Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
783/11.2TBMGR.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MOREIRA ALVES
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
INCÊNDIO
DEFEITOS
DEFESA DO CONSUMIDOR
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÕES LEGAIS
Data do Acordão: 03/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO DO CONSUMO - VENDA DE BENS DE CONSUMO E SUAS GARANTIAS.
Doutrina:
- Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 4.ª edição, p. 83.
Legislação Nacional:
D.L. N.º 67/2003, DE 8-4: - ARTIGOS 2.º, N.ºS 1 E 2, ALS. A), B), C) E D), 3.º, 4.º, N.º1, 6.º, 9.º, N.º 3, AL. A), 10.º.
Legislação Comunitária:
DIRECTIVA 1999/44/CE.
Sumário :

- O A., alegando simplesmente que o veículo comprado à Ré se incendiou quando estava estacionado junto da residência, não alegou qualquer defeito de que o veículo fosse portador;

- O incêndio não é, seguramente, um defeito, uma falta de qualidade ou deficiente funcionamento, mas a consequência de um processo causal anterior;

- No âmbito do D.L. 67/2003, é ao consumidor que cabe o ónus de alegar e provar o defeito e que ele já existia no momento da entrega da coisa, embora disponha de presunções legais que facilitam tal prova;

- Tais presunções fazem apelo a conceitos abertos que terão de ser densificados através de factos concretos da vida real, que razoavelmente, de acordo com as regras da experiência comum, permitam inferir a falta de qualidade e de desempenho normal que é de esperar de bens daquela natureza;

- Por isso, provar tão somente que o veículo se incendiou quando estava estacionado, há longo tempo, junto à residência do proprietário, não contém qualquer facto concreto de onde possa deduzir-se qualquer falta de qualidade ou de desempenho, normalmente expectável, o que significa que não fica provado o facto base da presunção legal do qual a lei faz presumir à falta de conformidade;

- Se o facto base da presunção legal não fica densificado ou preenchido, a presunção não pode funcionar, e por isso, não havendo presunção, o R. não tem que a ilidir.       

Decisão Texto Integral:

No Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande,
AA,

intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra
... – COMÉRCIO AUTOMÓVEL S.A.

*

Em resumo, alegou em fundamento que adquiriu à Ré a viatura automóvel de matrícula ...-HC-..., em 03.03.2010, pelo preço de 33.000,00 €, tendo para o efeito entregue um cheque no valor de e 28.000,00 € e uma viatura à qual a ré atribuiu o valor de 5.000,00 €.

No dia 06.11.2011, quando a referida viatura se encontrava estacionada, deflagrou um incêndio na mesma, em consequência do qual toda a parte da frente do motor ficou reduzido a cinzas e, onde se encontravam o radiador, compressor do ar condicionado e demais partes mecânicas, nada existe.

A viatura em causa encontrava-se dentro do período da garantia conferida pela ré, mas, não obstante tal facto, a mesma recusa-se a assumir os danos decorrentes do incêndio que se traduzem na perda total da viatura.

Peticiona, na sequência, a condenação da Ré, a substituir a viatura destruída pelo incêndio por outra igual ou proceder à restituição do preço pago (33.000 €).

*

Regularmente citada, a ré apresentou a contestação de fls. 68 e ss, alegando ter vendido o veículo em causa, no dia 26.02.2010 pelo valor de apenas 28.000,00 €, nunca tendo aceite, qualquer veículo em retoma.

Na data da venda, o autor solicitou uma garantia ODL, Ocasião do Leão, a qual foi concedida pela ré e que teve o seu início após a finalização da garantia legal, ou seja, em 31.12.2010.

Foi informada pelo autor que o veículo havia sofrido um incêndio, pelo que se disponibilizou para o verificar, o que veio a acontecer. Na sequência da análise da viatura, concluiu-se que não existiam quaisquer problemas técnicos na origem do incêndio, não tendo este origem em qualquer falha ou patologia nos órgãos ou equipamentos do veículo, mas sim em causa exterior.

Conclui que os danos sobrevindos à viatura não lhe podem ser imputáveis, pelo que pede a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.

*

Dispensada a realização da audiência preliminar, foi proferido o despacho saneador de fls. 133 a 136, onde se decidiu que o tribunal é absolutamente competente, o processo não enferma de nulidades, as partes tem personalidade e capacidade judiciárias.

Foram fixados os factos considerados assentes e elaborada a base instrutória da causa, da qual não houve reclamações.

*

Realizado o julgamento e lida a decisão de facto, foi proferida sentença final que, julgando a acção procedente, condenou a Ré a proceder à substituição do veículo automóvel de matrícula ...-HC-..., marca Peugeot, modelo Coupé, por veículo de igual marca, modelo, duração reportada à data da sua entrega ao autor (26/2/2010) e quilometragem na mesma data.

*

Inconformada, apelou a Ré, tendo a Relação julgado procedente o recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida, absolvendo a Ré do pedido.

 *

É agora o A. que recorre da revista para este S.T.J.

Conclusões

*

A terminar a sua alegação formula o recorrente as seguintes conclusões:

*
“1. O D.L. 67/2003 existe para assegurar a defesa dos direitos do consumidor, prevendo presunções que cabe ao vendedor ilidir.
2. Ao consumidor / autor não cabe provar a causa do defeito, independentemente do modo como ele se demonstra — no caso foi um incêndio.
3. Não pode ser feita distinção em relação ao modo como o defeito de manifesta, se em andamento, ou se parado.
4. Em sede de contestação, foi a ré quem alegou factos que poderiam ilidir a presunção decorrente da lei, o que não conseguiu fazer.
5. O douto acórdão procede à inversão do ónus da prova, contrariando o que a própria lei prevê.
6. Cabe ao vendedor alegar, como fez, e provar, o que não conseguiu, que o defeito que se manifestou teve causa alheia ao normal funcionamento do bem.
7. No caso, a falta de conformidade verificou-se no momento em que a viatura se incendeia, a menos que se deva passar a entender que é aceitável que se compre uma viatura automóvel e ela se incendeie.
8. Reportando-se o douto acórdão às "circunstâncias em que tal ocorreu", para que não seja aplicável a presunção resultante da lei, seria então aceitável que o autor tivesse mentido para que as circunstâncias fossem outras já aceitáveis pelos senhores Juízes Desembargadores?
9. Quando se compra uma viatura automóvel espera-se que ela não apenas ande mas também que, quando estacionada, não se incendeie, sendo estas as condições de conformidade do bem com o que dele se espera.
10. Ao autor cabia provar o defeito e nunca a causa.
11. O autor provou o defeito.
12. A ré cabia provar que a causa do defeito não era imputável ao próprio bem mas a má utilização por parte do autor ou causa externa.
13. A ré não logrou provar tal facto.
14. A douta decisão viola o disposto no D.L. 67/2003, designadamente o disposto no artº 6º, fazendo uma errada interpretação e aplicação da lei ao caso concreto.
15. Só revogando o douto acórdão, mantendo a decisão da primeira instância, se poderá fazer Justiça.”

Os Factos

*

Foi a seguinte a factualidade fixada pelas instâncias:

*
1. O Autor declarou comprar e a Ré declarou vender ao mesmo, a viatura automóvel de matrícula ...-HC-..., de marca Peugeot 407, Coupé.
2. Por força do negócio referido em 1), o A. entregou à Ré a quantia de € 28.000,00.
3. Na mesma data, foi atribuído pela Ré uma garantia OLD, por mais dois anos, nos termos dos documentos 8 e 9, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
4. A garantia referida em 3) iniciou-se 2 (dois) anos após a data da 1ª matrícula da viatura, ou seja, em 31.12.2010.
5. No dia 06.02.2011, cerca das 6,20h, nas traseiras da rua onde habita o Autor, incendiou-se a viatura identificada em 1), na parte da frente do motor, o que provocou a total destruição do motor, chassis, suspensão, direcção, radiador, compressor do ar condicionado da referida viatura.
6. A Ré tem como objecto social o comércio de veículos automóveis, importação, exportação, reparação de veículos, comercialização de peças e acessórios.
7. A Ré emitiu em nome do Autor uma factura, datada de 26.02.2010 referente ao veículo supra referido, com a seguinte menção: “os artigos facturados foram colocados à disposição do adquirente nesta data.”

Fundamentação

*

Resulta dos autos que o A. comprou à Ré o identificado veículo automóvel (usado).

A Ré concedeu ao A. uma garantia OLD, por mais dois anos, que se iniciou a partir do termo da garantia do fabricante, ou seja, em 31/12/2010. (confr. documento de fls. 3).

No dia 6/2/2011, cerca das 6h20m, quando o veículo se encontrava estacionado nas traseiras da rua onde habita o A., ocorreu um incêndio na parte da frente do motor, que provocou a destruição total do veículo.

Em consequência, pretende o A. a condenação da Ré a substituir a viatura destruída por outra idêntica.

Obteve provimento da sua pretensão em 1ª instância, mas, sob recurso da Ré, a Relação revogou a sentença recorrida, absolvendo a Ré do pedido.   

*

A questão agora colocada na revista é a de saber se, perante a destruição do veículo resultante do incêndio, o A. tem direito à pretendida substituição, ao abrigo do D.L. 67/2003 de 8/4.

*

Notar-se-á, antes de mais, que o A. começou, ao que parece resultar da petição inicial, por pretender fazer valer a garantia convencionada (garantia voluntária).

Só que, como dela expressamente consta, não está coberto por tal garantia o “ incêndio, mesmo em consequência de avaria de uma parte ou componente coberto ” (Artº 6º do texto da garantia).

Todavia, porque através da garantia convencionada não é possível eliminar qualquer dos direitos concedidos ao consumidor pelo D.L. 67/2003, como resulta quer do disposto no seu Artº 9, nº 3, a), quer do Artº 10, o facto da dita garantia excluir a cobertura dos danos emergentes de incêndio, não obsta ao exercício do direito a que o A. se arroga.

Ponto é que, no caso concreto, o A. seja efectivamente titular do direito à substituição do veículo, como pretende.      

*

Segundo o regime estabelecido pelo citado diploma legal que regula a venda de bens de consumo, cuja aplicação não vem posta em causa, o consumidor /comprador, em caso de falta de conformidade do bem vendido com o contrato, tem direito a que aquela conformidade seja reposta, sem encargos para si, por meio de reparação ou de substituição, assim como poderá optar pela redução adequada do preço ou mesmo resolver o contrato (Artº 4º, nº1).

Por sua vez, o vendedor tem o dever de entregar ao comprador/ consumidor, bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda, presumindo-se a falta de conformidade, verificadas que sejam determinadas circunstâncias descritas na lei, designadamente quando os bens “ não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atento a natureza do bem …” (Artº 2º, nº 1 e 2, d)).  

*

Com interesse para o caso, dispõe ainda o Artº 3º que:
“nº 1 – O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.
nº 2 – As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou cinco anos a contar da data da entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade ”.

Ora, como é doutrina e jurisprudência assentes, o D.L. 67/2003, que como se sabe, transpôs para o direito interno a directiva 1999/44/CE, não alterou o ónus da prova que já resultava do nosso direito comum a respeito da venda de coisa defeituosa.

*

Assim sendo, compete ao comprador/ consumidor, alegar e provar o defeito da coisa, isto é, a sua desconformidade com o contrato, na terminologia do referido D.L., e que esse defeito existia à data da entrega.

Simplesmente, para garantir ao consumidor um mínimo de protecção, a lei estabeleceu presunções de não conformidade, as quais, abrangendo situações correntes “ valem como regras legais de integração do negócio jurídico, destinadas a precisar o que é devido contratualmente na ausência ou insuficiência de cláusulas que adrede fixem as características e qualidades da coisa a entregar ao consumidor em execução do programa negocial adoptado pelas partes” como observa Calvão da Silva, in Venda de Bens de Consumo – 4ª edª - pág. 83.

 *

E, por outro lado, considerando a dificuldade da prova da existência do defeito à data da entrega, quando ele se manifesta ao longo de um período de tempo relativamente longo (dentro de 2 ou 5 anos, a contar da entrega), a lei favorece o consumidor, determinando que a falta de conformidade verificada dentro dos referidos prazos, faz presumir que o defeito já existia à data da entrega, competindo, então, ao vendedor, ilidir a presunção de não conformidade ou que, atentas as circunstâncias, o defeito não existia na data da entrega.

 *

Portanto, e resumindo, cabe ao A. (consumidor) alegar e provar o defeito existente à data da entrega da coisa (no caso, da entrega do veículo automóvel), embora essa prova se encontre muito facilitada pelas mencionadas presunções legais.

Bastará, pois, ao consumidor alegar e provar os factos base da presunção e que eles se manifestaram dentro do prazo da garantia legal imposta pelo D.L. (2 anos). 

*

Que o incêndio se verificou dentro do aludido prazo, não oferece qualquer dúvida, ponto é saber se, no caso concreto, está provado o defeito e, portanto, se está demonstrada a falta de qualidade do veículo e a inexistência do desempenho habitual que seria razoavelmente expectável.

   *

Por outras palavras, há que averiguar se perante a factualidade disponível pode presumir-se a não conformidade do automóvel vendido pela Ré, nos termos do Artº 2º nº 2 d) do D.L. 67/2003, o que naturalmente, passa por saber se está demonstrado, o facto base da presunção legal.

*

A este respeito o A. alegou apenas que o veículo se incendiou, quando estava estacionado perto da sua residência, o que ficou provado.

Quanto à Ré, alegou que o incêndio não resultou de qualquer defeito do veículo ou do deficiente funcionamento de qualquer das suas partes componentes, mas sim da actuação externa de terceiros, o que, porém, não provou.       

*

Assim, no que aqui essencialmente interessa, apenas se sabe que o veículo em causa, pelas 6h20m da madrugada de 6/2/2010, quando se encontrava estacionado junto da residência do A., se incendiou.

*

Na 1ª instância entendeu-se que “ só por si, o incêndio verificado demonstra que o veículo em causa não tinha as qualidades e o desempenho habituais em veículos automóveis, que o consumidor pode razoavelmente esperar…”

*

No entanto, tal como o acórdão recorrido, estamos convictos que não é possível extrair, da simples ocorrência de incêndio, tal ilação.

Faltará, na nossa modesta opinião, base factual que a permita.

Mas vejamos melhor.  

*

Como se disse, a lei faz presumir a falta de conformidade com o contrato, sempre que o bem não apresente as qualidades e o desempenho habituais nos bens da mesma natureza e que o consumidor pode razoavelmente esperar, fazendo, assim, apelo a conceitos abertos, como qualidade normal, uso habitual, desempenho normal, atenta a natureza do bem

Tais conceitos genéricos constituem, pois, a base da presunção legal, mas têm, naturalmente, de ser densificados através de factos concretos da vida real, que razoavelmente permitam inferir a falta de qualidade e de desempenho normal que é de esperar para bens daquela natureza.

Como é óbvio, o consumidor não pode alegar apenas que o bem que comprou não tem as qualidades e o desempenho habitual expectável (tal seria meramente conclusivo). Terá, isso sim, de alegar e provar factualidade concreta, da qual resulte aquela falta de qualidades e desempenho.

Será, pois, a partir dessa factualidade que a lei presume a desconformidade.

Por isso, não será um qualquer facto concreto que fará funcionar a presunção de desconformidade, mas apenas aquele ou aqueles que, de acordo com as regras de experiência comum, tenham aptidão, em geral, para provocar um resultado desconforme com o que normalmente seria expectável obter do bem em causa, atenta a sua natureza.

*

Assim, considerando que o bem em questão é um veículo automóvel, se dentro do prazo da garantia legal ocorre um despiste e o veículo, desviando-se da sua rota normal, acaba por cair por um precipício existente no outro lado da via, não poderá presumir-se, sem mais informação, que o acidente resultou do mau funcionamento dos órgãos da direcção, assim como, se o veículo vai embater num outro que seguia à sua frente, ninguém vai presumir, só em função da ocorrência, que existia defeito no sistema de travagem.

 *

Da mesma forma, no caso concreto, sabendo-se tão só que o veículo do A. se incendiou quando estava estacionado há longas horas (como tudo indica), numa rua junto à residência do proprietário, não nos parece possível presumir que o incêndio teve origem em qualquer deficiência interna do sistema eléctrico.

Alega o A. que provou o defeito (isto é, o incêndio), não lhe pertencendo o ónus de provar a sua causa.  

Ora, se é certo que não tinha de demonstrar a causa do defeito, competia-lhe, no entanto, provar o defeito.  

Acontece que o incêndio não é um defeito, uma falta de qualidade, um deficiente funcionamento, é, antes, a consequência de um processo causal anterior e é no interior desse processo causal que há-de encontrar-se o defeito, isto é, o facto concreto (curto-circuito, ligação mal efectuada, instalação eléctrica com comportamento anormal, etc., etc..), a partir do qual se deduz a falta de qualidade e a inexistência do desempenho que seria, nas circunstâncias, expectável, o que, por sua vez, faz presumir a desconformidade da coisa (automóvel, no caso) com o contrato.

*

Diz ainda o A. que, de um veículo automóvel se espera que não arda, mesmo que imobilizado.

É certo que não é suposto que os automóveis se incendeiem, sobretudo quando estão estacionados, com o sistema de ignição desligado, mas a verdade é que tal aconteceu, sem que o A. impute a ocorrência (e prove a imputação) a um específico defeito ou deficiência de funcionamento que, independentemente da prova da sua causa (causa do defeito), e de acordo com as regras da experiência comum e do bom senso, indicie uma falta de qualidade e desempenho anormal, em função do que razoavelmente seria de esperar de uma coisa daquela natureza.

Ora, as mesmas regras da experiência comum e o bom senso, revelam que um veículo automóvel, dotado de todas qualidades normais que lhe são características, com desempenho também perfeitamente normal, pode, não obstante, incendiar-se por motivos absolutamente alheios e exteriores ao próprio veículo, designadamente, por acção de terceiro ou caso fortuito. Quer dizer que a ocorrência do incêndio pode ocorrer e ocorre, de facto, na vida real, mesmo na ausência de qualquer defeito ou deficiência de funcionamento.

Por isso, do incêndio do veículo, só por si, desacompanhado da prova da existência de defeito (repete-se, o incêndio não consubstancia qualquer defeito) não pode deduzir-se a falta de qualidades e de desempenho habituais a que se refere o nº 2, d) do Artº 2 do D.L. 67/2003, ou a falta de conformidade ou adequação prevista nas alíneas a) b) e c) do preceito.

*

Assim, salvo melhor opinião, entendemos que, provado, pura e simplesmente, o facto incêndio (que, como se disse repetidamente, é uma consequência de um facto anterior, e não um defeito visto que nenhum foi alegado), não ficam densificados quaisquer dos conceitos abertos do Artº 2º do D.L. 67/2003, o mesmo é dizer, não ficam provados os factos índices, ou os factos base da presunção legal, pelo que não pode presumir-se a falta de conformidade do veículo vendido pela Ré ao A., com o respectivo contrato de compra e venda.

 *

    Alega, finalmente, o A. que era à Ré que competia alegar e provar que o defeito teve causa alheia ao normal funcionamento do veículo, de modo que a posição defendida pelo acórdão recorrido significa a inversão do ónus da prova, o que contraria a lei.

*

Mas não tem razão.

*

Sendo certo que pertencia à Ré /vendedora o ónus de provar que não existe desconformidade à data da entrega (factualidade que a Ré alegou, mas não provou), o que de facto se traduz no ónus de provar que o defeito não existe ou que teve causa alheia ao funcionamento do veículo, a verdade é que esse ónus probandi só surge numa segunda fase, isto é, quando o A. demonstre a factualidade base da presunção de desconformidade (o que, como se viu, não aconteceu).

Só então terá a vendedora o ónus de ilidir essa presunção legal que a desfavorece, se quiser afastar a sua responsabilidade.

Porém, se o consumidor (aqui o A.) não prova a base de presunção de que beneficia, não existe presunção para ilidir e, por isso, é irrelevante que a Ré não tenha provado a causa externa que alegou.  

 Não há, aqui, como será bom de ver, qualquer inversão do ónus da prova, como quer o A.

*

Notar-se-á, ainda, que o A. chama à colação o disposto no Artº 6º do D.L. 67/2003, que considera violado pelo acórdão recorrido.

Só que tal preceito, porque se refere apenas aos direitos que o consumidor pode exercer contra o produtor e aos meios de oposição deste, não têm aqui qualquer aplicação, visto estarem em causa apenas as relações entre o A., como consumidor, e a Ré, enquanto vendedora (e não produtora).  

  *

Quanto ao que consta do ponto 8 das conclusões, porque não contém qualquer argumento mas uma simples observação, aliás despropositada e sem sentido, abstemo-nos de a comentar.    

*

Portanto, não tendo o A. provado o defeito, que, de resto, nem alegou, não tem direito à pretendida substituição, sendo certo que a solução não seria diferente, face ao regime comum da compra e venda de coisas defeituosas.

 *

Improcedem, por conseguinte, todas as conclusões da revista.  

Em conclusão e resumindo:

- O A., alegando simplesmente que o veículo comprado à Ré se incendiou quando estava estacionado junto da residência, não alegou qualquer defeito de que o veículo fosse portador;

- O incêndio não é, seguramente, um defeito, uma falta de qualidade ou deficiente funcionamento, mas a consequência de um processo causal anterior;

- No âmbito do D.L. 67/2003, é ao consumidor que cabe o ónus de alegar e provar o defeito e que ele já existia no momento da entrega da coisa, embora disponha de presunções legais que facilitam tal prova;

- Tais presunções fazem apelo a conceitos abertos que terão de ser densificados através de factos concretos da vida real, que razoavelmente, de acordo com as regras da experiência comum, permitam inferir a falta de qualidade e de desempenho normal que é de esperar de bens daquela natureza;

- Por isso, provar tão somente que o veículo se incendiou quando estava estacionado, há longo tempo, junto à residência do proprietário, não contém qualquer facto concreto de onde possa deduzir-se qualquer falta de qualidade ou de desempenho, normalmente expectável, o que significa que não fica provado o facto base da presunção legal do qual a lei faz presumir à falta de conformidade;

- Se o facto base da presunção legal não fica densificado ou preenchido, a presunção não pode funcionar, e por isso, não havendo presunção, o R. não tem que a ilidir.       

Decisão:

*
Termos em que acordam neste S.T.J. em negar provimento à revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

*

Custas pelo recorrente.

*
Lisboa, 20 de Março de 2013

Moreira Alves                                                                                 

Alves Velho

Paulo de Sá