Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
737/14.7T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: COMISSÕES ESPECIAIS
ASSOCIAÇÃO
PERSONALIDADE JURÍDICA
ORGÃO AUTÁRQUICO
CANDIDATURA
CAMPANHA ELEITORAL
RESPONSABILIDADE
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS / ASSOCIAÇÕES SEM PERSONALIDADE JURÍDICA E COMISSÕES ESPECIAIS.
Doutrina:
-Pires de Lima e Antunes Varela, Comentário ao CC, Parte Geral, Edição da Universidade Católica;
-Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo VII, p. 160, 161, 197 e 198;
-Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo IV, p. 733 e 735;
-Pais de Vasconcelos, Teoria Geral de Direito Civil, 8.ª Edição, p. 193 e 195;
-Zenha Martins, Das Associações sem Personalidade Jurídica, p. 101.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 195.º, 199.º E 200.º.
LEI ORGÂNICA N.º 1/01 E DA LEI Nº 56/98, REGULA A ELEIÇÃO DE TITULARES PARA OS ÓRGÃOS DAS AUTARQUIAS LOCAIS.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 31-05-2005, PROCESSO N.º 05B1717;
- DE 20-10-2005, PROCESSO N.º 05B1890.
Sumário :
I. As “associações sem personalidade jurídica” reguladas nos arts. 195º e ss. do CC constituem entidades de tipo associativo que integram um fundo patrimonial que se contrapõe ao património dos seus associados, não se confundindo com as “comissões especiais”previstas no art. 199º que, a partir da recolha de fundos, têm um objetivo não lucrativo e com duração transitória.

II. Ao grupo de cidadãos eleitores organizado em torno de candidaturas a eleições para órgãos autárquicos, ao abrigo da Lei Orgânica nº 1/01 e da Lei nº 56/98 (Lei do Financiamento de Campanhas Eleitorais, entretanto revogada), ajusta-se a qualificação de “comissão especial”, nos termos e para efeitos dos arts. 199º e 200º do CC.

III. Pela dívida correspondente ao fornecimento de produtos que foram solicitados em nome de um “movimento” que emergiu de um “grupo de cidadãos eleitores” formado no âmbito de eleições autárquicas, os quis foram utilizados na respetiva campanha eleitoral, responde, além de outros indivíduos, aquele cujo nome foi utilizado para identificar o referido “movimento” e que, ademais, ocupou o primeiro lugar na lista de candidatura à Câmara Municipal.

Decisão Texto Integral:
I – AA, Lda, intentou ação declarativa com processo comum contra diversos RR., entre os quais BB, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 90.745,80, referente a capital e juros vencidos até à propositura da ação, acrescida de juros vincendos, à mesma taxa, até efetivo pagamento, ao abrigo do nº 2 do art. 200º do CC.

Alegou para o efeito que foi contactada pelo referido R., como um dos responsáveis do “MBB/PF” e, posteriormente, pelo respetivo diretor financeiro, CC, que, em nome daquele, lhe solicitou o fornecimento de material para a campanha eleitoral autárquica realizada em 2001 no Concelho de Vila ….

O R. BB, juntamente com os outros RR., apresentaram contestação na qual, além de impugnarem factualidade alegada pela A., invocaram a exceção dilatória de caso julgado com fundamento no facto de a A. ter intentado, em 31-5-02, uma outra ação judicial contra o R. BB, a qual terminou com absolvição de todos do pedido. Mais alegaram a prescrição dos peticionados juros, com fundamento no disposto no art. 310º, al. d), do CC.

Em sede de impugnação foi negada a existência de qualquer “comissão especial” e foi alegado que nada contrataram com a A., pois apenas fizeram parte da candidatura à Câmara Municipal de Vila …, sendo que, sob a mesma designação e sigla “MBB/PF”, foram apresentadas outras candidaturas à Assembleia Municipal e às 42 freguesias do Concelho de Vila …, do que concluem que, a existir qualquer responsabilidade, esta teria de recair sobre todos esses candidatos.

A A. respondeu à exceção de caso julgado argumentando que o “MBB/PF” nunca foi demandado pela A. nas duas anteriores ações intentadas e que os demais RR. são agora demandados ao abrigo do disposto no art. 200º, nº 2, do CC.

Na 1ª instância foi julgada extinta a instância relativamente ao “MBB/PF”, por impossibilidade da lide, e foi julgada improcedente a exceção do caso julgado deduzida pelos demais RR.

Foi ainda proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e condenou o R. BB (2º R.) e os demais RR. (3º a 12º RR.) a pagarem, solidariamente, à A. a quantia de € 23.520,00, com juros moratórios, vencidos e vincendos, desde 29-10-14 até pagamento.

Os 2º a 12º RR. interpuseram recurso de apelação, tendo a Relação julgado verificada a exceção de caso julgado e absolvido esses RR. da instância.

A A. interpôs recurso de revista em que se insurgiu contra a decisão que considerou verificada a exceção de caso julgado, considerando que a causa de pedir é diversa da que foi apresentada na outra ação.

Neste Supremo foi proferido acórdão que concluiu:

a) Confirmar o acórdão da Relação na parte em que julgou procedente a exceção dilatória de caso julgado quanto aos 3º a 12º RR. que, com esse fundamento, se consideram absolvidos da instância;

b) Revogar o acórdão da Relação na parte em que considerou verificada a exceção de caso julgado quanto ao 2º R.;

c) Determinar a remessa dos autos à Relação para que nela fossem apreciadas as demais questões que foram suscitadas pelo 2º R. no recurso de apelação.

A Relação proferiu então novo acórdão em que julgou a ação improcedente quanto ao R. BB.

A A. interpôs recurso de revista em que suscita as seguintes questões:

- Nulidade por excesso de pronúncia, pelo facto de o fundamento que levou a Relação a julgar improcedente a ação não fazia parte do objeto do recurso de apelação que o R. interpusera;

- Desconsideração de um facto notório, qual seja o de o R. BB integrar o “Movimento BB” “MBB/PF”, em nome do qual foram feitos os fornecimentos de material para a campanha autárquica;

- Se o facto de o R. BB ter integrado uma lista que concorreu às eleições autárquicas para a Câmara de F… o responsabiliza pela dívida resultante de fornecimentos feitos ao MBB/PF.

Houve contra-alegações.

Cumpre decidir.

II - Factos provados:

1. A A. é uma sociedade comercial que se dedica, com regularidade, por conta própria e com intuito lucrativo, à atividade de publicidade, promoção de imagem e serviços, organização de feiras, exposições e congressos.

2. A lista que os 2º a 12º RR. integraram, com alguns outros candidatos, concorreu à eleição para a Câmara Municipal de Vila … nas eleições autárquicas de 2001.

3. Tratou-se de uma candidatura proposta por um grupo de cidadãos, nos termos da Lei Orgânica nº 1/01, e que se constituiu sob a designação “Movimento BB/Por F…” e a sigla “MBB/PF”.

4. Sob tal denominação e sigla, e propostas pelos mesmos cidadãos, foram também apresentadas às mesmas eleições listas de candidatos à Assembleia Municipal de Vila … e a 42 freguesias do mesmo Município.

5. CC solicitou à A. o fornecimento de diversos materiais para a campanha eleitoral das eleições autárquicas do ano 2001, em nome do “MBB/PF”.

6. Em consequência do referido em 5., a A. forneceu ao “MBB/PF” o material e equipamento descritos nas faturas nºs 21…7 e 22…3, no valor total de € 41.401,29, a saber: 2.500 isqueiros, 2.500 esferográficas, 1.500 conversores, 1.800 bolas, 1.500 porta-chaves, 14.828 sacos plásticos, 1.000 balões, 300 bonecas, 7.500 isqueiros, 12.500 esferográficas, 30.000 conversores e 8.000 bonecas.

7. Este material destinou-se à campanha eleitoral do 2º R. BB à Presidência da Câmara de Vila … levada a cabo nas eleições autárquicas do ano 2001, à candidatura à Assembleia Municipal de Vila … e às candidaturas de 42 assembleias de freguesia do Município de Vila ….

8. A A. recebeu a quantia de € 17.880,92 para pagamento dos materiais referidos em 6.

III – Decidindo:

1. A Relação alterou a decisão da matéria de facto na parte correspondente ao ponto 5.

Onde antes constava que:

No exercício da sua atividade, CC, mandatário financeiro do Movimento BB/Por F…, com a sigla MBB/PF, solicitou à A. o fornecimento de diversos materiais para a campanha eleitoral das eleições autárquicas do ano 2001”, o que fizera “em nome do MBB/PF e como um dos responsáveis do MBB/PF com as funções de mandatário financeiro”,

ficou a constar que:

“CC solicitou à A. o fornecimento de diversos materiais para a campanha eleitoral das eleições autárquicas do ano 2001, em nome do “MBB/PF”.

Tal alteração foi feita essencialmente a partir da apreciação do regime jurídico das eleições autárquicas resultante da Lei Orgânica nº 1/01, de 14-8 e também de considerações que foram sustentadas na Lei de nº 56/98, de 18-8 (financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, entretanto revogada e substituída pela Lei nº 17/03, de 20-6), na medida em que o mandatário financeiro, em casos de grupos de cidadãos eleitores, é indicado para cada campanha eleitoral, sendo adstrito ao grupo de cidadãos eleitores proponentes e não propriamente à denominação adotada para cada eleição a órgão autárquico.

Desta alteração e do facto de considerar que não se apurou que o R. BB integrara o “MBB/PF”, “Movimento BB” partiu a Relação para a declaração de improcedência da ação.

2. A referida candidatura surgiu na sequência da possibilidade prevista no art. 16º da Lei Orgânica nº 1/01, autorizando a apresentação de candidaturas às eleições autárquicas propostas por grupos de cidadãos eleitores, cada um dos quais a “subscrever declaração de propositura da qual resulte inequivocamente a vontade de apresentar a lista de candidatos dela constante” (art. 19º, nº 3).

Na apresentação das listas de candidatos, os grupos de cidadãos são representados pelo primeiro proponente da candidatura (art. 21º), devendo ainda designar um mandatário de entre os eleitores inscritos no respetivo círculo para efeitos de representação nas operações referentes à apreciação da elegibilidade e nas operações subsequentes (art. 22º, nº 1).

De acordo com o art. 23º, “a apresentação das candidaturas consiste na entrega de:

a) Lista contendo a indicação da eleição em causa, a identificação do partido, coligação ou grupo de cidadãos proponente e a identificação dos candidatos e do mandatário da lista …;

b) Declaração de candidatura”.

Segundo o mesmo preceito, tal declaração de candidatura é assinada, conjunta ou separadamente, pelos candidatos, dela devendo constar, “sob compromisso de honra, que não estão abrangidos por qualquer causa de inelegibilidade nem figuram em mais de uma lista de candidatos para o mesmo órgão, que aceitam a candidatura pelo … grupo de cidadãos proponente da lista e que concordam com a designação do mandatário indicado na mesma” E, nos termos do nº 8, “na declaração de propositura por grupos de cidadãos eleitores, nos casos em que a presente lei o admitir, os proponentes são ordenados, à exceção do primeiro e sempre que possível, pelo número de inscrição no recenseamento”.

Atenta a data a que os atos se reportam, estava em vigor a Lei nº 56/98, de 18-8, sobre o financiamento de campanhas eleitorais (entretanto revogada e substituída pela Lei nº 17/03, de 20-6), abarcando os casos em que intervêm grupos de cidadãos eleitores.

Prescrevia o art. 15º desse diploma a elaboração de um orçamento de receitas e de despesas e o art. 20º previa a existência de um mandatário financeiro. No que concerne às receitas, o art. 16º regulava a possibilidade de acesso a subvenção estatal, nos termos do art. 29º, constituindo ainda fontes de financiamento os donativos de pessoas singulares e o produto de atividades de angariação de fundos para a campanha.

3. Numa anterior ação o ora 2º R. foi demandado como responsável direto pela dívida, alegando a A. que fora ele quem lhe solicitara o fornecimento do material. Essa versão não se provou, o que determinou a improcedência dessa ação sustentada nessa causa de pedir, tal como improcedeu outra ação que foi dirigida contra o “mandatário financeiro”.

Na presente ação, que agora segue apenas contra o 2º R., depois de os demais terem sido absolvidos da instância, o mesmo é demandado na sua qualidade de elemento integrante do “MBB/PF”, considerando ainda o facto de ter sido candidato à Câmara de …. A sua responsabilidade pelo pagamento da dívida é sustentada na aplicação do regime jurídico que emerge dos arts. 199º e 200º do CC.

Como já se referiu no anterior acórdão deste mesmo Supremo, a causa de pedir na presente ação, na parte que respeita ao 2º R., já não corresponde à sua intervenção na contratação direta do fornecimento do material, antes emerge da alegação de que integrou um movimento eleitoral em representação do qual e para o qual foi contraída a dívida. Agora está simplesmente em discussão a apreciação da sua eventual responsabilidade como elemento de um grupo que se organizou em torno de eleições autárquicas, em nome da qual e por conta do qual foi feita a referida encomenda e contraída a aludida dívida.

Pretende o 2º R. eximir-se de qualquer responsabilidade relativamente à dívida de compra do material de propaganda eleitoral utilizado na referida campanha eleitoral, sob o pretexto de que não está provado que tenha sido proponente de qualquer candidatura (nem sequer daquela em que surgiu em primeiro lugar, como candidato à Câmara de F…), de que fazer parte de uma candidatura eleitoral não o transforma em responsável pelas despesas assumidas pelo respetivo grupo de cidadãos eleitores proponentes e que, além disso, foram diversas as listas de candidatos (mais rigorosamente 44), de modo que não poderia assumir despesas que aproveitaram a outras candidaturas de que não fazia parte.

Trata-se de juízos eivados de um excesso formalista que apenas é superado pela estratégia defensiva que empregou, ao omitir qualquer referência clarificadora quanto ao papel que efetivamente desempenhou na referida disputa eleitoral.

Apesar disso, nem o 2º R. nem obviamente este Supremo pode ignorar que o 2º R. assumiu o lugar de candidato à Câmara de F… (ao encabeçar a lista que se apresentou a concorrer a este órgão autárquico) e que foi o seu nome que foi utilizado para identificar o “movimento” que se gerou em torno dessa e de outras candidaturas.

É verdade que não está provado, nem sequer foi alegado, que o R. BB tenha sido um dos cidadãos eleitores que subscreveu a apresentação de listas de candidatos a eleições autárquicas de F…. Mas é inegável que foi o seu nome que foi utilizado para designar as candidaturas à eleição para a Câmara de F… (envolvendo a Presidência e os Vereadores), para a respetiva Assembleia Municipal e para as 42 Freguesias do Concelho de F….

De essencial temos ainda apurado que o 2º R. se apresentou como candidato à Câmara de F…, para o exercício do cargo de Presidente que, aliás, já anteriormente ocupara.

Tais factos não pode deixar de produzir efeitos jurídicos que não se esgotam com a finalização do processo eleitoral.

4. A situação em que um conjunto de pessoas se organiza em torno de um ato eleitoral, como proponentes de listas de candidaturas para órgãos autárquicosm, que, por sua vez, são integrados por candidatos que assumem expressamente essa candidatura não encontra na ordem jurídica uma qualificação específica. A lei regula apenas os aspetos relacionados com o processo eleitoral, abstraindo-se dos demais problemas, designadamente dos que giram em torno da responsabilidade pelas dívidas que sejam contraídas no âmbito da disputa eleitoral.

Abrem-se, assim, duas possíveis vias de resolução: considerar que se trata de uma “associação sem personalidade jurídica”, regulada pelos arts. 195º a 198º do CC, ou de uma “comissão especial”, nos termos dos arts. 199º e 200º do mesmo diploma.

Como o indicia a própria designação, a primeira figura ajusta-se a situações em que, ainda que de forma imperfeita, incipiente ou rudimentar, estejam reunidos elementos que caracterizam as associações, como pessoas coletivas a que a lei reconhece personalidade jurídica e cuja regulamentação consta dos arts. 167º e ss. do CC. É assim que se deve compreender o facto de o art. 195º, que regula aquelas formas rudimentares de natureza associativa, remeter para a aplicação supletiva daquele regime, na parte em que tal se justifique.

Como refere Menezes Cordeiro, no Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, t. IV, p. 733, quando nos reportamos a tais realidades, “tudo aponta para a personalidade coletiva das associações «não personalizadas». E não se trata, na generalidade dos casos, de «pessoas rudimentares”: antes de verdadeiras pessoas coletivas, às quais tudo é acessível, exceto a limitação da responsabilidade dos associados e o acesso ao quadro de vantagens administrativas, fiscais e económicas que o Direito pode conceder a determinadas associações”.

Realidades que, como também refere Pais de Vasconcelos, em Teoria Geral de Direito Civil, 8ª ed., p. 193, correspondem, em geral, a associações que não foram constituídas por escritura pública ou que não cumprem as exigências do art. 158º, caracterizando-se, ainda assim, pela existência de um fundo comum “composto pelas contribuições dos associados, pelos bens que com o produto destas contribuições vierem a adquirir e ainda pelos que lhes forem doados e deixados”.

Refere João Zenha Martins, em Das Associações sem Personalidade Jurídica, p. 101, que “as associações sem personalidade jurídica têm uma denominação associativa própria, que as individualiza, e um fundo patrimonial constituído por uma massa de bens exclusivamente afeta, que se contrapõe ao património dos seus associados”. Mais adiante acrescenta que, “integrando-se no género da associação, não podem dispensar a existência de uma estrutura organizativa mínima, que institua centros de imputação de poderes funcionais …” (p. 114).

Ainda que a lei não reconheça a tais “entidades” a autonomização resultante da atribuição de personalidade jurídica, o facto de corresponderem, em traços gerais, ao figurino das associações ou de terem uma componente patrimonial traduzida na existência de um fundo comum justificam que, pelas dívidas contraídas no seio dessa organização responda, em primeiro lugar, o património integrado no fundo comum, seguido da responsabilização daquele que em nome de tal entidade assumiu a obrigação e apenas, em último lugar, responsabilizando os elementos integrantes, na proporção da respetiva contribuição para o fundo comum.

Assim, ainda que a tal núcleo associativo não tenha presidido o objetivo de constituição de uma associação ou que, porventura, o processo constitutivo ainda não tenha cumprido todas as formalidades legais de que depende a atribuição de personalidade jurídica, existirá um elemento patrimonial que, a par de um elemento organizacional, acaba por caracterizar a figura da associação sem personalidade jurídica, justificam a atribuição de personalidade judiciária (Ac. do STJ, de 20-10-05, 05B1890).


5. Algo diversa é a figura da comissão especial relativamente à qual, atenta a fórmula legal constante do art. 199º do CC, é usual acentuar-se a existência de um núcleo de pessoas que agem no sentido da realização de um fim transitório.

Apresentando uma natureza ainda mais incipiente do que as associações sem personalidade jurídica, não pressupõem sequer a contribuição de cada um dos membros integrantes para um fundo comum, o qual resultará da recolha posterior.

Como se refere no Ac. do STJ, de 31-5-05, 05B1717, “trata-se de agrupar uma pluralidade de pessoas, sem intenção de constituírem uma pessoa coletiva ou jurídica, na realização de um projeto comum de natureza transitória do tipo previsto no referido normativo.

Assim se explica por que motivo, pelas obrigações contraídas em nome dessa entidade, são responsabilizados solidariamente os respetivos membros.

Segundo Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 735, não existe, nestes casos, um “substrato organizatório e pessoal que faria delas «associações» sem personalidade jurídica …”, encontrando justificação na “recolha de fundos de terceiros, afetando-os a fins não lucrativos”. Objetivos que também são acentuados por Pais de Vasconcelos, aludindo aos “fins altruístas, não egoístas, sobretudo não lucrativos” (ob. cit., p. 195). Enfim, através de tal organização de pessoas, “não se procura constituir um centro autónomo de direitos e obrigações, mas apenas «aproveitar a capacidade (individual) de várias pessoas para a realização de um fim comum” (Comentário ao CC, Parte Geral, ed. Universidade Católica, citando Pires de Lima e Antunes Varela).

6. Como já se descreveu anteriormente, as normas que regulam as eleições autárquicas atribuíram relevo a uma organização que parte de um grupo de cidadãos eleitores e que envolve também os elementos propostos para cada uma das candidaturas que necessariamente aceitam integrá-la. Nada foi previsto nem acerca do modo como se organiza tal “entidade”, nem sobre a existência de algum fundo comum, embora naturalmente a apresentação de qualquer candidatura implique a realização de despesas que, por seu lado, serão satisfeitas com fundos angariados dentro ou fora do grupo de cidadãos eleitores e que, aliás, estão sujeito a controlo externo.

Como refere Jorge Miranda, em Manual de Direito Constitucional, t. VII, pp. 160, 161, 197 e 198, “os grupos de cidadãos eleitores que apresentem candidaturas a órgãos das autarquias locais são destinados a durar apenas por certo período – o da duração dos mandatos dos titulares eleitos – e embora dêem origem a uma individualidade distinta, esta é destituída de personalidade jurídica por faltarem todos os necessários elementos de substrato e por causa da existência muito contingente”.

Estamos, assim, em face de uma realidade que emerge diretamente da lei eleitoral, na parte em que admite a apresentação de listas propostas por grupos de cidadãos eleitores, sem mais preocupações de organização, a não ser a referência a um mandatário e a um mandatário financeiro, e, assim, sem sequer regular a eventual existência de um fundo patrimonial comum.

Nessa medida, não se encontra em tal realidade qualquer afinidade com as associações sem personalidade jurídica, ajustando-se mais à figura da comissão especial, no caso, com o objetivo de se apresentar a um ato eleitoral, finalidade que ainda se integra nos fins atípicos (“atos semelhantes”) referidos no art. 199º do CC.

Com efeito, a interpretação de tal preceito não pode deixar de ter em conta que ainda mantém a sua redação original adotada em pleno Estado Novo, em que era outro o regime de organização, de funcionamento e de integração dos órgãos das autarquias locais.

No que concerne ao grupo de cidadãos eleitores que se organizam em torno de uma ou mais candidaturas verifica-se que quer a Lei Orgânica, nº 1/01, quer da Lei nº 56/98 (já revogada), prevêem a afetação das respetivas receitas à apresentação de candidaturas e respetiva produção de campanha eleitoral, sem qualquer objetivo lucrativo. Características que condizem com as que presidem às “comissões especiais” que são constituídas com finalidades transitórias, esgotando-se a respetiva atividade com a realização do escopo a que se propuseram.

7. No caso dos autos está em causa a responsabilidade pelo pagamento de uma dívida que foi contraída no âmbito de um processo eleitoral.

Tendo sido constituído um grupo de pessoas que se associou em torno da apresentação de candidaturas a órgãos das autarquias locais (fim transitório de natureza política), não parece ajustado excluir dessa “entidade” e do regime jurídico que lhe é aplicável precisamente a pessoa em redor da qual se gerou o referido movimento eleitoral.

Não importa para o caso estabelecer a comparação com outros candidatos a outros lugares ou a outros órgãos autárquicos envolvidos no mesmo movimento eleitoral ou sequer com os proponentes de tais candidaturas.

Num recurso que visa simplesmente apreciar a responsabilidade que pode ou não pode ser assacada ao 2º R., não é ajustado tomar posição abstrata sobre tudo quanto pode estar ligado à previsão legal da existência de “grupos de cidadãos eleitores”, de “listas de proponentes” ou de “listas de candidatos” associadas ao processo eleitoral que se destina à escolha democrática dos cidadãos que irão ocupar cada um dos órgãos das autarquias locais. Interessa apenas apreciar a posição que o 2º R. ocupava em tal “movimento” e em tal processo eleitoral, para daí extrair as consequências.

Ora é evidente – e inegável - o papel central do 2º R. BB no referido movimento, o que fez dele parte integrante, mais do que isso, o principal elemento da “entidade” que ao mesmo correspondeu.

Independentemente da delimitação rigorosa de todos os elementos que em concreto poderiam ser identificados como elementos dessa “entidade” e a quem, porventura, também poderiam ser imputadas responsabilidades (matéria para a qual não seria destituída de interesse alguma iniciativa processual da parte do 2º R. que levasse a intervir nesta ação outros indivíduos a quem porventura imputasse semelhante responsabilidade, em regime de solidariedade, nos termos dos arts. 316º e ss. do CPC) parece a todos os títulos ajustado que não se exclua dessa responsabilidade precisamente a pessoa que, para além de dar o nome para sigla que foi utilizada, se apresentou como candidato à Câmara Municipal que, como é sabido, constitui o principal órgão autárquico e objetivo central deste tipo de disputas eleitorais.

O confronto com a realidade que se impõe quando é procurada a solução para qualquer litígio não permite a este Supremo Tribunal de Justiça que olvide que o lugar que realmente conta para efeitos de eleições autárquicas é o de Presidente da Câmara Municipal, atribuído legalmente ao primeiro candidato da lista mais votada (seja esta de origem partidária ou de algum grupo de cidadãos eleitores), já que é dele que depende, em grande parte, a dinâmica do Município e mesmo alguns aspetos de funcionamento das Freguesias.

Por isso, não será o facto de não estar provado que o 2º R. fosse um dos proponentes da candidatura à Câmara Municipal (cuja lista, no entanto, encabeçava), que deve levar a que se considere excluído da referida entidade, como “comissão especial” sujeita ao regime dos arts. 199º e ss. do CC, e que, por essa via, seja exonerado de qualquer responsabilidade pelas despesas que foram realizadas em nome de um projeto que tinha como sigla o seu nome e que envolvia, além do mais, mas sobretudo, a candidatura à Câmara de F….

8. Nos termos do art. 200º do CC os elementos que integram as comissões especiais respondem solidariamente pelas obrigações contraídas em seu nome.

Assim ocorre com a concreta obrigação dos autos resultante de uma solicitação feita por CC de fornecimento de diversos materiais para a campanha eleitoral das eleições autárquicas do ano 2001, em nome do “MBB/PF”.

Ainda que porventura o 2º R. não tenha sido proponente de outras candidaturas a outros órgãos autárquicos, o seu papel central no referido movimento torna-o naturalmente responsável pelas despesas que foram contraídas no âmbito de um movimento eleitoral submetido ao regime de financiamento e de realização de despesas que já constava da Lei de nº 56/98, de 18-8.

Além disso, mesmo que o referido fornecimento tenha aproveitado a outras candidaturas para além daquela que, encimada pelo 2º R., se apresentou a concorrer à Câmara de F…, não pode desvincular-se do pagamento, atenta a solidariedade prevista no art. 200º do CC.

O facto de não se ter provado que foi o 2º R. que contactou a A. para o fornecimento (desconhecimento para que contribuiu também a omissão do 2º R. que nada esclareceu acerca do seu efetivo papel no ato eleitoral, limitando-se a impugnar o que a esse respeito foi alegado pela A.) não o exime da responsabilidade pelo pagamento da dívida que ainda subsiste, atenta a sua qualidade de membro integrante do movimento eleitoral que foi efetivamente a “entidade” em nome da qual foi contratado o fornecimento e que acabou por utilizar os produtos fornecidos pela A.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando-se a sentença da 1ª instância.

Custas desta revista a cargo do 2º R.

Notifique.

Lisboa, 22-3-18

Abrantes Geraldes (relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo