Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
348/16.2T8BJA-A.E1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITOS
REQUISITOS
TERCEIRO
NOTIFICAÇÃO
DEVEDOR
CITAÇÃO
HABILITAÇÃO DO ADQUIRENTE
DIREITO DE DEFESA
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
Data do Acordão: 09/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I – A cessão de créditos define-se como um contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, traduzindo-se na substituição do credor originário por outra pessoa, mas sem produzir a substituição da obrigação antiga por uma nova, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional, com a única modificação subjetiva que consiste na transferência do lado ativo da relação obrigacional.

II – A notificação da cessão ao devedor pode ser feita por qualquer meio, inclusivamente pela citação do devedor cedido para a ação executiva ou para o incidente de habilitação enxertado nessa ação.

III – O único elemento constitutivo da eficácia da cessão é o conhecimento do devedor, não exigindo a lei a sua autorização(artigo 577.º, n.º 1, do Código Civil). 

IV – Para proteção do devedor cedido, a lei faculta-lhe a possibilidade de na contestação impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo, nos termos do artigo 356.º, n.º 1, al. a), do CPC.

V – A jurisprudência reconhece ao devedor cedido o direito de “(…) invocar como meio de defesa geral contra o cessionário, a ineficácia em sentido amplo do negócio-acto de cessão de créditos (causa próxima) convencionado com a cedente, em adição à oponibilidade das vicissitudes (excepções) do negócio subjacente ao crédito cedido (causa remota), licitamente invocáveis contra o cedente nos termos do art. 585.º do CC.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-05-2021, proc. n.º 348/14.7T8STS-AV.P1.S1).

VI – Não vê, portanto, o devedor, os seus meios de proteção diminuídos, em virtude de ter conhecido a cessão através da citação.

Decisão Texto Integral:  


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório

 

1. Por apenso à Execução para pagamento de quantia certa que Caixa Geral de Depósitos, S.A. move a AA e BB, veio Promontoria Indian Designated Activity Company requerer a sua habilitação para prosseguir nos presentes autos no lugar da Exequente.  

A Requerente fundamenta a sua pretensão na circunstância de ter celebrado um contrato de cessão de créditos com a Exequente, abrangendo o crédito exequendo.


2. Cumprido o disposto no artigo 356° n.º 1, do Código de Processo Civil, os Requeridos deduziram contestação, alegando que a documentação junta aos autos não demonstra a cessão alegada pela Requerente e ainda que tal cessão não lhes foi notificada.


3. Foi proferida sentença em cujo dispositivo se consignou: “Pelo exposto, julgo procedente, por provada, a pretensão formulada pela requerente e, em consequência, declaro Promontoria Indian Designated Activity Company habilitada em substituição, na acção, da Caixa Geral de Depósitos, S.A.”


4. Inconformados com a predita decisão, vieram os Requeridos/AA e BB interpor recurso, tendo a Relação proferido acórdão, conhecendo da apelação e enunciando no respetivo dispositivo: “Pelo acima exposto, decide-se pela improcedência do presente Recurso, confirmando-se a Decisão recorrida.”


5. Novamente inconformados, os Requeridos/AA e BB interpuseram recurso de revista excecional, invocando a propósito, a contradição de julgados, indicando dois acórdãos-fundamento, quais sejam, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de novembro de 2000 (in Coletânea de Jurisprudência – S.T.J. 2000, Tomo III, pág. 121) e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 junho de 2003 (Processo n.º 03B1762).


6. Remetido pela Relatora o processo à formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, para o efeito de averiguação dos requisitos específicos do recurso de revista excecional, fundado no artigo 672.º, n.º 1, al. c), do CPC, a formação por acórdão de 13-07-2021, admitiu o recurso, em relação à seguinte questão de direito: “Saber se a falta da notificação da cessão de créditos aos devedores, em momento prévio ao incidente de habilitação, afeta ou não a eficácia do aludido negócio”.


7. Os recorrentes na sua alegação de recurso, formularam as seguintes conclusões:

«I) O presente recurso vem interposto do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 25/06/2020, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Silva Rato, que decidiu julgar improcedente o recurso de apelação anteriormente interposto e confirmou a decisão recorrida de 1.ª Instância, na qual foi julgada procedente a pretensão formulada pela Requerente, declarando-a habilitada na acção, em substituição da Exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A.

II) Com efeito, entendeu o Venerando Tribunal recorrido que, no caso dos autos, os créditos da Exequente foram transmitidos para a Recorrida por via de cessão de créditos e que a mesma é eficaz relativamente aos Recorrentes, porquanto foram notificados de tal cessão por via da sua notificação para o incidente de habilitação, nos termos do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 356.º, da Lei Processual Civil, o que não pode merecer em qualquer medida o aplauso dos Recorrentes.

III) De facto, o presente recurso de revista excepcional é interposto à luz do preceituado no artigo 672.º, n.º 1, alínea c) e do n.º 2, alínea c), do C.P.C., por existir contradição entre o Acórdão recorrido e os Acórdãos fundamento que ora se juntam para os devidos efeitos legais, relativamente à questão de a falta da notificação da cessão de créditos aos devedores em momento prévio ao incidente de habilitação afectar ou não a eficácia do negócio quanto a eles.

IV) Por conseguinte, o Acórdão recorrido, quanto a esta questão, defende que, sendo a notificação ao devedor da cessão do crédito uma mera condição de eficácia desse negócio quanto aquele, a citação para o incidente de habilitação de cessionário constitui um meio próprio para notificar os Executados/devedores da cessão à Requerente do crédito que a Exequente anteriormente tinha sobre os Executados. 

V) Podendo, assim, concluir-se que o Acórdão recorrido entende que a falta de notificação extrajudicial da cessão de créditos aos devedores pode ser ultrapassada com a citação dos devedores para o incidente de habilitação, em sentido contrário do entendimento plasmado no Acórdão fundamento, do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/11/2000, C.J. – S.T.J. 2000, Tomo III, pág. 121, com os seguintes moldes:

“(…) A citação, como a notificação, tem um conteúdo determinado, pelo qual se avaliam e determinam os respectivos efeitos na esfera jurídica da pessoa citada. … À citação não podem pois, ser atribuídos os efeitos que o n.º 1 do artigo 583.º determina para a notificação do devedor.

(…) Os efeitos da citação são os indicados no artigo 481.º do Código de Processo Civil …

Nesse conjunto de efeitos não têm lugar os que o n.º 1 do artigo 583.º do Código Civil atribui à notificação da cessão ao devedor, relativamente a ele. …”. (Sublinhado nosso).

VI) De igual modo, este Acórdão fundamento prossegue ainda nos seguintes termos:

“ … Ora, um dos elementos essenciais da presente causa, porque integrante da causa de pedir, é, precisamente, o da notificação da cessão de créditos ou a sua aceitação por parte do devedor, quer isto dizer que, antes da citação, já tal elemento deverá fazer parte do elenco dos factos articulados no petitório, para que, uma vez citado o devedor, tal facto esteja adquirido definitivamente para a causa, juntamente com os demais elementos que constituem a causa de pedir. …”. (Sublinhado nosso).

VII) Por sua vez, dando o seu apoio a este aresto podemos citar na doutrina as posições de Mário Júlio de Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 11.ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 818, nota 2 e ainda a do Prof. Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, Volume II, 10.ª Edição, 2016, pág. 26, com os seguintes moldes:

“(…) A cessão de créditos apenas produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite (art. 583.º, n.º 1). A notificação e a aceitação não estão sujeitas a forma especial (cfr. art. 219.º). Não se pode, no entanto, considerar equivalente à notificação o facto de o cessionário se limitar a instaurar contra o devedor acção de cobrança de crédito, podendo inclusive a aceitação ser efectuada tacitamente (art. 217.º) ...”. (Sublinhado nosso).

VIII)    Nesta conformidade, ao contrário do que se sustenta no douto acórdão recorrido, não se podem atribuir à citação os efeitos previstos no n.º 1, do artigo 583.º, do C.C., tendo esta notificação aos Recorrentes da cessão de créditos que ser prévia à dedução do incidente de habilitação pela Recorrida.

IX) Em tal caso, os requisitos de validade e eficácia da cessão de créditos invocada pela Recorrida teriam que estar já na sua titularidade no momento da dedução do incidente de habilitação, o que não se verificou no presente caso concreto.

X) Além disso frise-se ainda que o entendimento sufragado pelo Acórdão recorrido está ainda em contradição com outro Acórdão fundamento, proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, datado de 12/06/2003, no âmbito do Processo n.º 03B1762, de igualmente se junta a respectiva cópia.

XI) Na realidade, a respeito da mesma questão de direito, este segundo Acórdão fundamento sufraga o seguinte entendimento, ao qual também aderimos e seguimos de perto:

“(…) A eficácia do direito de crédito do cessionário contra o devedor depende, em termos substantivos, da referida comunicação ao segundo ou da sua aceitação do contrato de cessão, pelo que deve integrar a causa de pedir na acção e, como é natural, devem preceder a propositura da acção intentada pelo cessionário contra o devedor.

Tendo em conta o fim e os efeitos primários e secundários do acto de citação no processo e o fim do acto de notificação ao devedor do contrato de cessão do direito de crédito, não pode o primeiro valer em termos de equivalência de efeitos jurídicos ao segundo. (…)”.

XII) Deste modo, a contradição entre o Acórdão recorrido e os dois Acórdãos fundamento sobre a mesma matéria é evidente, daí que V. Exas. devem considerar verificada a contradição apontada e admitir o presente recurso de revista excepcional, prevalecendo, sobre a questão em apreço, a interpretação plasmada nos Acórdãos fundamento.

XIII) Encontrando-se, assim, verificada a norma como requisito de admissão do recurso de revista excepcional que se interpõe, pelo que, salvo o respeito por opinião contrária, devem V. Exas. reconhecer a prevalência da interpretação plasmada nos Acórdãos fundamento.

XIV) Face ao supra exposto, pese embora esta questão não conheça tratamento uniforme nas nossas doutrina e jurisprudência, no nosso modesto entender, a legitimidade substantiva da Recorrida apenas estaria assegurada com a notificação da alegada cessão de créditos aos Recorrentes em momento anterior à dedução do incidente de habilitação.

XV) Por outro lado, à luz do disposto no artigo 672.º, n.º 1, alínea c), do C.P.C., o Acórdão recorrido encontra-se ainda em contradição com o entendimento perfilhado por alguns Acórdãos de Tribunais de Relação, como é o caso do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 17/12/2014, em que decidiu:

“(…) Pouco temos a acrescentar a esta posição porquanto a citação tem apenas uma tríplice função, a saber:

- dar conhecimento ao réu de que foi contra ele proposta uma determinada acção;

- convidar o demandado para se defender;

- constituí-lo como parte. (…).”

XVI)    Integrado nesta corrente jurisprudencial, cite-se ainda o entendimento plasmado em Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 18/06/2007, referente ao Proc. n.º 0753072, nos seguintes termos:

 I – A cessão de créditos para ser válida perante o devedor tem de lhe ser notificada ou por este aceite.

II – O credor-cessionário para poder propor a acção contra o devedor terá de previamente de o notificar (judicial ou extrajudicialmente), não se podendo atribuir tal valor à citação nesta acção.”

XVII)   De igual jeito, com as devidas adaptações ao presente incidente de habilitação, cite- se o entendimento plasmado em Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 19/09/2017, no qual se salienta:

“ I – Ainda que não se configure como elemento essencial para a perfeição do contrato e para a efectiva transmissão do crédito, a notificação da cessão ao devedor – ou a sua aceitação – corresponde a uma condição de eficácia da cessão relativamente ao devedor, pelo que, antes dessa notificação ou aceitação, o cessionário não está legitimado a exigir o crédito ao devedor e a instaurar contra o mesmo a respectiva acção executiva.

II – Tal notificação não poderá ser efectuada mediante a citação a efectuar na acção executiva, devendo o credor/cessionário – no requerimento executivo – alegar (e provar documentalmente, se possível) que a cessão de créditos já foi notificada ao devedor/executado ou que este já a aceitou.” (Sublinhado nosso).

XVIII) Desta feita, a notificação dos Recorrentes, um dos elementos que integram a causa de pedir do incidente de habilitação, já tinha de fazer parte (e de estar já adquirido para a causa), do elenco de factos articulados no seu articulado.

XIX) Nesta medida, sendo um dos elementos da causa de pedir e um dos requisitos do direito da Recorrida, pretensa credora-cessionária, sempre este deveria ter notificado os Recorrentes, enquanto devedores, da cessão de créditos em apreço (ou então que estas a tivessem aceite), o que no caso concreto não sucedeu em qualquer medida.

XX) Posto isto, quando deduziu o incidente de habilitação de cessionária, o direito da Recorrida ainda não se tinha completado perante os Recorrentes, ou seja, quando deduziu o incidente ainda não tinha (perante os devedores para quem a cessão ainda não era eficaz) o direito de que se arrogava, razão pela qual tal cessão não lhes poderá ser oponível, sendo ineficaz relativamente aos mesmos.

XXI) Por seu turno, da fotocópia da escritura da cessão de créditos celebrada entre a Exequente e Requerente, concretamente a fls. 54 do livro 40-A, junta por esta aquando da dedução do incidente de habilitação, resulta o seguinte teor:

“(…) - Que a cessão ora efectuada pela CEDENTE a favor da CESSIONÁRIA será, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 583.º do Código Civil, notificada pela CEDENTE e pela CESSIONÁRIA aos devedores e aos garantes. (…)” (Sublinhado nosso).

XXII) Porém, compulsados os autos, não foi carreado para os mesmos qualquer elemento probatório que permita demonstrar, com um grau mínimo de certeza e segurança, a consumação do efectivo conhecimento pelos Recorrentes da existência de qualquer cessão de créditos à Recorrida ou de que a esta tenha sido efectiva e previamente cedido qualquer crédito existente sobre aqueles.

XXIII) Efectivamente, considerando a inexistência nas fotocópias das alegadas cartas de qualquer um dos números de objecto dos C.T.T. em apreço, não se demonstra que tais cartas tenham sido remetidas ou entregues aos Recorrentes, muito menos em que datas, pelo que, assim sendo, nunca a notificação da pretensa cessão de créditos poderá ter sido regularmente efectuada, quer pela Exequente, enquanto Cedente, quer pela Requerente, enquanto Cessionária, sendo a mesma ineficaz perante os Recorrentes, uma vez que, além de não ter sido efectuada, a mesma nunca teria cumprido as disposições legais que lhe são aplicáveis.

XXIV) Todavia, aquela notificação era essencial para que a cessão do crédito fosse eficaz perante os Recorrentes, como decorre do teor das estipulações do contrato de cessão de créditos invocado, bem como do preceituado no artigo 583.º, n.º 1, do C.C., razão pela qual a cessão de créditos em apreço é inoponível e ineficaz relativamente aos Recorrentes.

XXV) Em bom rigor, atendendo ao teor da escritura de cessão de créditos celebrada entre Exequente e Requerente, aqui Recorrida, a cláusula contratual supra indicada consubstancia uma condição de eficácia do negócio de cessão de créditos, em termos de não poder a mesma produzir efeitos na esfera jurídica dos Recorrentes, enquanto terceiros de tal cessão de crédito, no caso daquela notificação não ser cumprida.

XXVI) Nesta senda, ao terem consagrado esta posição no contrato de cessão de créditos, parece-nos evidente que a notificação aos devedores da cessão deveria ter sido feita extrajudicialmente, sob pena de a mesma não lhes poder ser oponível, o que é incompatível com o entendimento acolhido pelo Tribunal recorrido relativo.

XXVII) Destarte, salvo o respeito por melhor opinião, o douto Acórdão recorrido, ao entender de modo diverso, violou o estipulado pelas partes nesse contrato de cessão de créditos e o preceituado no artigo 583.º, n.º 1, do C.C.

XXVIII) Por outra banda, no que concerne à legitimidade da Recorrida, o douto Tribunal recorrido adoptou o seguinte entendimento, que passamos a transcrever:

“(…) Daí que, em face da relação jurídica controvertida tal como é definida pela Requerente do presente Incidente Habilitação, esta tem legitimidade processual activa para intentar a sua habilitação para prosseguir na Execução de que este Incidente é apenso, no lugar da CGD. (…).”

XXIX) Porém, de toda a documentação junta no articulado da Recorrida e nos seus requerimentos, não logra a mesma demonstrar que haja adquirido da sociedade cedente (Exequente), quaisquer direitos de crédito que a mesma fosse titular sobre os Recorrentes, pelo que, com o devido respeito, não podemos acompanhar a argumentação explanada no Acórdão posto em crise.

XXX) Não logrando, assim, a Recorrida demonstrar quais os direitos de créditos que constituem o objecto da alegada cessão de créditos celebrada, muito menos que entre esses direitos de crédito se encontra algum crédito a deter sobre os Recorrentes, pelo que, assim sendo, a legitimidade substantiva da Recorrida apenas estaria assegurada com a notificação da alegada cessão de créditos aos Recorrentes em momento anterior à instauração do incidente de habilitação, o que, de facto, não sucedeu.

XXXI) Neste sentido, veja-se como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 27/09/2004, onde se pode ler:

“ … Se os requerentes peticionam a sua habilitação, alegando, com base em documentação que juntaram, terem obtido a cessão de um crédito e os requeridos, na oposição, alegaram a inexistência de tal crédito e desconhecerem a autenticidade de tal documento, tal oposição é legalmente consentida por exprimir impugnação do documento particular oferecido pelos requerentes, não podendo, na ausência de outras provas, considerar-se procedente o pedido incidental.”

XXXII) Com efeito, igualmente em contradição com o entendimento do Tribunal recorrido, saliente-se ainda o entendimento sufragado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19/09/2017, referente ao Proc. n.º 7825/16.3T8CBR.C1, onde se pode ler:

“(…) Mas, ainda que não se configure como elemento essencial para a perfeição do contrato e para a efectiva transmissão do crédito, a notificação da cessão ao devedor – ou a sua aceitação – corresponde seguramente a uma condição de eficácia da cessão relativamente ao devedor, uma vez que, se messa a notificação ou aceitação, a cessão não produz qualquer efeito em relação ao devedor. (…).” (Sublinhado nosso).

XXXIII) Paralelamente, com a devida adaptação aos contornos do presente caso concreto, sublinhe-se ainda o entendimento perfilhado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13/06/2019, referente ao Proc. n.º 2915/18.0T8VCT-B.G1, onde se pode ler no respectivo sumário:

“(…) III – Os pressupostos de validade e regularidade da instância executiva devem, em regra, estar presentes no momento em que a execução é proposta. É com referência a esse momento que se afere a legitimidade do exequente. Por isso, a citação para a execução não pode servir para dotar de eficácia um contrato com base no qual a execução é instaurada, isto é, um contrato de cuja eficácia depende a própria legitimidade do exequente.

IV – Tal pressuposto tem de verificar-se nesse momento, isto é, à semelhança dos casos de sucessão no direito (desvios à regra previstos no art. 54.º do CPC), no próprio requerimento executivo têm de ser alegados os factos constitutivos da cessão de créditos e da sua plena eficácia, juntando-se, além da livrança, o contrato de cessão de créditos e a notificação efectuada ao devedor.” (Sublinhado nosso).

XXXIV) Assim sendo, estando em causa uma cessão de créditos, deveria ainda a Recorrida alegar e provar documentalmente que está em condições de exigir o crédito aos Recorrentes em virtude de tal cessão lhe ter sido notificada ou ter sido por eles aceite, não podendo, contudo, ser admitida um incidente de habilitação deduzido pela cessionária do crédito sem que seja alegada e provada a prévia notificação ou aceitação da cessão pelo devedor.

XXXV) Não preenchendo, assim, a Recorrida os requisitos de legitimidade processual e substantiva para ser julgada habilitada a prosseguir a acção executiva contra os Recorrentes, uma vez que não logrou demonstrar, como lhe incumbia, nem que o crédito exequendo sobre estes tenha sido incluído na cessão de créditos em apreço, nem ainda que os mesmos tenham sido notificados previamente da cessão de créditos, por força do disposto no artigo 583.º, n.º 1, do C.C.

XXXVI) Nesta conformidade, salvo o devido respeito por opinião contrária, a Recorrida não reúne os necessários requisitos de legitimidade processual e substantiva para assumir a qualidade de credora em relação ao direito de crédito em causa, pelo que, nos termos e para os efeitos das disposições combinadas dos artigos 571.º, n.º 2, 576.º, n.º 3 e 579.º, ambos do C.P.C., verifica-se, in casu, uma excepção peremptória impeditiva, que importa a absolvição total dos Recorrentes do pedido formulado pela Recorrida.

Sem conceder em nada do que foi supra exposto, o que só se equaciona por dever de patrocínio forense, frise-se ainda que,

XXXVII) De facto, como o douto Tribunal recorrido admite, tendo o código do contrato de empréstimo o n.º PT...085, não foi permitido estabelecer “… qualquer  correspondência entre a referência desse contrato (PT+16 números) e qualquer das referências da dita lista (PT +19 números)”, o que terá levado o Tribunal de 2.ª Instância a pensar que “… terá havido engano na junção da atinente folha de cedência do crédito dos aqui Executados, engano esse que não tem relevo para apreciação da causa, como veremos).”

XXXVIII) De facto, compulsados os autos não é possível estabelecer essa correspondência entre os créditos incluídos na lista indicada pela Recorrida e o crédito que a Exequente detinha sobre os Recorrentes, pelo que, se terá havido engano ou não por parte da Recorrida, é sobre esta que recai o ónus de demonstração dos factos constitutivos do direito que invoca, à luz da regra geral do artigo 342.º, n.º 1, do C.C.

XXXIX) Em tal caso, a não demonstração de que o crédito que invoca sobre os Recorrentes se inclui nessa lista certamente que é um aspecto que lhe é desfavorável, pelo não cumprimento do ónus probatório que sobre si impende.

XL) Na realidade, a presunção registal de titularidade, constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial, não abarca os elementos constantes das inscrições, averbamentos ou discrições, mas apenas o que resulta do facto jurídico inscrito tal como foi registado.

XLI) Como decorre do artigo 2.º do Código do Registo Predial, o que se regista são os factos jurídicos (neste caso, a alegada cessão de créditos) e não as situações jurídicas a que se pretende dar publicidade (o direito de propriedade ou outros).

XLII) De igual modo, salvo o devido respeito, o caso dos autos não corresponde a nenhuma situação excepcional de aquisição tabular, constantes nos artigos 5.º, 17.º, n.º 2, 122.º, do Código do Registo Predial ou no artigo 291.º, do C.C., pelo que, assim sendo, sempre a presunção constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial, apresenta natureza ilidível.

XLIII) Deste modo, ainda que a Recorrida tenha registado a cessão de créditos na Conservatória de Registo Predial, a função primacial do registo é publicitar situações jurídicas reais, não sendo o seu efeito, em regra, atributivo de direitos reais.

XLIV)  Desta feita, existe uma divergência entre a ordem substantiva e a ordem registal, devendo a primeira prevalecer sobre a segunda, ilidindo-se assim a presunção de titularidade a que refere o artigo 7.º do Código do Registo Predial.

XLV)   Nesta conformidade, sempre a Recorrida deveria ter efectuado a devida demonstração de que o crédito que invoca sobre os Recorrentes foi efectivamente objecto desse contrato de cessão de créditos, o que não logrou fazer, quer pelos documentos que juntou aos autos, quer por ser inaplicável a presunção de titularidade registal, quer ainda por a situação sub judice não corresponder a nenhuma aquisição tabular.

XLVI) Aqui chegados, à luz do supra exposto e do mais que seja doutamente suprido por V. Exas., cumpre o douto Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que julgue a Recorrida parte ilegítima (quer sob o ponto de vista substantivo, quer sob o ponto de vista processual) e que absolva os Recorrentes da presente instância, com as demais consequências legais.

Nestes termos e nos demais de direito, que V. Exas doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso de revista excepcional e, por via dele, ser revogado o douto Acórdão recorrido, nos termos supra expostos, sendo o mesmo substituído por outro que absolva os Recorrentes da presente instância, assim e como sempre, se fazendo a integral e acostumada

JUSTIÇA!»


Cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação


A – Os factos provados

O tribunal de 1.ª instância proferiu a seguinte decisão quanto à matéria de facto:

«Com relevo para a decisão a proferir está provada a seguinte factualidade e dinâmica processual:

1) A Caixa Geral de Depósitos, SA instaurou a acção de execução a que o presente incidente se encontra apenso, com vista à cobrança do montante de 81.780, 28 euros.

2) Por contrato de cessão de créditos celebrado em 30 de janeiro de 2019 a Caixa Geral de Depósitos, SA cedeu à requerente um conjunto de créditos de que era titular sobre terceiros, em que se inclui o crédito exequendo.»

 

B – O Direito

1. A questão a dirimir é a de saber se a falta da notificação da cessão de créditos aos devedores, em momento prévio ao incidente de habilitação, afeta ou não a eficácia do aludido negócio.

O Acórdão recorrido quanto a esta questão defende que, sendo a notificação ao devedor da cessão do crédito uma mera condição de eficácia desse negócio, a citação para o incidente de habilitação de cessionário constitui um meio próprio para notificar os Executados/devedores da cessão à Requerente do crédito que a Exequente detinha sobre os Executados. O Acórdão recorrido entende, assim, que a falta de notificação extrajudicial prévia da cessão de créditos aos devedores pode ser ultrapassada com a citação destes para o incidente de habilitação, e que a requerente tem, portanto, legitimidade processual ativa para intentar o presente incidente de habilitação e para prosseguir a Execução no lugar da Caixa Geral de Depósitos, SA.

Já no acórdão-fundamento – o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de junho de 2003 (Processo n.º 03B1762 ) – adotou-se uma orientação distinta, nos termos da qual,  “A eficácia do direito de crédito do cessionário contra o devedor depende, em termos substantivos, da referida comunicação ao segundo ou da sua aceitação do contrato de cessão, pelo que deve integrar a causa de pedir na acção e, como é natural, devem preceder a propositura da acção intentada pelo cessionário contra o devedor.”

 

2. Quid iuris?

A cessão de créditos define-se como um contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, traduzindo-se na substituição do credor originário por outra pessoa, mas sem produzir a substituição da obrigação antiga por uma nova, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional, com a única modificação subjetiva que consiste na transferência do lado ativo da relação obrigacional.

A questão de direito dos presentes autos opõe duas teses: aquela a que aderiu o acórdão recorrido, que equipara a citação do devedor para o incidente de habilitação (ou para a ação executiva) à notificação exigida pelo artigo 583.º, n.º 1, do Código Civil como requisito de eficácia da cessão de créditos em relação ao devedor cedido e, uma outra tese mais exigente quanto aos formalismos, segundo a qual a comunicação ao devedor da cessão de créditos deve ter lugar em momento anterior à propositura da ação e que a notificação da cessão constitui um facto a alegar nos articulados e integrador da causa de pedir da ação. Esta segunda tese, todavia, não se revela adequada nem à letra nem à finalidade da lei. Por um lado, o artigo 583.º, n.º 1 não prevê uma enumeração taxativa dos meios pelos quais o devedor obtém o conhecimento da cessão e, por outro, o objetivo da lei com a cessão é precisamente o de promover as vantagens associadas à livre circulação de créditos num tempo em que estes assumem uma importância económica crescente.

A tese que exige que a notificação seja anterior à ação executiva surge como um corpo estranho no regime jurídico da cessão de créditos, que admite que a notificação da cessão pode ser extrajudicial e não está sujeita a forma. Conforme defendido por Vaz Serra, «Cessão de Créditos e de outros direitos», BMJ, n.º especial, 1955, p. 222, «(…) [a] notificação não é um negócio jurídico, pois por ela não se exprime uma vontade dirigida a efeitos jurídicos determinados: quer-se apenas informar terceiros do facto da cessão. Mas, isto não obsta a que lhe sejam aplicáveis, por analogia, (…) as normas relativas aos negócios, uma vez que é uma ação voluntária lícita com efeitos semelhantes aos dos negócios jurídicos». A notificação constitui, assim, uma declaração recetícia através da qual é dado a conhecer ao devedor cedido o facto da transmissão do crédito. Esta declaração não está sujeita a forma especial, podendo ser feita de forma expressa ou tácita (artigos 217.º e 219.º, ambos do Código Civil). A isto acresce que a lei se basta, para a eficácia da cessão em relação ao devedor, com o seu conhecimento, não exigindo a sua autorização (artigo 577.º, n.º 1, do Código Civil). Assim, não há motivos legais nem práticos que impeçam que o conhecimento do devedor se adquira ou concretize através de várias formas, entre as quais se conta a citação para a ação. Com efeito, apesar das diferenças normalmente apontadas entre a notificação e a citação, é inegável que ambas produzem o conhecimento da transmissão do crédito por parte do devedor, sendo o conhecimento o único elemento constitutivo da eficácia da cessão em relação ao devedor. A circunstância de o conhecimento da cessão só operar no momento da citação e não em momento prévio não afeta a confiança que o regime da cessão de créditos, consagrado nos artigos 577.º do Código Civil e seguintes, pretende tutelar: a confiança do devedor cedido que paga a um credor aparente, desconhecendo a cessão (Pestana Vasconcelos, A Cessão de Créditos em Garantia e a Insolvência – Em particular da Posição do Cessionário na Insolvência do Cedente, Coimbra editora, Coimbra, 2007, p. 405). Note-se que, se o devedor pagou a dívida ao cedente antes do conhecimento da cessão, a lei considera o pagamento liberatório, cabendo ao cessionário provar que o devedor teria adquirido esse conhecimento por outros meios, exigindo-se a demonstração do conhecimento efetivo do devedor, não bastando um desconhecimento culposo deste (cfr. Ana Taveira da Fonseca, “Anotação ao artigo 583.º”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p. 610). Ademais, para proteção do devedor cedido, a lei faculta-lhe a possibilidade de na contestação impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo, nos termos do artigo 356.º, n.º 1, al. a), do CPC. A jurisprudência reconhece, ainda, nos termos da lei, ao devedor cedido, o direito de “(…) invocar como meio de defesa geral contra o cessionário, a ineficácia em sentido amplo do negócio-acto de cessão de créditos (causa próxima) convencionado com a cedente, em adição à oponibilidade das vicissitudes (excepções) do negócio subjacente ao crédito cedido (causa remota), licitamente invocáveis contra o cedente nos termos do art. 585.º do CC.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-05-2021, proc. n.º 348/14.7T8STS-AV.P1.S1). Não vê, portanto, o devedor, os seus meios de proteção diminuídos, em virtude de ter conhecido a cessão através da citação.


3.  O Supremo Tribunal de Justiça após uma primeira posição, plasmada no Acórdão 14-11-2000, CJ/STJ 2000, Tomo III, p. 121 e no Acórdão de 12-06-2003, no âmbito do Processo n.º 03B1762, invocados pelos recorrentes como acórdãos-fundamento, passou a adotar a tese oposta, pelo menos a partir de 2012, com o Acórdão de 06-11-2012 (proc. n.º 314/2002.S1.L1), em cujo sumário se concluiu que «A citação para a acção de condenação no pagamento do crédito cedido, proposta pelo credor cessionário, pode produzir o mesmo efeito jurídico que a notificação prevista no art. 583º-1 C. Civil, cessando, com prática aquele acto judicial, a inoponibilidade da transmissão pelo cessionário ao devedor». Nesta sequência, o Acórdão de 10-03-2016 (703/11.4TBVRS-A.E1.S1), num caso em que estava em causa saber se a citação para a execução produz os mesmos efeitos jurídicos que a notificação, a que alude o artigo 583.º, nº1 do Código  Civil, adotou a seguinte orientação: «I - A notificação ao devedor, a que alude o art. 583.º, n.º 1, do CC, de que o seu credor cedeu o crédito a outrem, pode ser feita através da citação para a execução proposta pelo credor cessionário contra os oponentes executados. II - Com a citação para a execução cessa a inoponibilidade por parte do devedor da transmissão pelo cessionário».  

A fundamentação aduzida foi a seguinte, conforme se transcreve:

«Na cessão de créditos o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou parte do seu crédito, nos termos do art. 577 do C. Civil.

Como se refere no Ac. deste Supremo de 25.05.1999 acessível via www.dgsi.pt” o crédito

 transferido fica inalterado: apenas se verifica a substituição do credor originário para um novo credor. Cedente e cessionário têm intervenção activa e a terceira pessoa - o devedor -passiva, isto, porque não se exige o seu consentimento”

A cessão opera entre as partes (cedente e cessionário), independentemente da sua notificação ao devedor.

No entanto, em relação ao devedor é necessário que a cessão lhe seja notificada, nos termos preceituados do nº 1 do art. 583 do C. Civil

A razão de ser da exigência do conhecimento da cessão reside como bem nota o Ac. deste Supremo de 6.11.2012, acessível via www.dgsi.pt, “na necessidade da protecção do interesse do devedor pois, que, em princípio, não  admite  a lei eficácia liberatória da prestação feita ao credor aparente, havendo, enfim que proteger a boa fé do devedor que confia na aparência de estabilidade subjectiva do contrato, frustrada pela omissão de informação do primitivo credor cedente” .

Como aí se diz também “o desiderato da lei fundamentalmente que o devedor como terceiro relativamente ao contrato de cessão, não seja confrontado como uma situação alterada no sentido do agravamento, por via da transferência do direito de crédito”

Também no Ac deste Supremo de de 3.06.2004 acessível via www.dgsi.pt : A lei faz depender a eficácia da cessão em relação ao devedor do conhecimento que este tenha de que o crédito foi cedido.

O que torna a cessão eficaz relativamente ao devedor é o facto de este a conhecer podendo esse conhecimento revelar-se de várias formas, entre quais a notificação efectuada por um dos contraentes da cessão.

Mas tal não significa que o conhecimento não possa chegar ao devedor por outra via, nomeadamente a citação para acção / execução.

Se a eficácia da cessão está ligada ao conhecimento, não se pode dizer que com a citação para a acção / execução o devedor não passe a conhecer que o crédito foi cedido.

Como bem nota o Acórdão de 6.11. 2012 citando Assunção Cristas em anotação ao Acórdão de 3 de Junho de 2004 in Cadernos de Direito Privado nº 14 pag. 63 “mesmo que se conclua que a citação não é o mesmo que a notificação, ainda será necessário sustentar que ela não produz o conhecimento da transmissão por parte do devedor”.

Também como bem nota o Acórdão que estamos a seguir de perto, se o conhecimento do devedor da cessão é o elemento constitutivo da eficácia da cessão relativamente a ele (devedor), é indiferente do ponto da vista do efeito jurídico, classificar a citação como notificação ou simples modo de conhecimento” sendo certo como aí se diz que não se vislumbra “como a citação não possa ser considerado um meio idóneo de transmissão ao devedor do pertinente e adequado “conhecimento”.

“Com o “conhecimento” da transmissão, que se concretiza através da citação para a execução – ficando o cedido ciente da existência da cessão e da impossibilidade de invocar o seu desconhecimento (art. 583 nº 2) o direito do cessionário , que até então era inoponível ao devedor cedido, protegido pela ineficácia, passa a gozar da exigibilidade que antes daquela acto a ineficácia relativa condicionava”

No que concerne ao argumento do Acórdão fundamento no sentido de que a notificação da cessão de créditos ou a sua aceitação por parte do devedor como um dos elementos essenciais e integrantes da causa de pedir, deve fazer parte do elenco dos factos articulados antes da citação, não colhe porque como bem observa o citado Acórdão : “Admitir que o cessionário não poderá propor a acção contra a devedor sem o ter notificado previamente gera uma situação algo curiosa, pois também o antigo credor (cedente), no rigor técnico, o não poderá  fazer, porquanto já não é credor, a este careceria legitimidade e àquele faltaria um elemento essencial da causa de pedir .“

Portanto, tal como o Acórdão recorrido por via da citação para a execução os opoentes/executados tiveram conhecimento da cessão de crédito, circunstância que fez com que a mesma se tornasse eficaz relativamente a eles e consequentemente com a possibilidade da cessionária poder exigir dos opoentes o pagamento da dívida».

Seguiu-se o acórdão de 03-10-2017 (71045/14.0YIPRT.L1.S1), no qual também se entendeu que «Na cessão de créditos, não se torna imprescindível, sob pena de ineficácia, o consenso do contraente originário cedido, bastando-se com a notificação ao devedor, ainda que extrajudicial, podendo ser efetuada, através da citação para a ação proposta pelo credor cessionário contra o devedor (…)».

Neste sentido, se tem orientado, também, a jurisprudência maioritária dos Tribunais da Relação, de que se cita, a título de exemplo, os acórdãos da Relação de Coimbra, de 06-07-2016 (proc. n.º             467/11.1TBCNT-A.C1), de 22-11-2016 (proc. n.º 3956/16.8T8CBR.C1), de 13-11-2018 (proc. n.º 1703/18.9T8CBR.C1); 02-04-2019 (proc. n.º 126696/17.0YIPRT.C1), 16-03-2021 (proc. n.º 132/12.2TBCNT-E.C1); da Relação de Porto, de 13-05-2014 (proc. n.º 678/13.5TBPFR-A.P1); da Relação de Lisboa, de 12-05-2009 (29488/05.1YYLSB.L1-7); da Relação de Guimarães, de 26-06-2014 (proc. n.º 2180/13.6TBBRG.G1).

 O Supremo Tribunal de Justiça veio a confirmar esta tese, adotando o princípio da equivalência da citação à notificação como meio de concretização do conhecimento da cessão pelo devedor cedido, no Acórdão de 26-05-2021 (proc. 135/20), em cujo sumário se estipula a seguinte orientação: «A citação em acção instaurada pela cessionária em que, invocando um direito de crédito sobre os devedores que lhe foi transmitido pela entidade cedente, pede a declaração de insolvência dos mesmos, constitui meio adequado ao conhecimento imposto pelo n.º l do art. 583.º do CC».


4. Na jurisprudência citada, a equiparação da citação do devedor à notificação do devedor cedido para o efeito do artigo 583.º, n.º 1, do Código Civil foi decidida em contextos díspares, ora numa ação de condenação (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-11-2012), ora numa ação executiva (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-03-2016), ou, ainda, numa ação em que se pede a declaração de insolvência (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-05-2021). No caso vertente, estamos perante um incidente de habilitação, deduzido pela cessionária numa ação executiva, pelo que é aplicável o princípio fixado na jurisprudência maioritária.


5. Alegam, todavia, os recorrentes que não ficou provado que o crédito exequendo integrasse a lista dos créditos cedidos pela Caixa à agora recorrida e que a inscrição no registo da cessão de créditos controvertida nos autos não supre a falta de titularidade do crédito, tendo de se considerar ilidida a presunção registral fixada no artigo 7.º do Código de Registo Predial.

Mas não têm razão.

A questão da existência da cessão de créditos ficou resolvida pelas instâncias no facto provado n.º 2, segundo o qual «Por contrato de cessão de créditos celebrado em 30 de janeiro de 2019 a Caixa Geral de Depósitos, SA cedeu à requerente um conjunto de créditos de que era titular sobre terceiros, em que se inclui o crédito exequendo». O tribunal de 1.ª instância para formar a sua convicção «levou em consideração os documentos juntos pela requerente, que demonstram a cessão de créditos». O Tribunal da Relação, chamado a responder ao pedido de impugnação da matéria de facto, considerou também como provado o facto provado n.º 2, a partir do Contrato de Cessão de Créditos celebrado entre a Caixa Geral dos Depósitos e a recorrida, e da certidão do registo predial, ambos os documentos juntos aos autos, não atribuindo relevo à divergência entre a certidão do registo predial e a lista de créditos cedidos apresentada pela requerente, na qual não constava, por lapso, o contrato de empréstimo subscrito pelos recorrentes.

Os juízos de facto feitos pelo tribunal recorrido resultam de uma análise global da prova que não fere critérios legais, pelo que não pode este Supremo Tribunal, por estar em causa uma questão de facto, considerar que os documentos juntos aos autos não permitem tirar as conclusões inferidas pelas instâncias, de acordo com a sua livre convicção.

 

6. Assim sendo, deve considerar-se que a notificação da cessão aos devedores, para o efeito da eficácia da cessão de créditos, foi realizada mediante a citação para o incidente de habilitação de cessionário, nos termos do artigo 356.º, n.º 1, al. a), do CPC. Conclui-se, pois, tal como no acórdão recorrido, pela legitimidade ativa da Requerente, agora recorrida, para intentar a sua habilitação a fim de prosseguir a execução no lugar da Caixa Geral dos Depósitos, SA.


Em face do exposto, improcedem todas as conclusões do recurso interposto pelos recorrentes.


7. Sumário elaborado de acordo com o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I – A cessão de créditos define-se como um contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito, traduzindo-se na substituição do credor originário por outra pessoa, mas sem produzir a substituição da obrigação antiga por uma nova, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional, com a única modificação subjetiva que consiste na transferência do lado ativo da relação obrigacional.

II – A notificação da cessão ao devedor pode ser feita por qualquer meio, inclusivamente pela citação do devedor cedido para a ação executiva ou para o incidente de habilitação enxertado nessa ação.

III – O único elemento constitutivo da eficácia da cessão é o conhecimento do devedor, não exigindo a lei a sua autorização (artigo 577.º, n.º 1, do Código Civil). 

IV – Para proteção do devedor cedido, a lei faculta-lhe a possibilidade de na contestação impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo, nos termos do artigo 356.º, n.º 1, al. a), do CPC.

V – A jurisprudência reconhece ao devedor cedido o direito de “(…) invocar como meio de defesa geral contra o cessionário, a ineficácia em sentido amplo do negócio-acto de cessão de créditos (causa próxima) convencionado com a cedente, em adição à oponibilidade das vicissitudes (excepções) do negócio subjacente ao crédito cedido (causa remota), licitamente invocáveis contra o cedente nos termos do art. 585.º do CC.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-05-2021, proc. n.º 348/14.7T8STS-AV.P1.S1).

VI – Não vê, portanto, o devedor, os seus meios de proteção diminuídos, em virtude de ter conhecido a cessão através da citação.


III – Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


Supremo Tribunal de Justiça, 7 de setembro de 2021


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Fátima Gomes (2.ª Adjunta)


Nos termos do artigo 15.º-A do DL 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade dos Juízes Conselheiros Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto) e Fátima Gomes (2.º Adjunta).

(Maria Clara Sottomayor - Relatora)