Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
194/13.5TBCMN-A.G1.S1
Nº Convencional: 7º SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
AÇÃO EXECUTIVA
CRÉDITO BANCÁRIO
CONSUMIDOR
MORA
INCUMPRIMENTO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
INCONSTITUCIONALIDADE
BANCO
PROVIDÊNCIAS DE RECUPERAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ( ATOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ) / CRÉDITO BANCÁRIO / INCUMPRIMENTO DE CONTRATOS DE CRÉDITO / PLANO DE ACÇÃO PARA O RISCO DE INCUMPRIMENTO ( PLANO DE AÇÃO PARA O RISCO DE INCUMPRIMENTO ).
DIREITO DO CONSUMIDOR - DIREITOS DO CONSUMIDOR.
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE EXECUÇÃO.
Doutrina:
- Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 9.º, 334.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 578.º, 608.º, N.º 2.
LEI DE DEFESA DO CONSUMIDOR (LEI Nº 24/96, DE 31 DE JULHO, ALTERADA PELO DECRETO-LEI Nº 67/2003, DE 8 DE ABRIL).
PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE INCUMPRIMENTO (PERSI) – INSTITUÍDO PELO DL N.º 272/2012, DE 25-10: - ARTIGOS 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 14.º, N.ºS 1 E 2, AL. A), 17.º, N.º 2, AL. C), 18.º,N.º 1, AL. B), 39.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

-DE 06.10.2016, PROC. N.º 4956/14.8T8ENT-A.E1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - O Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) – instituído pelo DL n.º 272/2012, de 25-10, que está em vigor desde 01-01-2013 e é aplicável a clientes bancários (consumidores) que estejam em mora ou em incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito – constitui uma fase pré-judicial que visa a composição do litígio, por mútuo acordo, entre credor e devedor, através de um procedimento que comporta três fases: (i) a fase inicial; (ii) a fase de avaliação e proposta; e (iii) a fase de negociação (arts. 14.º a 17.º do referido diploma legal).

II - Durante o período que decorre entre a integração do cliente no PERSI e a extinção deste procedimento, está vedada à instituição de crédito a instauração de acções judiciais com a finalidade de obter a satisfação do seu crédito (art. 18.º, n.º 1, al. b), do citado DL n.º 272/2012).

III - Tendo a acção executiva sido intentada no ano de 2013 (depois da entrada em vigor do DL n.º 272/2012) e situando-se o incumprimento dos executados em 2011, o mencionado regime seria, em princípio, aplicável ao caso.

IV - Porém, resultando da facticidade provada que em Maio de 2011, i.e., antes mesmo da entrada em vigor do referido diploma, a exequente havia iniciado um procedimento extrajudicial de regularização da situação de incumprimento dos executados, equiparado ao PERSI, que se prolongou até Março de 2013 e que só não se concretizou através de dação em cumprimento de um imóvel por facto imputável a estes últimos, não é de aplicar ao caso o regime previsto no DL n.º 272/2012, de 25-10, sob pena de a pretensão dos executados/oponentes configurar abuso de direito.

V - A circunstância de os executados/oponentes não terem sido formalmente integrados no PERSI não lhes retirou direitos, nem lhes reduziu expectativas legítimas, posto que a acção executiva só foi instaurada depois de gorada a concretização da solução negociada por razões só àqueles imputáveis.

VI - Em consequência, também não se verifica qualquer inconstitucionalidade fundada na violação da tutela da confiança ou na violação dos direitos à informação e à protecção dos consumidores, assumindo, antes a pretensão dos oponentes contornos de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium (art. 334.º do CC).

Decisão Texto Integral:         
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório:

      Por apenso à execução que lhes move Banco AA, SA, Sucursal em Portugal, vieram os executados BB e CC deduzir oposição, aceitando a existência dos contratos de mútuo celebrados e o seu incumprimento desde outubro de 2011, mas invocando a existência de acordo com vista à dação em pagamento do imóvel hipotecado, acordo esse violado pelo Banco em claro abuso de direito, pelo que não pode ser invocado o vencimento do crédito sobre os executados com fundamento em que incorreram em mora.

      Contestou o exequente para afirmar que foram os executados que violaram o princípio da boa fé ao retirarem do imóvel todos os materiais que puderam, deteriorando-o e desvalorizando-o em montante não inferior a € 55.000,00, o que impossibilitou a dação em pagamento que havia sido acordada.

          

       Realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou a oposição improcedente e absolveu o exequente do pedido contra si deduzido.


        Inconformados, apelaram os executados/oponentes.

       O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 2 de Maio de 2016, julgou a apelação improcedente, confirmando a sentença proferida na 1ª instância.

       De novo irresignados, interpuseram os executados/oponentes recurso de revista excepcional, tendo a Formação a que alude o artigo 672º nº 3 do Código de Processo Civil decidido a sua não admissão por não inexistir, no caso, fundamentação essencialmente coincidente e, por conseguinte, dupla conforme, devendo, por isso, o recurso, sendo admissível, seguir como revista normal.   


       Das conclusões da alegação oportunamente apresentada pelos executados/oponentes extraem-se, em resumo, como questões essenciais a apreciar no presente recurso de revista saber se:

a) o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 18º do DL nº 227/2012, de 25 de Outubro, integra excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso, não podendo o Tribunal eximir-se à sua apreciação formal sob invocação de se tratar de questão nova, sob pena de ser violado o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva;

b) o exequente estava impedido, à luz daquele Diploma legal, de instaurar o procedimento executivo;

c) a interpretação do nº 1 do artigo 39º do mesmo DL nº 227/2012, de 25 de Outubro, no sentido de que as instituições financeiras que já tenham estabelecido negociações malogradas com os devedores antes da sua entrada em vigor não estão obrigadas a novas negociações com vista à integração dos mesmos no PERSI é inconstitucional por violar o princípio da confiança e, bem assim, dos direitos à informação e à protecção dos direitos económicos dos consumidores consagrados no artigo 60º da Constituição.


    O exequente contra alegou, pugnando pela manutenção do decidido no acórdão recorrido.

       O recurso foi admitido como de revista nos termos gerais (artigo 671º nº 1 do Código de Processo Civil.

       Foram colhidos os vistos legais.


     II. Fundamentação:

De facto:

         As instâncias consideraram assentes os seguintes factos:

a) Nos autos de execução apensos aos presentes deu a exequente à execução o acordo, denominado pelas partes de mútuo com hipoteca, celebrado por escritura pública, em 19 de Outubro de 2007, entre o exequente e a executada BB, com o teor que melhor consta da cópia junta àqueles autos com o requerimento executivo dando-se o mesmo, aqui, por integralmente reproduzido – cfr. fls. 9 a 16 dos autos principais;

b) No referido acordo a executada BB apôs a sua assinatura na qualidade de mutuária, tendo-se confessado devedora do exequente do montante de € 63.892,50, dos respectivos juros e demais encargos, quantia que recebeu no acto da escritura;

c) Lê-se ainda no acordo citado que a executada BB “para garantia do bom e pontual cumprimento do mútuo atrás referido, constitui a favor da Caixa DD, hipoteca sobre o referido imóvel: (…) Prédio urbano, composto de casa do rés-do-chão, sótão e logradouro, sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de Caminha, descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha, sob o número trezentos e quinze barra um nove nove cinco zero um dois quatro, da freguesia de …, onde a aquisição se mostra registada a seu favor pela inscrição G, apresentação dez de vinte de Setembro de dois mil e seis, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 123”;

d) Deu ainda a exequente à execução o acordo, denominado pelas partes de mútuo com hipoteca, celebrado por escritura pública, em 19 de Outubro de 2007, entre o exequente e a executada BB, com o teor que melhor consta da cópia junta àqueles autos com o requerimento executivo dando-se o mesmo, aqui, por integralmente reproduzido – cfr. fls. 21 a 30 dos autos principais;

e) No referido acordo a executada BB apôs a sua assinatura na qualidade de mutuária, tendo-se confessado devedora do exequente do montante de € 28.096,57, dos respectivos juros e demais encargos, quantia que recebeu no acto da escritura;

f) Lê-se ainda no acordo citado que a executada BB “para garantia do bom e pontual cumprimento do mútuo atrás referido, constitui a favor da Caixa DD, hipoteca sobre o referido imóvel: (…) Prédio urbano, composto de casa do rés do chão, sótão e logradouro, sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de Caminha, descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha, sob o número trezentos e quinze barra um nove nove cinco zero um dois quatro, da freguesia de …, onde a aquisição se mostra registada a seu favor pela inscrição G, apresentação dez de vinte de Setembro de dois mil e seis, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 123”;

g) Nos autos de execução apensos aos presentes deu ainda o exequente à execução o acordo, denominado pelas partes de mútuo com hipoteca, celebrado por escritura pública, em 19 de Outubro de 2007, entre o exequente e a executada BB, com o teor que melhor consta da cópia junta àqueles autos com o requerimento executivo dando-se o mesmo, aqui, por integralmente reproduzido – cfr. fls. 32 a 41 dos autos principais;

h) No referido acordo a executada BB apôs a sua assinatura na qualidade de mutuária, tendo-se confessado devedora do exequente do montante de € 32.000,00, dos respectivos juros e demais encargos, quantia que recebeu no acto da escritura;

i) Lê-se ainda no acordo citado que a executada BB “para garantia do bom e pontual cumprimento do mútuo atrás referido, constitui a favor da Caixa DD, hipoteca sobre o referido imóvel: (…) Prédio urbano, composto de casa do rés-do-chão, sótão e logradouro, sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de Caminha, descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha, sob o número trezentos e quinze barra um nove nove cinco zero um dois quatro, da freguesia de Azevedo, onde a aquisição se mostra registada a seu favor pela inscrição G, apresentação dez de vinte de Setembro de dois mil e seis, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 123”;

j) Deu ainda o exequente à execução o acordo, denominado pelas partes de assunção de dívidas e mútuo com hipoteca, celebrado por escritura pública, em 31 de Outubro de 2008, entre o exequente e os executados, com o teor que melhor consta da cópia junta àqueles autos com o requerimento executivo dando-se o mesmo, aqui, por integralmente reproduzido – cfr. fls. 46 a 56 dos autos principais;

k) No referido acordo os executados assumiram, cumulativa e solidariamente, serem devedores ao exequente banco das quantias de € 63.944,10, € 32.000,00 e € 28.096,57, quantias relativas aos contratos de mútuo celebrados anteriormente com a executada BB e receberam, a título de empréstimo, a quantia de € 26.000,00;

l) Lê-se ainda no acordo citado que a executada BB para garantia do bom e pontual cumprimento do mútuo atrás referido, constitui a favor da Caixa DD, hipoteca sobre o seguinte imóvel: prédio urbano, composto de casa do rés-do-chão, sótão e logradouro, sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de Caminha, descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha, sob o número trezentos e quinze barra um nove nove cinco zero um dois quatro, da freguesia de …, onde a aquisição se mostra registada a seu favor pela inscrição G, apresentação dez de vinte de Setembro de dois mil e seis, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 123;

m) Deu, por fim, o exequente à execução o acordo, denominado pelas partes de mútuo com hipoteca, celebrado por escritura pública, em 14 de Abril de 2010, entre o exequente e os executados, com o teor que melhor consta da cópia junta àqueles autos com o requerimento executivo dando-se o mesmo, aqui, por integralmente reproduzido – cfr. fls. 58 a 68 dos autos principais;

n) Os executados declararam, por este instrumento, receber a quantia de € 21.500,00 e confessaram-se solidariamente devedores da referida quantia;

o) Lê-se ainda no acordo citado que a executada BB “para garantia do bom e pontual cumprimento do financiamento ora concedido a ela e ao primeiro outorgante identificado sob a alínea b) no referido montante de vinte e um mil e quinhentos euros, constitui hipoteca a favor da Caixa DD, sobre o seguinte imóvel: (…) Prédio urbano, composto de casa do rés-do-chão, sótão e logradouro, sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de Caminha, descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha, sob o número trezentos e quinze barra um nove nove cinco zero um dois quatro, da freguesia de …, onde a aquisição se mostra registada a seu favor pela inscrição G, apresentação dez de vinte de Setembro de dois mil e seis, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 123”;

p) Relativamente ao acordo referido em a), os executados deixaram de pagar as prestações a que se obrigaram a partir do dia 19 de Novembro de 2011;

q) Relativamente ao acordo referido em d), os executados deixaram de pagar as prestações a que se obrigaram a partir de 19 de Novembro de 2011;

r) Relativamente ao acordo referido em g), os executados deixaram de pagar as prestações a que se obrigou a partir de 19 de Agosto de 2011;

s) Relativamente ao referido em j), os executados deixaram de pagar as prestações a que se obrigaram a partir de 31 de Agosto de 2011;

t) Relativamente ao acordo referido em m), os executados deixaram de pagar as prestações a que se obrigaram a partir de 14 de Outubro de 2011;

u) Por correio electrónico, a executada enviou para e recebeu as mensagens da agência de Valença do exequente, com os dizeres e datas que constam das cópias juntas aos autos de fls. 9 a 13 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

v) A executada enviou para o exequente, em 20.03.2012, que a recebeu, a missiva cuja cópia consta de fl. 13v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

w) Por correio electrónico, a executada enviou para e recebeu as mensagens do exequente, com os dizeres e datas que constam das cópias juntas aos autos de fls. 14v a 15v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

x) A executada enviou para o exequente, em 20.09.2012, que a recebeu, a missiva cuja cópia consta de fl. 18v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

y) Por correio electrónico, o exequente enviou para e recebeu as mensagens da executada, com os dizeres e datas que constam das cópias juntas aos autos de fls. 19v a 21 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

z) O exequente enviou para a executada, em 13 de Março de 2013, que a recebeu, a missiva cuja cópia consta de fls. 26 a 27 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

aa) A executada enviou para o exequente, em 4 de Abril de 2013, que a recebeu, a missiva cuja cópia consta de fls. 27v a 28 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

bb) O imóvel hipotecado foi avaliado, em 25.10.2012, pela sociedade de avaliação imobiliária EE, S.A., pelo valor de € 131.000,00;

cc) Em Março de 2013, antes de os executados desocuparem a casa existente no prédio, retiraram dela os focos de iluminação, os móveis e electrodomésticos da cozinha, os aparelhos de ar condicionado, o soalho em madeira de algumas divisões, alguns rodapés, um armário de roupa;

dd) Contíguo à construção existente no prédio hipotecado existe um anexo construído em tijolo e telha.


De direito:

Delimitado o recurso pelas conclusões da alegação dos executados/oponentes, temos que este se cinge, no essencial, à aplicação, ou não, das normas do DL nº 272/2012, de 25 de Outubro, (PERSI) no caso vertente e, bem assim, às invocadas inconstitucionalidades – violação do princípio da confiança e dos direitos à informação e à protecção dos direitos económicos dos consumidores – na hipótese de se concluir pela negativa.

A recente crise económica e financeira fez sentir a importância de uma actuação prudente, correcta e transparente por parte das instituições de crédito relativamente aos clientes susceptíveis de serem qualificados como consumidores na acepção da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei nº 24/96, de 31 de Julho, relativamente aos quais se verificou um generalizado incumprimento dos contratos que envolviam a concessão de crédito.

O DL nº 272/2012, de 25 de Outubro, veio, então, introduzir na nossa ordem jurídica princípios e regras a observar por aquelas instituições na prevenção e na regularização das situações de falta de cumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários que se integrem no referido conceito de consumidor e criar uma rede extrajudicial de apoio a esses clientes no âmbito da regularização dessas situações.

A facticidade provada mostra que os executados/oponentes incumpriram todos os contratos de mútuo com hipoteca que celebraram com o Banco exequente, incumprimento que se situou durante o ano de 2011, logo em datas anteriores à entrada em vigor do citado DL nº 272/2012, de 25 de Outubro.

Vieram, porém, invocar a aplicação ao caso do regime contido neste diploma, alegando que deveriam ter sido automaticamente integrados no Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), ficando, por conseguinte, o exequente impedido de intentar acções judiciais com vista à satisfação do seu crédito desde a data da integração até à extinção do procedimento, por aplicação do disposto no artigo 18º nº 1 al. b) do citado DL nº 272/2012, pelo que a acção executiva contra si movida não pode prosseguir.

Esta questão foi colocada, pela primeira vez, em sede de recurso, sem ter sido previamente submetida à apreciação da 1ª instância.

Considerou o Tribunal da Relação tratar-se de questão nova de que não podia conhecer, com fundamento em que no nosso direito processual, salvo questão de conhecimento oficioso, os recursos ordinários são recursos de reponderação, não podendo a instância de recurso ser chamada a decidir questões de facto ou de direito não colocadas na instância recorrida.

Não obstante entender que o âmbito de apreciação do recurso de apelação estava circunscrito às questões tratadas na decisão proferida pelo tribunal hierarquicamente inferior e que se não está perante questão de que o tribunal deva conhecer oficiosamente, o Tribunal da Relação acabou por apreciá-la nos seguintes termos:

O «DL 227/2012 entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2013 (artigo 40.º) e, se é certo que o seu artigo 39.º diz que são automaticamente integrados no PERSI os clientes bancários que, nessa data, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias, a verdade é que, tal integração automática se destina a obrigar a instituição de crédito a apresentar proposta(s) de regularização adequadas à situação financeira dos clientes e/ou a avaliar propostas alternativas dos próprios clientes (artigos 15.º e 16.º), extinguindo-se o PERSI com o pagamento, com o acordo de regularização, com a insolvência do devedor, ou pelo decurso do tempo (91 dias) sem que tenha havido acordo (artigo 17.º, n.º 1). O PERSI também se extingue quando a instituição de crédito conclua que o cliente bancário não dispõe de capacidade financeira para regularizar a situação de incumprimento, este recuse a proposta apresentada ou a instituição de crédito recuse as alterações sugeridas pelo cliente (artigo 17.º, n.º 2, c), f) e g)).

Ora, o que aconteceu no caso de que nos ocupamos foi que, a partir de Maio de 2011 e até Março de 2013, as partes nestes contratos de crédito, tentaram activamente obter um acordo de regularização das situações de incumprimento, sendo certo, até, que tinham obtido o acordo para a dação em cumprimento em Outubro de 2012, ou seja, antes da entrada em vigor do DL 227/2012 (acordo esse que apenas se veio a gorar nos termos supra referidos).

Não teria qualquer sentido integrar esta situação de incumprimento no PERSI, quando tudo o que este preconiza já tinha sido levado a cabo pelas partes durante mais de ano e meio, tendo logrado obter o acordo para a regularização da situação de incumprimento, antes da entrada em vigor daquele diploma (note-se que, em Janeiro de 2013, o Banco aguardava, apenas, a desocupação da casa para concretizar a dação em cumprimento).

A negociação com vista ao acordo, terminou em Março de 2013 com a alteração das circunstâncias que o haviam ditado, sendo que a actuação do Banco, neste caso, foi muito mais longe do que preconiza este DL, ao manter os contratos em incumprimento durante mais de um ano, na tentativa de encontrar uma solução para o problema.

Vir agora invocar este diploma para concluir que o Banco estava impedido de intentar acção judicial para satisfação do seu crédito no período compreendido entre a integração no PERSI e a extinção deste, configura um claro abuso de direito por parte dos recorrentes, actuação que o direito não tutela e considera ilegítima – artigo 334.º do Código Civil».

Do acabado de transcrever resulta que o acórdão recorrido emitiu pronúncia sobre a questão de saber se, no caso, os executados/oponentes deveriam ter sido automaticamente integrados no Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), ficando, em consequência, a exequente impedida de intentar a acção executiva para satisfação do seu crédito, tendo concluído pela negativa.

Perante a apreciação concreta e efectiva realizada pela Relação quanto ao à questão em análise, irrelevam os considerandos anteriormente formulados no acórdão recorrido sobre a impossibilidade do seu conhecimento. Importa apenas reter que nele se analisou com detalhe a aplicabilidade ou não do DL nº 272/2012, de 25 de Outubro, em função do quadro factual dos autos, tendo-se afastado a sua aplicação.

O acórdão recorrido não incorreu, por conseguinte, no vício de omissão de pronúncia.

Improcede, assim, a invocada nulidade, ficando, consequentemente, prejudicado saber se a aludida questão integra excepção dilatória inominada de que o tribunal deva conhecer oficiosamente (artigos 578º e 608º nº 2 do Código de Processo Civil), matéria sobre a qual se pronunciou já, aliás, o Ac. da Relação de Évora, de 06.10.2016 (proc. nº 4956/14.8T8ENT-A.E1, acessível em www.dgsi.pt/jtre), que defendeu estar-se perante uma condição objectiva de procedibilidade a enquadrar, com as necessárias adaptações, no regime jurídico das excepções dilatórias.


2. Entrando na apreciação da questão de mérito, temos que o DL nº 272/2012, de 25 de Outubro, em vigor desde 1 de Janeiro de 2013, além de instituir o Plano de Acção para o Risco de Incumprimento (PARI) para os devedores em vias de incumprimento de contratos de créditos, teve o propósito de obviar a que as instituições bancárias, confrontadas com situações de incumprimento desses contratos, possam desencadear, de imediato, os procedimentos judiciais com vista à satisfação dos seus créditos relativamente a devedores enquadráveis no conceito legal de «consumidor», na acepção que lhe é dada pela Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31 de Julho, alterada pelo Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril), salvaguardando, através dos mecanismos nele criados, a posição dos contraentes mais fracos e menos protegidos, particularmente, numa época de acentuada crise económica e financeira.

As instituições de crédito passaram a ter de promover um conjunto de diligências relativamente a clientes bancários em mora ou incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, tendo de integrá-los, obrigatoriamente, no chamado Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) (artigo 12.º e 14º do citado DL nº 272/2012, de 25 de Outubro), «no âmbito do qual devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objectivos e necessidades do consumidor» (cfr. preâmbulo daquele diploma).

Destacou o legislador, de entre os casos em que a instituição de crédito está sempre obrigada a iniciar o PERSI, aqueles em que «O cliente bancário se encontre em mora relativamente ao cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito e solicite, através de comunicação em suporte duradouro, a sua integração no PERSI» (artigo 14º nº 2 al. a)).

O PERSI constitui uma fase pré-judicial, em que se visa a composição do litígio por mútuo acordo, entre credor e devedor, mediante um procedimento que comporta três fases: a fase inicial; a fase de avaliação e proposta; a fase de negociação (artigos 14º, 15º e 16º).

Na fase inicial, a instituição, depois de identificar a mora do cliente, informa-o do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida, desenvolvendo diligências no sentido de apurar as razões subjacentes ao incumprimento registado; persistindo o incumprimento, integra-o, obrigatoriamente, no PERSI entre o 31º dia e o 60º dia subsequente à data do vencimento da obrigação em causa (artigos13º e 14º nº 1).

Na fase de avaliação e proposta, a instituição de crédito procede à avaliação da situação financeira do cliente para apurar se o incumprimento é momentâneo ou tem carácter duradouro. Findas as diligências, apresenta ao cliente uma ou mais propostas de regularização do crédito adequadas à sua situação financeira e necessidades, se considerar que o mesmo tem condições para cumprir. Se a averiguação feita tiver revelado incapacidade do cliente bancário para retomar o cumprimento das suas obrigações ou regularizar o incumprimento, mesmo com recurso à renegociação do contrato ou à sua consolidação com outros contratos de crédito, comunica ao cliente o resultado da avaliação e a inviabilidade de obtenção de um acordo no âmbito do PERSI, o qual se extinguirá (artigo 17º nº 2 al. c)).

A fase da negociação tem por objectivo obter o acordo do cliente para a proposta ou uma das propostas apresentadas pela instituição de crédito com vista à regularização do incumprimento.

Durante o período que decorre entre a integração do cliente no PERSI e a extinção deste procedimento, está, nomeadamente, vedado à instituição de crédito intentar acções judiciais com a finalidade de obter a satisfação do seu crédito (artigo 18º nº 1 al. b)).

Exposto o regime do PERSI em traços largos, importa referir ainda que o diploma que o instituiu estabelece no seu artigo 39º que:

«1 - São automaticamente integrados no PERSI e sujeitos às disposições do presente diploma os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias.

2 - Nas situações referidas no número anterior, a instituição de crédito deve, nos 15 dias subsequentes à entrada em vigor do presente diploma, informar os clientes bancários da sua integração no PERSI, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 14.º».

Desta norma de direito transitório resulta ser aquele regime aplicável ao caso em análise, porquanto emerge da facticidade provada que o incumprimento dos executados/oponentes, ora recorrentes, se situou entre 19 de Agosto e 19 de Novembro de 2011, tendo a acção executiva sido instaurada no ano de 2013, já após a entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2013, do DL nº 272/2012, de 25 de Outubro.

Daí pugnarem os oponentes pela obrigatoriedade da sua integração no designado Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) com a consequente impossibilidade de instauração da acção executiva antes de extinto aquele procedimento, entendimento que, a acolher-se, conduziria à procedência da oposição deduzida.

Como é sabido, a interpretação da lei não deve cingir-se à sua letra, devendo procurar-se reconstituir o pensamento legislativo a partir do seu texto, tendo, sobretudo, em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas em que é aplicada (artigo 9º do Código Civil).

Como se escreveu no acórdão recorrido, citando Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador) o aplicador da lei «deve proceder como um agente activo do direito, chamado a descortinar, a interpretar e a conformar segundo a ideia de direito e dinâmica dos dados institucionais face aos movimentos de utilidade social».

O caso vertente, apresenta particularidades que, olhando para a teleologia do diploma em causa e para as condições específicas em que o mesmo tem aplicação, em particular no que tange ao Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), nos conduzem à conclusão de que os recorrentes não têm razão por não se verificarem os respectivos pressupostos, sendo acertada a análise expendida no douto acórdão sob impugnação.

Com efeito, os documentos a que se referem as alíneas u) a aa) dos factos provados revelam que desde finais de Maio de 2011 a exequente e os oponentes trocaram e-mails e correspondência com a finalidade de procederem à reestruturação do crédito, alterando, numa primeira fase, o plano financeiro e tendo passado, face à inexistência de acordo, a negociar a partir de Setembro de 2012 a dação em cumprimento, aceite pela exequente após a avaliação do imóvel, em 25/10/2012.

A carta de fls. 26 e 27 dos autos mostra que a exequente aceitou a dação em cumprimento, com um perdão de dívida de cerca de € 40.000,00, resultando também da mesma que a dação em cumprimento não foi formalizada, em virtude de a exequente, após dilação de alguns meses solicitada pela executada para “viabilizar uma solução para o alojamento da família”, ter constatado, na sequência de uma visita ao imóvel no dia 7 de Março de 2013, que os oponentes, antes de desocuparem a casa, retiraram os focos de iluminação, os móveis e electrodomésticos da cozinha, os aparelhos de ar condicionado, o soalho em madeira de algumas divisões, alguns rodapés, um armário de roupa embutido, deixando o imóvel desvalorizado.

Este comportamento dos oponentes, posterior à conclusão das negociações, mas anterior à formalização da dação em cumprimento do imóvel (artigo 837º do Código Civil), justificou a ruptura do acordo pela exequente, a qual comunicou aos mesmos “a inexistência de condições para a formalização da dação em pagamento”.

A facticidade provada evidencia que os contactos entre a exequente e os oponentes/executados, com vista a uma solução que lhes permitisse cumprir as obrigações emergentes dos contratos de crédito celebrados, se iniciaram em Maio de 2011 e se prolongaram até Março de 2013, só não se tendo concretizado a formalização da negociada dação em cumprimento por facto imputável aos próprios oponentes.

Tal significa que, antes mesmo da entrada em vigor do DL nº 272/2012, de 25 de Outubro, a exequente havia iniciado, no plano substancial, um procedimento extrajudicial de regularização da situação de incumprimento dos oponentes equiparado ao PERSI, o qual se prolongou para além da data da sua entrada em vigor e que, na tentativa de encontrar uma solução para o problema, permitiu aos oponentes manter os contratos em incumprimento durante mais de um ano.

E a acção executiva só foi instaurada depois de gorado o acordo alcançado entre a instituição de crédito e os devedores, em consonância, portanto, com o estabelecido no artigo 18º nº 1 al. b).

A circunstância de o procedimento já em curso não ter sido formalmente convertido num PERSI não afectou ou prejudicou qualquer direito ou expectativa legítima dos oponentes, aqui recorrentes, assumindo a sua pretensão contornos de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium (artigo 334º do Código Civil).

Com se observou no acórdão recorrido, «Vir agora invocar este diploma para concluir que o Banco estava impedido de intentar acção judicial para satisfação do seu crédito no período compreendido entre a integração no PERSI e a extinção deste, configura um claro abuso de direito por parte dos recorrentes, actuação que o direito não tutela e considera ilegítima – artigo 334.º do Código Civil».

Resta afirmar que, perante a singularidade factual do caso em apreço, se não verificam as invocadas inconstitucionalidades fundadas na violação da tutela da confiança ou na violação dos direitos à informação e à protecção dos direitos económicos dos consumidores.

Efectivamente, os oponentes/executados desde Maio de 2011 até Março de 2013 beneficiaram materialmente de um conjunto de medidas da iniciativa do Banco exequente que deram plena concretização aos objectivos do PERSI, entretanto instituído pelo referido DL nº 272/2012, de 25 de Outubro. A circunstância de não terem sido formalmente integrados nesse procedimento não lhes retirou direitos, nem lhes reduziu expectativas legítimas, posto que a acção executiva só foi instaurada depois de gorada a concretização da dação em cumprimento por razões só aos mesmos imputáveis.


III. Decisão:

Termos em que se acorda no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.


Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 9 de Fevereiro de 2017


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Nunes Ribeiro