dos poderes da Relação, ao ter alterado a resposta ao quesito 22º de "não provado" para "provado ", por não ser possível concluir, em face dos documentos juntos pela Câmara Municipal de Fafe, que, quando os autores compraram os seus quatro prédios à Santa Casa da Misericórdia de Fafe, pela escritura de 5-8-92, já tinham sido concluídas as negociações para a aquisição do prédio que a Câmara Municipal de Fafe, por sua vez, efectuou à mesma Santa Casa, pela escritura de 23-12-92.

2 - No tocante aos direitos dos autores, não está em causa a autonomização ou destacamento da propriedade predial, nem nenhuma necessidade havia de fazer qualquer referência à água e à mina, na respectiva escritura de aquisição dos referidos prédios por parte dos mesmos autores, celebrada em 5-8-92.

3 - É que a questão da propriedade da água e da servidão da mina foi contornada, na sentença da 1ª instância, pela invocação da destinação do pai da família, o que está alegado e provado nos autos.

4 - Face ao disposto nos arts 1390, nº1 e 1549 do C.C., com a adjuvante de nada se ter declarado sobre a água e a mina, na escritura de compra e venda de 5-8-92, estas deixaram de ser parte componente do prédio onde a água nasce e que a mina atravessa, deixando, por isso, de ser componente do respectivo prédio adquirido pela Câmara Municipal.

5 - A Câmara Municipal não podia adquirir à Santa Casa o aludido prédio, livre de ónus ou encargos, pela citada escritura de 23-12-92, atentos os evidentes sinais, visíveis e permanentes, existentes no mesmo prédio, a atestar a existência da água e da mina, como direccionados e utilizados nos quatro prédios dos recorrentes, comprados pela anterior escritura de 5-8-92.

6 - Foram violados os arts 1390, nº1 e 1549 do C.C. , devendo a acção ser julgada procedente em conformidade com o decidido na 1ª instância.

A ré C, contra-alegou em defesa do julgado.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

A Relação considerou provados os factos seguintes:

1 - Através da escritura de compra e venda de 5-8-92, que constitui documento de fls 8 e segs, o autor marido, A, adquiriu à Santa Casa da Misericórdia de Fafe, pelo preço global de 2.820.000$00, os quatro prédios rústicos seguintes, que fazem parte da Quinta do Bairro, sitos no lugar do Vale, da freguesia de S. Gens, do concelho de Fafe.

- Campo do Barreiro, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 00431/130789 e inscrito na respectiva matriz sob o art. 11;

- Leiras das Compras, descrito na Conservatória sob o nº 00433/130789 e inscrito na matriz sob o art. 20;

- Leira das Latas, descrito na Conservatória sob o nº 00434/130789 e inscrito na respectiva matriz sob o art. 23;
- Leira das Latas, descrito na Conservatória sob o nº 00435/130789 e inscrito na respectiva matriz sob o art. 25.

2 - A aquisição dos referidos prédios encontra-se registada a favor do autor, nos termos da certidão de fls 12 e segs.

3 - A Câmara Municipal de Fafe, com o objectivo de criar uma zona industrial, iniciou negociações com a Santa casa da Misericórdia de Fafe, com o propósito de lhe adquirir um terreno, com cerca de 50.000 m2, na Zona do Socorro.

4 - Aquisição essa que veio a ser formalizada pela escritura pública de 23-12-92, em que figura, como compradora, a Câmara Municipal de Fafe e, como vendedora, a Santa Casa da Misericórdia de Fafe, celebrada perante o Notário Privativo da dita Câmara Municipal, quanto ao seguinte prédio:

" Bouça e terreno de mato e lenha, com a área de 50.000 m2, sito no lugar do Vale, da freguesia de S. Gens, do concelho de Fafe, a confrontar do norte com caminho público, do sul com a santa Casa da Misericórdia de Fafe e Outros, do nascente com D e Outros e do poente com E, inscrito na respectiva matriz sob o art. 18 e descrito na Conservatória sob o nº 00432/130789 ".

5 - Após a referida aquisição, a Câmara Municipal procedeu ao loteamento urbano e industrial desse terreno e, consequentemente, às necessárias obras de infra-estruturas do mesmo, dividindo-o em vários lotes.

6 - A um dos quais foi atribuído o nº93, com cerca de 3.120 m2, ficando a confrontar do norte com o arruamento, do sul com caminho de servidão, do nascente com o lote nº 94 e do poente com o lote nº 92.

7 - Esse lote nº 93 foi doado pela Câmara Municipal de Fafe à Comissão Fabriqueira da Paróquia de Santa Eulália de Fafe, como forma de subsidiar ou comparticipar o custo de despesas com certas obras da Igreja (Capelas mortuárias).

8 - Efectivamente, em Julho de 1998, o sócio e gerente da ré sociedade, F, negociou com o Padre G, Pároco de Fafe e Presidente daquela referida Comissão Fabriqueira, a compra e venda daquele lote nº 93.

9 - A Câmara Municipal de Fafe, ao adquirir o prédio em causa, pela escritura de 23-12-92, nas condições e para os fins acima referidos, adquiriu-o completamente livre de quaisquer ónus ou encargos.

10 - Em fins de Julho de 1999, os autores tiveram conhecimento que a ré sociedade trazia em construção um edifício fabril, naquele lote nº 93.

11 - Existe uma mina com a boca de entrada no lado sul do referido lote nº 93 e que, depois, se dirige para norte, tendo um óculo para limpeza e ar, dentro do mesmo lote.

12 - De seguida, a mina flecte para nascente e entra no lote nº 94, onde também tem dois óculos de limpeza e ar.

13- Seguidamente, a mina flecte para poente-norte, voltando a entrar no lote nº 93, onde tem mais um óculo de ar e limpeza e se situa a nascente da água.

14 - Tal mina, com 150 metros de comprimento, tem galeria própria cavada no subsolo dos ditos prédios, boca de entrada e de saída, quatro óculos de ar e limpeza, à superfície, e ainda cano rateiro com cerca de 15 metros de comprimento, por onde passa a água.

15 - Há mais de 20, 30 e 50 anos que os AA, por si e antecessores:
- estão na posse, uso e fruição da aludida água, bem como da servidão de aqueduto da mina.;
- utilizam a água nos prédios quatro prédios identificados no anterior nº1, para rega do milho e feijão e também para lima da erva, bem como utilizam a galeria da mina e os óculos para a condução e derivação da água;
- reparam, limpam e conservam a mina e os óculos, bem como o cano que conduz a água;
- transitam ao longo do seu percurso, desde a boca da mina até à nascente e até aos seus referidos prédios, para inspecção, reparação e acompanhamento da água.

16 - O que tudo os autores sempre têm feito à vista e com conhecimento de todos, sem oposição e interrupção, na firme convicção de que estão, como sempre estiveram, bem como toda a gente, no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre a descrita água e servidão de aqueduto de mina, a favor dos seus quatro mencionados prédios.

17 - A ré sociedade, ao proceder à construção de um edifício, naquele lote de terreno nº 93, procedeu a escavações e, ao fazê-lo, já aterrou um óculo de ar e limpeza da mina (o situado a norte-poente), exactamente onde se localiza a nascente da mina.

18 - E também nessa altura iniciou a construção do edifício.

19 - Tal óculo ficará dentro do edifício e este estava a ser construído por cima da nascente da mina.

20 - A dita obra da ré não só aterrou o aludido óculo, como também privará os autores de limpar o óculo e a mina e de cuidar da nascente da água.

21 - A própria nascente, com a construção da obra por cima dela, corre o risco de ficar prejudicada.

A 1ª instância considerou "não provado" o quesito 22º da base instrutória, resposta essa que a Relação alterou, considerando "provado" tal quesito".

Assim, perante essa alteração, a Relação também considerou provada a seguinte matéria de facto:

22 - Os autores compraram à Santa Casa da Misericórdia de Fafe os referidos quatro prédios já muito depois de concluídas as negociações para a aquisição do outro prédio que a Câmara Municipal, por sua vez, efectuou à mesma Santa Casa.

São duas as questões a decidir:

1 - Se o Supremo Tribunal de Justiça pode exercer censura sobre a alteração da resposta ao quesito 22º, efectuada pela Relação.

2 - Se pode ser reconhecido aos autores o direito de propriedade sobre a água da mina.

Vejamos:

1.

Alteração da resposta ao quesito 22º:

Com fundamento em que o teor da certidão emitida pela Câmara Municipal de Fafe, contendo a deliberação camarária de 16-10-91, que constitui documento de fls 122 a 125, não tinha sido tomado em consideração na 1ª instância, a Relação decidiu alterar a resposta ao quesito 22º da base instrutória de "não provado" para "provado".

Dessa decisão da Relação não cabe agora recurso para o Supremo, por força do preceituado no art. 712, nº6, do C.P.C., na sua actual redacção (que lhe foi introduzida pelo dec-lei 375-A/99, de 20 de Setembro), aqui aplicável, pelo que se decide não tomar conhecimento do objecto desta parte do recurso.

Consequentemente, prevalece a regra contida nos arts 722, nº2 e 729, nº2, do C.P.C., de que o eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, não podendo ser alterada a decisão proferida pela Relação quanto à matéria de facto, por não estar em causa nenhum dos casos especiais previstos na parte final, do nº2, do citado art. 722.
2.
O direito de propriedade sobre a água da mina:

A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não seja desintegrado do domínio, por lei ou negócio jurídico - art. 1344, nº1, do Cód. Civil.

Assim, "enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico, as águas são partes componentes dos respectivos prédios, tal como a terra, as pedras, etc. Quando desintegradas, adquirem autonomia e são consideradas, de per si, imóveis " (Pires de Lima e Antunes Varela , Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 196).

Se, por exemplo, um proprietário vender um veio de água existente num seu prédio desintegra da propriedade superficiária esses elementos, por um negócio jurídico, obra da sua vontade.

Consequentemente, as águas são coisas imóveis, quando desintegradas da propriedade superficiária - art. 204, nº1, al. b) do C.C.

Podem ser públicas ou particulares - arts. 1385.
Entre outras, são particulares as águas subterrâneas existentes em prédios particulares - art. 1386, nº1, al. b), do C.C.

Considera-se justo título de aquisição das águas das fontes e nascentes, conforme os casos, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões - art. 1390, n. 1, do C.C.

A usucapião, porém, só é atendida quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio - art. 1390, n. 2.

O direito à água que nasce em prédio alheio, conforme o título da sua constituição, "pode ser um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes, por conseguinte, às necessidades deste. No primeiro caso, a figura constituída é a da propriedade da água, no segundo, é a da servidão " (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., pág. 305; Antunes Varela, R.L.J. Ano 115-pág. 219/220, em Anotação ao Acórdão do S.T.J. de 15-1-81).
Consequentemente, sobre uma água existente ou nascida em prédio alheio podem constituir-se dois tipos distintos de situações:

- o direito de propriedade, sempre que, desintegrada a água da propriedade superficiária, o seu titular pode usá-la, frui-la e dispor dela livremente;

- o direito de servidão, quando, continuando a água a pertencer ao dono do solo ou de um outro prédio, se concede a terceiro a possibilidade de aproveitá-la, em função das necessidades de um prédio diferente.

A constituição de um direito de propriedade depende da existência de um título capaz de a transferir.
A constituição de uma servidão resulta da existência de um dos meios referidos no art. 1547 do C.C.: contrato, testamento, usucapião, destinação do pai de família, sentença e decisão administrativa (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed. pág. 305, Ac. S.T.J. de 18-3-82, Bol. 315-263).

Foi esta a doutrina que acabou por ser legislativamente consagrada no actual Código Civil, ao prever-se expressamente a possibilidade de constituição de qualquer dos dois direitos, na parte final do nº1, do citado art. 1390.
A possibilidade da constituição de um direito de servidão, por destinação do pai de família, sobre água que nasce em prédio alheio, está de acordo com os princípios.

Salvo declaração em contrário, deve entender-se que um prédio é sempre transmitido com todas as suas pertenças, acessórios e partes integrantes, por ser a situação que melhor corresponde à intenção normal das partes contratantes.

Ora, a água com a qual se irrigava um prédio ou uma sua parcela é, em relação a ele, um acessório, que, em princípio, deve acompanhar o principal.

A constituição de uma servidão por destinação do pai de família obedece aos requisitos do art. 1549 do C.C., que dispõe o seguinte:

" Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis ou permanentes, postos em um ou em ambos , que revelem serventia de um para o outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios , ou as duas fracções do mesmo prédio, vieram a separar-se salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento ".

Trata-se de uma servidão voluntária, que se constitui no preciso momento em que os prédios ou as fracções de determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes.
Todavia, qualificar a servidão como voluntária, não significa dizer que ela resulta de uma declaração negocial.
A servidão assenta num facto voluntário (a colocação do sinal ou sinais aparentes e permanentes), mas a relevância ou os efeitos deste facto são determinados por lei.

Pois bem.

Na petição inicial, os autores pedem o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a água utilizada na irrigação dos seus quatro prédios, que adquiriram pela escritura de 5-8-92.
Mas tal pedido não pode proceder.

Com efeito, esses quatro prédios vendidos aos autores, pela escritura de 5-8-92, e o outro prédio que foi vendido à Câmara Municipal de Fafe, pela escritura de 23-12-92, eram pertença do mesmo dono, a Santa Casa da Misericórdia de Fafe.

Na data da outorga da escritura de 5-8-92, os quatro prédios adquiridos pelos autores eram irrigados, conforme as suas necessidades, com a água de uma nascente situada naquele outro prédio que continuou pertença da Santa Casa da Misericórdia e que era conduzida para os primeiros através de uma mina, com 150 metros de comprimento.

Como a água provém de prédio alheio, os autores teriam de provar que adquiriram o direito de propriedade sobre ela, por qualquer título legítimo, pois as águas, enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou por negócio jurídico, são partes componentes do respectivo prédio onde nascem.

Ora, o direito de propriedade sobre a referida água não foi transmitido para os autores por via do mencionado contrato de compra e venda de 5-8-92, nem através da usucapião ou de qualquer outro negócio jurídico.
Na escritura de compra e venda de 5-8-92 não se faz qualquer menção à aquisição do direito de propriedade sobre a ajuizada água.

Também não estão reunidos os pressupostos da invocada usucapião, já que, continuando a água a ser pertença do prédio onde nasce, para poder ser adquirido, por usucapião, o direito de propriedade sobre a mesma água, por parte dos autores (coisa diferente é a possibilidade de constituição de um direito de servidão sobre água alheia, por destinação do pai de família), só poderá atender-se à actuação destes que seja posterior à outorga da escritura de 5-8-92.

E, desde então e até à data da instauração desta acção, nem sequer tinham decorrido oito anos, tempo insuficiente para que a usucapião, para efeito da aquisição do direito de propriedade sobre a água, pelos autores, se pudesse consumar - arts 1296 e 1390, n. 2, do C.C.
Não existe, pois, qualquer título capaz de transferir a propriedade da água para os autores.

Apercebendo-se da improcedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre a referida água, os autores vieram agora, na revista, pedir o reconhecimento de um direito de servidão sobre a mesma água, limitada às necessidades de irrigação dos seus prédios, por destinação do pai de família, com fundamento nos arts 1390, nºs 1 e 2 e 1549 do Cód. Civil.

A constituição dessa servidão depende da verificação de todos os pressupostos previstos no citado art. 1549.
A servidão constitui-se no preciso momento em que os prédios passam a pertencer a proprietários diferentes, por qualquer título negocial.

A ressalva da declaração oposta à constituição da servidão, no momento em que os prédios ou as fracções do prédio se separem quanto ao seu domínio, deve constar de documento, não bastando para o efeito uma simples declaração oral (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., pág. 635).

Todavia, os autores já não podem vir pedir, nesta acção, o reconhecimento da constituição daquela servidão de água, por destinação do pai de família, reportada ao momento da aquisição dos seus prédios, através da escritura de 5-8-92, porque isso seria alterar o pedido e a causa de pedir iniciais, alteração que o art. 273 do C.P.C. não consente nesta fase processual, por ser apenas permitida na réplica.

Por outro lado, este Supremo Tribunal também não pode condenar em objecto diverso do pedido - art. 661, nº1, do C.P.C.
É que o direito de propriedade sobre a água e o direito de servidão constituem dois tipos distintos de situações.

Como escreve Antunes Varela (R.L.J. Ano 115-220) , "existe entre os dois direitos reais uma profunda diferença, tanto no seu conteúdo, como na sua extensão ou dimensão: no primeiro caso há um direito pleno e, em princípio ilimitado sobre a coisa, que envolve a possibilidade do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que a água possa prestar; o segundo confere ao seu titular apenas a possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento de água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante ".

A invocação do direito de propriedade sobre a água que nasce em prédio alheio tem como pressuposto a sua desintegração da respectiva propriedade superficiária.
No direito de servidão, a água continua a pertencer ao dono do prédio alheio onde nasce.

Por isso, só restará aos autores defender o direito de servidão à água que nasce em prédio alheio, em nova acção, com fundamento na invocação do pertinente pedido e causa de pedir.

Termos em que negam a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 3 de Março de 2005
Azevedo Ramos,
Silva Salazar,
Ponce Leão.