Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
42/20.0JAGRD.C1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO PENAL
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VÍCIOS DO ART.º 410 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
HOMICÍDIO
TENTATIVA
DESISTÊNCIA
CULPA
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 06/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1. Relatório

1.1 No Processo Comum Colectivo n.º 42/20…, da Comarca ..., foi proferido acórdão a condenar o arguido AA como autor de um crime de homicídio tentado dos arts. 131.º, 22.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 23.º e 73.º, als. a) e b), do CP, com a agravação do art. 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006, na pena de nove anos de prisão; um crime de furto do art.º 204.º, n.º 1, al. d) do CP na pena de três anos de prisão; e, em cúmulo jurídico, na pena única de onze anos de prisão.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

“I. No crime de furto deu o Tribunal como provado que, Facto 5.º- arrancou-lhe a mochila que aquele trazia e que continha no seu interior: dois cartões de débito do …, dois carregadores de telemóvel (um de …), uma powerbank de cor castanha, rebuçados, pão indiano, água e um sumo (…)

II. Não foi atribuído um valor aos bens furtados, nem na Acusação nem no douto Acórdão recorrido,

III. mas diz-nos a experiência comum serem, no seu conjunto, de reduzido valor.

IV. E assim, face à ausência de elementos valorativos há-de concluir-se serem bens de valor não concretamente apurado.

V. Ora sendo bens de “valor não concretamente apurado” não podemos tirar daí a conclusão de que fossem bens de valor elevado meramente para atingir os propósitos da unidade de conta.

VI. Nos termos do artigo 204.º, nº 4 do Código Penal: “Não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de diminuto valor.”

VII. Valor diminuto - é aquele que que não exceder uma unidade de conta no momento da prática do facto nos termos do disposto no art.º 202.º, alínea c) do C.P. ; ora a unidade de conta para 2020 é de 102 euros.

VIII. Desta forma temos que o crime deve ser desqualificado e punido o arguido com a pena prevista para o furto simples. Como bem refere a este respeito, entre muitos outros, o Ac. da Relação de Coimbra de 02.04.2014:

IX. Sendo os bens furtados de valor diminuto, devia o arguido ter sido condenado pelo crime de furto simples, p. e p.º pelo art.º 203.º do Código Penal: 1. Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

X. O que, sem dúvida reduzirá a pena parcelar e como tal a medida da pena do cúmulo jurídico, o que desde já se requer.

XI. Da prova produzida em audiência verificou-se que o arguido voluntária e espontaneamente não deu seguimento à execução do crime de homicídio, uma vez que omitiu a prática de mais atos de execução.

XII. Como bem resulta da leitura do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – Ac. STJ de 26-3-1998, tirado no Proc. n.º 1511/97- : (…) Assim, a desistência é relevante, quando o arguido, ainda que não se saibam os verdadeiros motivos subjetivos, retrocede no seu plano criminoso, podendo livremente optar por prosseguir na sua execução em vez de retroceder.

XIII. Nos termos do artigo 24.º, nº 1 do Código Penal: A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime (…).

Ora, decorre dos factos dados como provados que assim se verificou, pois que se deu como provado que o arguido, munido de arma, deixou o ofendido ausentou-se do local.

XIV. Ora, ainda que considerando que existe dolo direto sempre temos que perante este circunstancialismo existe uma desistência voluntária da tentativa!

XV. Os crimes de furto e homicídio tentado de que o arguido vem condenado têm autonomia jurídica e merecem penas parcelares próprias; na sua avaliação conjunta descortina-se uma “unidade” de ação que se deve refletir numa menor censura quanto à pena única.

XVI. Resulta do Relatório Social junto aos autos: que o arguido sofrerá de doença do foro psiquiátrico e de adições, necessitando de toma de medicação adequada e de vigilância da mesma toma.

XVII. Não se afigura justo punir o arguido com 11 anos de prisão; punição muito grave, próxima daquela que em muitos casos é aplicada em homicídios simples, efetivamente concretizados!

XVIII. As exigências de prevenção geral e especial de ressocialização, bem com a necessidade de proteção dos bens jurídicos violados, não implicam no caso sub judice, que ao mesmo deva ser aplicada uma pena de prisão efetiva;

XIX. Realiza de forma mais adequada e suficiente as finalidades da punição a condenação do arguido como inimputável sujeito a medida de internamento em instituição adequada ao seu tratamento.

XX. O acórdão do douto Tribunal a quo violou assim, entre outras, as disposições previstas nos artigos: 410.º, nº 2 a) c) , 374.º, 375.º e 171º todos do C.P.P. ; 32. nº 1 ambos C.R.P.; e 14.º, nº 3, 22.º nº 2 b) , 22 nº. 1, 23.º, nº.2, 24.º, 1; 132.º, nº. 1, 204.º nº. 4 , 40.º nº 1, 2 e 3, 71.º n.º, alínea f),72.º, n.º 1, 77.º, n.º 4 e 91.º, n.º 1 e 2, todos do Código Penal.

NESTES TERMOS e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao Recurso interposto, nos termos exarados, revogando-se o Douto Acórdão recorrido, substituindo-o por um que julgue não provado que o arguido tenha cometido um crime de homicídio qualificado na forma tentada, antes simples, na forma tentada, e não provado igualmente o cometimento de um crime de furto qualificado, antes na sua forma simples, com as legais consequências, e declarando a sujeição do arguido a uma Medida de Segurança com sujeição a tratamento da sua doença psiquiátrica em substituição da pena de 11 anos de prisão a que foi condenado. Sem prescindir, antes por mera cautela de patrocínio,

Entendendo-se que é de manter a pena de prisão efetiva, então deve a mesma ser reduzida na medida da redução das respetivas penas parcelares, também elas respetivamente reduzidas de harmonia com os termos supra expostos.”

O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da improcedência, e concluindo:

“1. A qualificação jurídica do crime de furto qualificado é ajustada aos factos provados, inexistindo assim qualquer erro na apreciação da prova, ou insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

2. No que respeita ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, da prova produzida resulta inequívoco que há dolo e também que há actos de execução, tendo em conta desde logo a concreta actuação levada a cabo pelo arguido – disparo com arma de fogo – e a zona do corpo da vítima atingida por tal disparo.

3. Desta actuação, nos termos em que foi dada como provada, temos que o arguido praticou actos de execução (do crime que decidiu cometer), actos ainda enquadráveis na al. b), mas no mínimo, ou muito seguramente, actos da categoria prevista na al. c), do nº 2, do art. 22º, do CP. Pois o arguido, através do comportamento executado, pôs realmente em marcha um processo causal para levar ao resultado morte.

4. E, a circunstância de o arguido, após ter atingido o ofendido com o disparo efectuado com arma de fogo, e já com aquele caído no chão, ter abandonado o local, colocando-se em fuga, tal não configura qualquer desistência, como defende o recorrente, inviabilizando qualquer ponderação de aplicação do art. 24º do Código Penal.

5. Diferentemente, do contexto global dos factos provados resulta apodítico que o arguido não pôde deixar de admitir, teve de admitir, a possibilidade de o ofendido morrer na sequência da actuação que desenvolveu sobre o mesmo, sendo que tal conformação com o resultado morte é quanto basta para se configurar como punível a tentativa.

6. Nos termos do art. 91º, do Código Penal “Quando um facto descrito num tipo legal de crime for praticado por indivíduo inimputável nos termos do art. 20º, será este mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança sempre que, por virtude de anomalia psíquica e da natureza  e gravidade do facto praticado houver fundado receio que venha a cometer outros factos típicos graves” .

7. Ora, face à conclusão vertida no relatório pericial junto aos autos, não tendo o recorrente sido considerado inimputável não poderia o tribunal a quo sujeitá-lo a uma medida de segurança.

8. a pena única de 11 (onze) anos de prisão imposta ao arguido não excede a culpa e satisfaz suficientemente as exigências preventivas, afigurando-se-nos, assim, justa e adequada.

9. Por tudo o exposto entendemos não assistir qualquer razão ao recorrente nas questões que formula devendo ser o recurso julgado improcedente, mantendo-se o douto acórdão proferido.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

 “O arguido AA, mediante acórdão proferido em 27 de Outubro de 2020, no Juízo Central Criminal-J…- de ..., vem condenado, como melhor se colhe da sua leitura, pela prática em autoria material e em concurso real:

• De um crime de homicídio simples, agravado por uso de arma de fogo, na forma tentada, na pena de nove anos de prisão;

• De um crime de furto qualificado, na forma consumada, na pena de três anos de prisão;

• Na pena única de onze anos de prisão.

2. O arguido recorreu da decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra. Neste, por decisão sumária de 7 de Abril de 2021, considerou-se que o recorrente apenas visava o reexame de matéria de direito, pelo que visto o disposto no art.º 432º, n º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e em conformidade com o Ac. de fixação de jurisprudência de 14 de Março de 2007, in DR IS-A, de 4/6/ 2007, considerou que a apreciação do recurso cabia ao Supremo Tribunal de Justiça.

2.1. Vista a motivação de recurso, verifica-se que no seu corpo se referem dois erros-vícios: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, com assento legal, no art.º 410º, n º 2, alíneas a) e c), respectivamente.

O objecto do recurso é definido pelas conclusões, sem prejuízo dos poderes de cognição ex officio da instância de recurso, nos quais cabem «os vícios indicados no artigo 410º, n º 2, do Código de Processo Penal, vide Ac. n º 7/95, in DR I SA, de 28-12 1995.

Verdade se diga, que apenas o vício referido na alínea c) do art.º 410º, do Código de Processo Penal, surge nas conclusões in fine como norma violada.

2.2. Todavia, a análise detalhada do acórdão permite justamente detectar a existência de insuficiência da decisão proferida sobre a matéria de facto. Na verdade, o tribunal colectivo ao convolar o crime de roubo constante da acusação pública, para um crime de furto qualificado, não terá atentado no n º 4, do art.º 204º (desqualificação) do Código Penal, não se recenseando no acervo fáctico provado, qualquer referência ao valor sequer aproximado dos bens furtados.

Questões que relevem da revista ampliada tem a sua sede própria de apreciação na Relação, como é sabido, tendo o relator o poder que lhe é conferido no n º 3 do art.º 417º do Código de Processo Penal de, no prazo de 10 dias e sob a legal cominação notificar o recorrente para, querendo, completar ou esclarecer as conclusões apresentadas.

Neste conspecto e salvo o devido respeito por opinião contrária, somos de parecer que não se verificando in concreto a premissa em que assentaria a competência do STJ, antes se afirmando a do Tribunal da Relação de Coimbra, devem, oportunamente, os autos serem remetidos para aquele tribunal.”

Não houve resposta ao parecer. Teve lugar a conferência.


1.2. O acórdão, na parte que interessa ao recurso, tem o seguinte teor:

“2. DA QUESTÃO DE FACTO

Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:

1.º O arguido AA e o BB não se conhecem, inexistindo qualquer relação de amizade ou inimizade entre ambos.

2.º No dia … de Fevereiro de 2020, entre as 0h00 e as 07h00, BB seguia apeado, na Estrada Nacional …, vindo do centro ... com direcção ao Posto de Abastecimento …... em ....

3.º Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar seguia o arguido, que ao avistar o BB decidiu seguir no seu encalço.

4.º Quando passava junto ……, sito no …...., em ..., o arguido, munido de uma arma de fogo, pistola semi-automática, calibre 6,35 mm Browning, agarrou o ofendido por trás, e desferiu-lhe um tiro, atingindo-o na região torácica posterior direita, caindo aquele de imediato ao chão.

5.º Acto contínuo, o arguido debruçou-se sobre o ofendido, colocou-lhe o braço no pescoço e arrancou-lhe a mochila que aquele trazia e que continha no seu interior: dois cartões de débito do ..., dois carregadores de telemóvel (um de ...), uma powerbank de cor castanha, rebuçados, pão indiano, água e um sumo e após colocou-se de imediato em fuga, seguindo em direcção ao Posto de Abastecimento ....

6º O ofendido BB conseguiu deslocar-se até ao Posto de Combustível ….... que dista a cerca de 300 metros onde veio a ser socorrido pelo INEM e encaminhado para o Hospital ....

7.º Mercê daquela agressão, o ofendido sofreu um ferimento na região torácica posterior, região para vertebral direita, designadamente entre o pedículo D7 e o 7.º arco costal, sendo que o projéctil se encontra alojado junto ao osso, não tendo sido removido, por a sua remoção representar perigo para a vida do ofendido.

8.º Tais lesões foram causa directa e necessária de 10 dias de doença, com 10 dias afectação da capacidade de trabalho geral e afectação da capacidade de trabalho profissional, e provocaram as seguintes sequelas: “interposição de projectil de arma de fogo entre a apófise transversa de D7 e 7º aro costal, o que poderá devido à instabilidade causar alguma dor.”

9.º O arguido foi sujeito a revista pessoal, pelas 10h00 do dia 05.02.2020 tendo sido encontrado na sua posse, duas navalhas e um pacote de plástico contendo uma substância orgânica de cor verde, com peso total de 4,26, aparentando tratar-se de produto estupefaciente, designadamente, marijuana.

10.º No dia … de Fevereiro de 2020, pelas 10h45, o arguido detinha no interior da sua residência sita na …, em ...:

- No quarto, por baixo do colchão da cama, uma embalagem plástica contendo resíduos de uma substância aparentemente orgânica e que se presume ser haxixe;

- No sofá, por baixo das almofadas, uma balança de precisão e dois pacotes de papel contendo produto estupefaciente, que se presume ser, MDMA e marijuana;

No piso superior da casa, num quarto de dormir: uma embalagem aberta contendo 3 cartuchos de pirotecnia da marca ...; dois tubos da marca ..., contendo, respetivamente, 2 e 5 cartuchos de pirotecnia para serem disparados por arma apropriada, um cilindro de cartão com lixa nas extremidades, aparentando ser uma carga explosiva de foguete pirotécnico; 16 munições de 8mm K, de salva, dentro de caixa de plástico; 8 munições de 9mm, de salva, da marca ....

11.º O arguido conhecia as potencialidades letais da arma de fogo que utilizou para disparar sobre o ofendido e não obstante utilizou-a, sabendo que a mesma era meio idóneo de provocar no corpo do ofendido lesões capazes de acarretar a morte.

12.º Ao efetuar o disparo a curta distância, na zona do corpo em causa, junto a órgão vital (pulmões), o arguido agiu com intenção de tirar a vida ao ofendido BB, resultado que não logrou alcançar apenas por circunstâncias totalmente alheias à sua vontade.

13.º Mais sabia que a sua actuação, munido com uma arma de fogo, com que prévia e deliberadamente se havia munido para o efeito, era inesperada e sub-reptícia, reduzindo de forma substancial a possibilidade de BB se defender.

14.º Ao arrancar a mochila    do ofendido, o arguido          agiu ainda deliberadamente, com intenção de fazer seus e de integrar no respectivo património os objectos que levou consigo.

15º Sabia que os objectos não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade do respectivo proprietário.

16.º Bem sabia que só lograva alcançar os seus intentos de fazer seus os objectos pertencentes ao ofendido, mediante a violência com que actuou, nomeadamente o uso da arma, que utilizou.

17.º O arguido conhecia as características da arma descrita em 3.º e sabia que para a ter na sua posse, detê-la, utilizá-la ou guardá-la necessitava de ser titular de licença de uso e porte de arma, emitida pelo organismo competente, licença que sabia não deter, mas mesmo assim não se absteve de agir do modo descrito, o que quis.

18.º Agiu de forma livre deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

19. º Colhe-se do relatório de exame de psiquiatria forense, que para os factos em questão “… para os factos em questão a capacidade de determinação (do arguido) e, sobretudo, de avaliação poderia encontrar-se diminuída em virtude de eventuais consumos de substâncias psicotrópicas e a descontinuação do esquema terapêutico em curso. Desta forma, tal contexto justificará do ponto de vista médico legal uma diminuição da sua imputabilidade, representando, assim, uma imputabilidade diminuída.”

20.º Colhe-se do relatório social para determinação da sanção elaborado pela DGRSP, que:

“I - Dados relevantes do processo de socialização

O processo de crescimento de AA decorreu junto do agregado de origem, composto pelos progenitores e uma irmã mais nova. O arguido descreve um ambiente familiar adequado, onde lhe foram proporcionadas condições para o desenvolvimento de um percurso de vida normativo.

Os progenitores divorciaram-se há 15 anos, tendo ambos constituído novos agregados. Este facto, aparentemente, não teve impacto no arguido que o descreve com normalidade.

AA iniciou o seu          percurso escolar na idade própria, registando algumas dificuldades de aprendizagem. Obtido o 5º ano de escolaridade, aos 13 anos de idade, emigra com os progenitores para a Alemanha No país de acolhimento prosseguiu os estudos, através da frequência de formação profissional de Hotelaria e Restauração, que lhe daria a equivalência ao 3º ciclo. Iniciou atividade laboral aos 19 anos, sem concluir a formação académica, na área da restauração. Cerca de 2 anos depois regressa a Portugal, segundo o próprio para acompanhar a namorada cujos progenitores tinham um restaurante.

Em idade que não conseguimos apurar foi diagnosticado com esquizofrenia simples, sujeito a terapêutica medicamentosa, face à qual desde sempre revelou dificuldades no seu cumprimento, necessitando para tal de supervisão clínica ou familiar próximas.

Apresenta percurso aditivo desde a adolescência, comportamento que desvaloriza, referenciando consumos de haxixe e álcool ocasionais mas que nunca interferiram na sua capacidade de trabalho.

O arguido tem antecedentes criminais, tendo cumprido 3 anos de prisão em Espanha, sendo libertado em Julho de 2010. Nove dias após a sua libertação cometeu novo crime, desta feita na sua zona de residência (...- ...), vindo a ser condenado como inimputável perigoso na medida de internamento em instituição adequada para tratamento, pelo período mínimo de 3 anos, pela prática do crime de homicídio na forma tentada. A referida medida foi cumprida na Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do EP…. e a 03.11.2018 foi colocado em liberdade para prova, estando autorizado a residir com a progenitora na Alemanha.

Na Alemanha obteve colocação laboral na manutenção de espaços desportivos, trabalhando na mesma empresa da progenitora e do padrasto.

II - Condições sociais e pessoais

A data dos factos constantes da acusação, AA encontrava-se em liberdade para prova e contrariando a decisão proferida pelo Tribunal de Execução de Penas regressou a Portugal em Maio de 2019, vindo … sem a devida autorização, invocando para tal sentir-se controlado pela sua família de origem. Residia na casa que fora da sua avó materna, em ….., atualmente propriedade de um tio emigrado em França.

Regressado a Portugal procedeu a inscrição no centro de emprego, sendo-lhe atribuído o rendimento social de inserção. Ao abrigo do contrato programa inscreveu-se novamente no curso de Hotelaria e Restauração.

No seu meio social o arguido é conotado com o consumo de estupefacientes e álcool e com um comportamento provocador e ameaçador, causando a sua presença distanciamento social e receio na comunidade local.

A progenitora com quem residiu na ….e que se encontra a gerir o dinheiro amealhado pelo arguido no exercício da atividade profissional referiu-nos não apoiar o descendente quando acabarem as suas poupanças e não consentir no regresso dele ao seu agregado, face aos comportamentos agressivos protagonizados quando esteve na Alemanha e dirigidos ao padrasto. Atualmente mantém com o arguido apenas contactos telefónicos. Os outros familiares, residentes na localidade supra referida, revelam receio face aos seus comportamentos, considerando goradas todas as tentativas feitas para que o arguido se reorganizasse, pelo que nesta fase não possui qualquer retaguarda de apoio.

III - Impacto da situação jurídico-penal

O arguido deu entrada no EP... a 13.12.2020 na situação de preventivo à ordem do presente processo.

Face à natureza dos factos subjacentes ao mesmo, o arguido rejeitou manifestar qualquer opinião. Nega conhecer o ofendido e não reconhece a necessidade de intervenção da justiça para a resolução de quaisquer conflitos/problemas que possa apresentar.

Em ambiente penitenciário o arguido tem apresentado uma postura de respeito face ao normativo institucional e adaptada no relacionamento com os funcionários e os pares. Solicitou e foi colocado na cozinha, mas não se adaptou à dinâmica da função e desistiu, permanecendo inativo. Beneficia de consultas de psicologia e psiquiatria por parte dos serviços clínicos do estabelecimento prisional.

Contudo, o arguido nega ser algo do referido acompanhamento, que aliás considera desnecessário, precisando apenas de medicação para dormir.

O arguido recusa abordar o seu projeto de vida futuro, considerando que o mesmo se insere na sua esfera privada e como tal apenas a si diz respeito.

AA não possui qualquer retaguarda familiar, enquadramento habitacional ou apoio económico. A família, nomeadamente a sua progenitora, acusa desgaste face aos seus comportamentos.

IV – Conclusão

AA possui doença do foro psiquiátrico e paralelamente também apresenta problemática aditiva, não cumprindo a toma da medicação com rigor.

O arguido já foi anteriormente condenado por crime de igual natureza do subjacente aos presentes autos, tendo cumprido a medida de internamento na Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do EP....

Encontrava-se em liberdade para prova residindo na Alemanha e beneficiando do apoio agregado da progenitora. No entanto sentindo-se demasiado controlado pela família, abandonou esta rede de apoio para regressar a Portugal onde não seria supervisionado.

AA não beneficia atualmente de qualquer apoio do seu agregado de origem com quem atualmente apenas mantém contactos telefónicos.

Em meio prisional o arguido tem desenvolvido comportamento globalmente adaptado, com respeito pelas normas e regras, sendo alvo de consultas de psicologia e psiquiatria, facto que contudo nega.

Face ao exposto, consideramos que em caso de condenação o arguido deverá manter o acompanhamento clínico psiquiátrico, bem como acompanhamento especializado às suas problemáticas aditivas.”

21.º O arguido tem antecedentes criminais, a saber:

a.  Por sentença proferida nos autos de processo sumário n.º 76/01… do TJ da ..., … juízo, foi o arguido condenado em 09/06/01, pela autoria de um crime de condução sem habilitação legal pp art.º 3/1 do DL 2/98, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 300 escudos, por factos de 09/06/01.

b. Por acórdão proferido nos autos de processo comum colectivo n.º 121/… do … Juízo do Tribunal Judicial da ..., foi o arguido condenado em datado de 18/02/2011, pela autoria de um criem de homicídio na forma tentada pp pelos art.º 22, 23 e 131 do CP, praticado em 27/07/2010, tendo-lhe sido aplicada e medida de segurança de internamento com a duração de três anos.

(…)

De direito

Dispôe o art.º 131.º do CP que “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”

O bem jurídico tutelado é a vida humana inviolável, correspondendo à tutela constitucional da vida.

Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2007, vol. I, pp. 446/7, explicam-nos que “O direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”.

Efectivamente, o direito à vida é conditio sine qua non do gozo de todos os outros direitos.

E sobre tentativa dispõe, o artigo 22.º, n.º 1, do Código Penal que “Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que chegue a consumar-se.”

No n.º 2 do mesmo normativo, enumera-se as situações em que estamos perante actos de execução.

Assim, teremos que ter, antes de mais, a vontade do agente de cometer a infracção e o começo da sua execução, havendo, depois, uma interrupção do processo executivo do crime – cfr. Leal Henriques e Simas Santos in Código Penal Anotado, 1.º vol., 3ª ed., 2002, p. 282.

Ora, no caso dos autos, está provado que “No dia … de Fevereiro de 2020, entre as 0h00 e as 07h00, BB seguia apeado, na Estrada Nacional …, vindo do centro ... com direcção ao Posto de Abastecimento …. em ...; o arguido, que ao avistar o BB decidiu seguir no seu encalço; o arguido, munido de uma arma de fogo, pistola semi-automática, calibre 6,35 mm Browning, agarrou o ofendido por trás, e desferiu-lhe um tiro, atingindo-o na região torácica posterior direita, caindo aquele de imediato ao chã; o ofendido BB conseguiu deslocar-se até ao Posto de Combustível da ... que dista a cerca de 300 metros onde veio a ser socorrido pelo INEM e encaminhado para o Hospital ...; .Mercê daquela agressão, o ofendido sofreu um ferimento na região torácica posterior, região  para vertebral direita, designadamente entre o pedículo D7 e o 7.º arco costal, sendo que o projéctil se encontra alojado junto ao osso, não tendo sido removido, por a sua remoção representar perigo para a vida do ofendido: Tais lesões foram causa directa e necessária de 10 dias de doença, com 10 dias afectação da capacidade de trabalho geral e afectação da capacidade de trabalho profissional, e provocaram as seguintes sequelas: “interposição de projectil de arma de fogo entre a apófise transversa de D7 e 7º aro costal, o que poderá devido à instabilidade causar alguma dor.” O arguido conhecia as potencialidades letais da arma de fogo que utilizou para disparar sobre o ofendido e não obstante utilizou-a, sabendo que a mesma era meio idóneo de provocar no corpo do ofendido lesões capazes de acarretar a morte; AO efetuar o disparo a curta distância, na zona do corpo em causa, junto a órgão vital (pulmões), o arguido agiu com intenção de tirar a vida ao ofendido BB, resultado que não logrou alcançar apenas por circunstâncias totalmente alheias à sua vontade; o arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de tirar a vida ao ofendido.

Face a tal factualidade (instrumento de agressão (ARMA) zona atingida quando o ofendido se encontrava de costas, as graves lesões provocadas que eram idóneos a provocar a morte, o que apenas não sucedeu por motivos alheios à sua vontade (rápida intervenção médica) pelo que se tem por verificados os pressupostos do crime de Homicídio na forma tentada.

Estarão preenchidas as agravantes qualificativas das al. 132.º, n.º 1 e 2, alínea g), j) do n.º 2 do art.º 132 do C. Penal?

Dispõe o art.º 132/d do CP que é susceptível e revelar especial censurabilidade ou perversidade, entre outras, a circunstãncia de o agente (…)

g) Tem em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime; h) Pratica o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;

No caso dos autos, está provado que o arguido agarrou o ofendido por trás, e desferiu-lhe um tiro, atingindo-o na região torácica posterior direita, caindo aquele de imediato ao chão; que acto contínuo, se debruçou sobre o ofendido, colocou-lhe o braço no pescoço e arrancou-lhe a mochila que aquele trazia e que continha no seu interior: sabia que a sua actuação, munido com uma arma de fogo, com que prévia e deliberadamente se havia munido para o efeito, era inesperada e sub-reptícia, reduzindo de forma substancial a possibilidade de BB se defender. Ora, tal factualidade (uso de arma de fogo) não preenche manifestamente o conceito de meio particularmente perigoso (nestes sentido o Acórdãos STJ / Processo: 3839/16.1JAPRT.P1.S1, datado de 13-12-2018) nem está provado que tenha agido com intenção de  facilitar o crime ante e apenas do dolo de homicídio, o que se decide.

Sobre a agravação preceitua o art. 86.º, do RJAM:

«(…)

3 - As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.

4 - Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente».

A agravação funciona, assim, para o crime de homicídio, porque o arguido fez uso da arma, enquanto arma de fogo, e, nesta conformidade, como instrumento na sua função específica e fim para que foi construído, disparando um tiro que conforme supra se explicitou. cfr. Ac. do STJ de 30/10/2013, www.pgdlisboa.pt.

Crime de roubo

É, ainda, imputado ao arguido a autoria de um crime de roubo pp 201/1/2 /a do CP.

Dispõe o nº 1 do artº 210º que quem com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair ou constranger a que lhe seja entregue coisa móvel alheia, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

A alínea a) do nº 2 da mesma disposição legal, por sua vez, agrava a punição para pena de prisão de 3 a 15 anos se se qualquer dos agentes produzir perigo para a vida ou lhe infligir, pelo menos por negligência, ofensa à integridade física grave.

O crime de roubo é um crime complexo por uma vez que contém na sua tipicidade, como elemento essencial, para além da ofensa da propriedade e detenção de coisas móveis a lesão de bens jurídicos eminentemente pessoais : o direito à vida – bem supremo do homem - à liberdade - de decisão, de acção de movimentos - com os reflexos direitos à saúde, à segurança (com as componentes do direito à tranquilidade e ao sossego) e à integridade física, referem-se a bens eminentemente pessoais, que merecendo protecção ao nível da incriminação, entre outros, no que ao caso importa, através do crime de roubo, merecem tutela a nível constitucional – artigos 24º, 25º, 27º, 64º da Constituição da República – e da lei civil, no reconhecimento dos direitos de personalidade - artigo 70º do Código Civil.

O preenchimento do tipo objectivo exige a subtracção de coisa alheia ou o constrangimento a que ela seja entregue ao agente. A primeira traduz-se na passagem da coisa móvel da esfera de domínio do detentor para a esfera de domínio do agente, contra a vontade daquele.

O constrangimento implica uma forma de actuação caracterizada por um obrigar ou pressionar que, necessariamente afecta a liberdade de acção e/ou decisão da vítima Comentário Conimbricence do Código Penal, II, 166.

Por outro lado, aquela subtracção ou constrangimento tem que ser realizados através de determinados meios: a violência contra uma pessoa, a ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física ou a colocação da vítima na impossibilidade de resistir, sendo que esta violência não visa apenas a violência física, mas também a moral ou psicológica que crie ou busque criar no espírito da vítima um receio fundado de sério e iminente mal susceptível de paralisar a reacção contra o agente ou no sentido de qualquer expediente incutidor de medo que prive a dita vítima de poder agir.

Neste sentido AC.STJ 29.09.99, CJ, III, 161.

Quanto ao tipo subjectivo consubstancia-se, tal como sucede no crime de furto na ilegítima intenção de apropriação, isto é, na intenção de o agente, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa, a haver para si ou para outrem, integrando-a na sua esfera patrimonial. Por outro lado, é ainda necessário que o agente tenha consciência da adequação do meio ao constrangimento à entrega do bem.

Temos por provado, como supra se explicitou, que o arguido após ter disparado sobre a vítima nas circunstâncias supra descritas e vendo esta prostrada no chão, se apropriou da sua mochila. Quid juris?

Sumariou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 508/05.1GLLE.S1 Datado de 29-10-2009, que:

“I - Nas situações em que ocorre um roubo doloso e um homicídio doloso origina-se um concurso de crimes. O crime de roubo consome as ofensas corporais ínsitas na violência, as ofensas corporais graves e o homicídio negligente, mas não o homicídio doloso.

II - No caso em que o homicídio se destina a facilitar a execução da apropriação dos bens da vítima o concurso estabelece-se entre o homicídio e o furto e não entre o homicídio e o roubo, pois a violência já é punida no âmbito do homicídio.

A este propósito, escreveu-se no mesmo Comentário Conimbricense que:

“O perigo para a vida do ofendido, no roubo, há-de provir da circunstância do agente ter provocado dolosamente, pelos meios usados para roubar, uma situação em que haja a possibilidade imediata de morte, só dependendo do acaso a sua verificação ou não (mesma obra, pág. 184). Mas se o resultado “morte” for intencionalmente provocado pelo agente, antes, durante ou após o roubo, então há concurso efectivo com o crime de homicídio voluntário.

Escreveu, ainda que, no mesmo Comentário Conimbricense «Quanto a nós, a única dúvida será a de saber se o concurso se estabelece com o roubo se com o furto; parece que será com este último, pois a violência já é punida no âmbito do homicídio qualificado - neste sentido pronunciou-se o Ac. da RC de 11-2-87 BMJ 364º, 949: "se o homicídio é cometido antes da apropriação, visando prepará-la, facilitá-la ou executá-la, a mesma apropriação já não deve ser qualificada pela violência, na medida em que o bem jurídico subjacente a esta já tinha a respectiva protecção contida na punição do homicídio (neste caso podem existir em acumulação real, os crimes de homicídio e de furto, em qualquer das suas formas próprias)"; o concurso será, no entanto, com o roubo, se a violência exercida para subtrair o bem se puder distinguir da usada para matar - p. ex., se o agente usa de violência para subtrair o bem e depois mata para encobrir o roubo.»

Assim e repetindo, temos que o arguido após ter dado o tiro no ofendido, atingindo-o na região torácica posterior direita e este estar ao chão, debruçou-se sobre ele,     arrancando-lhe a mochila que aquele trazia e que continha no seu interior, levando-a consigo e fazendo sua.

Ora, tal conduta integra a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de furto p e p. plo art.º 204/1 / d do CP, para o qual se convola a conduta do arguido.

É, ainda, imputado ao arguido a autoria de um crime de detenção de arma proibida pp - um crime de detenção de arma proibida, pº e pº pelos artº 2.º, alínea q). ae) e az), 3.º, n.º 4, alínea a), 6.º e 86º, nº 1, al. c), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção actual.

O art.º 86 /1 do referido diploma legal dispõe que :

1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:

c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido.

No caso, está provado que o arguido, munido de uma arma de fogo, pistola semi-automática, calibre 6,35 mm Browning, agarrou o ofendido por trás, e desferiu-lhe um tiro, atingindo-o na região torácica posterior direita, caindo aquele de imediato ao chão; que não era detentor de licença de uso e porte de arma, como sabia que ao agir da forma descrita o fazia fora das condições legais e em contrário das prescrições das autoridades competentes.

Face a tal materialidade mostram.se preenchidos os elementos típicos do crime previsto e punido pelo art.º 86/1/c da lei armas, sendo a conduta do arguido punida pelo crime mais grave

Importa, saber se existe concurso efectivo entre a tentativa de homicídio qualificado e o crime de detenção de arma proibida. É incontroverso que para determinar a unidade ou pluralidade de crimes o art.º 30.º do Código Penal consagra o chamado critério teleológico ou normativo, segundo o qual o número de crimes determina-se pelo número de tipos legais de crime realizados (concurso heterogéneo) ou pelo número de vezes que o mesmo tipo legal é preenchido pela conduta do agente (e temos o concurso homogéneo).

Por conseguinte, no ordenamento jurídico-penal português, o critério de distinção na unidade ou pluralidade de tipos legais violados pela actuação de um mesmo agente

Do concurso (efectivo) de crimes distingue-se o concurso aparente, ou simples concurso de normas, em que os factos são formalmente subsumíveis a várias normas incriminadoras que entre si podem estar numa relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consunção e em que a aplicação de uma delas (a norma punitiva prevalecente) afasta a aplicação das demais, assim se impedindo uma dupla incriminação.

Associada à problemática da unidade/pluralidade de crimes está a ideia de tutela de bens jurídicos essenciais.

Os tipos legais de homicídio (art.º 131.º do Código Penal) e de detenção de arma proibida (art.º 86.º da Lei n.º 5/006, de 23 de Fevereiro) tutelam bens jurídicos distintos.

No entanto, quando o primeiro dos referidos ilícitos típicos é cometido com recurso a arma proibida, é controversa a questão de saber se ao agente deve ser imputado um só crime (de homicídio) ou se há pluralidade de crimes.

É firme a orientação da jurisprudência no sentido de que, não sendo a utilização da arma proibida elemento integrante  de uma circunstância qualificativa do homicídio (isto é, se o uso de uma arma proibida não é subsumível a um dos exemplos-padrão do n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal), haverá concurso efectivo. Neste sentido a posição expressa por Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 407) que considera haver concurso efectivo entre o crime de homicídio e os crimes de perigo comum com a mesma estrutura típica do crime tipificado no art.º 272.º, designadamente “entre o crime de homicídio qualificado e o crime de posse de arma proibida previsto no artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23.2, salvo quando a arma proibida seja o único factor qualificativo da acção”.

Em sentido oposto, o acórdão do STJ, de 31.03.2011, Processo n.º 361/10.3 GBLLE; Relator: Cons. Manuel Braz; disponível in www.dgsi.pt/jstj), acolhendo os ensinamentos do Professor Figueiredo Dias, segundo o qual «é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica» existente no comportamento global do agente «que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de (…) crimes», decidiu que, no caso que apreciou, haveria concurso aparente de crimes ou simples concurso de normas.

Também neste sentido o Ac. do STJ proferido no processo n.º 32/13.9JDLSB.E1.S1, datado de 30-10-2014, em que se sumariou” (…)

V — Figueiredo Dias começa por estabelecer uma distinção, diríamos radical, entre aquilo que designa como unidade de normas ou de leis e concurso de crimes. Abandonando os critérios baseados na unidade e pluralidade de tipos de crimes violados e o de unidade e pluralidade de acções praticadas pelo agente, como critérios possíveis de distinção entre a unidade e pluralidade de crimes, avança com um novo critério — o critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude jurídico-penal do comportamento global. A unidade ou pluralidade não será mais uma unidade ou pluralidade de crimes, mas de factos puníveis.

VI — Assim se deverá distinguir entre os casos do concurso efectivo, próprio ou puro (previsto no art. 30.º, n.º 1 do CP) — recondutível a “uma pluralidade sentidos sociais autónomos dos ilícitos-típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis” (Figueiredo Dias) — e os casos de concurso aparente, impuro ou impróprio (também integrado no âmbito do art. 30.º, n.º    1 do CP) —      caracterizado pelo facto de o comportamento ser “dominado por um único sentido autónomo de ilicitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados” (Figueiredo Dias).

VII — Fazem, pois, parte do âmbito do concurso de crimes o concurso efectivo, caracterizado por uma “pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global”, revelando o comportamento uma “pluralidade de sentidos sociais de ilicitude que, segundo o mandamento da esgotante apreciação contido na proibição jurídico-constitucional da dupla valoração, devem ser integralmente valorados para efeito de punição” (Figueiredo Dias). Estes casos serão punidos segundo o regime previsto no art. 77.º do CP.

VIII — Coisa diferente ocorre no então designado “concurso aparente” em que, apesar de se entender que ao comportamento se aplica uma pluralidade de normas típicas, apesar disto aquela presunção de pluralidade de sentidos do ilícito autónomos é elidida, “porque os sentidos singulares de ilicitude típica presentes  no comportamento          global se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem, de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social” (Figueiredo Dias).

IX — A unidade de sentido de ilicitude autónoma é dada pelo facto de, apesar de o comportamento integrar diversos tipos, haver no comportamento global um sentido de ilicitude dominante e fundamental. A determinação do sentido de ilicitude absolutamente dominante é aferida segundo diversos critérios — o critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito global-final, o critério do crime instrumental ou crime-meio, o critério da unidade de desígnio criminoso, o critério da conexão espacio-temporal das realizações típicas, e o critério dos diferentes estádios de evolução ou de intensidade da realização global.

X — Ou seja, o concurso aparente em Figueiredo Dias é um concurso de ilícitos que em função da situação concreta se podem sobrepor (total ou parcialmente) ou não. Diferentemente daquilo que era entendido como concurso aparente em Eduardo Correia, que consistia, na verdade, num concurso de normas, pelo que a simples análise abstrata dos tipos legais de crime em conflito nos permitia chegar a uma conclusão, independentemente das concretas circunstâncias do caso.”

No caso dos autos está provado o uso da arma como o meio de que se serviu o arguido para cometer o seu desígnio ( homicídio tentado), esgotando-se a actuação criminosa na sua consumação, pelo que se pode falar num comportamento global em que se verifica “entre os sentidos de ilícito coexistentes” uma conexão objectiva e subjectiva tal que o sentido de ilícito da acção de matar outra pessoa surge como absolutamente dominante ou principal em relação ao sentido de ilícito da detenção de arma proibida e por isso será desajustado falar em concurso efectivo de crimes.

Há assim que concluir que o arguido apenas será punido pelo homicídio tentado.

Da medida da pena

O crime de homicídio simples é punível com pena de 8 a 16 anos de prisão (art. 131.º, do CP). Sendo tentado é punível com pena de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e  meses de prisão (art. 22.º, 23.º n.º 1 e 2, 73.º n.º 1 al. a) e b), do CP).

Nos termos do art. 86.º, n.º 3 e 4, do RJAM, as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, não podendo em caso algum exceder o limite máximo de 25 anos da pena de prisão.

Assim, o crime de homicídio simples tentado, agravado pelo uso de arma de fogo, passa a ser punível com pena de 2 anos e 18 dias a 14 anos, 1 mês e 20 dias de prisão.

A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º, n.º 1 e 2 do CP).

A prevenção e a culpa são pois instrumentos jurídicos obrigatoriamente atendíveis e necessariamente determinantes para balizar a medida da pena concreta a aplicar.

Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para que se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituição jurídico - penais.

Um dos princípios basilares do C Penal, é o que reside na compreensão de que toda a pena assenta no suporte axiológico-normativo de uma culpa concreta, como desde logo inculca o seu artigo 13º, este princípio da culpa significa não só que não há pena sem culpa, como também que é a culpa que decide da medida da pena, ou seja que a culpa não constitui apenas o pressuposto fundamento da validade da pena mas que a sua medida se afirma como limite máximo da pena, Acs. STJ de 8.10.98 e de 15.4.99, respectivamente, nos processo nº. 410/98 e 243/99 ambos da 3ª secção.

Na determinação da medida concreta da pena, dispõe o artigo 71º/1 C Penal revisto, que é feita, dentro dos limites definidos na Lei, em função da culpa do agente e das exigências prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, designadamente de entre as que constam do elenco do nº. 2 de tal norma legal.

Com a determinação de que sejam tomadas em consideração as exigências de prevenção geral, procura dar-se satisfação à necessidade da comunidade, de punição do caso concreto, tendo-se em conta, de igual modo, a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos e com o recurso à vertente da prevenção especial, procura satisfazer-se as exigências de socialização do agente com vista à sua integração na comunidade.

As expectativas da comunidade saem goradas, a confiança na validade das normas jurídicas esvai-se, o elemento dissuasor não passa de uma miragem, quando a medida concreta da pena não possui o vigor adequado à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, respeitando o limite da culpa.

Uma pena de medida superior à culpa é injusta, uma pena insuficiente para satisfazer os fins da prevenção constitui um desperdício, no expressivo dizer do Ac. STJ de 1.4.98, in CJ, S, II, 175

Assim, para os efeitos do art. 71º, n.º 2, do Código Penal, relevam designadamente as seguintes circunstâncias concretas:

O dolo é directo e intenso, o que faz aumentar as exigências de culpa.

- O modo e o local de execução do facto (tiro pelas costas e local ermo). As necessidades de reprovação destes  tipos de crime que são particularmente elevadas;

São também elevadas as exigências de prevenção geral, atenta a gravidade dos crime, por constituir atentado ao bem jurídico supremo (vida) ;

 O arguido tem a seu favor a diminuição da culpa por força da imputabilidade diminuída.

Face ao exposto (ilicitude e culpa nos termos expostos) e atento as necessidades de prevenção geral que atingem as suas exigências mais prementes e elevadas, pois que ninguém se sentirá seguro, nem haverá sociedade que subsista se a punição das actuações homicidas ficarem aquém da necessidade, por inadequadas ou desproporcionais ao âmbito de protecção da norma na defesa e salvaguarda da vida humana e, por sua vez sendo também intensas as exigências de prevenção especial, mostram-se intensas, na medida em que o arguido demonstrou ter uma personalidade que não respeita os mais elementares valores humanos, como no caso, a vida e o património alheios, valores de apreensão básica por inerentes ao nível das aprendizagens básicas decorrentes da educação e da experiência de vida, o que sem prejuízo de relevar para efeitos de diminuir a culpa não é suficiente para a atenuação especial da pena.

Assim, na ponderação da ilicitude global dos factos, culpa do arguido e as exigências de prevenção requeridas condena-se o arguido na pena de nove anos de prisão.

O crime de furto é punível com pena de prisão ou com pena de multa. O sistema jurídico-penal português estabelece uma preferência pelas reacções criminais não privativas da liberdade, pelo que se deve dar prevalência à pena não privativa da liberdade, desde que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade), nos termos do preceituado nos artigos 40.º e 70.º do Código Penal e na esteira do princípio da necessidade consagrado no artigo 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

Estipula o artigo 70.º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena de prisão e pena não privativa da liberdade, o tribunal da preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

“Subjaz à norma constante do art.70 do C. Penal toda a filosofia informadora do sistema punitivo vertido no C. Penal. Ou seja, a de quer embora aceitando a existência de prisão ( ou pena corporal) como pena principal para os casos de maior gravidade dos ilícitos, ou de certas formas de vida, a impõem ou justificam, a recorrência às penas privativas de liberdade só deverá ter lugar quando, face ao circunstancialismo que se perfile, se não apresentem adequadas, suficientes ou convenientes, as sanções não detentivas, às quais não é de recusar elevada capacidade ( ou potencialidade) ressocializadora.” AcSTJ de 1/01/25, proc. 3406/00-5.ª, citado em anotação ao art. º 70, in C. Penal Anotado de ( 3.º edição) de Manuel de Oliveira leal Henriques e Manuel de Sima Santos.

Do exposto resulta que na determinação da pena aplicável se devem ter presentes os princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação.

Assim, tem que se atender às necessidades de prevenção geral quer quanto ao crime de furto são elevadas, como elevadas as razões de prevenção especial face aos antecedentes criminais do arguido  pelo que se mostram prementes as necessidades de aplicação de pena de prisão como necessária e adequadas às finalidades obrigatoriamente atendíveis e necessariamente determinantes para balizar a medida da pena concreta a aplicar, pelo que se opta pela pena de prisão.

Face à moldura penal do crime (pena de prisão até cinco anos) e aos critérios supra expostos fixa-se a pena em 3 anos de prisão

Dispõe o art.º 77.º do C. Penal que quando “ … alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.

A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Assim, a pena única do concurso ― formada no sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes (sistema de acumulação) ― deve ser fixada entre os três anos e os 12 anos de prisão -tendo em conta os factos e a personalidade do agente.

- Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta, entre outros, as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso; e

– na consideração da personalidade (que como tal se manifesta na totalidade dos factos em concurso) devem ser avaliados e determinados os termos em que ela se projeta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa ou antes se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente.

No caso há que anotar, desde logo, a conduta do arguido que se dirigiu contra o bem jurídico supremo – vida- e, ainda contra o património globalmente considerado.

Ao nível da personalidade do arguido, cabe referir que agiu sempre com dolo direto.

Acresce ― e tal terá de ser valorado contra o arguido ― que os factos revelam uma intensidade criminosa muito acentuada, pela sua reiteração.

Assim, tudo considerado, é adequado condenar o arguido na pena única de onze anos de prisão.”


2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, e sem prejuízo da ocorrência de eventuais questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso circunscreve-se à apreciação das questões seguintes: (a) o erro de subsunção no respeitante ao crime de furto; (b) a “desistência” relativamente ao crime de homicídio tentado; (c) a determinação da sanção, a medida e a espécie de pena.


2.1. Questão prévia

Tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto suscitado, no parecer, a questão prévia da competência deste Supremo Tribunal de Justiça para conhecer do recurso, cumpre começar por justificar sumariamente essa competência.

Da leitura de todo o recurso, e embora na motivação se faça efectivamente alusão a dois dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, resulta que a impugnação do arguido se circunscreve realmente a uma impugnação em matéria de direito.

Daí que a Relação de Coimbra, em decisão sumária, tenha considerado que o recorrente apenas visava o reexame de matéria de direito, e que, atento o disposto no art. 432.º, n.º 1, al. c), CPP, a apreciação do recurso caberia ao Supremo Tribunal de Justiça.

É certo que na motivação de recurso, como o Senhor Procurador-Geral Adjunto bem assinala, se encontra a menção aos dois vícios “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” e “erro notório na apreciação da prova” (art. 410.º, n.º 2, als. a) e c), do CPP). Mas não só não se trazem esses vícios às conclusões, como da motivação resulta evidente que, com essa (juridicamente desadequada) referência se pretendeu tão só invocar, e demonstrar, o puro erro na aplicação do direito.

Diz o Senhor Procurador-Geral Adjunto que “a análise detalhada do acórdão permite justamente detectar a existência de insuficiência da decisão proferida sobre a matéria de facto”, pois “o tribunal colectivo ao convolar o crime de roubo constante da acusação pública, para um crime de furto qualificado, não terá atentado no n.º 4, do art. 204.º (desqualificação) do Código Penal, não se recenseando no acervo fáctico provado qualquer referência ao valor sequer aproximado dos bens furtados”. Questão que teria, sempre em seu entender, “a sua sede própria de apreciação na Relação”.

Com todo o respeito, aquilo que se retira do recurso é que o recorrente visa invocar o erro de direito no sentido de que, na ausência desse valor dos bens, deveria ter então operado a “desqualificativa” do furto, sendo consequentemente um erro de direito o enquadramento jurídico dos factos como furto qualificado, como se fez no acórdão recorrido.

Sucede também que esse valor – o valor da coisa subtraída – nunca constou da acusação. Por essa razão também não seria agora possível esclarecê-lo e aditá-lo, com vista a poder vir a obter uma decisão “contra o arguido”, por via de um recurso interposto exclusivamente pela defesa.

Assim, e também por esta razão, do que se trataria seria sempre de sindicar o acórdão em matéria de direito e decidir, se os factos provados (e apenas estes) realizam ou não o crime de furto qualificado da condenação. É esta a pretensão do recorrente.


2.2. (a) Do erro de subsunção no respeitante ao crime de furto

Argumenta o recorrente que a matéria de facto provada constante do acórdão recorrido não contém o valor da coisa subtraída, ou seja, o valor da mochila e do seu conteúdo. E na ausência de qualquer quantificação de valor teria de operar a regra desqualificadora do n.º 4 do art. 204.º do CP – “Não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de diminuto valor”.

Na verdade, dos factos provados consta apenas que o arguido subtraíu uma mochila que o ofendido trazia, e que esta continha dois cartões de débito do ..., dois carregadores de telemóvel, uma powerbank de cor castanha, rebuçados, pão indiano, água e um sumo. E corresponde à realidade do processo a afirmação feita em recurso de que “não foi atribuído um valor aos bens furtados, nem na Acusação nem no douto Acórdão recorrido”.

Adita o recorrente que da experiência comum resulta que estes concretos objectos, no seu conjunto, são de reduzido valor. E que face à ausência de mais elementos valorativos há-de concluir-se serem bens de valor não concretamente apurado, não sendo possível retirar a conclusão de que fossem bens de valor suficientemente elevado para superar a unidade de conta.

O recorrente tem razão na argumentação que desenvolve, na parte referente à desqualificação do crime de furto. Pois é juridicamente incontroverso que não pode haver lugar à qualificação se a coisa furtada for de diminuto valor os termos do artigo 204.º, nº 4 do Código Penal, sendo valor diminuto aquele que que não exceder uma unidade de conta (102 euros) no momento da prática do facto nos termos do art. 202.º, al. c) do CP.  O crime deve ser, por isso, desqualificado.

No presente caso, para que ocorresse o crime de furto qualificado do artigo 204.º do CP, em qualquer das modalidades, seria necessário poder concluir-se, dos factos provados do acórdão, que a coisa alheia subtraída era de valor não diminuto, ou seja, de valor superior a 102 euros.

Não tendo ficado demonstrado, por um lado, qual o exacto valor da coisa subtraída e, por outro lado, não resultando claro e evidente, dos concretos objectos furtados, que estes fossem seguramente valiosos acima do patamar referido no preceito desqualificador, ultrapassava aquele patamar mínimo de agravação do tipo base, há que proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos conforme peticionado em recurso. E considerar que estes são susceptíveis de realizar apenas o crime do art. 203.º do CP.

 Sucede que, relativamente a este tipo penal, não se mantêm agora as condições de procedibilidade, pois o ofendido não exerceu direito de queixa, e exige-a o n.º 3 do art. 203.º do CP.

Assim, tratando-se agora de crime de natureza semi-pública, há que declarar extinto o procedimento criminal nesta parte, por ausência de legitimidade do Ministério Público para prosseguir na acção penal (relativamente ao crime do art. 203.º do CP).


2.2. (b) Da “desistência” relativamente ao crime de homicídio tentado

O recorrente defende a sua não punição pelo crime de homicídio tentado, argumentando que “voluntária e espontaneamente não deu seguimento à execução do crime de homicídio, uma vez que omitiu a prática de mais atos de execução” e que “a desistência é relevante, quando o arguido, ainda que não se saibam os verdadeiros motivos subjetivos, retrocede no seu plano criminoso, podendo livremente optar por prosseguir na sua execução em vez de retroceder”.

Sempre na sua alegação, decorreria dos factos provados que “o arguido, munido de arma, deixou o ofendido e ausentou-se do local” o que realizaria a previsão do artigo 24.º, nº 1 do Código Penal: A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime (…).

Contrapôs o Ministério Público, na resposta ao recurso, que “dos factos dados como provados não se vê como pode pretender o recorrente ver aplicado in casu o disposto no art. 24.º, n.º 1, do CP”, citando seguidamente o acórdão do TRE de 12.07.2018, cuja fundamentação vai seguindo de perto na sustentação da sua oposição.

O acórdão da Relação de Évora citado pela Ministério Público teve a mesma relatora do presente. E inexiste razão, quer “de facto” quer “de direito”, para que as considerações que então se expuseram não se continuem a justificar aqui.

Na verdade, dos factos provados do acórdão recorrido nada se retira no sentido de que a “desistência na tentativa“ se devesse ter apresentado aqui como hipótese de ponderação para a decisão do caso sub judice. Resulta sim o reverso: os factos provados do acórdão levam à evidente constatação de uma base factual bastante para o enquadramento da conduta do arguido como tentativa de homicídio punível (e, não, como ofensa à integridade física grave consumada, como resultaria juridicamente duma eventual relevância da desistência)

Senão, releia-se a factualidade provada, na parte que aqui mais releva. E foi a seguinte: o arguido, munido de uma arma de fogo, pistola semi-automática, calibre 6,35 mm Browning, agarrou o ofendido por trás, e desferiu-lhe um tiro, atingindo-o na região torácica posterior direita, caindo aquele de imediato ao chão; acto contínuo, debruçou-se sobre o ofendido, colocou-lhe o braço no pescoço, arrancou-lhe a mochila e colocou-se em fuga; o ofendido conseguiu deslocar-se até ao Posto de Combustível da ... que dista a cerca de 300 metros onde veio a ser socorrido pelo INEM e encaminhado para o Hospital; mercê da agressão, sofreu um ferimento na região torácica posterior, região para vertebral direita, designadamente entre o pedículo D7 e o 7.º arco costal, sendo que o projéctil se encontra alojado junto ao osso, entre a apófise transversa de D7 e 7º aro costal, não tendo sido removido, por a sua remoção representar perigo para a vida do ofendido; o arguido conhecia as potencialidades letais da arma de fogo que utilizou para disparar sobre o ofendido e não obstante utilizou-a, sabendo que a mesma era meio idóneo de provocar no corpo do ofendido lesões capazes de acarretar a morte; ao efectuar o disparo a curta distância, na zona do corpo em causa, junto a órgão vital (pulmões), o arguido agiu com intenção de tirar a vida ao ofendido BB, resultado que não logrou alcançar apenas por circunstâncias alheias à sua vontade.

Como se adiantou, dos factos provados transcritos nada se retira no sentido de poderem configurar uma “desistência” (art. 24.º, n.º 1, do CP), pelas razões que se passam a concretizar melhor.

Tendo resultado demonstrado que o arguido, externamente, praticou os actos descritos e transcritos – disparo de arma de fogo visando a vítima na zona das costas e atingindo-a com um projéctil que passou próximo do pulmão e ficou alojado junto ao sétimo arco costal - e que, internamente, quis matar a vítima, cumpre (sempre) saber por que razão não o fez então, já que a morte realmente não ocorreu.

Para se afirmar que determinada conduta realiza tentativa de crime de homicídio, e não ofensa à integridade física qualificada consumada, para se poder afastar a hipótese de poder ter ocorrido desistência, importa perceber por que não prosseguiu o agente na execução do homicídio até a morte da vítima ocorrer. Dizer-se apenas que a morte não ocorreu “por circunstâncias alheias à vontade do arguido”, pode resultar como meramente conclusivo, exigindo maior explicação É sempre factualmente que a resposta tem de ser dada.

A punição da “tentativa” funda-se em razões “de perigo” e o dolo de homicídio tentado traduz a perigosidade manifestada na intenção. Mas, num direito penal do facto, a perigosidade tem de manifestar-se também no facto e não apenas na intenção.

Como ensina Fernanda Palma, “a grande fronteira que o Direito Penal não pode ultrapassar é, sem dúvida, a da não punição, em si e por si, de meros pensamentos, intenções, resoluções e atitudes” (Da Tentativa Possível em Direito Penal, 2006, p. 35). “Não podemos prescindir de qualquer facto externo significativo (activo ou omissivo). Como decorrência de princípios constitucionais, o Direito Penal reclama que o ilícito se construa a partir do confronto com a Ordem Jurídica de modificações da realidade operadas pela livre vontade e não apenas de puras manifestações de vontade. “A culpa, a censurabilidade pessoal e a ideia imanente de liberdade exigem uma noção de acção voluntária constitutiva da realidade que se confronta com a norma. Por isso, uma análise do acontecimento e das suas consequências é não só apoio da compreensão da acção mas também objecto do juízo de imputação” (Fernanda Palma, loc. cit., p. 40).

Na previsão do art. 22.º, n.º 1, do CP, “há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”.

No n.º 2 definem-se actos de execução como “os que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime” (al. a)), “os que forem idóneos a produzir o resultado típico (al. b)), ou os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, foram de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores” (al. c)).

Sendo de excluir uma punição da mera intenção, há que proceder à avaliação da conduta externa do agente e determinar se essa conduta consubstancia “acto(s) de execução” do crime que esse agente decidiu cometer. Fernanda Palma chama a atenção para a complexidade que os comportamentos podem assumir, referindo que “a complexidade da descrição dos comportamentos pode tornar difícil discernir se não se pune, afinal, apenas uma intenção”. “O problema surge”, continua a autora, “desde logo com comportamentos cuja identificação enquanto acção de uma certa espécie é equívoca no plano externo-objectivo e que só adquirem significado específico através da compreensão da intenção” (loc. cit. p. 36). Fernanda Palma nota que “na delimitação dos actos de execução de um crime emerge de imediato a questão de saber quando, como e porque um comportamento susceptível de punição se torna um comportamento de certo tipo” (loc. cit. p. 42).

No presente caso, apresenta-se inequívoco que há dolo (ele está factualmente descrito nos factos provados do acórdão) e que há actos de execução, tendo em conta a zona do corpo da vítima procurada pelo arguido e atingida por ele e a concreta actividade desenvolvida sobre a mesma (factualmente descrita também nos factos provados do acórdão).

Resulta incontroverso que o arguido praticou actos de execução enquadráveis na al. b), do n.º 2, do art. 22.º, do CP. Pois o arguido, através do comportamento desenvolvido, pôs realmente em marcha um processo causal para levar ao resultado morte.

Resta apreciar se os factos provados permitem configurar uma situação de desistência e eventual ponderação de aplicação do art. 23.º do CP, como pretende o recorrente. E a resposta é negativa.

Independentemente de se saber se o arguido se convenceu ou não de que a vítima já estaria morta quando a abandonou, ou que a morte ocorreria necessariamente após esse abandono, o certo é que se provou uma sua determinada forma de agir de total indiferença a esse previsível resultado morte como consequência do disparo que proferira. Ou seja, no contexto global dos factos provados (alvejamento da vítima pelas costas, numa zona do corpo onde se albergam órgãos vitais, num local ermo e onde não teria auxílio imediato) tem de concluir-se que o arguido não pôde deixar de admitir essa possibilidade, isto é, a possibilidade de a morte ocorrer na sequência dos actos que praticou. Existe, no mínimo e seguramente, a conformação com a morte, e é quanto basta para se configurar uma tentativa punível (de homicídio) e a condenação proferida no acórdão.

Assim, resultou demonstrado que o arguido praticou actos de execução do crime (de homicídio) que decidiu cometer, que actuou livre, voluntária e conscientemente e com o propósito de retirar a vida à vítima. É inquestionável que actuou com dolo de homicídio, que sabia e queria todos os actos adequados a causar a morte, actos que objectivamente praticou. E a morte só não sobreveio porque a vítima, apesar da gravidade da lesão que sofreu, ainda conseguiu pedir ajuda e ser atempadamente socorrida. Ou seja, a morte só não ocorreu por razões absolutamente alheias à acção do arguido.


2.2. (c) Da determinação da sanção, da medida e espécie de pena

O recorrente insurge-se contra a decisão sobre a pena argumentando “não ser  justo punir o arguido  com onze anos de prisão” e que “as exigências de prevenção geral e especial de ressocialização, bem com a necessidade de proteção dos bens jurídicos violados, não implicam no caso sub judice, que ao mesmo deva ser aplicada uma pena de prisão efetiva”, justificando-se “a condenação do arguido como inimputável sujeito a medida de internamento em instituição adequada ao seu tratamento”.

Neste momento, e atenta a procedência da impugnação na parte referente ao crime de furto, da qual decorreu a revogação da pena correspondente, de dois anos de prisão, resta para apreciação a impugnação da pena de nove anos de prisão, aplicada pelo crime de homicídio tentado agravado.

O recorrente pretende a sua sujeição a medida de internamento em instituição adequada ao tratamento psiquiátrico, o que, como tacitamente reconhece, pressupunha a sua declaração como inimputável (perigoso).

Sucede que a perícia psiquiátrica que a seu tempo teve lugar (no decurso do inquérito, antes da dedução de acusação) concluiu pela imputabilidade (diminuída) do arguido. Ali pode ler-se, designadamente: “consideram-se existentes pressupostos médico-legais para a imputabilidade do arguido”.

Destas conclusões teve conhecimento o arguido e o seu defensor, que se abstiveram de accionar os meios legalmente previstos para contestar tais resultados, mormente os previstos no art. 158.º do CPP (Esclarecimentos e nova perícia). Acresce que o arguido prescindiu de exercer o seu direito ao recurso na vertente da impugnação da matéria de facto, conformando-se com os factos provados do acórdão. De tudo resulta que, na ausência de detecção oficiosa de qualquer um dos vícios do art. 410.º, nº 2, do CPP (o que se consigna), a matéria de facto é de considerar definitivamente estabilizada.

Assim, o arguido é imputável e, nessa medida, é passível de culpa e de pena.

Mas é certo que sofre de doença do foro psiquiátrico, tendo sido até declarado inimputável perigoso e sujeito a medida de segurança de internamento no processo n.º 121/..., onde foi julgado por crime semelhante ao dos autos (crime de homicídio tentado).

No presente caso, dos factos provados do acórdão consta que “para os factos em questão a capacidade de determinação (do arguido) e, sobretudo, de avaliação poderia encontrar-se diminuída em virtude de eventuais consumos de substâncias psicotrópicas e a descontinuação do esquema terapêutico em curso. Desta forma, tal contexto justificará do ponto de vista médico legal uma diminuição da sua imputabilidade, representando, assim, uma imputabilidade diminuída.”

Dos factos provados do acórdão e no que respeita à personalidade do arguido, resulta ainda que possui doença do foro psiquiátrico e paralelamente também apresenta problemática aditiva, não cumprindo a toma da medicação com rigor; já foi anteriormente condenado por crime de igual natureza do subjacente aos presentes autos, tendo cumprido a medida de internamento na Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do EP...; encontrava-se em liberdade para prova residindo na Alemanha e beneficiando do apoio agregado da progenitora; sentindo-se demasiado controlado pela família, abandonou esta rede de apoio para regressar a Portugal onde não seria supervisionado; não beneficia de qualquer apoio do seu agregado de origem com quem atualmente apenas mantém contactos telefónicos; em meio prisional tem desenvolvido comportamento globalmente adaptado, com respeito pelas normas e regras, sendo alvo de consultas de psicologia e psiquiatria; tem os seguintes antecedentes criminais: por sentença proferida no processo sumário n.º 76/… do TJ da ..., … juízo, foi condenado em 09/06/01, pela autoria de um crime de condução sem habilitação legal do art.º 3/1 do DL 2/98 , na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 300 escudos, por factos de 09/06/01; no processo comum colectivo n.º 121/10.....… Juízo do Tribunal Judicial ….., foi condenado em datado de 18/02/2011, pela autoria de um crime de homicídio tentado dos arts. 22, 23 e 131 do CP, praticado em 27/07/2010, tendo-lhe sido aplicada e medida de segurança de internamento com a duração de três anos.

Sendo o arguido passível de culpa e de pena, por um lado, e sendo, em concreto, elevadíssimo o grau da ilicitude dos factos, bem patente no modo de execução e na gravidade das consequências para a vítima dos actos de execução praticados, importa sindicar a medida da pena sobretudo na vertente do limite da culpa.

E começa por se recordar que o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico também em matéria de pena. Daqui resulta que o tribunal de recurso altera a decisão sobre a pena quando detecta incorrecções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena, e não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de julgamento enquanto componente individual do acto de julgar.

A propósito da determinação concreta da medida da pena, a doutrina mais representativa tem sufragado este mesmo entendimento. O de que a sindicabilidade da medida da pena em recurso “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (cf. Figueiredo Dias, DPP. As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197).

No caso presente, diagnosticam-se elevadas exigências de prevenção geral, que o acórdão recorrido bem identificou, e estas confluem com as igualmente elevadas exigências de prevenção especial.

Numa moldura penal de 2 anos e 18 dias a 14 anos, 1 mês e 20 dias de prisão a pena de nove anos de prisão mostra-se assim claramente justificada por necessidades de prevenção geral e especial, realmente diagnosticadas, restando aferir se se contêm ainda nos limites da culpa do arguido.

Culpa é “a censurabilidade do comportamento humano, por o culpado ter actuado contra o dever quando podia ter actuado «de outra maneira», isto é, de acordo com o dever” (Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa e Direito Penal, 1995, p. 244). O agente deve ser censurado pela sua personalidade revelada no facto, pelos aspectos desvaliosos da sua personalidade e contrários ao direito revelados no facto – culpa na formação da personalidade.

“Mas a personalidade, como objecto da culpabilidade, não abrange a personalidade tal como é na sua conformação total, mas só enquanto e na medida em que for adquirida voluntariamente. É o modo voluntário de aquisição da personalidade que importa sobremaneira à delimitação da culpa referida à personalidade” (Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, 2010, II, p.12).

Assim sendo, não podem deixar de relevar as circunstâncias extrínsecas à vontade do agente e que influem na sua capacidade de controlo de acção, que não estará exactamente ao mesmo nível da capacidade da pessoa média e a capacidade de culpa encontrar-se-á algo diminuída (v. JJescheck, Weigend, Tratado de Derecho Penal, 2002, p. 475).

O recorrente é imputável relativamente aos factos cometidos, manifestando capacidade de compreensão do ilícito do facto e capacidade de controlo da acção. Mas os traços da sua personalidade, o comprovado quadro pessoal psíquico a exige acompanhamento psiquiátrico, não podem deixar de relevar na pena, pois diminuem a culpa do arguido. Ou seja, colocam este condenado numa posição de desfavor relativamente ao cidadão médio e à normal capacidade de adequação do comportamento desse ao Direito.

Há por isso alguma diminuição da culpa, que não dará no entanto lugar à atenuação especial de pena, aplicável apenas em situações de excepção, em que a moldura abstracta prevista para o crime se apresente como manifestamente desproporcionada e exagerada face ao caso concreto. Não é a situação presente. A pena abstracta consente a determinação da pena justa. E não se justificando o funcionamento do art. 72.º do CP, a diminuição da culpa relevará como atenuante geral.

Em suma e para concluir, tendo em conta o arquétipo de recurso-remédio também em matéria de pena, sendo, no caso concreto, manifestas e acentuadas as exigências de prevenção tanto geral como especial, e situando-se a pena fixada no acórdão recorrido um pouco acima do ponto médio da moldura abstracta, face a todas as circunstâncias do caso ela é ainda de aceitar e, como tal, de manter.

Da avaliação da concreta circunstância do arguido, da maior fragilidade da sua personalidade, decorrente de patologia neurológica atendendo a todas as demais circunstâncias já referidas no acórdão como tendo (aqui devidamente) relevado na ponderação da pena, não decorre agora que a pena aplicada se revele, mesmo assim, desproporcionada e/ou desnecessária e/ou ultrapasse o limite da culpa do arguido.

A pena aplicada ao arguido pelo crime de homicídio tentado agravado é, por tudo, de confirmar.


3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedente o recurso, e, em consequência,

- absolve-se o arguido do crime de furto qualificado do art. 204.º, nº 1, al. d), do CP, por se considerar que, nesta parte, os factos provados realizariam tão só o crime de furto do art. 203.º do CP;

- declara-se extinto o procedimento criminal relativamente a este crime de furto do art. 203.º do CP, face à inexistência de queixa.

- confirma-se o acórdão recorrido na parte restante, mantendo-se a condenação do arguido na pena de nove anos de prisão, pelo crime de homicídio tentado dos arts. 131.º, 22.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 23.º e 73.º, als. a) e b), do CP, agravado pelo art. 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006.

Sem custas.


Lisboa, 23.06.2021

           

Ana Barata Brito, relatora


Tem voto de conformidade da Sra. Conselheira Adjunta Maria da Conceição Simão Gomes